Yole Mendonça, diretora da EAV Parque Lage. Foto: Renan Lima

Em meio à enorme crise que tomou conta da maioria das instituições culturais do país por causa da pandemia de Covid-19 – e do crescente descaso governamental com a área -, ao menos um aspecto positivo parece ter decorrido do contexto de isolamento social dos últimos meses. Com as portas fechadas e uma migração forçada de suas atividades para o meio virtual, instituições que alcançavam apenas um público local tiveram um aumento significativo na procura de visitantes ou alunos das mais variadas regiões do Brasil – e por vezes até estrangeiros.

É o caso da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV Parque Lage), uma das mais importantes escolas livres de arte do país, segundo a nova diretora da instituição, Yole Mendonça. Nos já tradicionais cursos de férias de julho, agora realizados virtualmente, “tivemos uma surpresa, porque entre os 200 alunos nos 12 cursos oferecidos tivemos  gente de 18 estados diferentes”, conta ela. “E nós descobrimos que a EAV tem uma força, uma potência nacional. Para uma aula de artes visuais esse contato com outras culturas é algo muito rico.”

A consequência foi a decisão da escola de expandir definitivamente a atuação da instituição para o online, mesmo quando o presencial voltar, oferencendo cursos e exposições tanto no local quanto na web. Em entrevista à arte!brasileiros, Mendonça, que assumiu a diretoria da escola poucos dias antes da decretação da quarentena, falou também sobre o trabalho nos últimos meses e sobre a polêmica da exoneração de Fabio Szwarcwald no final de 2019. “O Fabio é um grande amigo, uma pessoa que inclusive avalizou a minha ida. Acho que essa polêmica que aconteceu foi mais do ponto de vista do gestor público que administrou isso do que do próprio Fabio. Eu encontrei uma escola bem administrada. O trabalho que foi feito ali é admirável”, diz Mendonça sobre o atual diretor do MAM Rio.

Trabalhando agora com a nova secretária de Cultura do Estado, Danielle Christian Ribeiro Barros, Mendonça afirma que a relação é harmoniosa e de respeito mútuo. Na conversa, ela falou também sobre o papel histórico de resistência da EAV, criada por Rubens Gerchman nos anos 1970, e sobre a necessidade de tratar de questões como meio ambiente, racismo, gênero e desigualdade social.

Sobre a gestão financeira cuidadosa em tempos de crise, o que incluiu a necessidade temporária de cortes salariais dos funcionários, Mendonça afirma que os valores já foram recompostos. Ela comemora também o número de 502 alunos já inscritos para os cursos deste semestre e afirma que o projeto para o ano que vem é oferecer bolsas com remuneração para que alunos em situação de vulnerabilidade social possam frequentar a EAV. Leia abaixo a íntegra da entrevista.

 

ARTE! – Você assumiu a direção da EAV Parque Lage quase no início da quarentena, em um momento muito complicado no Brasil e no mundo. Queria que contasse um pouco como foi esse processo e como tem sido possível trabalhar de lá pra cá?

Assumi o cargo no dia 11 de março e dois dias depois veio o decreto de que tudo tinha que fechar. Foi um momento absolutamente único. Porque já chefiei outros lugares, trabalhei com outras equipes, estou acostumada a mudar de ambiente de trabalho, mas nunca tinha passado por uma situação em que eu conheci as pessoas presencialmente por no máximo 48 horas. Então é muito estranho, porque quando falamos em gestão existe toda uma necessidade de empatia, de conhecimento do modelo mental das pessoas, e de repente você passa a ter que trabalhar intuindo um pouco. Se fosse em condições normais de temperatura e pressão já seria difícil, mas em um momento como esse, em que estávamos vivendo um fechamento total de todas as atividades, com isolamento social, foi algo realmente impactante. Para todo mundo, claro. Então uma coisa que eu quis fazer – foi difícil, mas contei com a ajuda de uma equipe muito colaborativa – foi estudar a EAV Parque Lage, sua origem, sua história, sua tradição, qual o ponto da caminhada em que a escola está e para onde quer ir. E tudo isso foi feito à distância.

ARTE!  E qual o resultado desse estudo?      

