Em uma fala contundente na Flip de 2014, Eduardo Viveiros de Castro afirmou que “nós temos que aprender a ser índios antes que seja tarde”. O antropólogo se referia a “nós”, civilização branca ocidental, e ressaltava que era preciso aprender com os povos indígenas “como viver em um país sem destruí-lo, como viver em um mundo sem arrasá-lo e como ser feliz sem precisar de cartão de crédito”.
Cerca de seis anos depois, é difícil afirmar que as coisas caminharam neste sentido. A destruição do meio ambiente e a crise climática se agravam globalmente e, no Brasil, a situação dos povos indígenas se torna cada dia mais dramática. Enquanto país, elegemos um presidente que afirma ser abusivo o tamanho das terras indígenas, tenta liberar a mineração nestes territórios e coloca na chefia da Funai um delegado apoiado por ruralistas. Em consonância com a política governamental, a grilagem e o desmatamento na Amazônia – onde habitam diversos povos – batem recordes, assim como as invasões de terras demarcadas no país. Entre essas e outras, destaque-se ainda que o número de assassinatos de lideranças indígenas em 2019 foi o mais alto da última década.
Frente a este panorama, é em sentido oposto que o universo das artes visuais tem se voltado para os povos indígenas, suas produções, seus modos de pensar e viver. Esse movimento parece nítido quando se observa a pauta recente de várias das principais instituições culturais do país. O Sesc, na sequência de outros projetos marcantes nesta área, apresenta em 2020 a mostra Coração na Aldeia, Pés no Mundo, em Piracicaba, e a conclusão do projeto Sawé, no Ipiranga, ambos ligados à luta de mulheres indígenas. Encontros Ameríndios, por sua vez, na unidade do Vila Mariana, reunirá trabalhos contemporâneos de diferentes etnias das Américas.
O Museu Afro, após mostras sobre as origens africanas e portuguesas, encerra sua trilogia sobre os povos que formaram o país com a exposição Heranças de um Brasil Profundo. A Pinacoteca prepara uma grande mostra de arte contemporânea indígena, Véxoa, e o MASP definiu Histórias Indígenas como seu eixo curatorial para 2021. Ainda se poderia citar obras apresentadas nas últimas bienais de SP, exposições realizadas recentemente no Instituto Moreira Salles – como A Luta Yanomami, de Claudia Andujar, artista que também ganhou uma galeria permanente em Inhotim –, no Museu de Arte do Rio, no Centro Cultural Banco do Brasil e no Instituto Tomie Ohtake, entre outros.
“Uma característica desses povos ameríndios é a de não diferenciar coisas que nós consideramos como esferas separadas: ética, estética e moral. Então aquilo que é esteticamente belo é porque é eticamente correto e moralmente é o certo”
Sylvia Caiuby
Afirmar quais são as motivações para tamanho movimento seria arriscado, até por serem elas variadas e imprecisas. A própria percepção da ameaça crescente aos povos indígenas e as consequências da crise climática certamente estão entre elas. Mas há também quem perceba outras nuances. “Acho que talvez o mundo das artes tenha despertado mais agora porque as coisas começaram a atingir uma ‘branquitude’ que estava tranquila, protegida, presa num romantismo. Mas tem gente que já estava acostumada com a perseguição, que tem sabedoria do que é estar em guerra. Quando há necessidade, tudo se aprende mais rápido”, afirmou o artista Guerreiro do Divino Amor em entrevista recente à ARTE!BRASILEIROS. A fala dialoga com a declaração dada recentemente pelo líder indígena Ailton Krenak: “Já passamos por tanta ofensa que mais essa agora não vai nos tirar do sério. Fico preocupado é se os brancos vão resistir. Nós estamos resistindo há 500 anos”.
O enfoque dado pelas instituições não vem dissociado do crescente destaque recebido por artistas indígenas contemporâneas, membros de variadas etnias e com trabalhos diversos em suas linguagens e temáticas. “Os artistas indígenas são cada vez mais importantes hoje no Brasil. Já há muito tempo os cineastas indígenas têm uma presença conhecida, mas nas artes isso é algo recente, diferente do que se vê em países como Canadá e Austrália”, explica a antropóloga Sylvia Caiuby Novaes, coordenadora-geral de Encontros Ameríndios. A exposição, com curadoria de Aristóteles Barcelos Neto, coloca em diálogo obras contemporâneas de membros dos povos Haida (Columbia Britânica), Guna (Panamá), Huni Kuin (Acre) e Shipibo Conibo (Peru).
