Irandhir Santos, em uma das locações de 'Piedade', o novo filme de Claudio Assis. Foto: Fred Jordão

Irandhir Santos é desses atores que impressionam pelo talento equivalente à sucessão de trabalhos que acumulam. Seu último trabalho foi na televisão, na minissérie Onde Nascem Os Fortes. No cinema, sua última atuação foi como o tecelão Luzimar, protagonista do filme Redemoinho, que marcou a estreia cinematográfica do diretor de TV José Luiz Villamarim, Irandhir encara agora, de cabelos longos, característica de seu personagem, sete semanas de reclusão nas locações pernambucanas de Piedade, novo filme de Cláudio Assis, com quem trabalhou em Baixio das Bestas, de 2005.

Naquele mesmo ano Irandhir debutou na tela grande depois de ser aprovado em um teste pelo também conterrâneo Marcelo Gomes para atuar em Cinema, Aspirina e Urubus.

Doze anos depois, o ator contabiliza oito peças teatrais, cinco colaborações para a TV e 20 longas. Nada mal para alguém que considerava os meios audiovisuais linguagens “inatingíveis”.

Nas oito páginas a seguir, relatos deste “operário do cinema” que, num futuro breve, sonha em reencontrar seu grande amor, o teatro.

CULTURA!Brasileiros – Soube que você, por conta do trabalho de seu pai, que era bancário, viveu em várias cidades de Pernambuco. Como se deu esse processo?
Irandhir Santos – Nasci em Barreiros, uma cidade mais próxima do litoral de Pernambuco, mas saí de lá com 1 ano de idade. Meu pai, Marcos Pinto, foi gerente do Banco do Brasil por muitos anos e sempre sonhou em trabalhar na agência de sua cidade natal, Limoeiro, no agreste de Pernambuco. Algo que fugia a sua vontade, porque ele acabou sendo obrigado a atuar em várias cidades do estado, geralmente quando novas agências eram abertas e ele era convocado para iniciar a operação. Moramos no agreste, no litoral, no sertão. Passei a infância e a adolescência percorrendo o estado de Pernambuco com minha família.

E como você lidou com isso?
O mais difícil era encarar o recomeço. Estava sempre entrando e saindo de escolas, tendo que partir justamente quando estava começando a fazer amizades. Pegar a mala e recomeçar virou rotina em nossas vidas. Ao mesmo tempo, em meu trabalho como ator, percebo hoje que utilizo de algumas experiências que vivenciei em cada um dos lugares que nós estivemos. Guardo comigo esse quadro rico de memórias.

Imagino que, por conta das contingências de seu pai, sua mãe não pôde estabelecer uma profissão.
Exatamente. Coube a minha mãe, Elena, cuidar de três crianças, eu, meu irmão mais velho, Marcos, e minha irmã caçula, Aneacires – aliás, além de nós, havia um quarto “filho”, porque meu tio, irmão mais novo de minha mãe, também foi criado por ela.

Que lembranças você tem dessa trajetória nômade pelo interior de Pernambuco?
Lembro que eram regiões bem distintas. Cada uma com suas peculiaridades e belezas. Naquele momento, de formação, eu encarava tudo com o olhar de aventureiro. Tinha a ansiedade de saber como seria a nova casa e os novos amigos ao mesmo tempo que sabia que perder aquelas pessoas seria doloroso, mas inevitável. A euforia da chegada fazia contraponto para a tristeza da partida.

Essa experiência, de alguma forma, contribuiu para desenvolver sua subjetividade?
Sem dúvida. Tenho inclusive a memória de sensações físicas desse período. Lembro de estar em regiões mais frias do Nordeste, onde à noite a temperatura cai bastante, algo que promovia uma junção familiar dentro de casa, mas também lembro de regiões mais quentes, que faziam com que houvesse uma dispersão desse núcleo pelas ruas da cidade, pela praia. Houve também as variações naturais da idade. Estive em lugares onde cheguei saindo da infância, entrando na adolescência e querendo explorar coisas de um mundo fantástico. Eram esses estímulos que me ajudavam a encarar a longa trajetória até a chegada a Limoeiro. O desejo de meu pai era tamanho que contaminou toda a família. Volta e meia me pegava pensando “um dia a gente se assenta, um dia a gente finca de vez os pés em Limoeiro”.

