Diretor-geral do Sesc-SP desde 1984, o sociólogo e filósofo Danilo Santos de Miranda exerceu o cargo que ocupa ainda hoje durante todos os governos da Nova República do Brasil – período democrático iniciado em 1985 -, desde a posse de José Sarney até os dias atuais. Nestes mais de 35 anos, afirma nunca ter visto um governo que compreendesse tão pouco e ameaçasse tanto o setor cultural do país quanto o atual. “É uma falta absoluta de política e de compromisso efetivo com uma visão ampla da cultura.”
Mais do que isso, Miranda, aos 77 anos, afirma que o governo Jair Bolsonaro chega a ser, em certos aspectos, pior para a cultura do que o foi o regime militar que assolou o país por 21 anos. “Havia a questão gravíssima da censura, não tem nem o que dizer. Mas existem muitas maneiras de fazer censura. E uma delas é diminuir, ou eliminar, quem produz algo que possa ser censurado. Então naquela época os artistas produziam e eram censurados. Agora, a ideia é que os artistas não tenham nem como produzir direito, porque não têm incentivos e mecanismos”, diz Miranda, em entrevista dada à arte!brasileiros poucos dias após a saída de Regina Duarte da secretaria da Cultura.
O quadro, que já era preocupante, se torna ainda mais grave com a atual epidemia do coronavírus e a necessidade de isolamento social. “Nós estamos enfrentando essa pandemia que é gravíssima e transversal, porque ela diz respeito a tudo, à vida humana. E não só à questão da saúde, mas da educação, da convivência, das relações, do dia a dia das pessoas, de novos hábitos…”. E no Brasil, afirma Miranda, “temos um presidente que nega absolutamente tudo isso e atua de uma maneira equivocada, totalmente errática, em todos os sentidos. É tão grave quanto um guerra”.
Por isso mesmo, o diretor do Sesc (Serviço Social do Comércio) considera urgente a retomada de uma discussão sobre a importância da cultura em sentido amplo. “Cultura para mim não é um aspecto da vida, mas é o universo onde estamos inseridos. Diz respeito aos nossos hábitos, à nossa língua, nossa maneira de ser”. Sobre esta “maneira de ser”, Miranda ressalta que ao menos a solidariedade deverá ganhar maior espaço em um mundo pós-coronavírus. “Porque uma ameaça como essa é para todo mundo, e você depende totalmente do outro para poder se manter saudável.”
Miranda falou também sobre um modelo de desenvolvimento global que ao mesmo tempo que destrói a natureza – com consequências na vida biológica de um modo geral -, gera pobreza e uma desigualdade brutal. “Se na Europa a epidemia foi grave, aqui vai ser gravíssima.” O diretor do Sesc-SP conversou ainda sobre a atuação virtual da instituição, sobre as constantes ameaças de cortes de recursos do Sistema S (formado por instituições como Sesc, Sesi, Senai e Sebrae), sobre o equívoco de se submeter a pasta da Cultura à do Turismo e sobre fake news, entre outros assuntos. Leia abaixo.
ARTE!✱ – Danilo, nós conversamos há exatamente um ano (leia aqui) e na época o senhor estava bastante preocupado com as políticas do atual governo, com um clima de ameaça à classe artística. Ao mesmo tempo, dizia que o Sesc seguia trabalhando normalmente e inclusive celebrava a abertura da unidade de Guarulhos. O panorama hoje é bastante diferente, por uma série de motivos, mas principalmente por conta da pandemia do coronavírus. Gostaria de começar perguntando como o senhor vê o momento e como está o trabalho no Sesc-SP.
Danilo Santos de Miranda – De lá para cá as coisas mudaram, precipitaram-se. As ameaças e as dificuldades do ponto de vista da cultura em geral continuam e até se ampliaram, na medida em que tem essa instabilidade, essa celeuma na questão da administração pública no campo cultural. E o que se revela é uma falta absoluta de política e de compromisso efetivo com uma visão ampla da cultura. Cultura tem a ver com política pública, com identidade nacional, com a intenção que se tem como projeto de país. Não é uma coisa apenas para lidar com uma situação episódica de uma das linguagens artísticas especificamente, nem com coisas por vezes mais vinculadas ao entretenimento do que propriamente à cultura. Então tudo isso continua me preocupando. Nesse aspecto, há a necessidade de uma retomada do que é a cultura, da importância da cultura, do caráter estratégico da cultura para o país, para o desenvolvimento, para a vida das pessoas. Ainda mais agora que nós estamos enfrentando essa pandemia, que é gravíssima, e muito transversal, porque ela diz respeito a tudo, à vida humana. Não só à questão da saúde, mas da educação, da convivência, das relações, do dia a dia das pessoas, de novos hábitos, novas regras de convivência… da cultura.
