Já avançado no texto, a certa altura, o escritor conta-nos um episódio hilário e interessantíssimo, de quando trabalhava como mediador no Museu Afro Brasil, em São Paulo. Certo dia coube-lhe acompanhar um senhor finlandês durante sua visita ao museu. Percebendo-o como um sujeito inteligente, mas destituído de qualquer conhecimento sobre a história do Brasil, das questões relativas à escravidão e ao preconceito racial entre nós, o então mediador do Afro Brasil se desdobrou para colocar o visitante a par de todos esses processos tão complexos, dos quais se destacava a questão da arte afro-brasileira.
Ao final de sua fala, já cansado, nosso escritor ouviu do finlandês a pergunta: “Mas vocês acham os portugueses brancos?”
O leitor e a leitora por certo perceberam que foi justamente da pergunta do visitante que tirei o título deste artigo – uma resenha “mesmo que tardia” de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito, publicado em pdf, em 2016, pelo curador em arte africana e historiador da filosofia, Renato Araújo da Silva.
O trecho citado está no meio das inimagináveis 726 páginas do texto de Renato, justamente no momento escolhido por ele para introduzir no debate ali instituído sobre o conceito de arte “afro-brasileira,” a problemática da mestiçagem – um dos pontos mais interessantes de todo o trabalho. E, de fato, esse é um dos inúmeros pontos de interesse do texto, mas não o único. Levando-se em conta o nível de seu alcance historiográfico e crítico, entendi, logo na leitura de suas primeiras páginas, estar frente a um dos principais acontecimentos no campo da história da arte no Brasil dos últimos anos: um documento, um monumento.
Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito reflete sobre praticamente todos aqueles e aquelas que se debruçaram sobre o conceito “arte afro-brasileira” – assunto crucial dentro dos estudos sobre arte no Brasil –, desenvolvendo uma cronologia das diversas contribuições. Porém, seu trabalho não se resume a apenas narrar essa cronologia. Ao fazê-la, Renato premia com comentários críticos cada autor e autora que cita, observações quase sempre profundas, mas todas repletas de humor e ironia. Renato narra desconfiando da própria narração e do objeto narrado, e tal estratégia tonifica os textos sobre os quais se debruça, possibilitando aos leitores e leitoras que também se posicionem sobre a narrativa que se constitui sob seus olhos.
Mas não pensem vocês, leitor ou leitora, que Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito pode ser confundido com qualquer outro livro sobre a história da arte “afro-brasileira” ou, no limite, com qualquer outro livro convencional sobre qualquer assunto. O texto de Renato nem deveria ser caracterizado como um livro, e as razões para tal conclusão vêm a seguir.
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Segundo Renato, a ideia de produção de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito surgiu do incentivo de alguns amigos que achavam que ele deveria publicar os anais de um ciclo de palestras que levara adiante com sua amiga e colega, Juliana Ribeiro, na Pinacoteca de São Paulo, em 2016, a convite da instituição. De início, o título que ambos pensaram conceder ao encontro era, justamente, “Arte afro-brasileira. Altos e baixos de um conceito”. Porém, uma série de contratempos (entre eles, financeiros) fez com que o projeto original precisasse ser diminuído e a dupla de especialistas acabou propondo e realizando um seminário menos abrangente, mas do mais alto nível, dedicado à questão da arte afro-brasileira: “Olhares sobre a arte afro-brasileira”.
Mesmo mais modesto, o encontro reuniu alguns dos especialistas mais significativos da área – Marta Heloisa Leuba Salun, entre outras e outros –, e artistas que então despontavam no campo da arte brasileira: Janaina Barros, Rommulo Vieira Conceição e Tiago Gualberto[1].
Finalizado o seminário, ao invés de publicar apenas seus anais – o que já seria algo importante para a área – Renato parece ter desejado resgatar o projeto original do encontro, que era esquadrinhar os altos e baixos do conceito “arte afro-brasileira”, e foi justamente daí que começou a surgir o “livro” que agora apresento.
Alguém poderá estranhar o fato de eu ter usado no parágrafo acima a palavra “livro” entre aspas. De início pode parecer estranha, mas atesto que tal forma foi a única que encontrei para me aproximar de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito, com o intuito de apresentá-lo aos leitores e leitoras.
Lendo esse trabalho de Renato logo me veio à cabeça a distinção que Roland Barthes – já faz tanto anos! – fazia entre o conceito de “obra” e aquele de “texto”. Para o pensador francês, ao conceito tradicional de “obra” – um trabalho com começo, meio e fim – estava atrelado o conceito de “autor” – aquele ser todo-poderoso, orquestrador único, onipresente e onipotente. Barthes desconfiava desse binômio (autor + obra) e contra ele opunha, por um lado, a morte do autor tradicional – ou sua substituição pelo scriptor –e, por outro, a transformação da “obra” em “texto”. Do Autor para o scriptor:
[…] O Autor, quando se acredita nele, é sempre concebido como o passado do seu próprio livro: o livro e o autor colocam-se a si próprios numa mesma linha, distribuída como um antes e um depois: supõe-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive com ele; tem com ele a mesma relação de antecedência que um pai mantém com o seu filho. Exatamente o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o predicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e agora […][2].