E quando foi que o sonho, enfim, se concretizou?
Quando eu tinha 14 anos. A chegada a Limoeiro foi como um gozo, uma alegria sem tamanho. Foi como se tivéssemos voltado para casa depois de uma longa viagem. Esse pertencimento coincidiu com um período de tomada de decisões, de pensar na chegada do vestibular, e foi em Limoeiro que, pela primeira vez, tive contato com a arte da interpretação. Minha mãe queria me colocar em alguma escola tradicional da cidade, mas como a gente chegou num período complicado, no meio do primeiro semestre, acabei indo parar em uma escola pública estadual, chamada Padre Nicolas. Nesse colégio a professora de Português fez uma coisa incrível: indicou para os alunos os livros da série Vaga-Lume (uma coleção de ficção infanto-juvenil lançada, com grande sucesso, pela editora Ática) e pediu para nos dividirmos em grupos, fazer leituras coletivas e transformar trechos dos livros em cenas para apresentar para a turma toda. Ela definiu um período de preparação.Tínhamos a liberdade de fazer do jeito que quiséssemos e aquilo foi, para mim, a descoberta da felicidade. Pela primeira vez, me envolvi em um processo da escola que fazia com que eu não visse a hora passar. Ia para casa pensando naquilo, deitava na cama e escolhia trechos dos livros pensando nas cenas, ou seja, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma espécie de liderança no grupo.

Você se lembra qual livro vocês montaram?
Não recordo agora o título, mas era uma trama que se passava em um hotel…

O Mistério do Cinco-Estrelas, do Marcos Rey?
Exatamente. Você leu esse?

Li vários títulos da série também. Lembro que acabava de ler um, via na contracapa os que ainda não tinha lido e corria para a biblioteca da escola checar se estavam disponíveis para pegar emprestado…
Também fiz isso muitas vezes. Como era bom! Então foi isso, fizemos essa adaptação d’O Mistério do Cinco-Estrelas e me envolvi tanto que cheguei a fazer ilustrações do livro, misturei linguagens e fui desenvolvendo essa espécie de liderança estética, assumindo uma possível concepção geral da peça. Claro, tudo era brincadeira, mas nos dedicamos de verdade. Chegávamos cedo, ensaiávamos muito e fizemos uma boa apresentação.

No ano seguinte você foi para o outro colégio, como sua mãe pretendia?
Sim, assim que concluí o ano letivo minha mãe me tirou da escola pública para me colocar no tal colégio tradicional, chamado Regina Celi. Mais uma mudança que tive de encarar, mas com um lado bom, porque havia nesse colégio um teatro de verdade, com toda estrutura e uma professora que cuidava das apresentações em datas festivas. Foi ali que, pela primeira vez, pisei em um palco, fazendo uma montagem chamada Pai Nosso, que era em cima de uma oração de São Francisco. Lembro que peguei três lençóis brancos de casa para fazer o figurino (risos).

A essa altura você já estava contaminado pelo teatro?
Sim, sempre cumprindo as exigências da escola, mas de olho nas próximas datas festivas para fazer novos espetáculos. Tenho até hoje amizade com muitos colegas que ali compartilhavam desse desejo. Nenhum deles foi parar no teatro, mas a ligação permaneceu.

Houve na família alguém que despertasse em você o interesse artístico?
Acho que mais do lado da família de meu pai, que é formada por muitos músicos. Meu avô paterno era saxofonista e era muito convidado para tocar serestas em outras cidades. Todos eles tiveram uma aproximação com a música. Meu pai teve três irmãos – todos eles tocavam algum instrumento – e até hoje adora tocar seu violão. Além dessa coisa musical, o mais novo dos meus tios, Carlos Pinto, tinha uma verve incrível de artista plástico, que não era bem compreendida na cidade e nem mesmo na família. Ele pintava muito bem, fazia esculturas com o lixo que encontrava na cidade e aquilo era encarado muito mais como loucura do que arte. As pessoas simplesmente não sabiam lidar com a figura impactante que era Carlos Pinto. Ele tinha um cabelão, e tanto podia se vestir normalmente quanto aparecer na rua vestido de noiva.

