“Ser o termômetro do que há de mais potente em cada momento histórico é o compromisso dos prêmios de arte. Mais do que apontar um único caminho das expressões contemporâneas, devemos revelar as várias bifurcações que estão constantemente sendo abertas nas rotas e narrativas hegemônicas”, defende Luiz Camillo Osorio, curador do PIPA. Foi com isso em vista que o tradicional prêmio de arte contemporânea decidiu alterar suas regras. Ao invés de concentrar-se em um só nome, selecionou cinco ganhadores em sua 12ª edição: a capixaba Castiel Vitorino Brasileiro, o amazonense Denilson Baniwa, os paulistas Ilê Sartuzi e Marcela Bonfim e a baiana Ventura Profana.
Essa não foi a única alteração do PIPA, que a partir deste ano assume um caráter mais claro de fomento – focando em profissionais com trajetórias recentes que ao serem selecionados recebem uma doação de R$ 10 mil cada, sem a contrapartida de doação de uma obra ao Instituto – e dá fim (ao menos temporário) às mostras presenciais do prêmio. De 9 de setembro a 20 de novembro, o Paço Imperial, no Rio de Janeiro, recebe os trabalhos dos vencedores de 2020, ao lado de aquisições e comissionamentos recentes do PIPA. Já os ganhadores desta edição farão uma ocupação digital. “Resolvemos que a partir de 2021 as exposições presenciais serão só da coleção do instituto e a mostra dos premiados acontecerá em ambiente virtual. A ideia é fortalecer a instituição, dar-lhe mais visibilidade e poder assim desenvolver outros projetos curatoriais”, explica Luiz Camillo. E completa: “Caso percebamos no futuro que as coletivas presenciais dos artistas selecionados são importantes, voltaremos a fazê-las. No momento, estamos convencidos que as mudanças foram positivas”.
Em sua 11ª edição, no ano passado, pela primeira vez desde sua criação o Prêmio PIPA teve mais de um ganhador, nomeando Gê Viana, Maxwell Alexandre, Randolpho Lamonier e Renata Felinto. Em 2021, a organização optou por adotar este modelo como norma. “Mais do que concentrar em um único nome, percebemos que dividir o prêmio é mais justo, tendo em vista um cenário tão plural e continental como o brasileiro, com tantas micro-cenas relevantes de norte a sul do país”, explica o curador. A premiação geral, decidida a partir da análise de portfólios e trajetórias feita por um conselho de profissionais renomados da área, passa a contar anualmente com cinco vencedores; já o PIPA Online, categoria cuja decisão reside em uma votação popular, gratifica os dois artistas mais votados – neste ano, Daiara Tukano e Ruth Albernaz.
“A seleção de mais de um artista também ajuda a descentralizar essa figura do ‘vencedor’, assim como ameniza um pouco a competitividade que assola a sociedade capitalista e neoliberal como um todo e o meio artístico em específico”, compartilha Ilê Sartuzi sobre o prêmio geral. O artista porém, acredita que a categoria ligada ao voto popular caminha na direção oposta. “Se por um lado poderia, idealmente, selecionar uma produção completamente diferente do aval do conselho de premiação, por outro, reitera a selvageria competitiva somado à promoção da autoimagem e a propaganda gratuita e massiva do prêmio.” Para Denilson Baniwa, a escolha por mais de um vencedor também soa necessária neste momento do Brasil. “Me sinto desconfortável em estar em uma disputa de território num lugar que já é super violento e desleal como a arte. Então, acho legal uma escolha na qual cabem mais corpos, e que ainda assim tem uma visão do júri.”
