Abdias Nascimento, "Okê Oxóssi", 1970. Foto: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), doação Elisa Larkin Nascimento / Ipeafro

Jaider Esbell, “A conversa das entidades intergalácticas para decidir o futuro universal da humanidade”, 2021.
Foto: Filipe Berndt / Cortesia Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea

Histórias Brasileiras, mostra que ficou em cartaz no Museu de Arte de São Paulo, o Masp, entre agosto e outubro passados, retratou um dilema das instituições de arte de uma forma bastante explícita: enquanto exposições buscam criar narrativas inclusivas e de revisão da própria história da arte, essas temáticas revelam-se um tanto hipócritas, já que os centros de decisão do museu seguem patriarcais, brancos e elitistas.

De que serve denunciar no catálogo que “a disciplina da história da arte (…) é o aparato mais poderoso e duradouro do imperialismo e da colonização”, se os centros de poder do Masp seguem com uma imensa maioria que não inclui “os chamados povos nativos, indígenas, inferiores, subordinados, subalternos e não branco”, para usar termos utilizados no próprio catálogo da mostra.

De certa forma, essa tensão entre inclusão e privilégio foi bastante explicitada pelas curadoras Clarissa Diniz e Sandra Benites, em maio passado, quando abandonaram o módulo Retomadas, de Histórias Brasileiras, acusando o museu de censura a imagens selecionadas do Movimento Sem Terra, o MST. A polêmica desdobrou-se em várias camadas, levando Benites, meses antes festejada como a primeira curadora indígena de um museu brasileiro, a apontar que sua nomeação não refletiu inclusão de fato, e que o Masp reproduzia um “sistema colonial”, como afirmou à revista Brasil de Fato.  

Depois de várias negociações, Diniz e Benites retornaram à mostra conquistando mais do que a exposição das próprias fotos do MST, até então proibidas. Primeiro, garantiram a distribuição gratuita de pôsteres daquelas imagens, como Marcha Nacional pela Reforma Agrária, de João Zinclar, quando a primeira sugestão do museu foi adquirir as imagens para o seu acervo. Com isso, a curadoria reverteu a lógica mercadológica de propriedade e garantiu que as obras se multiplicassem para fora do Masp. 

A segunda conquista foi a ampliação dos dias gratuitos do museu. Essa vitória se deve a uma atitude rara no sistema das artes: denunciar abusos de poder nas instituições, o que muitos artistas e curadores não fazem para não se “queimarem” no circuito. Afinal, dirigem as instituições, como o Masp e a Bienal, colecionadores poderosos, que podem de fato prejudicar carreiras, se assim quiserem.

Esse “sistema colonial” se reflete em mostras como Histórias Brasileiras de uma maneira até sutil, mas que também merece reflexão. A obra Operação A3-1, de Rosângela Rennó, que participa do módulo Rebeliões e Revoltas, cuja curadoria está a cargo de André Mesquita e Lilia Moritz Schwarcz, pertence ao presidente do Masp, Heitor Martins, e a sua mulher, Fernanda Feitosa, como está explicitado na legenda do trabalho. Trata-se de uma obra da série Operação Aranhas/Arapongas/Arapucas, composta por mais de uma dezena de trabalhos, em mãos de vários outros colecionadores. 

O que leva a curadoria a escolher justamente a obra que pertence ao presidente do museu? Isso é um exemplo claro de conflito de interesses, afinal, expor uma obra significa agregar valor a ela, e um museu com caráter público como o Masp não poderia jamais exibir obras de pessoas ligadas a ele, pois a instituição está simplesmente valorizando o acervo de seu presidente. Uma historiadora do porte de Schwarcz sabe que deveria evitar esse tipo de prática patrimonialista, mas que esse não é um caso isolado nas recentes mostras do museu.Outra obra exposta na mostra que pertence ao presidente do Masp é
a pintura A conversa das entidades intergalácticas para decidir o futuro universal da humanidade, de Jaider Esbell (1979 – 2021), que faz parte do módulo Mitos e Ritos, com curadoria de Fernando Oliva, Glaucea Helena de Britto e Tomás Toledo.

Infelizmente, contudo, não se trata de prática apenas do Masp. De certa maneira, a presença desses colecionadores em posições-chave do sistema de arte contemporânea é algo relativamente novo, mas não deixa de ser um reflexo do sistema colonial dessas instituições. Fora do Brasil, artistas como Nan Goldin têm liderado a crítica a museus que são usados por famílias bilionárias para limpar seus nomes, caso dos Sackler, fabricante de remédios altamente viciantes e que já provocou milhares de mortes.

Essas são verdadeiras histórias brasileiras, despercebidas a visitantes que não conhecem o contexto do circuito, mas que precisam ser também contadas para não se ficar na superficialidade da mostra.

Observado esse pano de fundo, o que resta de Histórias Brasileiras? Realizada a partir de duas datas simbólicas, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e o bicentenário da Independência do Brasil, a exposição, com cerca de 400 obras e nove curadores, segue na mesma linha das demais mostras da série “histórias” do Masp, sob a direção artística de Adriano Pedrosa: muita ilustração e pouca ousadia.

Há muita ilustração, pois, cada um dos oito módulos da mostra é recheado de redundâncias que transformam cada uma destas sessões em repetições sob o mesmo tema. Por exemplo, o módulo Bandeiras e Mapas, organizado por Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo, fala das representações de poder, mas são tantas bandeiras e mapas, que o excesso acaba reduzindo todos os conteúdos a um mínimo comum, o símbolo nacional, que fica difícil atentar às particularidades.

Abdias Nascimento, “Okê Oxóssi”, 1970. Foto: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), doação Elisa Larkin Nascimento / Ipeafro

Um exemplo é Okê Oxóssi, de Abdias do Nascimento. Nessa pintura de 1970, o artista recria o símbolo nacional a partir do arco e da flexa, emblemas de Oxóssi, orixá caçador. Há uma fúria catalogadora tão intensa neste módulo, também existente nos demais, que várias modalidades de bandeira são apresentadas como uma fórmula quase matemática para a inclusão de temas politicamente corretos: tem bandeira LGBTQIA+, bandeira indígena, feminista, de luta, de luto etc. 

E cada um dos módulos segue nesta toada um tanto fria da redundância, sem criar narrativas para além do que o nome de cada um deles aponta. Retratos, por exemplo, é outra sessão marcada pela repetição, além de usar uma típica categoria das chamadas belas artes, lá do século 19. 

Ora, se o Masp se pretende em uma prática decolonial, não seria mais adequado pensar novas categorias, menos formais e mais ousadas. É aqui que se percebe a falta de capacidade desta gestão em pensar fora da moldura. Tudo no Masp sempre acaba muito convencional, parecido mesmo com uma feira de arte, mesmo quando se pretende rever o cânone.

É nesse sentido que a inclusão, e não se pode negar que há muitos artistas na mostra que merecem maior visibilidade e presença, acaba sendo protocolar. E é então que se explicita que, no final das contas, “o sistema colonial” segue o mesmo, apenas tentando uma pacificação que já sabemos impossível entre a casa-grande e a senzala.


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