Irandhir contracena com Domingos Montagner, seu irmão na novela Velho Chico. Foto: Divulgação/ Rede Globo

Isso durante o Carnaval?
Não. Fazia isso quando bem entendesse. Uma vez passaram em casa, eu tinha uns 16 anos, e disseram: “Seu tio está caído na rua, vai lá socorrer ele”. Fui com minha irmã e chegando lá nos deparamos com ele vestido de noiva. Levei ele para a casa e decidi tirar a roupa dele para ele poder dormir melhor. Quando fui tirar o vestido de noiva, fiquei intrigado com o monte de botões que tinha nas costas e perguntei: “Tio, quem lhe ajudou a vestir isso?”. E ele disse: “Ninguém, eu mesmo me virei sozinho” (risos).

Esse perfil anárquico de seu tio certamente abriu muito sua cabeça, não?
Sem dúvida. Foi ele, por exemplo, que me iniciou nos desenhos. Gosto de utilizar o desenho nos trabalhos que faço, e lembro das brincadeiras que ele fazia. Vinha sempre com um papel em branco, um lápis e me desafiava: “Rabisque aí qualquer coisa…”. Daí ele tomava a caneta da minha mão e daquele rabisco fazia um desenho incrível. Achava aquilo mágico.

Pouco depois você parte do interior para o Recife. Como se deu essa transição que culminou na sua graduação?
Vim para o Recife antes mesmo de começar a faculdade (Irandhir fez Artes Cênicas na Universidade Federal de Pernambuco). Tinha ainda o segundo e o terceiro anos do colegial (hoje ensino médio) para finalizar, mas um amigo de Limoeiro, Francisco Spencer, estava planejando estudar no Recife e decidi vir também. Viemos estudar no CPI, sigla de Colégio Preparatório Integrado, uma escola de cunho militar, dirigida por coronéis, com toda aquela disciplina de quartel. O colégio tinha a tradição de formar alunos capazes de ser aprovados nos vestibulares mais difíceis do Brasil. Em Pernambuco, quem tivesse esse objetivo não podia ignorar a chance de estudar no CPI. Francisco decidiu que ia encarar esse desafio, e senti o ímpeto de ir também. Ao ver que a escola era realmente muito boa, minha mãe concordou com a ideia. Rapaz, quando entrei lá foi um choque! A formação era muito voltada para o vestibular, isso era claro, mas demorei para engatar o ritmo, quase desisti, pois foram muitas mudanças ao mesmo tempo: sair de casa tão jovem, encarar o rigor de uma escola militar. No começo, fui morar com uma tia, mas depois comecei a dividir apartamento com duas primas. Um mundo novo, para mim…

Numa idade de formação…
Sim, e com a responsabilidade de decidir algo que iria influenciar o resto da minha vida. Tive a sorte de, no CPI, me aproximar de uma professora de Literatura chamada Gorete, e ela me salvou ao me apresentar para um ex-aluno do colégio, André Cavendish, que já estava formado e tinha experiência com um grupo de teatro. Cavendish voltou ao CPI para dar um curso de iniciação ao teatro, que acontecia aos sábados. Foi incrível, porque ele começou o processo nos apresentando não só a teoria, mas também as técnicas de teatro, ou seja, a sonoplastia, o figurino. Então, ele foi realmente o primeiro a escancarar as portas e mostrar para mim que existiam vãos incríveis para que aquela “casa” funcionasse.

Entre 1996 e 2004, você fez três peças com Cavendish e outras cinco com outros diretores. Depois disso migrou para o cinema, quando atuou, em 2005, no filme Cinema, Aspirinas e Urubus, do Marcelo Gomes. Como se deu essa guinada?
Fazer cinema parecia algo muito distante para mim. Eu acreditava que, para que isso acontecesse, teria que me deslocar para o Sudeste, onde as coisas acontecem. Mas tive a sorte de, no Recife, descobrir a Fundação Joaquim Nabuco, que tem um núcleo de cinema que, até há pouco tempo, era coordenado pelo Kleber (o diretor Kleber Mendonça Filho) e ele selecionava filmes incríveis para serem exibidos. Um deles foi uma reexibição do curta-metragem Soneto do Desmantelo Blue, do Cláudio Assis (segunda produção do diretor, lançada em 1993). Ver um filme feito no Recife com produção e atores locais me tirou da cabeça a ideia de distância dessa arte. Foi um momento importante para concluir que era possível fazer as coisas por aqui, até que veio o convite para eu ingressar no cinema. Um professor da UFPE, Marcos Camarote, hoje falecido, me indicou para fazer testes em dois filmes. Tomei coragem e fui fazer os dois testes.

