Sonhos de uma Amazônia sem fim, Encantado (2023), Alessandro Fracta. Foto: Ana Dias
Sonhos de uma Amazônia sem fim, Encantado (2023), Alessandro Fracta. Foto: Ana Dias

Porta de entrada da Amazônia, cidade portuária marcada pela confluência de povos e culturas, Belém, no Pará, se abre para a arte. É nesse contexto que se realiza a 2ª Bienal das Amazônias, no CCBA — o centro cultural instalado desde 2023 em um prédio de comércio popular no bairro central da cidade.

São 74 artistas e coletivos de oito países pan-amazônicos e caribenhos que mostram seus trabalhos até 30 de novembro. O fio condutor é o conceito “Verde-distância”, inspirado no romance Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro, escritor e político paraense silenciado por dez anos pela ditadura militar brasileira. A ideia de “distância verde”, tão poética quanto política, abre espaço para múltiplos olhares sobre a floresta, seus povos, memórias e futuros possíveis. O evento foi incorporado aos festejos França-Brasil 2025, que acolhe a 2ª Bienal das Amazônias, em uma iniciativa que busca estreitar e atualizar as relações entre os dois países.

Sob a curadoria geral da equatoriana Manuela Moscoso, a Bienal se estrutura de forma colaborativa, com a colombiana Sara Garzón como curadora-adjunta, o paraense Jean da Silva na programação pública e a mexicana Mónica Amieva na curadoria pedagógica. Juntos, formam uma equipe internacional que amplia os diálogos e a dimensão experimental do evento.

Nascida no Equador, a 2.800 metros de altitude e hoje radicada no Brasil, Manuela Moscoso encarou o desafio de fazer a 2ª edição da Bienal em plena planície amazônica. O contraste não passa despercebido: “Outro clima, outro tempo, outro horizonte”, resume. Trabalhar no calor úmido da floresta virou quase metáfora da tarefa de articular tantas narrativas distintas em uma mesma plataforma. Esse multiculturalismo se traduz na exposição, com obras que acionam memórias coletivas, histórias de resistência e imaginários transfronteiriços.

Como grande homenageado, o amazonense Roberto Evangelista (1947-2019) ocupa lugar de destaque na 2ª Bienal das Amazônias. É uma justa reverência a um artista preocupado com a ecologia e em como pensar o futuro da Amazônia e do planeta. Entre suas obras em exibição está Nike Uiikana (1989), instalação em que penas e cuias formam triângulos, celebrando a união dos povos indígenas e a resistência do líder ambiental e seringalista Chico Mendes. Em Happening da Praia da Ponta Negra (1992), o artista transformou a orla de Manaus em palco para um gesto de arte efêmera, aproximando público, rio e cidade numa experiência comunitária que foi reencenada nesta edição, com a participação da viúva, Ana Evangelista, e da filha Sâmara.

Já em Ritos de Passagem (1996), reuniu mil caixas de sapato vazias, dois mil sapatos gastos e pedras de lioz retiradas de uma calçada de Manaus. A remontagem das obras foi realizada por Regina Vater, artista, amiga e parceira de Evangelista, que contribuiu para manter viva a integridade de suas criações. Essa presença dupla, da memória de Evangelista e do gesto cuidadoso de Vater, reforça a dimensão afetiva e política da homenagem.

Mosaico abrangente

A Bienal também devolve visibilidade a narrativas silenciadas. Um exemplo vem do coletivo Tawna, do Equador, que ocupa a floresta como espaço de escuta, ritual e insurgência. Composto por pessoas de diferentes etnias, seu cinema anticolonial aproxima ativismo e política, rejeitando enquadramentos ocidentais de gênero, sexualidade e justiça. O antropólogo indígena Enoc Merino, um dos integrantes do coletivo, afirma que a colonização europeia, com sua catequese, silenciou os povos originais. Seu curta-metragem mostra a diversidade e a liberdade de expressão dentro do povo Kichwa Canelos. “A questão de gênero é escolha ancestral no universo indígena, a homossexualidade sempre existiu e as escolhas fazem parte da cultura desses povos”, afirma ele.