Então tem muita coisa incerta. O que temos hoje pela frente é uma ameaça gigante de saúde, uma ameaça financeira – do ponto de vista econômico, da falta de recursos, de emprego e de condições de vida – e as consequências disso tudo para a vida normal das pessoas, onde a cultura ocupa um papel bastante amplo. Cultura para mim, quando a gente considera em um sentido mais antropológico, mais amplo, não é um aspecto da vida, mas é o universo onde estamos inseridos. Diz respeito aos nossos hábitos, à nossa língua, nossa maneira de ser. E dentro da cultura, as artes têm aquele papel de ser a nobreza do simbólico, aquilo que é mais elevado, que é a representação e que dá significado às coisas para nós. Porque é a única manifestação onde você ultrapassa a sua condição puramente material e vai além, explora, desenvolve a imaginação, a fantasia, desenvolve esse lado abstrato fundamental para o ser humano, para poder enfrentar todas as realidades na vida. Então a cultura tem um papel fundamental. E está amaçada.
ARTE!✱ – E dentro deste contexto de ameaça, como o Sesc tem conseguido trabalhar?
A gente lida com cultura nesse sentido bastante amplo, como eu disse. A gente lida com questões de atividades físicas, de alimentação, de saúde e com a questão das artes. Tudo isso faz parte do nosso universo, porque nós somos uma instituição ligada a um projeto de bem-estar social, de bem viver. De procurar caminhos adequados para que as pessoas se deem bem do ponto de vista ético, estético, social, comunitário. Não é aquele bem-estar individual apenas. O bem-estar individual só faz sentido se você levar em conta também o outro, aquele que também está no lugar onde você está inserido. O Sesc então procura corresponder a essa expectativa usando as ferramentas que tem à sua disposição. Neste momento pandêmico estamos fazendo muitas coisas através das nossas plataformas virtuais, com vários horários nas redes sociais, de modo a levar para as pessoas não só informação, mas o entretenimento, a provocação, o debate. Já fizemos apresentações musicais, monólogos, teatro, entre outras coisas. Realizamos debates sobre ética, a inserção do idoso, questões de alimentação, questões de saúde, da negritude, dos grupos menos favorecidos e por aí vai. Então conhecimento, ciência, tudo isso faz parte desse esforço de divulgação em que estamos inseridos, onde a arte tem um grande papel.
Sobre artes visuais, ainda há pouco eu estava conversando com a nossa responsável pela área, imaginando algum tipo de ação que possa favorecer não apenas uma discussão, mas uma manifestação também de artistas nesse momento. De modo que eles tenham espaço não exatamente para mostrar sua arte em uma exposição comum, mas descobrir formas de eles também estarem presentes nesse momento para colaborar com a reflexão e interagir com as pessoas em casa. Porque nós temos um consumo de arte permanente em casa e muitas vezes nem nos damos conta. Nós não viveríamos de maneira completa sem arte.
ARTE!✱ – Como o senhor mesmo diz, a proposta de trabalho do Sesc é muito voltada a uma ideia de participação das pessoas, não só de contemplação, visitação. Como pensar em participação neste momento em que as pessoas precisam estar isoladas?
Tem uma coisa inicial que é o seguinte: as pessoas precisam ter informação. Formação, não é? Educação “para” algo. Você tem toda uma perspectiva de passar informação, de envolver as pessoas com conhecimento. Isso é o primeiro momento. Você se encanta com alguma coisa, mas a partir daí você se informa sobre aquilo de uma maneira mais profunda. E numa terceira etapa você se envolve a ponto de produzir alguma coisa na mesma direção. Então são várias fases desse processo de envolvimento. Sem duvida nenhuma a participação, ou seja, esse envolvimento integral – com a atração, conhecimento, a participação e o envolvimento efetivo no fazer – é parte do processo. E a gente tem feito alguma coisa virtualmente com relação a isso. É muito legal, é muito bom, mas não é suficiente. Afinal de contas o ser humano tem a questão da relação pessoal, presencial, inerente à sua natureza. Portanto, é importante que o convívio presencial volte o mais breve possível. E isso mais cedo ou mais tarde vai voltar a acontecer, mas por enquanto o caminho é o isolamento, o afastamento. É hora de permanecer em casa, sobretudo aqueles que tem, por algum motivo, uma necessidade maior de se isolar. Os chamados grupos de risco. Então nesse momento não tem muito como se envolver a esse ponto presencial, mas virtualmente existem recursos que têm sido aprimorados. Eu tenho participado de muitas conferências, debates, discussões. E é muito bom, avançou bastante. A pandemia seria muito mais grave se não fossem essas ferramentas de aproximação virtual.
