*Por Patricia Rousseaux e Jamyle Rkain

Na ocasião da conceitualização do Seminário Gestão Cultural: Desafios Contemporâneos, além dos palestrantes que somaram ao evento, fomos atrás de inúmeros profissionais que vêm trabalhando junto às dificuldades enfrentadas pela cultura no nosso país.

Aqui, uma entrevista com Lucimara Letelier, ​fundadora e diretora do Museu Vivo, consultoria de inovação e sustentabilidade econômica em museus e cultura, co-idealizadora do HiperMuseus. Ela atua há 20 anos em gestão cultural, social e de museus, com projetos com mais de 40 organizações, como Museu da Língua Portuguesa, Museu da Imigração, Museu Villa Lobos, Oi Futuro, Museu do Amanhã, MAR e Espaço BNDES. É mestre em Administração Cultural pela Boston University, foi diretora adjunta de Artes do British Council, diretora de captação da ActionAid. É conselheira no ICOM Brasil e ICOM MPR, ActionAid e ABGC.

ARTE!Brasileiros — Lucimara, como surgiu a ideia de criar a consultoria Museu Vivo?
LUCIMARA LETELIER Com 20 anos de atuação na área em Gestão Cultural, Gestão de Museus e Direitos Humanos, senti a necessidade de criar uma plataforma que sintetizasse um pouco de tudo que tinha observado com as dificuldades e aprendido no caminho. Nesse sentido, passei um ano e meio estudando o Programa da Unesco para líderes, agentes de mudança, voltado para a Agenda 20/30. Esse é um programa que tenta discutir sobre os limites planetários, quais são as causas mais urgentes, discussões a serviço de um processo de transição no mundo, mas de fato voltado para ambientalistas, empreendedores sociais, agentes de pactos sociais. Ao fazer o curso que eles propõem, o Gaia Education me chamou muito a atenção, que não houvesse nenhuma discussão em volta de agentes de mudança no setor cultural e de museus. Nesse momento decidi tentar ver como essas pautas poderiam conversar com a área museológica, cruzar conhecimento e trazer oxigênio para os museus, que estão morrendo. Tentando pensar soluções orgânicas.

Como se implementa isso na prática?
Pesquisamos modelos de instituições e resolvemos criar uma plataforma que proponha soluções de sustentabilidade para a cultura. Montamos uma consultoria em rede que tenta lançar mão de várias áreas para criar essas soluções. Que novas habilidades, que novas linguagens são necessárias percorrer?

Sim, mas não lhes escapa que, na maioria das vezes, se trata de um problema econômico.
Acho que você está trazendo uma situação limite, que é a ausência de política pública. Na nossa opinião, hoje tem que ter uma pizza mista, com diversificação de recursos. Durante muitos anos tivemos repasses diretos e indiretos, como Lei Rouanet ou o repasse que se faz às OS, que sempre deixam a instituição “esperando” e sem reação ou exigência de pensar em outras alternativas. Esse sistema, no Brasil, está falido. Eu acho que não houve uma mobilização pública, civil, que entenda que a sustentabilidade é um ato político.

O MAR, por exemplo, que passa por uma crise financeira importante, tem uma enorme capilaridade e uma enorme relação participativa. Mas achamos que não há uma verdadeira busca de como tornar campanhas de teor progressista em campanhas capazes de gerar recursos. Nós temos pessoas progressistas, essas pessoas têm que estar envolvidas ao ponto de se sentirem parte do lugar que está sendo sustentado.

Lucimara Letelier, fundadora do Museu Vivo.

Vocês já operacionalizaram esta ideia de alguma forma?
Sim. Montamos uma parceria com a benfeitoria.com, uma plataforma de crowdfunding com experiência em campanhas de financiamento coletivo; a SITAWI — Finanças do Bem, que gerencia o fundo, e nós, que gerenciamos as propostas com o conhecimento da gestão cultural. As três — Museu Vivo, benfeitoria.com e SITAWI — são organizações que têm suas próprias expertises. Por outro lado, o BNDES tem uma linha de financiamento para campanhas de sustentabilidade de investimentos de até R$ 300 mil. Assim, nas campanhas de matchfunding, a cada R$ 1 que os cidadãos colocam, o BNDES coloca mais R$2. Nesta linha, já criamos, por exemplo, duas campanhas: uma para o Museu do Inconsciente e outra para o Museu Bispo do Rosário, que envolvem a preservação das obras e restauros.

Como parte do projeto, a instituição, depois, recebe uma consultoria para trabalhar com o mailing que foi produzido nessa iniciativa. Uma coisa é um doador chegar para uma campanha, outra é o que fazer com seus dados. Na verdade, ele se torna um ente econômico. Na bilheteria, você apenas “vende um evento, uma atividade”. Nesta proposta, as pessoas “compram uma ideia”. E poder reter seus dados colabora com a possibilidade de continuar lhe oferendo serviços de apoio à instituição. 

As pessoas no crowdfunding deixam o dinheiro para uma campanha, na bilheteria deixam o dinheiro para um evento, para uma atividade. É diferente, porque no primeiro caso está entregando um dinheiro para uma causa que quer apoiar. Na bilheteria, é apenas um custo. No Children’s Museum, onde trabalhei, eles consideram muito fortemente a pessoa que entra no museu como um ente econômico. Quando você entra para comprar um ingresso, assim como uma telecom, criam uma relação econômica com essa pessoa. Acho que seria importantíssimo que as empresas de tecnologia, por exemplo, além de pagar patrocínios, fossem capazes de oferecer knowhow para os museus.

