"Pano Preto na Janela", de Julio Villani, intervenção do artista no muro da embaixada brasileira em Paris. Foto: RA

Com o isolamento compulsório por conta da Covid-19, parte da comunidade artística cria novas interrogantes com trabalhos impregnados de críticas ao governo Bolsonaro. A arte produzida nessas circunstâncias nasce contaminada por outras filiações como psicanálise, ativismo e política. Os trabalhos se expandem quase independentes da vontade do autor, com ações inimagináveis.

Julio Villani, brasileiro que mora em Paris desde 1982, é tranquilíssimo. Mas, no dia 21 de maio último vira a mesa e surpreende a todos com a intervenção  Pano Preto na Janela, feita no muro da embaixada brasileira da capital francesa. Seis longas bandeiras, com desenhos iguais à do Brasil, mas nas cores preto, vermelho e amarelo, exibiam palavras e frases contra a política de Bolsonaro, reproduzindo algumas de suas  sandices. Muita gente se espantou porque, com raras exceções, seu trabalho não traz carga política explícita. “Posso ser um sonhador, mas sou um sonhador acordado”. No fim do ano passado, ele já fazia lençóis bordados denunciando os “reviramentos” da liberdade no Brasil. Isso não foi suficiente, então decidiu agir. “A embaixada brasileira se impôs como lugar natural para vomitar nosso desacordo.” Uma semana antes ele cria uma bandeira preta, um GIF no Instagram. “Os outros painéis nascem de um só traço e a ligação com os panos pretos nas janelas se faz automaticamente.” Passados esses dias, ele desabafa: ”Foi uma gota d’água nascida com a única coisa que sei, com a única coisa que sou”. Villani representa uma parcela de brasileiros revoltada com o comportamento vulgar do presidente. “O governo dele nem chega a ser autoritário, mas desgoverno, destruição sem nome e, se nome tem, é fascismo. O que sinto é oposição visceral.”

A imprensa francesa noticia e o Quotidien des Arts abre com o título: “Comando artístico contra Bolsonaro”. O importante para Villani é que o jornal explica cada bandeira, expondo o desgoverno. O Figaro também publica as críticas e, no Canadá, brasileiros usam as imagens em ação na embaixada brasileira em Ottawa. Em Lisboa e Coimbra, elas aparecem em manifestações anti-Bolsonaro e estão disponíveis no site da paulistana Casa do Povo. Se os seis painéis pretos impactaram o público, o que ficou no coração do artista foi o branco, pequeno, com a frase: um outro Brasil é possível. “Temos que encontrar ideias e ações para fazê-lo voltar a existir. A outra opção, não é uma opção.”

Projeções da série Convivência, Ação para Tempos de Isolamento, de Ana Teixeira. Foto: Divulgação.

Com ativismo rápido e disseminado, os artistas se infiltram no tecido da cidade, ganham territórios e audiência para suas falas. Ana Teixeira transformou a janela de sua casa, na Vila Madalena, em São Paulo, em palco de onde projeta luz com textos de resistência ao autoritarismo do governo, além de textos jornalísticos ou filosóficos como os de Ailton Krenak e Eliane Brum. Convivência, Ação para Tempos de Isolamento traz também suas narrativas que aderem às paredes dos prédios, como pele da arquitetura. A projeção é um ritual que se repete diariamente, também com outros autores.

A cidade é um imenso corpo narrativo e lugar de embates. Ana recebeu ameaça de um vizinho, não identificado, ao projetar alguns trabalhos, com som, como a hashtag #ForaBolsonaro. Alguém não gostou, desferiu uma saraivada de laranjas contra sua casa e, a partir daí, ela eliminou o som. Ela tem seguidores que a acompanham aqui e no exterior. “Mantenho contato com artistas que também constroem modelos de ocupação e resistência urbana em suas cidades. Em Barcelona um grupo projeta meus trabalhos e eu os dele.”

Trabalho da série Aller et Retour, de Maurício Silva. Foto: Anne Furci/ Divulgação.

Na década de 1980, Maurício Silva vive uma vadiagem criativa, com artistas igualmente jovens, em torno do grupo Paranambuco, formado por José Patrício e Alexandre Nóbrega, entre outros. Socialistas utópicos, achavam mais produtivo e divertido o trabalho coletivo. O tempo passou, mas o espírito inquieto de Maurício permanece intacto. Hoje ele mora em Meudon, nos arredores de Paris, com a mulher Anne e quatro filhos. No isolamento, ele criou uma estratégia para suturar o tempo com a série Aller et Retour, pinturas sobre bilhetes do metrô guardados por ele. “Os tickets são registros de minhas idas e voltas nessa sociedade que nos limita e oprime.” Pintados e colados lado a lado formam uma grande tela, com marcas da sua obstinação pelas texturas. Cores fortes e luz intensa são parte da reserva afetiva que ele carrega do Recife. Aller et Retour acabou, não por esgotamento do projeto, mas pela troca de tickets por cartões magnéticos introduzidos pela prefeitura de Paris.

O livro Poesia Pandemia, de Maurício Silva. Foto: Anne Furci/ Divulgação.

Nesse contexto ainda produziu o livro Poesia Pandemia, com infiltrações de resistência política, com seus textos, colagens e desenhos, e pronto para ser impresso. Um alívio para ele, que confessa: “Nada é tão assustador quanto a possibilidade de morrer sem dizer nada. E sobreviver depois de tudo isso será mudar para melhor, com certeza”.

Na tentativa de salvar o país da desintegração nacional, as redes sociais fervilham com mensagens saídas de diversas trincheiras. Diariamente trabalhos de autores anônimos, com identidade comum, se integram à Cólera Alegria, definida pelos participantes como “ação colaborativa de caráter político”. Sem nenhuma voz de comando, os integrantes não se reconhecem como coletivo ou grupo. Com um comitê invisível, tudo para eles é colaborativo, provisório e dinâmico, assim como a entrada e saída dos participantes, a qualquer hora. A execução dos trabalhos nasce nas pegadas do Arts and Crafts, com papelões e panos pintados que se transformam em cartazes, bandeiras, estandartes, que circulam tanto nas redes sociais como nas ruas, em manifestações políticas. Irreverência e humor não faltam à ação que age por meio do compartilhamento de imagens junto à hashtag #coleraalegria. Com a ascensão da direita no Brasil, se apoderando de símbolos e cores nacionais, eles tentam retomá-las, assim como as palavras deturpadas pelo discurso autoritário do governo.

Trabalho divulgado pelo Cólera Alegria

Pela ideia transformadora, Cólera Alegria foi incluída na exposição Against, Again: Art Under Attack in Brazil, com curadoria de Nathalia Lavigne e Tatiana Schilaro, sem a identificação dos artistas, na Faculdade de Direito John Jay, em Nova York. A mostra está interrompida por conta da Covid-19, sem data de retorno. ✱

Leia também: Projeto de arte pública realizado no Chile, em meados de maio, reuniu mais de 70 artistas e coletivos que estiveram presentes em espaços suspensos e postergados durante o isolamento na pandemia. Neste link.


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