Você já conhecia Marcelo e Cláudio?
Não os conhecia. E acho que justamente por isso tive sensações bem distintas com cada um deles, porque Marcelo é a tranquilidade em pessoa. Eu estava esperando aquilo que as pessoas sempre dizem dos testes, que são difíceis, mas ele fez tudo parecer muito fácil. Hoje digo a ele: “Você me enganou, Marcelo! Os testes não são daquela forma”. Tanto que quando fui conversar com Cláudio foi uma pauleira. Ele passou um trecho do roteiro e exigiu que eu estivesse pronto e afiado quase no mesmo instante. Depois rolou uma sucessão de encontros, ele sempre me desafiando. Tomei isso como impulso, fui na onda dele e deu tudo certo. Fiz com ele o Baixio das Bestas.

Com tantas produções em tão pouco tempo, você se considera um ator de cinema?
Cinema é uma arte que quando falo dela é com o brilho nos olhos de um apaixonado. Mas tanto no teatro quanto no cinema – e agora também na televisão – eu me percebo utilizando dos únicos instrumentos que tenho: meu corpo, minha voz e minhas técnicas de interpretação. Sou um grande passeador. Hoje estou na via do cinema muito fortemente, mas a televisão, por exemplo, nos últimos três anos me tomou com os convites do Luiz Fernando (o diretor de TV e cineasta Luiz Fernando Carvalho, com quem Irandhir trabalhou nas minisséries A Pedra do Reino e Dois Irmãos, e nas novelas Meu Pedacinho de Chão e Velho Chico).

Na televisão, sobretudo com Velho Chico, seu trabalho foi exibido para um público de dezenas de milhões de telespectadores. Como é passar por isso?
Entrar na TV a convite do Luiz Fernando me deu a sensação de ingressar em uma nova faculdade. O trabalho dele é tão intenso, te desafia tanto e te leva a novos caminhos, que saí de lá como se estivesse passando por uma especialização. Das cinco produções que fiz para a TV, quatro foram dele (a quinta, a minissérie Amores Roubados, é de José Luiz Villamarim, diretor de Redemoinho). Passar pelas mãos do Luiz é um processo que lapida o ator. Claro, esse alcance popular vem junto, consequentemente, o que é também uma experiência incrível, de reconhecimento.

Nesses 12 anos em que você atua no cinema brasileiro, que impressões tem sobre a evolução da indústria? No campo narrativo, ela dá conta de retratar as transformações e a realidade do País?
Nos últimos 15 anos, foram produzidos no País filmes em quantidade cada vez maior e percebo que há cada vez mais diretores em busca de sua linguagem ao mesmo tempo que procuram retratar a diversidade do nosso País. Mas percebo também as dificuldades que ainda persistem, principalmente com relação à distribuição e exibição dos filmes. Não há como negar também a força explosiva e marcante que há nos filmes produzidos aqui em Pernambuco. Algo que me impressiona, porque eles são muito diversos, em relação à linguagem e à temática.

Você tem alguma boa teoria sobre o porquê dessa efervescência cultural do Recife?
Pois é, fico me perguntando como isso acontece, mas acho que não tenho uma boa explicação. Sinto que sou um privilegiado por participar desse momento tão rico. Observo e me identifico muito com essa diversidade, da mesma forma que observo a movimentação do meio artístico com relação ao que acontece politicamente em nosso estado e a forma como essa postura pode servir de espelho para o que acontece no País. Percebo que os diretores procuram cada vez mais essa abordagem profunda e isso reverbera fortemente até fora do Brasil.

