Page 100 - ARTE!Brasileiros #56
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LIVROS IMAGEM
“Em tempos assombrosos de fake news
e invasão de privacidade, percebe-se
que o consumo é intrincado às práticas
de vigilância e escaneamento,
que se tornam protagonistas nos
sistemas contemporâneos de poder”
informáticos, domesticados em bases de dados que, nas redes sociais. Estes casos, como acertadamente
por mais que teçam operações hipercomplexas, tem analisados por Beiguelman, são investigados por pes-
seu input em números. Como Beiguelman nos lembra, quisadores que se dedicam à análise de AI fairness,
“computadores não enxergam”. É necessário ainda criar uma “justiça da inteligência artificial”, que busca uma
uma plataforma – ainda idílica, utópica – que seja capaz “imparcialidade” desses algoritmos. Segundo as esta-
de processar o que se enxerga quando se encontra tísticas de 2018 do Google e do Facebook sobre suas
“diante da imagem”, como diz Georges Didi-Huberman, próprias equipes de inteligência artificial, apenas 10%
teórico da imagem francês. É como tentar ler imagens e 15% são mulheres, respectivamente. Isso reflete que,
e escrever em história da arte ainda sob as amarras por mais haja uma tentativa de inputs imparciais, há
formalistas de estilos e cronologias asfixiantes, sobre sempre tendências éticas que “escapam” para a forma
o qual o paralelismo com o texto de Beiguelman segue com que essas inteligências artificiais pensam: a do
extremamente pertinente: “os conteúdos visuais são homem branco. Como pontuou Alan Jones: “algoritmos
mapeados pelas palavras que os descrevem e pelo não são racistas – nós somos”.
reconhecimento de alguns padrões, como linhas, den- As imagens são movimentadas com o intuito de
sidades e formas”. Insistimos em continuar vivendo e chocarem-se, como o fez o historiador de arte alemão
alimentando um mundo que não representa a realida- Aby Warburg, resultando em uma descarga enorme
de, que desconsidera as complexidades inerentes e de energia, como num colisor de partículas. Não são
as desigualdades causadas. A autora, a partir de sua apenas representações simbólicas, mas são objetos em
própria obra no campo da teoria da imagem, expande si próprios: a imagem não é a representação de algo,
os horizontes multidimensionais das abordagens meto- é algo em si. Reitera-se que, assim como houve uma
dológicas e nos apresenta de forma esperançosa uma revolução epistemológica no pensamento ocidental
epistemologia necessariamente delirante. em marcos que ditavam o ritmo da sociedade, como os
Sempre que se opta por uma repetida adequação modelos industriais e informáticos, se faz necessário
retrocessa – neste caso, a tentativa de conversão de escrever um novo manual de como navegar no mundo
complexas imagens em dados quantitativos –, instau- da dadosfera.
ra-se um caos e o sistema entra em pane: o mundo em Em Políticas da imagem – Vigilância e resistência
suas situações atuais, tanto materiais quanto imateriais, na dadosfera, Giselle Beiguelman perfaz uma literali-
é insustentável. Por mais complexos que sejam os dade digna de Mary Shelley, a escrever um “Prometeus
sistemas e dispositivos de processamento de dados, contemporâneo”, e a contundência que Gilles Deleuze
eles ainda lidam com imagens como se fossem objeti- materializou em A imagem-tempo e A imagem-movi-
vas, o que claramente não são. Evidência disso são os mento. Em uma sociedade onde tratados não mais
fenômenos – ou bugs, caso optemos por um otimismo funcionam, Beiguelman escreve um atlas imagético
– de racismo e misoginia evidenciado pelos algoritmos para contemporaneidade.
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