A Escola não recebe verbas públicas, mas ela tem uma gestão que é fruto de um acordo de cooperação técnica com a Secretaria de Estado. Então ela é gerida por uma associação de amigos (AMEAV) e o seu aporte financeiro, inclusive, vem da arrecadação que essa associação consegue patrocinar. Uma coisa que eu tinha certeza era que nós não poderíamos parar, até porque temos um contingente de 50 professores. A EAV estava na sua segunda semana de aula, com quase 50 cursos, com 450 alunos matriculados. E aí você tinha que dar uma solução para aquilo. E não tínhamos uma capacidade de adaptação para o ensino online instalada, não havia isso. Então nós criamos um grupo gestor, com o curador da escola, Ulisses Carrilho, a gerente administrativo-financeira, que é a Celina Martins, o gerente de Patrimônio e Compras, Fabio Augusto Lopes, e o André Marques, da Secretaria de Cultura. E esse virou um grupo de discussões e tomada de decisões compartilhadas, em diálogo também com toda a equipe de ensino e administrativa. E a primeira coisa que estabelecemos foi que precisávamos criar uma possibilidade de continuação dos trabalhos.

E neste sentido, uma coisa incrível de ser uma escola de artes visuais é que os nossos professores são professores artistas, e pudemos contar com a capacidade criativa, inovadora e resiliente deles. Então colocamos para os professore a questão sobre como passar as atividades para o online, e eles trouxeram as suas ementas adaptadas para as plataformas que acharam convenientes e possíveis. Nem todos conseguiram, por uma questão até natural. Porque é difícil você migrar uma oficina de escultura 3D para o online, por exemplo. É difícil migrar uma oficina que exija um contato direto com o objeto e uma interação direta com os alunos. Mas, mesmo assim, em 15 dias a gente conseguiu colocar 26 cursos no ar. E eu digo isso com muita alegria, inclusive porque o meu papel nisso é muito pequeno. É um trabalho de criação e inventividade dos professores.

ARTE! – E o que fizeram com os cursos que não foram para o online?

Para suprir em parte essa ausência nós criamos também um trabalho que era uma proposição para que os professores criassem vídeos curtos, de cerca de 8 minutos, para que a gente pudesse disponibilizar no nosso YouTube e no site da escola. Vídeos exatamente sobre essa temática que estamos vivendo, sobre o tempo, sobre o tempo e a arte, sobre o tempo e o artista. É uma reflexão para um momento em que a gente precisou parar. E foi muito rico, têm vídeos fantásticos. Mas mesmo assim perdemos alunos, claro, e ficamos com cerca de metade deles. Temos uma outra questão, uma singularidade, que é o fato de estarmos em um parque, que ficou fechado até dia 9 de julho. E você não fecha um parque como quem fecha uma casa, porque o parque está vivo, cheio de bichos dentro. E os bichos tomaram conta. Macacos, cachorros do mato, cobras e pássaros começaram a rondar por ali. Nós não estávamos lá, mas tivemos que administrar. E nós começamos também a mostrar isso nas nossas redes sociais, esses animais, porque o Rio tem uma relação muito afetiva com o Parque Lage, é um lugar que as pessoas adoram. Foi um momento em que a gente experimentou muitas coisas. E hoje eu me sinto, como gestora da EAV, muito próxima da equipe, embora algumas pessoas eu não veja há meses. Mas a gente passou a dividir muito as angústias, as aflições, as incertezas, porque esse é o momento atual. E eu tenho sempre uma postura de dizer “olha, eu não tenho todas as respostas, nós vamos achar as respostas juntos”. E acho que tivemos muitos acertos por conta disso.

Foto aérea do Parque Lage. Foto. Felipe Azevedo

ARTE! – E os cursos então seguem online, sem perspectiva de voltarem presencialmente? Como está este planejamento?

Por enquanto sim. E teve uma coisa interessante com essa experiencia online. Em julho, mês em que historicamente a escola faz cursos de férias – e aí já estávamos mais preparados – os professores criaram uma série de cursos online. E a gente teve uma surpresa, porque tivemos 200 alunos em 12 cursos, com gente de 18 estados diferentes, em uma expansão possibilitada pelo virtual. E nós descobrimos que a EAV tem uma força, uma potência nacional. Então passamos a trabalhar nessa realidade. Os professores ficaram encantados, porque passaram a ter alunos com outros sotaques e experiências de vida muito variadas. E para uma aula de artes visuais esse contato com outras culturas é algo muito rico.

ARTE! – E vocês pretendem, a partir dessa experiência, seguir com os cursos online mesmo quando for possível retomar o presencial?

Sim. Agora estamos pensando, no planejamento para 2021, em ter tanto a experiência localizada, presencial, quanto a EAV online. Então existem muitas possibilidades. Por exemplo, podemos criar um projeto em que os alunos do online possam fazer um tipo de residência aqui, porque a experiência da escola, com a floresta, é algo também que a gente hoje percebe como muito potente. Até por conta desse momento que a gente vive, no qual o ataque às florestas que estamos vivendo impacta a todos nós. E esse ativo é algo que eu considero um dos maiores riscos que nós corremos. Porque esse tipo de ataque é irreversível. Todas as outras perdas que estamos tendo, acho que a gente tem capacidade de reconstruir, de lutar, mas o meio ambiente não. Ele é maior do que nós. E então a gente se sente muito responsável por dar uma resposta no sentido de valorizar aquilo que temos, que é esta coexistência com a mata. 