Inevitável relembrar o episódio envolvendo a equipe de Aquarius no Festival de Cannes de 2016. Como cidadão, como você percebe a realidade sociopolítica que vivemos hoje?
Estou extremamente triste com tudo que vem acontecendo no Brasil. Me sinto realmente roubado em relação ao voto que depositei na urna em 2014. É triste ver isso acontecer de novo em nosso País. É triste ver como isso reverbera na nossa liberdade, nas nossas escolhas. Quando penso em um filme necessário para esse período é justamente em Aquarius, porque ele tem força de sobra para contestar tudo o que está acontecendo. Infelizmente, eu não fui a Cannes, porque estava trabalhando, mas com certeza participaria do protesto com meus colegas e compactuaria com eles a inconformidade que eles levaram para o mundo.

Em meio a esse processo que culminou no governo Temer, ironicamente seu personagem na novela Velho Chico, Bento dos Anjos, era um vereador que defendia a ética na política e uma sociedade mais igualitária…
Quando conheci o personagem e percebi essa verve política tão forte que havia nele, achei muito apropriado para o momento que o País vivia. Este foi um dos motivos pelos quais aceitei fazer Bento. Não queria deixar essa responsabilidade nas mãos de nenhum outro colega, porque quis muito, dentro do que estava acontecendo no Brasil em 2016, ter, ao menos na ficção, um personagem que pudesse fazer contraponto a isso, que pudesse falar o que estava entalado na garganta do povo, sobretudo a população que vinha conquistando seus direitos e no ano de 2016 levou um golpe muito forte, que culminou num retrocesso enorme. Acho que o personagem Bento retratou isso muito bem. Foi uma escolha arriscada, porque eu sabia que poderia ser fortemente alvo de quem pensa diferente, mas o personagem foi muito bem recebido. Acho que nisso também está a mão do Luiz e sua capacidade de coordenar esse discurso com muito cuidado.

Com o ator Rodrigo Garcia, em cena de Tatuagem, filme de Hilton Lacerda que conta a história de uma trupe mambembe de teatro liderada por ele. Foto: Flávio Gusmão/Divulgação

Você disse que podia ser mal interpretado e é patente uma polarização cada vez mais inflamada. O que pensa disso?
Acho que o racha no País é consequência de um grande jogo político que foi muito bem armado e que consegue reverter a seu favor a maioria das opiniões, inflamando as pessoas e polarizando tudo de tal forma que hoje não temos diálogo. As conclusões imediatas, rápidas, foram fortemente estimuladas e deixamos de lado as verdadeiras discussões sobre os rumos do País, algo imprescindível para uma grande democracia. Ao anular essa discussão deixamos de lado algo que tanto batalhamos: ser um país democrático.

Voltando à Velho Chico, em meio ao fim das gravações, como foi para vocês ter de lidar com a perda do amigo Domingos Montagner?
Foi muito difícil. Existia a euforia de concluir um trabalho que foi muito bem realizado e essa tragédia atingiu a todos, da mesma forma que atingiu o público que acompanhava a história. O que mais me impressionou nessa experiência foi a surpresa de a vida recontar a história da ficção (na trama de Benedito Ruy Barbosa, Santo, personagem de Domingos também se afogava no rio São Francisco, depois de ter sido baleado). O que nos salvou, o que nos ajudou a superar esse momento foi a ideia de, naqueles últimos seis dias, trazê-lo de volta à cena e fazer tudo por ele. A força da retomada veio a partir daí. Fomos para o estúdio gravar as últimas cenas, mas prestamos essa homenagem ao grande artista e à pessoa do Domingos; Luiz assinalando isso com a ideia incrível da câmera subjetiva, colocando Domingos como os olhos de quem estava em casa. Quando falávamos para os olhos do Santo, na verdade estávamos falando diretamente para as pessoas que o acompanhavam e admiravam seu trabalho.

A relação de vocês foi muito intensa. Vocês contracenavam praticamente em todos os capítulos…
Chegamos ao ponto de marcar encontros na minha casa e na dele para conversar sobre o roteiro. Não convivíamos apenas nas gravações. Tive a oportunidade de conhecer a família do Domingos e pude ver que ele era um ator que não só construía a ficção da melhor maneira possível, mas, na realidade, também escreveu a história de uma família incrível. Eu tenho hoje uma grande falta, mas lido com ela da maneira mais carinhosa possível. Hoje, quando retorno ao São Francisco, tenho a sensação de que, ao entrar naquelas águas, de alguma forma, vou ser sempre acarinhado por ele. É dessa forma que vou tentar lidar com essa saudade.