Sobre o título do nosso seminário, como você sintetizaria esses desafios?
A instituição se entender como causa; ter uma escuta para seus problemas como de co-curadoria; trabalhar a conexão cultural casada com políticas públicas e privadas, trazer o conhecimento de cultura empreendedora nos gestores.

Gestão em tempos de tragédias

Diretora-executiva de Inhotim desde o último abril, Renata Bittencourt chegou ao instituto três meses depois do rompimento da Barragem do Feijão, na cidade de Brumadinho. Anteriormente, dentre outras coisas, ela havia sido diretora de Processos Museais do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), de 2017 a 2019, e secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural em 2016, ambos no extinto Ministério da Cultura (MinC). Ela é mestra e doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), graduada em Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Renata se especializou em Estudos de Museus de Arte e Gestão de Processos de Comunicação e Cultura pela Universidade de São Paulo (USP).

Renata Bittencourt, diretora executiva de Inhotim. FOTO: William Gomes

A lama da tragédia humana e ambiental não chegou ao grande museu a céu aberto, mas afetou o funcionamento de várias formas. Em entrevista ao site da ARTE!Brasileiros em junho deste ano, Renata afirmou que alguns de seus principais objetivos ao chegar em Inhotim era estimular a volta de visitação e estreitar laços com a comunidade local. Após o ocorrido em Brumadinho, o instituto assumiu um papel de compromisso social importante na vida da cidade, ação que a diretora conhece bem, pois entre 1997 e 1998 foi bolsista da organização Fulbright para observação de programas voltados a essa esfera: “Um desafio que acho importante ressaltar, que é importante para Inhotim em específico, mas acho que é para muitos outros espaços também, é o desafio da conexão com os territórios onde as instituições estão inseridos”, ela comenta.

No contexto da chegada de Renata ao instituto, foi iniciada uma nova fase do programa Nosso Inhotim, que cadastrou até agora aproximadamente 1500 moradores do município de Brumadinho para entrada gratuita na instituição e 50% de desconto nas atividades que ocorrem no espaço. Antes, os moradores tinham apenas o direito à meia-entrada. “Existe um desejo e uma ação nossa para uma reconexão ainda mais forte, uma criação de vínculo ainda mais forte com a cidade”. Ela ressalta que isso envolve desde os artistas até o reforço de ligações com as escolas da região e um alcance aos moradores de modo geral, sendo assim uma via de troca, onde a instituição abre suas portas e a cidade realiza um gesto de dizer aquilo que é interessante para Brumadinho: “Essa abertura para o território hoje ajuda a definir o que Inhotim é”.

Para a diretora, uma das principais situações ao chegar em Inhotim foi ver com ainda mais nitidez o fato de instituições serem feitas por pessoas. “Inhotim viveu essa tragédia muito na pele porque a pele de Inhotim é feita dessas 600 pessoas que trabalham aqui”, diz. Ela conta que a ideia de que uma gestão precisa, em todas suas esferas e decisões, ser humanizada foi uma reflexão provocada por esse acontecimento.

Decolonizando a gestão

Dentro da esfera de gestão de instituições culturais públicas e privadas no país, é importante ressaltar que Renata Bittencourt é uma das únicas pessoas negras à frente de uma instituição de grande importância no país. O fato está relacionado a um racismo institucional infelizmente ainda muito arraigado na sociedade brasileira. Renata destaca que é importante que sua posição neste momento sirva para criar uma interlocução nesse aspecto e ressalta pessoas como Rosana Paulino, Renata Felinto, Janaina Barros, Amanda Carneiro e Hélio Menezes, que não necessariamente atuam como gestores mas têm voz ativa no meio artístico: “A mim me dá uma impressão de que há caminhos que se abrem”.

Claudinei Roberto da Silva, professor e curador independente. FOTO: Antonio Trivelin.

Neste ponto, o curador, artista plástico e professor Claudinei Roberto da Silva afirma que o que se pode “perceber é aquilo que é fácil de ser constatado: existe uma competência negro-brasileira que foi historicamente negligenciada”. Ele é formado em Artes Plásticas pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), ex-coordenador do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil, além de atuar como curador independente e professor de desenho, pintura e História da Arte em instituições pelo país. Ele ressalta que a preocupação em incluir essa competência hoje existe, mas em uma proporção que poderia ser maior. Ele destaca a falta de pessoas negras em cargos de gerência em instituições pelo país e afirma: “A instituição não é decolonial porque promove simpósio de diáspora afro-atlântica, ela vai ser decolonial quando tiver negros, negras e indígenas em cargos de diretoria”.

De acordo com Claudinei, não existe a possibilidade de se falar de decolonialismo sem trabalhar antes a ideia de anticolonialismo: “Fica muito difícil tratar de decolonialismo sem falar de hegemonia, sem falar de hegemonia cultural e de branquitude. As pessoas precisam reconhecer o atraso delas nesse momento da História”. Suas observações são a partir do que ele enxerga em São Paulo. Ele aponta a extrema importância de se fazer um esforço para trazer à tona uma história, registrá-la em livros, em catálogos ou em documentos “extraordinariamente bem realizados”, mas que nada é mais fundamental do que observar se no corpo de funcionários de instituições museais a presença negra está contemplada.

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