ARTE!✱ – Me chamou atenção no portal do Sesc que, para além das divulgações de atividades, há um texto em destaque chamado “Dicas para evitar a ‘infodemia’, a epidemia de notícias falsas”. As fake news, especialmente nesse momento, são um dos maiores inimigos no combate ao coronavírus?
São um grande inimigo. A gente tem que ter um treinamento próprio para lidar com isso. Com mais experiência a gente começa a se disciplinar um pouco melhor, a prestar mais atenção. Primeiro na fonte. De onde vem? Qual é a origem? Por exemplo, tem milhares de lives acontecendo por aí. Então a primeira coisa é ver a origem dessa quantidade imensa de informações. E nisso ajuda o debate, a discussão. Então é preciso ter um certo cuidado, que você vai aprimorando a partir do conhecimento que adquire. A gente tem que fazer uma espécie de curadoria permanente das informações que chegam. E é nisso que esse texto no site do Sesc tenta ajudar.
ARTE!✱ – Nesse sentido, existe nos últimos anos um certo negacionismo da ciência, junto à teorias da conspiração (como a que coloca a culpa da pandemia na China), que dominaram setores da sociedade brasileira, e que acabam tornando o que seria uma questão de saúde pública em uma questão de disputa de narrativas políticas. Como o senhor vê isso?
Sim, disputas de narrativas políticas, sobretudo partidárias. Acho isso lamentável, acho uma indigência intelectual total. A afirmação que foi feita esses dias pelo presidente – de brincadeira, mas que revela um pouco isso -, de que quem é de direita consome cloroquina e quem é de esquerda consome tubaína, realmente eu lamento. Porque é uma indigência intelectual total, uma falta de visão das coisas, e está gerando uma situação muito complicada. Isso tem a ver com as fake news. A questão da teoria da conspiração com a China não foi nem aqui que nasceu, tem a ver com uma posição do próprio presidente americano, que afirma que a China criou isso numa disputa de hegemonia mundial. Teve também a discussão na Organização Mundial da Saúde, em que os EUA ameaçaram tirar recursos, e a China disse que cobria. Então está havendo uma disputa internacional em torno dessa questão, o que tem a ver também com a ascensão da direita no mundo inteiro. Uma direita que nega vários fatos e que acusa a China. Agora, a gente nunca sabe. Amanhã o Trump pode perder as eleições, no Brasil pode mudar o quadro… aí muda tudo de novo. Então tudo pode ser passageiro. Agora, existe um fato: um vírus, do qual não temos informação completa, que não está controlado ainda, e está afetando a vida das pessoas. E é transversal. Não é apenas um problema de saúde, mas diz respeito à economia, às relações e à vida no mundo inteiro, com milhões de contaminados e milhares de mortos. E o Brasil é o campeão. Já havia uma crise econômica grave, nós temos uma questão política gravíssima, com um presidente que nega absolutamente tudo isso e atua de uma maneira equivocada, totalmente errática, em todos os sentidos. É tão grave quanto um guerra.
ARTE!✱ – Um ano atrás o senhor se dizia também estarrecido com a falta de percepção da importância do conhecimento, da filosofia, da ciência, da pesquisa, do estudo, das artes e da cultura na sociedade. De algum modo, o tamanho da crise que estamos vivendo tem a ver com isso tudo, e não só com a propagação de um vírus?
Exatamente. Pois se a gente tivesse levado em conta o conhecimento científico desde o primeiro momento, com grandes especialistas que estão aí e que o Brasil dispõe em toda parte, provavelmente teríamos tomado medidas mais radicais com relação ao isolamento. Até mesmo feito um lockdown, que me parece inevitável.
ARTE!✱ – Em entrevista recente, o filósofo e sociólogo Edgar Morin ressalta que essa crise é uma crise também civilizacional, existencial, social, planetária, e que nos relembra que nós humanos não estamos separados do destino bio-ecológico do planeta. Enfim, é hora de repensar nossos modelos de desenvolvimento, de distribuição de renda, de globalização?