Como foi interpretar Luzimar em Redemoinho?
O convite do Zé veio no meio das gravações da minissérie Amores Roubados. Ele disse: “Olhe, pretendo fazer um filme em breve e quero você como protagonista. Vou passar o roteiro para você ler. Foi inspirado em contos do Luiz Ruffato”. Quando ele disse o nome do autor, fui correndo atrás dos livros e achei maravilhosa a maneira como ele retrata seu local de origem e fiquei muito curioso de conhecer esse olhar de perto. Desde que li as obras do Ruffato quis estar em Cataguases, quis ver tudo aquilo que havia na escrita dele, ver aquele trem que ele tanto descreve, ver essas fábricas. Quando li o roteiro, percebi que Zé aumentou ainda mais essa lupa para aquilo que me chamou a atenção. Disse a ele que queria conhecer a cidade o quanto antes e ele falou: “Então, vou te mandar para lá antes das filmagens”.

Com que antecedência você foi para Cataguases?
Cheguei lá um mês antes e procurei ter contato com o mundo das fábricas de tecelagem e o universo do meu personagem. Na história, ele é aquele que opta por ficar na cidade. Partindo desse caminho, pensei: Se ele fica, o que é que ele usufrui? A produção me deu todos os instrumentos que faziam parte da rotina do personagem. Então, por exemplo, durante esse mês só me desloquei de bicicleta. Tive acesso à fábrica e foi incrível. Transitar entre as máquinas me deu as sensações físicas e emocionais daquele lugar, que tem todo um barulho específico, intenso, e não há como passar impune por ele, tanto que sugeri ao Zé Luiz que meu personagem utilizasse um aparelho auditivo, pois percebi que muitos operários são afetados pelo barulho. Ele gostou da sugestão. Foi uma forma de simbolizar como a rotina da fábrica atinge diretamente a vida daquelas pessoas. Um símbolo importante.

Aliás, chama a atenção a ausência de trilha sonora incidental e de canções no filme.
Isso foi algo que fomos batendo o martelo a cada vivência. Foi engraçado porque, por ter ido antes para Cataguases, quando a equipe chegou despejei no ouvido deles e do Zé, coitado, um monte de informações. Mas eles foram muito pacientes em ouvir e aceitar algumas das minhas sugestões. Walter (o diretor de fotografia Walter Carvalho), por exemplo, foi incrível. Lembro que logo na primeira cena que fizemos na fábrica, ele tinha a opção de usar o espaço que bem entendesse, mas perguntou para mim: “Como você já leu o roteiro e veio aqui várias vezes, imagino que tenha pensado em algum lugar para fazer a cena. O que você sugere?”. Mostrei para ele um percurso que partia de uma das máquinas que eu operava e ele topou na hora. Ensaiei aquele percurso sozinho durante as semanas que estive ali e é gratificante ser ouvido e se sentir cooperando com aquela obra. Devo também salientar a recepção calorosa das pessoas da fábrica, especialmente uma coordenadora, chamada Sueli, que esteve comigo o tempo todo e, com muita paciência, me ensinou a lidar com todas as máquinas. Eles estão agora ansiosos para ver o filme. Todos me ajudaram bastante.

O trabalho feito por você e Júlio Andrade tem sido muito elogiado. Como foi contracenar com ele?
Além de ser um ator incrível, Júlio é muito cativante. Quando dividimos o mesmo hotel, procuramos até nos isolar, para que deixássemos essa vontade de querer estar perto para quando estivéssemos em cena. Foi um acordo não acordado, um acordo sentido. Ele percebeu isso e deixamos para ter nossos encontros somente em cena. É muito bom quando você tem no colega esse tipo de sintonia. Lembro bem da cena em que eles, finalmente, falam o que queriam falar desde o começo um para o outro. O Zé chegou para a gente e deu uma novidade que mudou a cena de uma maneira muito bonita. A cena levava para uma grande briga verbal, de acusações recíprocas daqueles dois homens, mas o Zé disse algo assim: “Já que vocês vão resolver uma pendência que é do passado, acho que aqui não deve haver um embate entre dois homens, mas sim uma briga entre dois meninos”.