ARTE! – E no espaço físico vocês sempre tiveram também as exposições e outras atividades. Quais são os planos nesse sentido para os próximos tempos?

Na verdade nós estamos planejando exposições tanto online quanto presenciais. Quer dizer, estamos trabalhando o online já como algo incorporado. Então queremos ter quatro exposições no ano que vem, duas online e duas presenciais. E nisso nós trabalhamos sempre com alunos, ou com ex-alunos, ou com temáticas que tratem de questões da EAV. Nas mostras virtuais seguiremos também nessa direção. 

ARTE! – Em uma palestra no ano passado, o Fabio Szwarcwald falou bastante sobre a tentativa de aproximar cada vez mais a EAV das periferias e favelas, da população mais carente da cidade do Rio. Isso segue como um objetivo?

Sim, isso segue. Inclusive nós temos o planejamento de fazer um Programa de Formação e Deformação em que daremos bolsas, com um projeto especialmente voltado para alunos das periferias, alunos que tenham algum tipo de vulnerabilidade em relação à essa questão da formação. Isso foi prejudicado no planejamento de 2020, mas em 2021 volta a acontecer. A nossa ideia é criar na EAV a possibilidade não só de gratuidade, mas de que os alunos inclusive recebam bolsas para que estudem arte, que é normalmente um tipo de formação proibitiva para quem não tem condição de se manter. O Fabio já vinha nessa direção, nós permanecemos com isso e reconhecemos que é um dos pilares hoje da escola, para ser um diferencial da escola. Quer dizer, a gente criar condições de dar a mesma formação para os alunos que podem pagar e para aqueles que não tem essa condição, mas que tem todas as condições de se tornar um maravilhoso artista e um representante da nossa arte.

ARTE! – Pensando na questão ambiental que você citou, há uma série de outros temas extremamente atuais que estão cada vez mais presentes nos debates políticos, culturais e artísticos, como racismo estrutural, causa indígena e questões de gênero. Existe uma preocupação de inserir esses temas de modo mais forte nas atividades e cursos da EAV? E trazer uma diversidade maior de alunos, de diferentes classes sociais e regiões do país, ajuda neste sentido?

Sim, inclusive a exposição Queermuseu deu muito esse tom. Mas é importante dizer que isso está na origem da EAV. A escola, criada pelo Rubens Gerchman, já surgiu com essa linha de existência e resistência. E quando eu cheguei, uma das coisas que fiz foi exatamente ler a história da escola. E me deparei inclusive com um livro que vai ser lançado na EAV, que foi organizada por Clara Gerchman, Isabella Nunes e Sergio Cohn, sobre os primeiros anos do Rubens Gerchman na EAV. E ao ler esse livro eu percebi que essas temáticas já estão desde a origem da escola. Recentemente fizemos também uma reunião com os professores e uma das coisas que estamos trazendo de novidade é uma proposta de formação de grupos de trabalho com professores e pessoas da administração. Um desses grupos é exatamente sobre diversidade, da maneira mais ampla que você possa perceber, de gênero, de raça… Então a gente quer ampliar isso na escola. Um outro grupo que estamos montando é voltado à reocupação do prédio. Ou seja, quando a gente voltar, seja no fim desse ano ou no começo próximo, como é que nós vamos voltar? Além de todas as exigências sanitárias e de saúde, queremos pensar como o prédio é ocupado hoje e como é que nós, professores e funcionários, achamos que ele deve ser daqui para a frente. Inclusive porque temos uma visitação de mais 50 mil pessoas por ano, e precisamos lidar com isso, pensar em como atrair essas pessoas que vão lá por conta do ponto turístico que é o parque. Queremos que essas pessoas enxerguem a escola, enxerguem a arte ali.   

ARTE! – Falamos aqui do Fabio algumas vezes, então acho importante perguntar sobre isso. Você entra após a saída conturbada do último diretor, com uma exoneração bastante polêmica, em que ele recebeu a solidariedade inclusive de grande parte da classe artística. É difícil entrar assumir contexto? Quer dizer, como você se posiciona em relação a isso?

