Page 98 - ARTE!Brasileiros #56
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LIVROS IMAGEM
AS IMAGENS-VÍRUS
DE BEIGUELMAN
Em seu novo livro, Políticas da imagem
– Vigilância e resistência na dadosfera,
Giselle Beiguelman fala de um tempo
atual em que as imagens tornam-se
infinitas, fragmentadas e pulverizadas
por mateus nunes
em o som e a Fúria, William Faulkner escreve: “Fui até pandemicamente, num extremo exponencial gritante.
a cômoda e peguei o relógio, ainda com o mostrador As imagens contaminam-se. Esta contaminação das
virado para baixo. Quebrei o vidro na quina do móvel imagens na dadosfera, dada a leitura análoga à atual
e aparei os cacos na mão e coloquei-os no cinzeiro e pandemia, já é constatada em psicopatologias – como
arranquei os ponteiros e os pus no cinzeiro também. O transtornos ansiosos-depressivos – e suas somatiza-
tique-taque não parou”. A sensação de estar munido de ções a partir da fenotipagem digital e do reposicio-
um marcador que não mais serve, ineficiente ao mostrar namento da subjetividade humana. Ninguém passa
uma representação falha de uma realidade que não para, incólume por estas pandemias. No campo da teoria da
é a inquietação sentida ao vislumbrar o mundo depois imagem, a dualidade do paradigma que Beiguelman
de ler o novo livro de Giselle Beiguelman, Políticas da nos apresenta vai além da ambiguidade da imagem,
imagem – Vigilância e resistência na dadosfera (Ubu, esta que, ao mesmo tempo que é estrutural, também
2021). Ao segurar algo que faz tique-taque e não mostra é dinâmica. A autora questiona o pathos da imagem,
o tempo, talvez estejamos carregando nas mãos uma tanto na patologia psíquica e pandêmica, quanto no
bomba: celulares e relógios que têm como funções mais pathos imagético, conceito caro à filosofia e à estética
distantes fazer ligações ou mostrar as horas. O texto de ocidentais há milênios.
Beiguelman nos deixa sem fôlego, com o coração a mil, Em tempos assombrosos de fake news e invasão de
tomando cuidado para não fazermos movimentos brus- privacidade, percebe-se que o consumo é intrincado
cos: estamos com uma granada de imagens nas mãos. às práticas de vigilância e escaneamento, que se tor-
Ao explodir, essas imagens tornam-se infinitas, nam protagonistas nos sistemas contemporâneos de
fragmentadas e pulverizadas no que a autora precisa- poder. A circulação de dados-imagens é inesgotável,
mente chama de dadosfera. Estruturalmente, essas e essas informações pessoais são o produto. Dessa
imagens infinitas podem ser entendidas como rizomas forma, os algoritmos são alimentados para melhor
ou como constelações, em suas dimensões macro e servir as companhias que usufruem deles, forçando o
microcósmicas. Beiguelman nos traz, entretanto, uma usuário – na dadosfera, todo humano é usuário – a ser FOTO: MIGUEL GROISMAN
visão além do entendimento da estrutura, mas para a bombardeado de imagens-vírus. A inteligência artificial
compreensão da dinâmica: as imagens proliferam-se regente subverte, inverte e reverte, simultaneamente, as
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