O que você pode antecipar sobre Piedade?
Não posso falar muito, mas como Cláudio já antecipou, esse filme vai tocar em um grande símbolo do Recife, que é o tubarão, mas, segundo as palavras dele mesmo, o filme vai falar do tubarão do mar e dos tubarões da terra, os devastadores dessa cidade. Como ele brinca, pela primeira vez na história do cinema o tubarão não aparecerá como vilão, mas como vítima. Mexeram no ecossistema desse cara e ele veio conviver no mesmo espaço que a gente. Ele é só mais uma vítima desse desequilíbrio.

Sonia Braga e Irandhir nos bastidores de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. O retrato intimista foi feito por Pedro Sotero, diretor de fotografia do filme. Foto: Pedro Sotero

E como tem sido contracenar com Fernanda Montenegro?
Sempre tive o enorme desejo de me encontrar com ela. A primeira vez que a vi, sem ser no teatro, porque vi muitas peças com ela, mas dentro de uma mesma sala, foi quando ela deu uma pequena palavra para o elenco da minissérie A Pedra do Reino, do Luiz Fernando. Ela foi explicar para a gente como foi, para ela, trabalhar com toda a simbologia do Luiz em Hoje é Dia de Maria. Ela defendia essa simbologia de tal forma que, no exemplo dela, acreditava que o cavalo de madeira que estava em cena era um cavalo de verdade. Falei desse encontro para ela dias atrás e ela disse: “É verdade, lembro de ter falado isso. Que maravilha! Você estava lá!”. Depois disso ela me procurou para falar do que, segundo ela, era uma necessidade. “Acho que a gente precisa, fora do set, ter encontros para que a gente sele essa aproximação de mãe e filho.” Claro, disse a ela: “Sim, vou te levar para jantar”. Foi um encontro incrível. Jogamos muita conversa fora, falamos de assuntos os mais diversos, mas também do próprio filme, de nossos personagens. Acho que minha maior dificuldade foi desconstruir o mito e enxergar o ser humano, essa mãe que eu devo enxergar no filme. Um jogo difícil, mas ela, com sua generosidade, tem me ajudado muito a encarar esse desafio.

Pelo volume de projetos em que você está envolvido a impressão que dá é que trabalha demais. Isso procede?
É engraçado, porque, como a maioria dos filmes no Brasil tem baixo orçamento, e consequentemente os lançamentos demoram para acontecer, e como às vezes faço filmes com um bom espaçamento de tempo de um para o outro, mas eles são lançados simultaneamente, isso leva ao público a sensação equivocada de que não paro de trabalhar (risos). Mas, claro, é importante para mim ter um período de descanso, de zerar um processo para começar o outro. Nunca emendo dois filmes sem esse respiro. Admiro quem consegue, mas não consigo fazer dois filmes ao mesmo tempo. No mais, viver a vida é o que há de mais importante, e me preocupo muito de respeitar essa intensidade natural que é preciso ter dos dois lados: no trabalho e na vida. Gosto muito de ficar em casa, gosto muito de estar com minha família. É neles que percebo o sentido de fazer tudo o que faço na minha arte.

Que balanço você faz de sua trajetória até aqui, e o que gostaria de fazer no futuro?
Sou um privilegiado, pelas experiências que tive e todos os personagens que interpretei. Até agora tive também a felicidade de trabalhar com pessoas que admiro muito. Digo que sou um privilegiado porque enxergar a vida por meio dos olhos dos personagens é algo transformador. Quando saio de um projeto acabo com o olhar mais distendido, de certa forma, compreendendo melhor a mim mesmo e compreendendo o mundo ao redor. No futuro, tenho o grande desejo de retornar ao teatro. Tem mais de dez anos que não piso num palco e sinto muita falta. O cinema é uma paixão que – aliás, como é comum às paixões – te consome completamente, mas o amor, que, para mim, é o teatro, cada vez mais me chama. Então é isso: futuramente quero retomar esse amor.

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