Da obra ao texto:
[…] Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando um sentido único, de certo modo teológico (que seria a “mensagem do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura […][3].
Nada definiria melhor Arte afro-brasileira. Altos e baixos de um conceito enquanto texto, assim como o papel de Renato Araújo como seu scriptor, categorias que nos aproximam das características tão singulares que o trabalho apresenta.
Embora Renato tenha dividido seu escrito em nove partes (e não capítulos, como era de se esperar)[4], creio que, para este comentário, é possível dividi-lo em dois grandes segmentos: o primeiro reuniria da primeira à sétima partes, formando um texto que, como poucos, exemplifica bem as propostas de Barthes. Nele, Renato desfia uma série de textos fundamentais para se pensar a questão da produção artística chamada “afro-brasileira”, mas não apenas.
São vários os autores citados que se dedicaram ao estudo do que é ou do que pode ser entendido como “arte afro-brasileira”, não apenas os autores canônicos – desde Nina Rodrigues até Kabengelê e Leuba Salun – mas também jovens pesquisadores que vêm trazendo novas contribuições para a ampliação da complexidade do tema. No entanto, como mencionado, Renato não se contenta em trazer para o leitor e leitoras apenas trechos desses estudiosos todos. Nesse longo trecho de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito (quase 400 páginas), o scriptor também nos contempla com uma série de citações de autores e autoras que igualmente pensaram a questão racial no país, embora não especificamente a questão da “arte afro-brasileira” (dentre eles, a se destacar os nomes de Gilberto Freyre e Vilém Flusser).
Mas não pensem o leitor e a leitora que o papel de Renato na escritura do “livro“, tenha sido apenas aquela de coletor de trechos de livros, ensaios, conferências etc., dos grandes nomes que trataram da questão da arte “afro-brasileira” e/ou de assuntos correlatos. O que torna esta primeira parte do escrito ainda mais saborosa – e instrutiva! – é a série de comentários que Renato agrega aos textos que cita. Ele coleta, mas também comenta, vai ao encontro dos pensamentos de alguns dos autores[5], e de encontro a outros, dinamizando a leitura e obrigando o leitor e a leitora a se posicionarem perante a inteligência e o sarcasmo de muitas das suas observações.
Outro dado importante: se numa resenha sobre uma “obra” convencional a possível referência às notas de rodapé estaria, normalmente, em uma nota, no caso do texto de Renato a situação muda por completo. E isto pelo fato de que, ao lermos as notas de rodapé na medida em que elas aparecem comentando, não apenas os textos que Renato cita, mas, sobretudo seus próprios comentários, veremos surgir, se não uma “contranarrativa”, pelo menos uma outra escrita que se entrelaça – e às vezes esgarça – o texto que ele tece.
A segunda parte de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito, dá continuidade à escritura da primeira, porém concentrada agora nos resumos das falas dos especialistas e dos artistas convidados a participar do seminário “Olhares sobre a arte afro-brasileira”, já citado. Não apenas os resumos das falas estão ali registradas, mas também as perguntas feitas pelo público e as respectivas respostas, acompanhadas de comentários do próprio Renato, feitos em notas de rodapé – procedimento que enriquece muito essa segunda parte do trabalho.
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É claro que não posso falar por todos os leitores e leitoras de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito, porém, creio que caberiam mais algumas palavras sobre o “livro”: em primeiro lugar, não tenho dúvida de que ele simplesmente não existiria se tivesse sido enviado para ser produzido dentro dos padrões de um livro tradicional. Configurando-se como um documento em pdf e ligado à Creative Commons, Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito apenas pode manter sua imensa primeira parte porque não dependia de uma editora e, portanto, não precisava obedecer à “lógica” do mercado livreiro. Livre dessas amarras, o texto conseguiu se apresentar em toda a sua generosidade e potência criativa, assumindo uma liberdade de produção e divulgação de conhecimento de fato acessível a todos[6].
Estou convencido de que, caso os originais fossem para qualquer editora para serem publicados dentro das normas existentes, toda aquela primeira parte seria suprimida e o que teríamos seria uma versão resumida dos anais do evento ocorrido da Pinacoteca. Ou seja, a parte mais fraternal do escrito – aquela em que Renato abre seu arquivo de notas e comentários, explicitando seu processo de estudo e compreensão do fenômeno “arte afro-brasileira” – simplesmente sumiria.
Podendo abrir a guarda que encerra o processo de formulação de suas concepções, Renato, felizmente, não escreveu uma “Obra” porque nunca se viu como “Autor”. Todo seu objetivo foi demonstrar, a meu ver, que, tanto a experiência dos estudos e comentários sobre a questão “arte afro-brasileira” assim como o próprio seminário, são partes de um único processo para avançar no conhecimento sobre a complexidade da produção artística levada a cabo no país, sem almejar chegar a uma única “verdade”.
Saio da leitura de Arte afro-brasileira: Altos e baixos de um conceito com algumas posturas mais sedimentadas, embora repletas de novas perspectivas. Ou seja, saio transformado pela leitura, o que me faz voltar ao que escreveu Barthes sobre a morte do autor e o fim do conceito tradicional de “obra”:
[…] Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram uma com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, […], é o leitor: o leitor é o espaço exacto em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita: a unidade de um texto não está em sua origem, mas no seu destino […][7]
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