Um sentimento intenso de cumplicidade permeou os que participaram da ação performática. FOTO: Felipe Campos Mello

Dia 28 de outubro, segundo turno das eleições. O mesmo dia dramático que elegeu um presidente impulsionado por informações falsas foi palco da maior performance coletiva na história do país: centenas ou milhares de pessoas — é um movimento impreciso — saíram de casa para votar com um livro na mão.

Não se sabe de onde veio a ideia, há que diga que foi o cantor Criolo o primeiro a sugerir – ele foi votar com Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa -, mas o fato é que o livro aca- bou se tornando o símbolo silencioso de quem se opunha ao candidato das armas. Nos anos 1970, Marina Abramovic resumia em três as orientações de como uma performance deveria se desenvolver: sem ensaio, sem duração determinada e sem repetição. O que ela e os artistas daquela época queriam era evitar a representação, a encenação, criando ações que fossem experiências reais, tornando a arte uma vivência sem mediação. A votação com livros foi uma ação que obedeceu a todos esses princípios. Senti a necessidade de sair com o livro, sem saber muito o que fazer com ele no percurso da votação, mas logo que me aproximei do colégio onde voto, na Vila Madalena, em São Paulo, percebi que muitos outros me acompanhavam. O sentimento de cumplicidade foi intenso. Não troquei palavras com ninguém, não parecia necessário, mas dei e recebi olhares afetivos, sorrisos constantes, sinais de cabeça positivos. Foi emocionante. Não houve gestos exagerados, tudo foi comedido, como uma coreografia a que, mesmo sem ter sido prevista, ocorria de forma natural. Como em um coro, afinal, a impressão era que junto como Vida Capital, de Peter Pal Pélbart, o livro que escolhi, eu não estava isolado, mas participava de uma sinfonia pela afirmação de valores humanistas e a rejeição ao fascismo. Caminhar com um livro se tornou um ato transgressor.

 

 

Cada um ou cada uma que encontrei levava o livro de uma forma. Alguns segurando o livro no peito, deixando claro quem estava homenageando, outros com uma rosa no meio da publicação. Muitos postaram a foto nas redes sociais, alguns com o comprovante de votação, outros em família.

Como nas performances dos anos 1970, a foto com o livro se tornou o registro de uma ação que não pode ser esquecida e que passa a ter tanta importância como a ação em si. Como não houve ensaio, cada um fez como pode e como quis, totalmente performático. Alguém ainda criou a hashtag #bibliografia- 28outubro2018, creio que foi Daniela Name ou Jorge Menna Barreto, para marcar os posts no Instagram e no Facebook de quem participou da performance.

São muitos os marcados, desconhecidos e famosos, especialmente atores e atrizes como Camila Pitanga, Denise Fraga, que votou com Teatro Completo, de Bertolt Brecht, Silvia Buarque, com Raízes do Brasil, de seu avô Sergio Buarque de Hollanda, ou Deborah Secco com A vida como ela é, de Nelson Rodrigues, para citar apenas três casos.

Alguém ainda propôs que os livros fossem doados ao Museu da Maré, aos cuidados de Luiz Antonio Oliveira (avenida Guilherme Maxwell, 26, Maré, Rio de Janeiro, Cep 21.040-212). É uma linda iniciativa, eu gostaria de fazer, mas o autógrafo pessoal do Peter no livro me impede. Penso comprar outro igual para mandar.

Há pelo menos 20 anos acompanho a cena da performance, assisti a dezenas delas, incluindo a histórica “A artista está presente”, de Abramovic no MoMA, em 2010, mas nunca havia realizado uma. Ter levado o livro para votar foi um dos momentos mais livres da minha vida. De usar meu corpo como resistência e constatar que tantos outros estavam na mesma sintonia.

Agora, quando vejo alguém na rua caminhando com um livro, e essa situação tem sido muito recorrente, inclusive de muita gente lendo livro enquanto caminha, chego a ter a sensação de que o dia 28 ainda não acabou, e que a performance ainda não se encerrou. Em verdade, tenho certeza que ela vai continuar.

 

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