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Cena de “Pivete”, 1987, de Lucila Meirelles e Geraldo Anhaia Melo. Foto: Divulgação

É provável que nunca tenhamos usado tanto a palavra “confinamento” quanto no último ano. Desde a constatação de que uma pandemia assolava o mundo, no início de 2020, o isolamento social se mostrou o modo mais eficaz de barrar a difusão da Covid-19, especialmente quando não há vacina para todos. Mas não é deste tipo de confinamento – que estamos aceitando por necessidade e empatia, nas palavras da pesquisadora Juliana Borges – que trata a mostra Confinamentos, em cartaz a partir de 10 de maio na plataforma Videobrasil Online.

Através de 14 vídeos produzidos desde o fim dos anos 1980 até a atualidade, a exposição discute principalmente temas relacionados ao encarceramento em massa no Brasil, ou seja, a política criminal, o racismo, o passado colonial, a ditadura civil-militar, a violência policial e os direitos humanos. Com curadoria de Juliana Borges, escritora e estudiosa de política criminal, a mostra procura, ainda, expandir as noções de confinamento a que estamos expostos. Surgem assim, as prisões impostas pelo sistema manicomial, pelo consumismo exacerbado, pela alienação das redes sociais ou pela imposição de padrões de sexualidade e “do que entendemos ser corpos funcionais ou não”. O debate se expande também para além da fronteira nacional, com cinco produções estrangeiras vindas da África do Sul, Argentina, Austrália, EUA e Rússia.

A ideia de Borges, portanto, foi “ampliar a visão das prisões, a percepção e as nossas compreensões sobre o confinamento, mesmo que sem tirar a centralidade da importância de debater o cárcere, o encarceramento em massa e as motivações da política criminal vigente em nosso país”. País este, ressalta ela, que tem a terceira maior população prisional do mundo (quase 800 mil presos), apesar de ser o sexto em número de habitantes. “Por que a necessidade de tanto encarcerar?”, questiona Borges no vídeo apresentado na página de abertura da exposição. O depoimento, com quase 45 minutos de duração, se soma às obras expostas como um rico material para o aprofundamento na discussão.

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Cena de “Derivando da minha beleza”, 2004, de Fernanda Gomes e Luliana Barros. Foto: Divulgação

Para entender as raízes da situação e suas motivações, Borges procura – assim como os vídeos da mostra – desnaturalizar as percepções do que é ou não é crime, do que é ou não passível de penalização. “Porque crime é um conceito livre e amplo. Tudo pode ser crime e, portanto, nada pode ser crime. O que vai definir é uma série de tensões, conflitos e disputas políticas no interior da sociedade. Há condutas que são penalizadas em dadas sociedades e países, mas não em outros”, explica ela, relembrando ainda as perguntas colocadas por Angela Davis nos anos 1970: “O que é crime? Quem define o que é crime? E quem define quem é o criminoso?”.

No caso brasileiro, seria impossível desvincular esta investigação do colonialismo e da escravidão que moldaram não só nosso passado, mas “uma modernidade que tem a colonialidade como tronco importante”, segundo Borges. “A política criminal é fruto de processos políticos e econômicos, ela é pensada a partir de uma concepção e organização do Estado. E quando falamos de Brasil, estamos falando de uma nação que surge da violência, a partir de um contexto do genocídio étnico, do extermínio de povos originários, do sequestro de pessoas africanas para o continente americano.” 

A política criminal operante, desse modo, seria constituída para atender os interesses de manutenção de desigualdades e de privilégios de um grupo em detrimento de outros. E isso mesmo após a escravidão, quando surgem novas teorias para sustentar a ideia de que há inferiores e superiores, segundo a curadora: “E elas vão construir esse estereótipo de que os negros na sociedade brasileira são inferiores, porque são mais afeitos a criminalidade e à uma série de outros – considerados – desvios morais e de valores”. Isso surgiria como uma espécie de atualização e sofisticação de aparatos do racismo, colocados em prática por uma política criminal de combate a determinados grupos sociais – “com a criação do que são os inimigos internos, que precisam ser combatidos”.

