Cauê Alves, curador do MAM. Foto: Divulgação

Após quatro anos à frente do MuBE (Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia), Cauê Alves acaba de assumir a curadoria do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) no lugar de Felipe Chaimovich. O curador, escolhido após um longo processo seletivo, entra em meio à pandemia de Covid-19, com o museu de portas fechadas, mas já tem planos para colocar em prática uma série de iniciativas e propostas.

Entre elas estão um cuidado especial com o acervo – são quase 5.700 obras, principalmente de arte contemporânea brasileira – que independa da programação de exposições, além de um trabalho que aproxime melhor as áreas de curadoria e o educativo. Para Alves, o educativo do museu, uma área historicamente de atuação muito forte, pode se integrar mais intensamente em um diálogo com a curadoria e com artistas.  

Uma novidade, panejada para breve, é uma grande ação do museu (junto à agência África) de levar arte para fora do Parque Ibirapuera, espalhando imagens de obras pela cidade em pontos de ônibus, relógios de ruas e empenas cegas de prédios (com QR codes que possibilitem ao espectador escutar áudios sobre os trabalhos). 

Alves, que é doutor em Filosofia pela USP e professor do departamento de Arte da PUC-SP, já foi curador do Clube de Gravura do MAM, co-curador do 32º Panorama da Arte Brasileira e curador assistente do Pavilhão Brasileiro da 56ª Bienal de Veneza. Ele assume o novo cargo após a mudança de gestão no museu paulistano, que tem Mariana Guarini Berenguer como nova presidenta desde 2019.

Assim como Berenguer, Alves ressalta a proposta de trabalhar ainda com questões urgentes como as pautas raciais, indígenas e de gênero. Ele se preocupa, no entanto, que isso seja feito com cuidado e profundidade, não apenas ligado à certo “modismo” do mercado visto nos últimos tempos. “Porque se for isso não tem poder transformador nenhum, é contraproducente. Vira oportunismo, e brincar com isso é muito perverso.” Neste sentido, portanto, é preciso perceber a importância do lugar de fala. “Então não sou eu, homem branco, que vou fazer uma exposição sobre o artista negro. Vamos trazer curadores negros para fazer isso.”

Alves falou ainda sobre a importância de a arte ser mais do que um meio para propagar discursos – “ela pode ser o lugar da ação direta sobre as pessoas” -, sobre a atuação digital do museu e as estratégias para aproximar o público do MAM em um período tão conturbado para o país. Leia a seguir a íntegra.

ARTE! – Você assume a curadoria do MAM-SP logo após se desligar do MuBE, onde passou quatro anos. O que você acha que traz dessa experiência anterior para o novo trabalho no MAM?

Cauê Alves – Antes de ir pro MuBE eu trabalhei dez anos como curador do Clube de Gravura do MAM. Então eu tinha essa vivencia no museu, mas como colaborador, não como alguém que está no dia a dia da instituição. E no MuBE eu de fato tive uma experiencia institucional, de gestão, de ser o curador-chefe, tendo que lidar com diversas áreas do museu. Então acho que trago um amadurecimento profissional, além de um reconhecimento maior de grande parte do nosso meio de que o MuBE, apesar de todas as suas fragilidades, se inseriu no circuito da arte contemporânea. Acho que o museu ganhou uma relevância neste meio que ele não tinha anteriormente. Então é um trabalho do qual tenho muito orgulho, e que acho que me ajuda muito nesta chegada no MAM, mesmo que sejam instituições com ordens de grandeza diferentes. 

ARTE! – Na sua proposta de trabalho há uma atenção especial tanto para o trabalho com o acervo quanto com o educativo. Queria que você explicasse um pouco melhor essas propostas e como elas se relacionam.

A ideia é dar mais visibilidade ao acervo, que tem quase 5700 peças e que eu acho que muita gente não conhece bem, ou conhece apenas uma parte. Há muito a se explorar, a pesquisar. Eu acho também que este acervo sempre esteve muito submetido à programação do museu e agora a ideia é que ele passe a ter um protagonismo. Por isso, iniciamos um novo inventário de todas as peças, um trabalho enorme que vai durar nove meses, com uma documentação do acervo. Então é um trabalho interno, de diagnóstico do que precisa ser restaurado, do que está em boas condições… Ou seja, é uma atenção para o acervo que independe das exposições. E esse trabalho compreende também entender onde estão as maiores lacunas, digamos assim, e mostrar que o MAM está aberto para receber doações e incrementar este acervo através de coleções que possam se integrar ao museu.

ARTE! – E aquisições também estão no foco?  

Sem dúvida. O MAM é um dos poucos museus no país que também adquire obras, não só recebe doações. Mas nesse ano, pelo menos, a gente suspendeu as aquisições, porque acho que eu preciso primeiro fazer um estudo mais completo e consistente deste acervo para, a partir daí, traçar uma política de aquisições mais sólida e bem estruturada.