Vencedores do PIPA 2021
Esse crivo do júri tem um peso especial para o amazonense que há dois anos vencia o PIPA Online e agora é um dos selecionados ao prêmio geral. Se a vitória em 2019 permitiu que mais pessoas entrassem em contato com a obra de Denilson Baniwa e que ele tivesse outro olhar para seu trabalho – levando-o mais a sério e gerando uma evolução dos pontos de vista conceitual e formal -, o anúncio deste ano traz outros ecos pessoais e profissionais. “Um grupo de pessoas especializadas em artes disse que meu trabalho tem uma coisa boa, e isso era algo que eu me cobrava bastante: o que será que os críticos e curadores pensam do meu trabalho?”. Artista-jaguar e antropófago, como define a si mesmo, Denilson é considerado um dos expoentes da arte indígena contemporânea. Em seus trabalhos, envolve questões ambientais e de luta dos povos originários, ao que explora uma poética indígena ancestral e futurista. Nos últimos anos, percebe uma alteração no cenário artístico e em sua relação com o mesmo. “Acho que [em 2019] eu estava bem mais exposto a quebrar a fechadura da porta a chutes para mostrar meu trabalho e ver meus amigos e parentes indígenas junto. O Denilson de agora encontrou uma chave que abre algumas portas e consegue trazer bem mais gente.” Em suas pesquisas mais recentes, tem se debruçado sobre os deslocamentos forçados que amputam a memória de várias pessoas indígenas no Brasil, tratando dos processo de afirmação e reafirmação, da busca pela identidade perdida e das violências contra esses corpos. É nesse sentido que pretende trabalhar na exposição do Prêmio PIPA 2021, enxergando na opção pelo virtual uma outra possibilidade de investigação do formato: “Isso me desafia a pensar trabalhos que nasçam a partir do digital. Não gosto de pensar o meu trabalho sendo digitalizado, gosto de pensar a partir de onde ele é nativo”.
É também atravessado pela ideia de recuperação da identidade que o trabalho de Marcela Bonfim se configura. Formada em economia, foi apenas ao se mudar para Porto Velho, Rondônia, que a paulista se entendeu de fato como mulher negra. Se nas ruas de São Paulo buscava os discursos de meritocracia e via sua imagem como empecilho, ao fotografar na cidade amazônica encontrou um espelho. “Começo a me reconhecer nessas imagens e vê-las tão possíveis aqui neste lugar – e eu tão impossível em São Paulo.” A artista pontua que ao chegar na Amazônia pensava apenas na imagem indígena, “mas a imagem negra é parte do contexto e acaba sendo tão essencial quanto”. Hoje, afirma, “eu e a Amazônia estamos nos reconhecendo”. Nos últimos anos, Marcela tem se dedicado a um trabalho de retomada da Amazônia negra, retratando populações que vivem em lugares mais afastados da cidade: ribeirinhos, povos tradicionais, quilombolas. “É muito importante dizer que são populações, no plural, porque a palavra ‘negro’ parece uma coisa enxuta, né? Antes de ser negro, eram identidades. Mais de 500 anos depois [da chegada dos portugueses], estamos aqui, pegando essa palavra, essa redução e ampliando-a em multiplicidade.” Por isso, para a fotógrafa faz pouco sentido tratar dessas questões sem se colocar dentro da discussão. “A ideia é ressignificar esse processo, sendo como camada dessa fotografia. É nessas linhas paralelas que eu me coloco de frente pro espelho nessa Amazônia negra.”
Enquanto Marcela parte das comunidades para compreender a sua identidade, Ventura Profana parte de sua vivência particular para expressar uma outra reflexão. Criada em meio a uma tradição batista, ela busca investigar as implicações do evangelicalismo no Brasil e seus impactos nas relações coloniais. “Tento, através dessas investigações do cristianismo, entender como o processo colonial se impregnou” e como é sustentado nos dias de hoje, explica em vídeo gravado para o PIPA. Se, em sua visão, o cristianismo atua como braço missionário de implantação das dinâmicas coloniais, em sua prática pessoal e artística Ventura profetiza a abundante vida negra, indígena e travesti, buscando estratégias de cura. O faz através de colagens, música, instalações, performances e textos. “Sempre tento trazer uma mensagem de vida para corpos e sujeitos que têm isso negado – seja pelo governo, seja pelo sistema, seja pelas implicações desse colonialismo”, completa.
