A artista Cyshimi pensa a decolonialidade na arte asiático-brasileira
Na vídeo-performance "Cosplay de mim mesma", parte da instalação "#IdentidadesImportadasCompactadasDemarcadas.zip", Cyshimi questiona os estereótipos internalizados e/ou impostos a asiático-brasileiros. Foto: Cortesia da artista

A artista Cyshimi pensa a decolonialidade na arte asiático-brasileira
Na vídeo-performance “Cosplay de mim mesma”, parte da instalação “#IdentidadesImportadasCompactadasDemarcadas.zip”, Cyshimi questiona os estereótipos internalizados e/ou impostos a asiático-brasileiros. Assista clicando aqui. Foto: Cortesia da artista.

Nos últimos anos, o debate sobre preconceitos e inclusão de minorias passou a ocupar um espaço crescente no circuito das artes. Porém, ainda pouco se ouve sobre a inclusão (ou exclusão) de pessoas asiático-brasileiras nesses ambientes. 

Em um mundo que foi surpreendido com uma pandemia em 2020, o fato de o coronavírus (Covid-19) ter tido início na China gerou um movimento xenofóbico ao redor do globo com pessoas de diferentes ascendências asiáticas. No Brasil, não foi diferente. Porém, como destaca a artista transdisciplinar Cyshimi, “as questões que permeiam asiático-brasileiros não são novas”, começaram muito antes e vão muito além do vírus. 

Na edição #51 da arte!brasileiros, Luciara Ribeiro trouxe uma reflexão sobre o assunto (leia clicando aqui): “Precisamos sempre nos perguntar o porquê de racializarmos determinadas populações e atribuírmos a elas termos específicos, como afro-brasileiras, indígenas brasileiras ou asiático-brasileiras: será porque reconhecemos a chamada arte euro-brasileira como sendo apenas arte brasileira?”. Para Shima, vencedor do Prêmio PIPA 2013, este é um ponto essencial da discussão. “Nasceremos e morreremos asiáticos no Brasil, por mais brasileiros que nos sintamos. Sei que jamais serei convocado para representar uma ‘arte brasileira’”, afirma.

Nesta edição, decidimos olhar especificamente para a arte brasileira feita por asiático-brasileiros, os preconceitos que a envolvem, a luta que a permeia e suas possibilidades. Para introduzir essa discussão, conversamos com artistas, pesquisadores e curadores de diferentes ascendências.

 “Ao invés de lutar por reconhecimento, fui buscar nas minhas vivências os fatores de identidade e pertencimento para que eu pudesse ao menos pertencer a mim mesmo. O indizível está diante dos meus olhos e encontro também na minha produção algum antídoto para este ambiente tóxico que nos oferecem para existir”, diz Shima

Existe preconceito com asiático-brasileiros?

A Ásia é o continente mais extenso e o que apresenta a maior densidade populacional no mundo. São 50 países com diferentes fenótipos, etnias e culturas. Porém, como destacam artistas e militantes, no Brasil ainda há uma associação direta de Ásia com o Japão e uma redução ao Leste Asiático. “A homogeneização de etnias asiáticas carrega traços do colonialismo ao simplificar e objetificar corpos, identidades e culturas diversas e, com isso, motiva a perda de memória e assimilação de povos”, explica a artista, pesquisadora e curadora Caroline Ricca Lee. Juily Manghirmalani, artista audiovisual e pesquisadora de cinema bollywoodiano, destaca que é por essa homogeneização que comumente as pessoas se esquecem que há também no espectro asiático e asiático-brasileiro, pessoas de origem indiana, do Sudeste Asiático e do Oriente Médio. 

Para Youssef Cherem, pesquisador e professor de história da arte do Oriente Médio da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), essa redução está ligada a uma falta de conhecimento popular da cartografia mundial. Juily faz coro. Em sua visão, a arte pode ter um papel importante na dissolução desses estereótipos, trazendo um maior conhecimento sobre essas diferentes culturas. “A falta de repertório das pessoas sobre outras realidades e expressões acaba criando um distanciamento entre etnias. A arte está 100% interligada com a falta de intercâmbio cultural.”