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Cena de “Bere Life Study”, 2005, de Coco Fusco. Foto: Divulgação

Surgem na fala da curadora, a partir daí, outros questionamos que percorrem os vídeos da mostra. Entre eles: “Por que em determinados contextos o simples exercício da sexualidade é considerado uma conduta criminosa? Por que em algumas sociedades o uso de determinadas substâncias é considerado um ato ilegal e em outras não?”. Sobre este ponto, Borges acrescenta: “No caso de pessoas que fazem uso abusivo de substâncias, por que não investir em redução de danos e em saúde? Por que há uma insistência em se pensar que a guerra a determinadas substâncias, ou um processo de militarização de territórios, possa garantir um bem-estar? Todos os dados, de pesquisadores seríssimos de segurança pública no Brasil, têm apontado o contrário”. Neste sentido, segundo Borges, conflitos que achamos que serão solucionados com a prisão são, na verdade, amplificados por ela – e poderiam ser resolvidos com outros tipos de mediações.

Momento propício 

Confinamentos é o quinto projeto apresentado no Videobrasil Online, plataforma expositiva inaugurada em setembro de 2020 e que tem apresentado obras inéditas ou selecionadas no vasto acervo reunido pela Associação Cultural Videobrasil desde os anos 1980 – como é o caso da mostra atual. Segundo Solange Farkas, diretora da instituição: “Se nos vemos hoje em um ambiente pouco propício à expansão das parcerias e dos projetos culturais marcados pela defesa da diversidade, da liberdade, do pensamento comunitário e da ampliação das consciências, por outro lado nunca tivemos tanta certeza da importância de manter vivo – e ativo – um dos acervos mais significativos da produção em vídeo do Sul geopolítico do mundo. Que é, ainda, uma fonte inestimável de pesquisa sobre uma produção artística que tem como marca fundadora e traço recorrente justamente um uso político, combativo e libertário do vídeo”.

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Cena de “Politik”, 2001, de Marcello Mercado. Foto: Divulgação

Diferentemente do confinamento tão discutido por conta da pandemia, citado no início deste texto, os confinamentos debatidos nos vídeos presentes na mostra parecem seguir sem receber a atenção necessária. Como ressalta Borges, se não estamos “nem um décimo” próximos do que é passar por esse contexto pandêmico nas prisões, muitos de nós estão percebendo o que significam as limitações de ir e vir e “das possibilidades de viver o que nós achávamos, até então, que era viver plenamente”.

O momento, portanto, parece ser ainda mais propício para os questionamentos levantados na exposição, mesmo que não existam respostas prontas para eles. “Se essa política de super encarceramento não está fazendo com que os índices de criminalidade diminuam, por que nós continuamos insistindo nesse modelo? Por que achamos que a ampliação da ostensividade e da repressão vão responder aos conflitos? Por que é que a gente responde violência com violência quando, na verdade, temos uma série de precariedades das condições de vida de um contingente imenso de pessoas do nosso país? Estamos falando de um país extremamente desigual, onde há fossos sociais imensos, então por que não investir em garantias de direitos, em promoção de direitos?”.

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William da Silva Lima em cena de “Senhora Liberdade”, 2004, filme de Caco Souza. Foto: Divulgação

E ela conclui: “Com essa política criminal, por mais que não se queira dar atenção a ela, por mais que queiramos pensar que ela não tem a ver com as nossas vidas, nós estamos sustentando – seja num comportamento ativo ou omisso em relação a isso – uma dinâmica de relações sociais e de funcionamento das instituições que tem precarizado, marginalizado e sido parte de uma engrenagem de extermínio, controle, manutenção e ampliação de desigualdades”.

A fala da curadora remete, neste ponto, ao depoimento de William da Silva Lima, um dos fundadores do Comando Vermelho, em um dos curtas apresentados na mostra, Senhora Liberdade, de 2004. Para o “professor” – como era conhecido -, que ficou preso mais de três décadas e morreu em 2019, “a prisão, a atual prisão, é um depósito de carne humana. Porque não tem condições de possibilitar a ressocialização do preso. (…) Não se pensa no ser humano. Não se pensa que isso vai refletir na própria sociedade. Porque isso tem um retorno, quando se joga uma bola, ela volta. Então tem que ver se há uma democracia, porque eu acho que não. É uma ditadura dos mais espertos”.

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