Page 24 - ARTE!Brasileiros #54
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O VIRTUAL NA PANDEMIA AILTON KRENAK E ROSANA PAULINO
Mundo em disputa
A artista Rosana Paulino e o ambientalista e líder indígena Ailton Krenak
discutiram os limites profundos da visão de mundo vinculada a um suposto
projeto civilizatório, que só aceita os iguais e que relega o “outro” à margem
por maria hirszman
ailton krenak e rosana paulino estão entre os pen- reconhecidas por essa ordenação de mundo”, denun-
sadores de maior destaque na cena brasileira, sobretudo cia, revelando a urgente necessidade de rever essa
nestes tempos pandêmicos de tantos encontros virtuais. lógica supostamente humanista. “Quando alguém
Se isoladamente suas contribuições já são fundamentais afirma o princípio de urbanidade, de colonização
acerca dos imensos desafios enfrentados pelas comu- de mundo, ele destrói meu mundo. Não me inclui.
nidades indígena e afrobrasileira, quando abordam em Só me integro não sendo mais eu mesmo”, reitera
conjunto aspectos fundamentais da vida contemporânea, Krenak, mostrando de forma cristalina os limites de
como a preservação ambiental, a desigualdade social discursos que no fundo oferecem apenas soluções
e a permanente exclusão a que vem sendo submetidos ilusórias e estéreis, como as paliativas ideias de supe-
há séculos, adquirem ainda maior densidade e agudez ração, integração, empreendimento, aculturação e
quando somadas num diálogo fértil de ideias. mérito, sempre baseadas na figura do indivíduo e
“No planeta, 80% ou 90% são excluídos, estão dis- que atendem aos desejos de manutenção do status
putando uma outra narrativa sobre o mundo”, afirmou quo para poucos.
Krenak no encontro promovido entre eles em junho do Remando contra essa postura conformista, Kre-
ano passado pela Organização Ashoka. São dados que nak e Paulino pregam a necessidade real e urgente
explicitam a perversidade de uma via cada vez mais exclu- de entender os campos de disputa e de persistir no
dente, de radicalização da lógica neoliberal que vem se esforço de imaginar e construir novos mundos possí-
impondo sobre o mundo e, em particular, sobre o Brasil, veis, sem se render à tendência globalizante do capital
onde o chefe de Estado reage às milhares de mortes com financeiro. Não há tempo a perder nem espaço para a
um lamentável “e daí?!”. A desumanidade contida nessa acomodação. “Não posso acreditar que não há mais
reação serve de síntese para as análises de ambos, tor- o que fazer. Meus ancestrais chegaram num porão de
nando evidentes as constatações tanto de Krenak como navio”, rebate Rosana.
de Paulino sobre os limites profundos da
visão de mundo vinculada a um suposto
projeto civilizatório, que só aceita os
iguais e que relega o “outro” à margem.
Há anos debruçando-se sobre
a intersecção entre arte e ciência,
trabalhando em cima das cons-
truções promovidas pelo racismo
científico, Rosana Paulino deixa FOTO: REPRODUÇÃO YOUTUBE
evidente – tanto no discurso como
eu seu trabalho artístico – como
esse modelo de ordenação das
cidades, da natureza, do conheci-
mento é destrutivo e excludente. É
preciso incorporar novos saberes:
“os grupos que ficaram à margem Rosana Paulino, Ailton Krenak
têm tecnologias que não foram e João Souza (abaixo)
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