De onde se fala
Neste contexto de aproximação das instituições com o universo indígena não se trata, como em outros momentos da história da arte, de apresentar trabalhos de artistas ocidentais influenciados pela produção de outros povos (por mais que isso também possa ocorrer), nem de trabalhar na linha das mostras de etnologia, com viés mais científico, acadêmico ou histórico. É característica marcante no atual movimento o diálogo estreito com os próprios indígenas, participantes ativos na construção das mostras, e um cuidado para não folclorizar ou exotizar as produções. Neste sentido, o MASP contratou para seu time a antropóloga Sandra Benites, de origem Guarani Nhandewa, que se tornou a primeira curadora indígena em uma grande instituição de arte do país, e a Pinacoteca convidou a artista e pesquisadora Naine Terena, de origem Terena, para curar uma mostra.
O trabalho com o universo contemporâneo procura, portanto, romper o arraigado estereótipo de que os índios “fazem parte do nosso passado”. Na contramão de fala recente do presidente Jair Bolsonaro, que afirmou que “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”, percebe-se que o mundo indígena não só é parte do presente como pode nos ensinar sobre outros futuros possíveis, como pediu Viveiros de Castro na Flip. “No século 16 os jesuítas pensavam os índios como bestas-feras, ou seja, seres em passagem do estatuto animal para o humano. E essa mentalidade típica daquela época é a mesma do presidente hoje em dia”, diz Caiuby.
A antropóloga ressalta também que as áreas mais preservadas da Amazônia são as terras indígenas. “Muitos não percebem que a riqueza está na floresta em pé, não nela derrubada. E os índios, mais que ninguém, não se colocam separados da natureza. Acho importante essa visão de muitos deles de que os rios, as montanhas, a terra, elas agem e reagem. A terra sangra”, explica. “Veja os rios de São Paulo se manifestando. Construímos cidades sobre eles, aterramos, deixamos sem porosidade, e eles se revoltam.” Como escreveu recentemente o líder indígena Marivelton Baré, em artigo na Folha de S.Paulo, “o que nossos ancestrais já sabiam instintivamente há milhares de anos, hoje é comprovado pela ciência do homem branco. A mesma ciência que essas pessoas negam. Somos nós os atrasados?”
Diretor do Museu Afro Brasil e curador da mostra Heranças de um Brasil Profundo, Emanoel Araujo segue a mesma linha. “Existe essa ânsia desgraçada de pegar toda a floresta e transformar em soja e gado. Por isso essas exposições vêm em um momento crucial. E é preciso que as pessoas se conscientizem, porque como isso parece estar longe de nós, que vivemos na cidade, muita gente não tem a menor ideia do que está acontecendo.” A mostra no Museu Afro reúne uma grande diversidade de produção material de povos como os Karajá, Marubo, Kayapó, Panará e Juruna – entre máscaras, adornos, cestarias e um rico acervo de arte plumária – colocada em diálogo com fotografias de nomes ocidentais como Albert Frisch, Marc Ferrez, Maureen Bisiliat e Nair Benedicto e quadros de José Roberto Aguilar, Claudio Tozzi e Rubens Ianelli. Há ainda uma grande construção em sapé feita por membros da etnia Mehinako, nomeada Casa dos Homens, e trabalhos contemporâneos de Denilson Baniwa.
“Essa exposição celebra a vida desses povos das florestas que através de séculos vivem e sobrevivem sendo achacados pelos homens brancos. (…) Esse povo que aqui estava e que aqui continua em terras onde sempre foi o dono, para sempre”, escreve o curador em texto sobre a exposição. Araujo destaca ainda que a mostra não possui exatamente um caráter antropológico ou acadêmico, mas propõe uma reunião de peças que passam uma “ideia de deslumbramento” e que mostram a sabedoria dos povos indígenas. Ele se refere também a algo que Darcy Ribeiro chamou certa vez de “vontade de beleza”, ou seja, um cuidado estético presente em toda a produção dos povos indígenas que vai das coisas mais efêmeras às mais duradouras.
