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O Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, com tinta jogada por manifestantes em 2016. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

“Tem gente chorando por estátua, mas não é capaz de chorar quando morre um negro”, disso o filósofo e advogado Silvio Almeida, em maio passado, em um programa de entrevistas de televisão. Sua frase resume um debate que se instaurou desde que monumentos foram destruídos na Inglaterra e na Bélgica, na esteira dos movimentos antirracistas desencadeados pelo assassinato brutal de George Floyd por um policial, nos EUA.

Em síntese, o que se debate é se monumentos públicos que exaltam líderes genocidas merecem ser mantidos. Nas redes sociais, uma “legião de imbecis” como já apontava Umberto Eco, em 2015, quando recebeu o título de doutor honoris causa na Universidade de Turim, saíram em defesa do patrimônio, deixando de lado uma história de violência e segregação, chamando de “vândalos” aqueles que, em 7 de junho, em Bristol, jogaram no rio Avon a estátua de Edward Colston. Ele foi um traficante de pessoas escravizadas, responsável pelo tráfico de nada menos que 80 mil africanos, sendo que 20 mil morreram no mar.

Já em Antuérpia, no dia 9 de junho, a estátua de Leopoldo II, incendiada anteriormente, foi retirada da praça pública para ser inserida em um museu. O monarca, que reinou entre 1865 e 1909, foi o responsável pela morte de 10 milhões de africanos, a maioria da República do Congo, que era uma possessão pessoal de Leopoldo II (1835 – 1909). Finalmente, semanas depois a família real belga pela primeira vez se manifestou “arrependida” pela violência na África.

Nessa mesma sequência, o Museu de História Natural de Nova York anunciou que vai retirar da sua entrada principal a estátua do ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, em cima de um cavalo, sendo acompanhando por um indígena e um negro. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, concordou com a medida, dizendo que o monumento “retrata pessoas negras e indígenas como subjugadas e racialmente inferiores”.

Pelo mundo todo, afinal, estão sendo revistos esses símbolos racistas e, em São Paulo, coube à deputada Erica Malunguinho (PSOL) encampar o debate. Ela protocolou um projeto de lei para impedir homenagens a pessoas que tenham comercializado escravos.

Trabalho do inglês Banksy, divulgado no Instagram do artista

A proposta de Malunguinho inclui a remoção de monumentos públicos, segundo  o artigo 5° do 2° parágrafo do projeto: “Os monumentos públicos, estátuas e bustos que já prestam homenagem a escravocratas ou a eventos históricos ligados a prática escravagista devem ser retirados de vias públicas e armazenados nos Museus Estaduais, para fins de preservação do patrimônio histórico do Estado.”

Trata-se aí de um debate necessário, já que São Paulo tem entre suas mais famosas imagens o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, de Victor Brecheret. Inaugurado em 1953, uma maquete da obra chegou a ser exposta na Semana de Arte Moderna de 1922, o que revela o caráter elitista do movimento. Afinal, as bandeiras, como explicam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, em Brasil: uma biografia, “dizimaram populações locais”. Essas bandeiras “assumiram a forma militarizada de organização das expedições de caça e escravização dos índios ou de busca de metais preciosos”. Em suma, eles foram os milicianos da colonização brasileira.

Já há sete anos, em 2013, o monumento de Brecheret foi alvo de um protesto, tendo sido manchado com tinta vermelha. “Ela deixou de ser pedra e sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa resistência”, escreveu na época Marcos Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá. O fato ocorreu quando se discutia a PEC 215 (Proposta de Emenda à Constituição) que transferia a competência da União na demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional e possibilitava a remarcação das terras indígenas.

As manifestações antirracistas vêm colocando em xeque o que se considera como “história universal”. Em geral, essa história é um relato de homens brancos, que ignoram todos os conflitos e resistências, impondo uma visão única. Está na hora, portanto, de descolonizar nossa história e nossos símbolos, ressignificando esses monumentos que exaltam lideranças genocidas.

A proposta de Malunguinho é a mesma que vem sendo posta em prática em vários países, como é o caso da Bélgica. Há outras ideias mais criativas. Em sua conta no Instagram, o artista Banksy faz uma ótima proposta para Bristol: recolocar a estátua de Edward Colston no pedestal, acrescentando, contudo, outras estátuas representando pessoas tentando derrubá-la, tornando permanente, assim, o gesto de reescritura da história.

Não se deve apagar a história, ou mesmo fazer de conta que ela não existiu, como se fez com o período da ditadura militar no Brasil. A transição para a democracia sem o enfrentamento com o passado violento é um dos motivos para o pesadelo atual. É preciso, portanto, rever esses monumentos e recontextualizá-los de forma que não se esqueça o passado violento que se abateu sobre os povos indígenas, para que ele não mais se repita.

Para ampliar esse debate, arte!brasileiros convidou Naiara Tukano, do povo indígena Yepá Masã, de São Gabriel da Cachoeira, no interior do estado do Amazonas. Leia a seguir seu texto. ✱


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