ARTE! – Em uma entrevista sua, já há alguns anos, você falou do quão produtivo é trabalhar a curadoria de exposições junto aos artistas. Ou seja, fazer curadoria não como alguém que olha de fora, mas alguém que dialoga com os artistas. No caso do trabalho com acervo isso se torna difícil, certo? Então eu queria te perguntar de que modo você pretende aproximar também os artistas do trabalho no MAM?

Olha, é engraçado, mas nesse lado da documentação tem uma coisa interessante. Às vezes o museu guarda uma peça que comprou ou recebeu de algum artista e que tem algum detalhe que não se sabe exatamente como realizar, como montar. Por exemplo, será que tal trabalho é um conjunto de cinco peças ou ele pode ser mostrado separadamente? Claro que não são tantos casos assim, mas como temos um acervo bastante contemporâneo, contar com a participação dos artistas que ainda estão ativos para reconstruir essa documentação vai ser importante. Mas, sem dúvida, o trabalho do curador institucional é diferente do trabalho de um curador de uma bienal, ou de um curador independente, dada essa responsabilidade com o acervo. Agora, eu também tenho como uma das metas reaproximar os artistas do museu, fazer com que seja um museu que se relacione com o meio.

ARTE! – E nisso entra também algo que você já falou sobre o trabalho com o educativo, de trazer artistas para atuarem junto ao museu…

Exatamente. Queremos integrar mais o setor educativo na curadoria, fazer esses dois campos terem uma proximidade maior, a ponto de que artistas possam também trabalhar como educadores. A premissa fundamental é que a arte nos educa. Nós aprendemos a nos relacionar com o mundo porque a arte nos proporciona uma sensibilização. Então a ideia é valorizar a arte no seu sentido educativo e fazer com que artistas que têm uma prática de se relacionar com o público possam também ir para a linha de frente, fazer oficinas, ter esse trabalho direto. É trazer o artista para perto do museu não apenas como aquele que faz obras, mas aquele que contribui na formação do professor, na formação do público. Então a proposta é de uma integração maior entre esses setores de curadoria e do educativo, para que eles possam dialogar de maneira íntima.

“O museu é uma escola: o artista aprende a se comunicar; o público aprende a fazer conexões”, de Luis Camnitzer, na fachada do MAM. Foto: Rafael Roncato

ARTE! – Falando sobre arte e educação, me parece que são dois setores bastante ameaçados no Brasil atualmente. Então pensando um pouco mais sobre esse contexto político, queria saber como você enxerga o momento e como é trabalhar em um museu na situação atual, em que a cultura é muitas vezes vista como inimiga pelo próprio governo.

Sim, acho que você tem razão, é um momento de crise muito grande que o Brasil está atravessando. Mas eu acho que grande parte dessa crise se deve a uma crise de sensibilidade. A crise de não conseguir se relacionar com o outro, com a diversidade. E eu acredito muito no poder da arte – e não é uma utopia transformadora, de uma revolução – de agir sobre as pessoas diretamente, de proporcionar experiências transformadoras que, ao agir sobre os sentidos, nos formam. A gente é formado também a partir de experiências estéticas. E eu tenho visto parte dos artistas que tem enxergado a arte mais como um meio para propagar discursos. Mas eu acho que a arte pode ser mais do que isso. Ela pode ser mais potente do que isso. Ela pode ser, mais do que um meio para difundir ideias, o lugar da ação direta sobre as pessoas. Então o papel educativo que um museu tem, e que o artista tem, é um papel muito potente. Há uma força de promover experiências significativas e atingir as pessoas que eu acho que é papel do museu fazer, e espero que a gente consiga.

E eu acho que a ideia de museu é uma ideia republicana né, ele nasce com esse ideário. Não que tenha conseguido se realizar plenamente, mas a origem dos museus é essa. O museu deixa de ser o lugar só dos nobres, após a Revolução Francesa, para que todos possam ter acesso a arte. Claro que esse ideal iluminista nunca se realizou plenamente, e que está bastante em crise, é verdade, mas eu ainda aposto que o museu tem um papel de formação. Vejo assim como um parceiro da universidade, um lugar da pesquisa, da reflexão. E acho que não tem outro caminho para o Brasil que não seja investir na educação. Não tem outro lugar para atuar.

ARTE! – Agora, apesar de esforços de vários museus, instituições, centros culturais, coletivos e artistas nas últimas décadas, a arte contemporânea segue muitas vezes restrita a um circuito mais elitista da sociedade. Como mudar isso?