“Existe essa beleza notável nas coisas”, concorda Caiuby, se referindo à produção ameríndia. “Porque aquilo que é certo, que é bem feito, tem que ser bonito. E isso se relaciona com outra característica desses povos que é a de não diferenciar coisas que nós consideramos como esferas separadas: ética, estética e moral. Então aquilo que é esteticamente belo é porque é eticamente correto e moralmente é o certo.” E ela exemplifica: “A gente pode admirar um pôr do sol com poluição, porque dizemos que fica mais vermelho, mas isso para eles é inadmissível”.
Diversidade e o conceito de arte
Quando destacam as características comuns aos povos indígenas, os curadores e artistas das mostras atentam também para o perigo de homogeneizar a produção e o pensamento das diferentes etnias, reduzindo a enorme pluralidade ameríndia como se fosse uma coisa só. Na exposição Encontros Ameríndios, por exemplo, uma diversidade de linguagens e temas ficam explícitos nas obras dos povos dos diferentes continentes. Seres mitológicos, seres da floresta, temáticas relativas ao contato – além de vídeos que remetem à própria produção das obras – são algumas das questões que surgem nos trabalhos em variados suportes, seja nas caixas de madeiras feitas pelos Haida, no painel pintado pelos Shipibo Conibo ou nas molas (arte têxtil) dos Guna. Trabalhos feitos a partir dos grafismos tradicionais, temas xamânicos, espiritualidade, a questão do exílio e obras de forte cunho político também se apresentam na produção contemporânea de diversos artistas indígenas.
“São povos que têm inúmeras semelhanças e diferenças entre si. E acho que esse encontro entre eles é uma oportunidade de ver isso”, diz Caiuby. “Inclusive, são povos que valorizam muito a diferença e não a transformam, ao contrário de nós, em desigualdade.” Entre as semelhanças, a antropóloga ressalta a importância da troca e da reciprocidade como princípios da vida social, assim como o processo histórico de dominação a que foram submetidos. Há, ainda, uma percepção clara de que o conceito de “arte” como usado no mundo ocidental não se adequa ao pensamento ameríndio. “Para nós, não há essa diferença entre arte e vida ou arte e resistência como há no Ocidente, onde a arte é um instrumento de poder em relação a outros seres humanos”, afirma Denilson Baniwa (leia mais em entrevista concedida à ARTE!Brasileiros).
Assim, a confusa e problemática distinção entre o que seria arte ou artesanato na produção indígena passa a ter maior espaço no debate contemporâneo de instituições, curadores, galeristas e artistas. Segundo Barcelos Neto, em entrevista recente ao jornal Nexo, a produção indígena exposta nos museus de arte moderna e contemporânea normalmente está restrita àquela feita com técnicas e suportes semelhantes aos canonizados pela arte ocidental. De modo geral, aplica-se à produção indígena uma classificação própria à arte ocidental, a partir de parâmetros estéticos, plásticos e utilitários alheios aos próprios indígenas.
“Posso te dizer que alguns dos artistas e coletivos indígenas com quem converso não estão preocupados com os conceitos de arte ocidental. Nem o que esse termo possa significar nas escolas de arte ocidentais, se for pautado pelo olhar do intelectual não indígena”, afirma Naine Terena, que no momento trabalha na montagem da mostra na Pinacoteca. Ao mesmo tempo, a produção de diversos artistas indígenas contemporâneos a partir do que Naine chama de um “ajuntamento” de técnicas – indígenas e ocidentais – têm contribuído para o desenvolvimento de um fértil campo de criação, além de ser um dos motivos da crescente visibilidade deste trabalho.
Segundo Baniwa, quando esses artistas se propõem a utilizar linguagens não indígenas, trata-se também de uma estratégia de conversar com quem não faz parte dessas culturas. Ele afirma ainda que ao trabalhar, através da arte, com temas que já tratava em sua luta no movimento indígena, consegue tocar as pessoas por um viés mais ligado à emoção e afetividade. Essa aproximação com instituições ou com o mercado de arte, diferentemente do que diria a visão “evolucionista” do atual governo, não faz destes índios menos índios, como fica claro em seus trabalhos e discursos de afirmação de identidades. “As culturas não são estanques, paradas. Todos nós vivemos a partir da absorção das coisas que vem de fora”, afirma Caiuby. E se os índios se transformam no contato com os brancos, talvez seja hora de, antes que seja tarde, nos transformarmos mais profundamente em nosso contato com os índios.