As ideias de Shima vão de encontro a esse pensamento: “O silenciamento de vozes dissonantes que trazem uma diversidade e pluralidade de interpretações/reflexões, nos levam a uma sociedade rasa no pensamento, sem autocrítica, sem ação, uníssona, monótona. A produção cultural e suas manifestações artísticas nos oferecem parâmetros para dizer onde estou, quem eu sou, e para onde vou.” Um primeiro passo para que a arte cumpra esse papel e de fato facilite esse intercâmbio, para Youssef, parte de entendê-la para além dos estereótipos de cada região: “Por exemplo, por que pensar que a coisa mais importante ou mais interessante das pessoas do Oriente Médio é uma religião? Ver só esse lado nos fecha para outras experiências relevantes”, diz. 

É nesse aspecto que Caroline, Cyshimi, a artista e arte-educadora Alice Yura e a artista visual Singh Bean pensam a decolonialidade ao lado da arte que fazem e, por isso escreveram um manifesto em 2020 relacionando a arte asiática contemporânea aos pensamentos decoloniais. “Arte e decolonialidade dialogam na possibilidade de trazer à tona narrativas contra-hegemônicas, quando artistas através de suas produções revelam contextos que fazem esse ‘giro de olhar’ sobre nossa memória, cultura e sociabilidades”, explica Caroline. 

Mas como isso se dá no trabalho de fato? Segundo Cyshimi, pode se dar ao contrapor a ideia de uma ancestralidade apenas fetichizada e comemorada, politizando as identidades. Como complementa Caroline, pensar um discurso artístico que não se satisfaz apenas no relato único, mas se propõe à discutir questões coletivas e sociais e vai além de pautar identidade também faz parte desse movimento, “pois na decolonialidade está intrínseca uma oposição à história colonial, imperialista, patriarcal e normativa”, explica a artista. Dessa forma, propõem que a discussão se expanda não só à pauta asiático-brasileira, mas à inclusão de corpos dissidentes como um todo, com suas interseccionalidades.

No mundo da arte

É nesse ponto que adentramos o circuito das artes e passamos a refletir acerca da representatividade presente nele. Para o artista multimídia, músico, performer e professor Dudu Tsuda, “o sistema de arte brasileiro é um reflexo da nossa sociedade, estruturalmente racista e centrada na cultura branca europeia e norte-americana. Ele reflete as estruturas de poder sócio-político-econômico-culturais, hegemonicamente dominadas pela branquitude”.

“Vir de culturas tão opostas à branquitude me fez enxergar o mundo de forma mais cautelosa, mais empática, mais enfurecida e mais ambiciosa. Levo minhas expectativas de mudança social para dentro do que produzo”, diz  Juily Manghirmalani.

Segundo Cyshimi, esse é um dos pontos que dificulta a representatividade nas instituições de arte e na mídia. “Sinto falta que essas instituições e veículos também nos enxerguem mais profundamente, tentando conhecer a multiplicidade das nossas produções individuais e não só nos colocando como categoria”, diz. Para Dudu Tsuda, essa postura não significa que não exista um esforço de inclusão por parte das instituições, mas está ligada à ausência de asiáticos brasileiros em posições de poder nesses espaços. “O que nos resta sempre é um olhar da branquitude para os nossos corpos e fazeres artísticos.” Para ambos, isso acaba resultando em um exotismo e uma romantização das identidades racializadas. 

Singh Bean acredita que esse olhar do circuito das artes muitas vezes limita as identidades racializadas ao invés de representá-las de fato. “Às vezes, parece que a gente é chamado para expor para ser um totem do sofredor. Não quero estar nesse lugar de totem apenas, não sou só isso, também mereço um lugar pra falar do que eu quiser”, explica. A artista conta que já questionou a si mesma sobre a relevância de seu trabalho, “como se só tivesse relevância se fosse político”, mas percebe que essa não é uma cobrança para pessoas brancas. 