Totalmente. Morin atinge com muita precisão, nessa análise, os fatos que levaram de alguma forma a isso tudo. Há algumas suspeitas de que esse tratamento que o ser humano deu e dá à natureza, à terra, conduz a esse desgaste profundo. Por exemplo no que se refere à utilização inadequada para a produção de alimentos e produtos, nem sempre adequados à uma vida saudável. Então diversos fatores levaram a um desequilíbrio. E essa questão desses vírus é algo que já estaria, segundo alguns, previsto que poderia acontecer em algum momento. Eu não sou especialista do ramo, mas percebo que isso faz sentido. Então a exploração dos recursos naturais levada ao extremo, além de mexer com questões como o aquecimento global, que já é um fato real, tem consequências na vida biológica de um modo geral, na vida dos seres visíveis e invisíveis que estão sobre a terra. Então acho que isso mostra uma exploração inadequada, em primeiro lugar. E em segundo lugar mostra o desequilíbrio, a desigualdade, a falta de equidade social. Ou seja, é muito mais grave o que está acontecendo no Brasil do que o que passou pela Europa. Lá foi grave, aqui vai ser gravíssimo. Porque aqui a desigualdade, a pobreza, a miséria e a falta de condições sanitárias são muito maiores.
ARTE!✱ – E aí, exatamente em um momento como esses, o governo brasileiro tenta mais uma vez cortar recursos do Sistema S…
Pois é. No momento em que mais se necessita de instituições que lidam com essas questões, não propriamente do ponto de vista do fornecimento de recursos materiais, mas que lidam com a questão do debate, da discussão, da informação, da educação e da cultura, para que possamos vencer tudo isso. Acho que se fosse um país mais preparado, com uma educação de melhor nível, você teria pessoas mais facilmente convencíveis da necessidade de tomar medidas. As pessoas mais conscientes são aquelas que são mais informadas. Então é fundamental que quem lida com informação, com conhecimento, com cultura e com educação – não apenas no sentido escolar, mas no sentido amplo, permanente – seja preservado. Porque é essencial.
ARTE!✱ – Ao menos o corte foi barrado, pelo menos por enquanto…
Sim, mas é uma ameaça permanente. A primeira coisa que pensam sempre é de afetar o Sistema S.
ARTE!✱ – Muito se fala do “mundo de depois”, do mundo que virá após a pandemia. Inclusive o líder indígena Ailton Krenak escreveu que se “voltarmos à normalidade é porque de nada valeu a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro”, ou seja, não aprendemos nada. O que o senhor acha que podemos esperar deste futuro?
Concordo com o Krenak. Quer dizer, o “novo normal” vai exigir no mínimo que as pessoas sejam convidadas a serem mais solidárias. Não quer dizer que elas serão mais solidárias, mas serão convidadas à isso. Primeiro porque uma ameaça como essa é para todo mundo. Depois, porque você depende totalmente do outro para poder se manter saudável. Então é quase que uma solidariedade obrigatória, indispensável. Se você não for solidário corre o risco de ficar doente, de ser ameaçado. Então digamos que a solidariedade está sendo imposta, entre aspas, como condição de vida a partir de agora. E as pessoas mais poderosas vão ter que pensar duas vezes antes de exercer qualquer tipo de poder. Vão ter que levar em conta questões como: quem está excluído? Por que está excluído? Por que as pessoas não têm acesso? O que é necessário para que tenham acesso e sejam incorporados? O segundo aspecto é que vamos ter que rever hábitos. Por exemplo, enquanto não tiver vacina, vamos ter que rever hábitos de aglomeração. Como é que vamos juntar gente para ver um filme, um teatro ou um concerto? Teremos que afastar as pessoas de um modo que vai ser extremamente difícil do ponto de vista prático, arquitetônico… Então vai ser um desafio enorme. Como é que será o “novo presencial”, para além do ambiente virtual? Vai ser com uso de máscaras? De roupas especiais? Tem muita coisa para se descobrir…
ARTE!✱ – Voltando um pouco para questões da política nacional, nós acabamos de ter mais uma mudança na secretaria de cultura, com a saída de Regina Duarte. Em menos de um ano e meio de governo Bolsonaro tivemos o rebaixamento da Cultura de ministério para secretária…
O que já foi uma sinalização grave…
ARTE!✱ – Sim, e chegaremos agora ao quinto nome que assume a pasta. O que isso demonstra sobre o valor dado à cultura pelo governo?