A obra do artista Jaider Esbell, do povo Makuxi, originário da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, também reverbera na mostra, com pinturas feitas com jenipapo. Os trabalhos de Esbell, falecido em 2021 aos 42 anos, reafirmam a vivacidade que norteia o pensamento dos povos originários e a vitalidade espiritual de seus símbolos ancestrais. Considerada uma voz importante da arte indígena contemporânea no Brasil, sua presença na Bienal das Amazônias colabora para o reconhecimento da produção feita por integrantes dessa matriz. 

Dayro Carrasquilla chega à Bienal das Amazônias com a instalação Barrio Abajo, construída a partir de paletes — tão comuns no transporte marítimo — e de um vídeo que atravessa o espaço como narrativa visual. No piso térreo, sua obra recebe o público recriando os becos estreitos das comunidades populares, onde o íntimo se cruza com o coletivo. “O bairro é memória, afeto e resistência”, afirma o artista, ao mostrar como a arte pode devolver dignidade a territórios historicamente silenciados. 

Aqui, o urbano não se apresenta como dureza, mas como corpo poroso, cheio de frestas por onde emergem histórias ocultas. É nesses interstícios que Carrasquilla encontra poesia. A cidade que convoca não cabe em cartografias oficiais: é feita de resistências, afetos e lembranças que insistem em permanecer.

Barrio Abajo, de Dayro Carrasquilla. Foto: Leonor Amarante

De origem Kokama, a artista Wira Tini é pintora autodidata. Ela mescla modernismo, cosmologia indígena e paisagem urbana amazônica em uma poética de ancestralidade, território e memória familiar. Em obras como Rodó, Beira da Amazônia e Amazônia Urbana, ela reflete a modernidade imposta, os caminhos das águas e as presenças invisibilizadas em Manaus. “Meu pai conduzia barcos que até hoje transportam a população ribeirinha. Eu mesma aprendi a manejá-los e naveguei bastante pelo rio”, diz.

Nesse mosaico, a matriz africana também se faz presente, entre criação e ativismo. “A matriz afro-diaspórica é algo importante a se destacar nesta Bienal, dando mais presença ao legado, à memória e à história dos povos afrodescendentes na Amazônia”, ressalta a curadora-adjunta, Sara Garzón.

Há trabalhos empoderados que fazem a Bienal pulsar em diferentes registros. Entre eles, se destaca a produção da caribenha Keisha Scarville, filha de guianeses, que mergulha na diáspora e na experiência do corpo negro. Suas fotografias transitam entre presença e ausência, memória e apagamento. Tecidos, sombras e sobreposições dão corpo a um território poético em constante deslocamento, onde a identidade nunca se fixa, está sempre em construção. A potência de certas obras está justamente neste “não lugar”, elas não explicam, mas ativam sentidos. Ao reunir vozes tão diversas, a Bienal mostra que a Pan-Amazônia não é apenas um espaço geográfico, mas um campo vivo de relações, em disputa e em transformação.

Com sotaques e idiomas que vão do português ao espanhol, passando pelo “portunhol” e por diferentes troncos linguísticos indígenas, a Bienal se torna um grande território de pensamentos e trocas. Da Bolívia chega River Claure, fotógrafo indígena que vem conquistando espaço ao tensionar a identidade andina diante da contemporaneidade ocidental. Seu trabalho mistura moda, fotografia e crítica social em imagens vibrantes, cheias de frescor e impacto.

Em suas séries, jovens indígenas aparecem em diálogo direto com a cultura pop global, desmontando o olhar exótico que tantas vezes se projeta sobre os Andes. Suas fotografias atravessam estereótipos, dão corpo ao que foi silenciado e abrem espaço para imaginar a modernidade a partir da força e da criatividade dos povos andinos.

Em um ritual solitário, o peruano Antonio Paucar apresenta, em La Purga con las Madres Plantas, uma prática arraigada em que corpo e natureza se fundem como um mesmo território de resistência e entrega.

Entre fumaças que curam, gestos que invocam e silêncios que atravessam, sua obra desperta estados de transe, purificação e reconexão. Inspirado nos saberes indígenas e nas alianças ancestrais com a terra, Paucar transforma o corpo em portal, espaço de passagem entre mundos visíveis e invisíveis. Sua arte convida o espectador a atravessar essa experiência e a intuir outras formas de existir, de sentir e de pertencer ao cosmos natural. 