Castiel Vitorino Brasileiro também busca a libertação dos gestos coloniais, ao mostrar que algumas mitologias construídas para pessoas racializadas e travestis não passam de falácias. “O que faço são convites e lembretes de que nós podemos viver outra história que não essa racial e de gênero”, explica em vídeo gravado ao PIPA. Artista visual, escritora e psicóloga, Castiel constrói suas produções a partir dos diálogos entre saberes da arte, macumbaria, psicologia, feitiçaria, curandeirismo e “o que julgar ser necessário para produzir sobrevivência”. Não se definindo em uma técnica artística específica, em seus últimos trabalhos opta por experiências instalativas. “A minha produção artística tem precisado ser uma experiência de incorporação, onde compreendo o meu corpo negro, testiculado e feminino como um local de memória e utilizo dessa organicidade para produzir aquilo que venho chamando de liberdades perecíveis – que são experiências tanto no meu território existencial, em forma de cura, mas também experiências de reterritorialização dessas geografias que eu coabito”, declara.
É abordando a ausência do corpo ou a sua imagem idealizada – muitas vezes fragmentado ou construído a partir de diferentes partes – que Ilê Sartuzi constrói suas obras, frequentemente permeadas pelo uso de tecnologias não convencionais. A imagem idealizada vem principalmente da presença significativa de manequins em sua produção, muitas vezes montados de formas improváveis. “Esse corpo montável e reproduzível indefinidamente dá lugar – material e conceitualmente – à uma construção em partes modulares. Sendo essa uma condição da fabricação em massa desses corpos, me parecia coerente que eles pudessem ser reproduzidos e combinados de formas distintas, o que me aproximou da figura do Frankenstein”, explica. Por vezes, esses objetos são ainda movimentados a partir de automações e acompanhados de videomapping, conferindo-lhes teatralidade. Porém, é importante pontuar que não se trata de uma pesquisa monotemática e linear, como o próprio artista explica. Em seu corpo de obras nos deparamos frequentemente com a ausência total de corpo, em especial nos vídeos realizados através da fotogrametria – processo de construção de um espaço virtual através de fotografias. Sobre esse uso frequente das novas tecnologias, ele destaca: “O uso de qualquer tecnologia não deve ser ingênuo, inclusive das tradicionais do campo artístico. Cada ferramenta carrega consigo características únicas que abrem possibilidades para a elaboração de ideias distintas. O uso, por exemplo, do videomapping, da mecânica e da automação vieram do interesse específico de animar objetos. Talvez nunca teria explorado essas técnicas não fosse a necessidade dos próprios trabalhos”.
Um retrato possível da cena atual
Para Luiz Camillo Osorio, a escolha de Castiel, Denilson, Ilê, Marcela e Ventura na edição deste ano demonstra o momento de grande ebulição política e de forte desenvolvimento de poéticas experimentais que presenciamos no Brasil atual. “Cada um deles evidencia obras em processo, em que o performativo, as novas tecnologias, a ancestralidade, a experimentação, a política, está tudo embaralhado, fertilmente misturado, apontando para o desconhecido e com muita contundência poética.”
Essas propostas poderão ser melhor entendidas pelo público na mostra online, prevista para acontecer entre setembro e outubro de 2021. Cada artista ocupará o site e as redes sociais do PIPA por uma semana, disponibilizará um trabalho original para circular virtualmente e participará de uma série de outras atividades. Além disso, ao final deste ano o novo catálogo bilíngue a ser lançado pelo instituto reunirá obras dos cinco vencedores, bem como de Daiara Tukano e Ruth Albernaz – vencedoras do PIPA Online -, e dos demais 58 indicados.