Veja, o Fabio é um grande amigo, uma pessoa que inclusive avalizou a minha ida. Então não tem nenhuma dificuldade com essa questão. Tenho a maior admiração e respeito por ele. Acho que essa polêmica que aconteceu foi mais do ponto de vista do gestor público que administrou isso do que do próprio Fabio. Eu encontrei uma escola bem administrada. Não encontrei nenhum problema ali. Então hoje a situação é muito diferente não porque houve uma mudança, uma ruptura, mas sim porque houve uma pandemia no meio. Mas o trabalho que foi feito ali é um trabalho admirável. E acho que o Fabio está fazendo um ótimo trabalho no MAM, e nós somos parceiros. Então o que houve foi uma questão ali com a gestão pública, que inclusive também mudou (saiu Ruan Lira e entrou Danielle Christian Ribeiro Barros). E hoje o relacionamento é diferente. Eu me considero respeitada, as coisas estão caminhando com muita tranquilidade, até porque são outros agentes na secretaria. E eu sigo com muita tranquilidade e autonomia.

ARTE! – Nas mais de quatro décadas da EAV Parque Lage, a instituição passou por diversas fases, algumas mais prósperas, outras conturbadas, crises financeiras, retomadas. Enfim, queria que você falasse um pouco do momento atual da Escola, de sua sustentabilidade nesse momento difícil.

Olha, houve uma série de ilações a respeito de como estaria a AMEAV e a EAV financeiramente naquele momento de ruptura. Mas o que eu encontrei foi uma situação confortável. É claro que no momento agora, em que todos estão passando por uma situação de quebra de expectativas, de planejamentos que não se realizaram, a gente está fazendo uma gestão muito criteriosa e responsável com as finanças da escola. Então a gente trabalha com um orçamento bastante seguro e controlado, não dá um passo maior do que podemos. Em um primeiro momento reduzimos os salários, inclusive para manter as atividades, mas já voltamos ao normal, porque já percebemos a maneira como isso pode ser feito, como as coisas já estão se organizando. Então estamos numa linha de garantir uma sustentabilidade para a escola durante todo este processo mais delicado que estamos passando, onde os patrocínios são mais difíceis, onde as possibilidades são menores. Mas estamos também imaginando que até por conta dessa visibilidade nacional que estamos conseguindo, em 2021 teremos bom patrocinadores. Porque o nosso patrocinador vai ter uma visibilidade nacional, vai poder trabalhar conosco em todas essas questões de diversidade que estamos propondo. E termos projetos relacionados à questão do meio ambiente, à questão da saúde física e mental. E sempre sendo uma escola resistente, questionadora, como toda escola de arte precisa ser, colocando essas questões de gênero, raça, e questões sociais que a pandemia trouxe mais à tona ainda. Porque o pobre é quem mais perde emprego, é quem não tem acesso a bons hospitais, é quem morre mais. E a gente quer trazer essas questões todas e colocar como ponto de discussão, de reflexão, e entregar para a sociedade artistas e obras de arte que possam traduzir isso.

ARTE! – Por fim, uma última questão sobre o contexto político. A EAV trabalha com meio ambiente, educação e cultura, três das áreas que parecem ser das mais prejudicadas, ou até atacadas, pelo atual governo federal. Como você vê essa situação e como trabalhar neste contexto?

A arte sempre trabalhou nessa linha do questionamento. Historicamente, sempre apontou a fragilidade de discursos mais totalitários, mais fechados. A arte é isso. E uma escola de arte não pode ser diferente. Então o que a gente propõe aos alunos, e os professores fazem isso com maestria, é refletir sobre isso, apontar essas fragilidades. E apontar também a potência que tem um país como o nosso, a potência que tem uma sala de aula com 20 pessoas de dez estados diferentes. O que não sai de uma discussão dessa? Que caminhos de arte você tem ali? Então estamos em uma linha de resistência, deixando claro que vamos trazer os alunos que historicamente, socialmente, não estariam em condições de frequentar as nossas aulas, nós vamos proporcionar isso para eles, criar as bolsas, remunerar os alunos para que eles troquem conosco. E para que nós aprendamos com eles as vivências que eles têm. Porque é uma troca. Nós não estamos fazendo nada porque a gente é bacana, mas porque é uma dívida que existe, social, histórica. Então vamos proporcionar esse diálogo em 2021. Democratizar o acesso. Por fim, outra coisa que acho legal falar é sobre o projeto Memória Lage, que resgata a história da escola desde sua formação. E a gente começou a levantar essa memória e colocar na internet, nas redes sociais. Queremos levar isso mais adiante porque essa é a memória de uma construção democrática. Ela tem a ver com a história da democracia no Brasil. Então isso é importante, potente e super atual. 


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