Rovena Rosa/Agência Brasil
Rovena Rosa/Agência Brasil

Por Ricardo de Sousa Moretti*

O processo de vistoria dos edifícios ocupados pelos movimentos de moradia em São Paulo, na perspectiva de melhoria das condições de segurança neles existentes, desencadeado a partir do incêndio e da tragédia associada à ruína do edifício Wilton Paes enseja uma discussão sobre a qualificação dos prédios antigos da cidade. Não se trata aqui dos prédios históricos, mas das edificações construídas há várias dezenas de anos e que não tiveram uma manutenção preventiva adequada.

São Paulo é uma metrópole cujas edificações e estruturas urbanas foram quase integralmente produzidas nos últimos 100 anos – sua população chegou a pouco mais de meio milhão de habitantes em 1920, depois de uma verdadeira explosão de crescimento a partir de 1872, quando tinha cerca de 26 mil habitantes.

Metrópoles como Tóquio, Roma, Londres e Paris passaram por vários ciclos de manutenção e reconstrução e, naturalmente, o conhecimento técnico sobre as reformas e recuperação do patrimônio edificado foi valorizado. Em São Paulo, a construção das novas estruturas foi a iniciativa hegemônica nos últimos 100 anos e a formação técnica dos nossos profissionais se adaptou a esse contexto de grande demanda por novas construções. Tópicos relacionados à recuperação do patrimônio edificado existente, como patologia das construções, técnicas de manutenção e recuperação de estruturas e infra estruturas, melhoria das condições de acessibilidade e segurança de antigas edificações ficaram esquecidos ou relegados ao segundo plano.

A definição de técnicas e normas para produção do novo foi atônica – a manutenção, recuperação e critérios para qualificação do existente não foi prioridade. Benedito Lima Toledo, em seu livro São Paulo, três cidades em um século, descreve como a cidade de barro (taipa e adobe) foi destruída para dar lugar à cidade de tijolos, que por sua vez foi destruída para dar lugar à cidade de concreto que hoje marca nossa paisagem.

Há 100 anos, iniciou-se a rápida multiplicação da construção dos grandes edifícios em São Paulo. E hoje há centenas deles abandonados na cidade, como se houvesse se encerrado sua “vida útil”. A durabilidade de uma edificação depende muito dos cuidados e estratégias de manutenção e recuperação. Sua vida útil pode ser longamente estendida.

A pesquisa realizada por Edmur Arantes nos prédios do bairro de Santa Cecília, por exemplo, mostra a importância das políticas públicas e estratégias de manutenção dos prédios antigos antes que se deflagre sua decadência, que torna muito mais difícil a recuperação.

O ótimo estado de conservação de prédios de alguns séculos existentes no “Velho Mundo” tem a retaguarda de políticas públicas e esforço técnico envolvido na manutenção e recuperação do patrimônio edificado. Do ponto de vista da sustentabilidade é claramente interessante recuperar as estruturas e edificações existentes. Porém um século de prioridade ao “novo” fez com que nos descuidássemos do envelhecimento das estruturas existentes e tem-se hoje um verdadeiro vácuo nas políticas de qualificação do patrimônio edificado.

Faltam relatos de experiências, políticas públicas, conhecimento e orientações técnicas para adaptação e melhoria dessas edificações. A qualificação de uma edificação existente não pode ser um simples processo de “adaptação” às normas técnicas atualmente aplicáveis às novas edificações. Se assim fosse, seria necessário demolir quase totalmente a parte antiga e histórica de Paris.

Ao longo dos últimos oito anos, tivemos oportunidade de levar alunos da graduação e pós-graduação da Universidade Federal do ABC para visitar prédios antigos e abandonados que foram ocupados por movimentos de moradia. Essas visitas foram motivadas pela necessidade de aproximar nossos formandos da realidade da área central da cidade e também das dificuldades enfrentadas pela população de baixa renda para fazer valer seu direito constitucional à moradia.

Durante esse tempo, foi possível acompanhar as iniciativas de limpeza, manutenção, adaptação e recuperação dos edifícios que estavam abandonados e que constituíam um verdadeiro passivo ambiental na cidade, locais que foram transformados pelo esforço dos moradores. Essas iniciativas praticamente não contaram com o apoio financeiro e técnico do poder público. Considera-se que a tragédia recentemente ocorrida enseja a reversão deste quadro, no sentido do apoio técnico e financeiro para a qualificação dos prédios antigos, de forma abrangente e de qualificação dos prédios ocupados pelos movimentos de moradia de forma emergencial.

Além disso, considera-se que são de inequívoco interesse público as políticas voltadas para o estímulo e apoio, tanto para a manutenção preventiva quanto para a recuperação e adaptação do nosso patrimônio edificado.

No caso de São Paulo, por exemplo, isto envolve grande parte das edificações da área central da cidade. Quando a população beneficiária da iniciativa é vulnerável em múltiplas dimensões, esta política assume contornos especiais: inclui a criação de linhas subsidiadas de financiamento, em alguns casos a fundo perdido, para que se façam as obras de qualificação, adaptação, recuperação e melhoria.

Em linhas gerais, essa política inclui a revisão de normas e leis, que precisam melhor contemplar a questão específica de adaptação e melhoria de edificações existentes, na medida em que é absolutamente inviável a aplicação de critérios de novas edificações em processos de qualificação de edificações existentes. Inclui ainda a ampliação do esforço de experimentação e pesquisa, considerando a pequena prioridade dada à área de manutenção preventiva e recuperação predial.

É grande o potencial e também o risco envolvido na iniciativa de vistoria dos prédios ocupados pelos movimentos de moradia em São Paulo. O fato de já termos 28 mil famílias na iniciativa de bolsa aluguel aguardando uma solução definitiva para suas moradias e, ainda, de contabilizarmos mais de 15 mil pessoas em situação de rua evidencia a inviabilidade de processos de remoção dos moradores desses prédios. A remoção pode desencadear riscos ainda maiores que aqueles aos quais essa população vulnerável já está obrigada a vivenciar.

É evidente a importância de uma abordagem que busca a identificação de possibilidades de qualificação gradativa das condições de moradia e de segurança destes prédios. O processo precisa ser gradativo, precisa contar com o apoio técnico e financeiro do poder público, e é fundamental que haja transparência e humildade para reconhecer que não temos uma larga experiência acumulada na melhoria da qualidade e da segurança de edificações existentes, ainda mais neste contexto específico de grande vulnerabilidade e conflito social.

  • Ricardo de Sousa Moretti é Engenheiro civil, professor titular da Universidade Federal do ABC, aposentado, com atuação no LabJuta- Laboratório de Justiça Territorial, Labgris- Laboratório de Gestão de Riscos e do Programa de Pós Graduação em Planejamento e Gestão do Território. Foi pesquisador e professor do IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Est. São Paulo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC Campinas.

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