Page 99 - ARTE!Brasileiros #56
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noções ontológicas e metafísicas sobre o que é verdade, “Ao longo de toda a campanha eleitoral, diante das
exemplificados pelo deepfake, caso em que é confuso (próprias) câmeras, o candidato Bolsonaro ria, ficava
discernir se o que vemos é real: “Quanto mais o discri- sério, desafiava ‘a mídia’, preparava o pão com leite
minador aprende a reconhecer as imagens falsas, mais condensado do seu café da manhã, ia ao açougue e
o gerador aprende a enganá-lo”. O argumento principal fazia churrasco. Aparecia no barbeiro, posava com a
de Beiguelman é que, na sociedade contemporânea, filha, descansava no sofá e compartilhava mimos rece-
as imagens e os dados são infinitos, incessantes e bidos de seguidores anônimos. De camiseta esportiva,
irrefreáveis, pautando as dinâmicas políticas e sociais. shorts, e mesmo de terno e gravata, já no posto de
Dentro de um nevoeiro de ruídos espelhados, como presidente, ele não fala com seu eleitor, ele o exprime.
fractais estilhaçados, suspensos por uma atmosfera E, ao exprimi-lo, transforma-o em um herói, convidando
infectada por fake news em encaminhamentos fre- o eleitor a eleger-se a si próprio.”
néticos e quase automatizados de WhatsApp, cria-se Como, então, entender uma imagem quase quântica,
uma ilusão de igualdade entre o “eu” e o “outro”, afo- com realidades múltiplas, que foge à polarização entre
gando-se num mergulho narcísico que acarreta em real e falso a que estamos acostumados? As forças de
decisões seríssimas. Segundo Beiguelman, a eleição resistência das imagens, paradoxalmente, corroboram
de Bolsonaro foi causada por uma extrema identificação para a sua disseminação – o vetor duplo e ambíguo
do então candidato com os hábitos de seus eleitores: de uma nova compreensão de resistência. Beiguel-
man estabelece uma estrutura metodológica-analítica
digna a essa nova natureza – ou nova artificialidade –,
declarando uma obsolescência essencial dos modos
positivistas de pensar, baseados em dados que, por
mais que já fossem digitais, apresentavam certo aspecto
analógico de interpretação de processamento de dados.
Para que essas imagens possam ser processadas, são
convertidas em dados que homogenizam e padronizam
ângulos, enquadramentos, comportamentos e ações: “O
que está por trás disso são os critérios de organização
dos dados para que sejam mais rapidamente ‘encon-
tráveis’ nas buscas e os modos como os algorítmicos
contextualizam os conteúdos nas bolhas específicas
a que pertencemos (algo que não controlamos e que
nos controla)”, nos explica a autora.
Esta organização de dados, por tentar converter a
matéria indócil das imagens em números, falha. Faz o
caminho reducionista de tentar domar as potências
plurais dos objetos a serem analisados em puros dados
FOTO: MIGUEL GROISMAN Políticas da Imagem - Vigilância e
resistência na dadosfera, publicado
pela Ubu Editora em 2021 (224 p.)
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