Olha, pensando no MAM, isso é uma missão do museu desde sempre. Se você olhar no site está lá, é missão do museu levar a arte para o maior número de pessoas possível. E isso independe do curador. Agora, é claro que o meu projeto é criar estratégias para que isso aconteça, para aproximar as pessoas de uma área que parece tão especializada – a da arte moderna e contemporânea. Que talvez seja o campo da cultura menos procurado, se comparado com cinema, música. Mas isso tem mudado também. A gente tem visto, já há algum tempo, exposições com filas na porta, lotadas. Quer dizer, as massas têm interesse, querem ver artes visuais. Então isso tem se transformado. Mas também, meu interesse não é só criar quantidade de público, não é bater recordes ou ter filas na porta do museu, ainda mais agora com a pandemia. A ideia é levar a arte para um maior número de pessoas, mas com qualidade, propriedade. Eu não tenho nada contra o grande público, pelo contrário, mas nós queremos fazer com que as exposições sejam produtos de pesquisa relevantes. Acho inclusive que essa era das grandes mostras blockbusters, que vêm de fora prontas, acabou, pelo menos por um tempo. A pandemia vai nos obrigar, a todas as instituições, a pensar muito mais do ponto de vista da qualidade do que da quantidade. E aí temos que aproximar o público, as escolas por exemplo. Essa é uma questão fundamental.

ARTE! – Nesse sentido, a atuação online parece ser uma chave, não é? Muitas instituições pareciam não estar preparadas para isso antes da pandemia, mas perceberam agora que o universo digital será fundamental também quando isso passar…

Com certeza. O MAM já tinha uma boa experiência nisso, mas estamos aprendendo muito. Acabamos de fazer esse convênio com o Google Arts and Culture e as mostras do Antonio Dias e do Clube de Fotografia já estão online. É claro que temos esperança de abrir o museu ainda esse ano, dependendo das orientações das autoridades. Mas mesmo se abrir, vai ser para um público pequeno. Aquelas vernissages, com muita gente, isso não vai mais ter. Então a importância da comunicação é ainda mais fundamental. E estamos trabalhando em várias frentes, de cursos online, de mostras que possam ter uma versão na web. Mas nunca com a ideia de substituição. Não é porque a pessoa viu a exposição online que ela não precisa ir no museu. A experiência direta com a obra e sua escala, esse impacto é fundamental. Mas o MAM tem tido várias frentes de trabalho e está ganhando muitos seguidores nas redes, inclusive. Então acho que isso vem pra ficar, não é uma coisa passageira, mas não veio para substituir. É para ser um lugar a mais, até para aprofundar nos assuntos.

ARTE! – A Mariana Berenguer falou também de uma ação que será feita na cidade…

Sim, que é levar parte do acervo do museu, em imagens, para o mobiliário urbano, em relógios, pontos de ônibus e com projeções em empenas cegas. Acho que isso vai ser muito interessante, no sentido de ter uma presença do MAM também na cidade em um momento em que o museu está fechado. Não é uma exposição, nem quer ocupar esse espaço, mas também não é só a imagem. Eu fiz um texto para cada uma destas imagens, e a pessoa vai lá no QR code, fotografa e escuta no Spotify artistas que leem textos que estimulem a reflexão. Então é a vontade de o museu estar além do parque, extrapolar seus limites físicos. Quer dizer, acho que são duas frentes. Essa virtual, de comunicação nas redes, e essa de ir para a cidade mesmo, dar materialidade para isso, por mais que seja só em imagens, mas de estar na cidade. Estou apostando muito nisso, algo que estamos fazendo junto a uma grande agência, que é a Africa.

ARTE! – Falando com a Mariana, ela falou também de uma preocupação do MAM de tratar questões muito atuais na sociedade e no mundo da arte como as temáticas indígenas, raciais, de gênero e meio ambiente, entre outras. Isso tem sido pauta de muitas instituições e até do mercado nos últimos tempos. Como trabalhar para que não seja apenas um modismo, uma onda passageira?

Sim, isso tende a se tornar um modismo ou uma mera ação de marketing. Por isso temos que tomar muito cuidado, perceber a importância do lugar de fala. Então não sou eu, homem branco, que vou fazer uma exposição sobre o artista negro. Vamos trazer curadores negros para fazer isso. Vamos trazer curadores e artistas indígenas. Para que não seja só um modismo, tem que ser trabalhado na estrutura interna inteira. E há uma força muito grande neste tema, no mundo. Especialmente depois do assassinato do George Floyd isso está muito evidente. E a gente está muito preocupado com esses temas, como todos devemos estar. É obrigação de todo cidadão prestar atenção. Porque não falar nada já é compactuar com essa estrutura. Claro que também me preocupa o fato de todas as instituições fazerem a mesma coisa, porque aí é modismo mesmo. E por vezes desprezando, ou se sobrepondo, por exemplo, ao trabalho que o Museu Afro vem fazendo há muito tempo. Então acho que o MAM tem que olhar para a sua história, para sua origem, e encontrar sua identidade sem ter que imitar as modas e as ações dos outros. Mas, claro, se posicionando, sem fechar os olhos para o mundo. Então é fazer um programa curatorial consistente que seja de fato respeitoso, e não simplesmente uma coisa que possa ser classificada como uma ação de marketing. Por isso a gente está muito preocupado em fazer as coisas de modo consistente, não seguindo a onda do mercado. Porque é preocupante que seja uma onda do mercado. Porque se for isso não tem poder transformador nenhum, é contraproducente. Vira oportunismo, e brincar com isso é muito perverso.


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