Para Caroline e Dudu, uma forma de evitar esse olhar fetichista ou limitante sobre os corpos dissidentes é a presença de pessoas não brancas na curadoria e no comando das instituições. Ao que o curador Yudi Rafael complementa: “Se um trabalho sistemático não está sendo feito por instituições de arte no Brasil, nesta área, o que existe hoje, em termos mais engajados, são iniciativas independentes que estão articulando um campo de questões e construindo plataformas para discuti-las”.

Sob um olhar crítico e dissidente

Para Yudi, entender essa pluralidade e a questão asiático-brasileira envolve pesquisa e diálogo por parte de curadores e instituições. “Sem uma perspectiva histórica e crítica, se ‘confunde’ asiático-brasileiro com asiático. Falta então um entendimento de que falar sobre asiaticidades brasileiras é falar do Brasil”, explica. 

Performance "A quarta raça", na qual Shima se prendeu ao Monumento às Três Raças, em Goiânia, com fitas.
Shima na performance “A Quarta Raça,” uma intervenção Monumento à Três Raças (indígena, negro e branco) da Praça Cívica de Goiânia. Foto: Cortesia do artista

Nesse aspecto, torna-se necessário ampliar os entendimentos sobre as relações raciais no Brasil, entendendo que o mito das três raças não faz sentido quando temos tantas etnias plurais compondo o país. “Não passamos pelo racismo estrutural que pessoas pretas passam, mas obviamente não somos pessoas brancas”, diz Cyshimi. Ao que Caroline complementa: “É fato que a sociedade brasileira é uma população de maioria negra e terra pertencente aos povos originários, com isso é preciso que tais narrativas sejam sempre privilegiadas e enaltecidas. A solidariedade antirracista necessita ser uma prática aplicada de forma cotidiana”. Ambas concordam que só a partir de uma solidariedade antirracista será possível compreender como as questões asiático-brasileiras se dão no território brasileiro.

Nesse sentido, Juily acredita que “o momento de reconhecimento étnico que estamos vivendo através do pertencimento e orgulho de nossas origens, tão diferente de gerações anteriores que foram colonizadas a terem vergonha e medo, é algo ainda muito recente. É preciso ensinar, abrir canais de conversa, fazer alianças, crescer em comunidade”. Isso nos esclarece que esta conversa aqui na arte!brasileiros é apenas um início, um primeiro e pequeno passo em direção a esses diálogos.

Youssef complementa que é preciso criar esses diálogos de forma crítica e aprofundada, para além de “discursos açucarados”. Para isso, a arte pode ser um caminho, avançando nas discussões de forma mais hermética e próxima, como propõe Cyshimi: “Acredito que essa seja uma das minhas coisas preferidas no fazer da arte, pela forma como assuntos políticos e herméticos se tornam mais próximos, humanos e reais, o que abrange e pluraliza o imaginário sobre certo assunto”.

A imagem mostra a obra "Estudo para o Tempo Suspenso Ma 間 :: Silêncio, o espaço tempo de resistência e resiliência", de Dudu Tsuda, onde duas pessoas se equilibram envolvidas por um mesmo tecido, no deserto de sal 'Salar del Uyuni' para IX Biennal SIART de La Paz
A vídeo instalação “Estudo para o Tempo Suspenso Ma 間 :: Silêncio, o espaço tempo de resistência e resiliência”, de Dudu Tsuda, é derivada de uma performance site specific que lida com a sensação de tempo suspenso a partir do conceito Japonês de Ma “間”. Realizada no deserto de sal ‘Salar del Uyuni’ para IX Biennal SIART de La Paz / Bolívia em 2016. Foto: Cortesia do artista. Assista clicando aqui.


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