Demonstra que não tem a menor importância. Que é só uma burocracia, destituída de qualquer fato relevante que justifique sua presença num aparato de governo. Isso está muito evidente desde o início. Subordinar a Cultura ao Ministério do Turismo, por exemplo, é de uma falta absoluta de visão, inclusive estratégica. É entender a cultura apenas como entretenimento ou elemento de atração turística para um país, uma sociedade. Como algo destituído de peso e importância do ponto de vista da educação, da economia – porque, sim, a cultura tem um papel fundamental na economia. E quando você amplia o conceito de cultura, no sentido mais completo, o turismo é que é subordinado à cultura. Então falta fundamento até teórico para entender o papel de cada um nesse processo. É muito grave o que acontece.
ARTE!✱ – Agora, se os secretários que passaram não deixaram um legado importante para a cultura, conseguiram pelo menos fazer algum barulho, vide a entrevista recente de Regina Duarte à CNN ou o pronunciamento em que Roberto Alvim parafraseou um discurso do nazista Joseph Goebbels. Gerar polêmicas foi o grande legado destes secretários até agora?
Isso tem um lado curioso. Por mais que tentem tirar a importância da cultura, reduzam o seu significado, ela segue despertando a atenção. Porque existe uma certa intencionalidade de reduzir a importância da cultura. E de algum modo, ao falar muito dessa redução, chama-se a atenção para o assunto. Parece que às vezes o tiro sai pela culatra. Tentam tanto deixar claro que não é importante, que acabam dando importância. Porque é sim importante. A cultura não é um fato complementar na vida das pessoas, ela é onde as pessoas estão inseridas no dia a dia. A cultura é mais do que as artes. É que eles entendem cultura só como as artes, o que, embora seja muito importante, ainda é pouco.
ARTE!✱ – Tem quem considere, inclusive, que a cultura está sendo tratada de um modo ainda pior do que foi na ditadura militar…
Os militares não se envolviam desse jeito nas questões da cultura. Havia a questão gravíssima da censura, não tem nem o que dizer. Mas existem muitas maneiras de fazer censura. E uma delas é diminuir, ou eliminar, quem produz algo que possa ser censurado. Então naquela época os artistas produziam e eram censurados. Agora, a ideia é que os artistas não tenham nem como produzir direito, porque não têm incentivos, mecanismos…
Mas olha, independente disso tudo, eu gostaria de colocar uma questão que para mim é fundamental. Cultura é muito amplo, é muito mais sério e mais importante do que qualquer governo possa imaginar. E ela vai existir independente da vontade dos governos, estejam eles favorecendo ou prejudicando. Porque ela é inerente à vida humana. Ela é parte da produção humana. Você vai em qualquer lugar deste país, ou do mundo, estão produzindo cultura permanentemente. E não só a cultura que se transforma num produto – como uma música, uma literatura -, mas a cultura que é a expressão humana necessária na comunicação, na narrativa, no dia a dia, nas lembranças, na memória. Não existe memória sem cultura. Então não conseguirão destruir isso nunca, nunca. Por mais que tentem.
ARTE!✱ – E como é possível imaginar uma melhora, uma transformação, neste momento?
Não é fácil, mas eu sou um otimista ferrenho, sempre fui. Não dá para fingir que está tudo bem, principalmente quando olhamos para o lado e vemos pessoas caindo, morrendo, afetados por essa pandemia. Agora, eu tenho esperança, primeiro, que desperte-se no mundo essa necessidade da solidariedade efetiva. E acho que por aí pode haver uma retomada importante, na medida também em que a gente vai encontrar meios de controlar a pandemia. Com relação à vida de um país como o nosso, seja do ponto de vista político ou econômico, existem forças que podem se contrapor a isso que está aí e que podem desenvolver esse nosso país para valer. Alguma hora a economia vai retomar, o Brasil vai crescer, lá na frente, e a gente tem esperança de que esse quadro mude. Nós já vivemos momentos graves, já passamos por ditaduras no passado, principalmente essa última (1964-1985) que matou muita gente, proibiu, censurou, oprimiu. E passou. E esse quadro atual uma hora também vai passar, porque a maioria da população percebe ou o engano que cometeu ou a necessidade efetiva de mudar a partir do que está acontecendo. Então eu tenho a esperança de que, no médio ou longo prazo, a gente altere esse quadro e retome um caminho mais positivo. Nós temos que criar outro mundo possível, um novo normal, uma nova perspectiva que virá por aí. O parto é duro, difícil, doloroso, mas tenho a impressão de que vamos sair dessa.