La Purga con las Madres Plantas (2016), Antonio Paucar. Foto: Leonor Amarante

Com forte carga poética, Sonhos de uma Amazônia sem fim, Encantado (2023), do brasileiro Alessandro Fracta, transforma a travessia em metáfora da experiência amazônica como território de deslocamento, resistência e invenção. Sobre o rio de dimensões oceânicas, ergue-se uma figura solitária: de pé na embarcação, envolta por um pano vermelho. Cor de ambiguidade simbólica, sangue e ferida, mas também fogo e vitalidade, funciona como eixo de tensão entre vida e risco, permanência e transformação. Ao situar-se no limite entre fragilidade e resistência, a obra aponta para as condições contemporâneas da Amazônia, onde práticas de destruição e modos de vida tradicionais coexistem em embate constante.

Curadoria

Ao assumir a curadoria da 2ª Bienal das Amazônias, Manuela Moscoso encontrou uma instituição jovem, em busca de identidade, mas ousada o bastante em sua proposta de articular uma cartografia artística da região Pan-Amazônica. Isto, segundo ela, é o que torna a experiência especial: “Se não fosse assim, estaríamos sempre nos encontrando em outros lugares, sob as mesmas lógicas centrais. O que me atraiu aqui foi a possibilidade de construir desde a Amazônia para a Amazônia”. 

No entender de Moscoso, a região carrega histórias coloniais muito distintas, que afastam os habitantes uns dos outros. “Somos países vizinhos, mas muitas vezes não nos conhecemos”. A curadora recorda, em tom de anedota, ter se surpreendido ao lembrar da existência de um território francês cravado na América do Sul: a Guiana Francesa. “É curioso pensar como esse detalhe, que deveria estar presente em nossa consciência continental, às vezes nos escapa. Isso mostra como a herança colonial ainda organiza a percepção de quem somos”. O confronto entre familiar e desconhecido, paisagem andina e vastidão da planície amazônica, também a fez refletir sobre as formas de relação com o meio ambiente. No Equador, a questão ambiental está inscrita em leis. “Há um esforço de proteção legal que, mesmo com todos os percalços, nos lembra de que a natureza é um sujeito de direitos e não apenas um recurso a ser explorado”. Essa vivência molda sua visão curatorial, que entende a floresta não como cenário, mas como protagonista.

Do ponto de vista da arte e do ativismo ambiental, vale lembrar as palavras do crítico francês Pierre Restany em seu Manifesto do Rio Negro (1978), escrito após navegar pelo rio ao lado dos artistas Sepp Baendereck e Frans Krajcberg: “A Amazônia é hoje o último reservatório, o último refúgio da natureza em nosso planeta”.

Ela deve ser celebrada como higiene da percepção e oxigênio mental — um naturalismo integral, gigantesco, capaz de catalisar nossas faculdades de sentir, pensar e agir”, escreveu.

A diferença

À frente da Bienal das Amazônias está Lívia Condurú, uma mulher que sabe articular forças diversas — empresários, coletivos, poder público — em torno de um mesmo objetivo. Foi assim que conseguiu restaurar um antigo prédio no coração de Belém, alugá-lo e transformá-lo na casa da Bienal das Amazônias desde 2023. O que a distingue das demais? Lívia Condurú não hesita: “A coletividade”. Para ela, não se trata de criar um simulacro da Amazônia para atender ao mercado, mas de falar da vida real, dos territórios habitados, das experiências compartilhadas. A Bienal, para ela é plataforma viva, o barco que desliza pelos rios levando e trazendo arte, é um centro cultural pulsante, com exposições que circulam. “É resistência, provocação, mas também festa”.

Com tranquilidade aparente, ela encara o maior desafio de qualquer iniciativa artístico-cultural no Sul Global, a sustentação financeira. “Fizemos uma das maiores captações do Brasil, mas os custos são altíssimos, aluguel do prédio, manutenção do barco, energia, equipe. Não dá para depender só da Lei Rouanet”. Ela afirma que trabalharam com plano plurianual e buscaram novas fontes. “Com o mesmo orçamento que em outras instituições renderia quatro exposições, realizamos sete, além de encontros e circulação internacional. Isso mostra como o dinheiro público pode ser mais bem investido quando há compromisso”.

Essa mesma disposição amplia o alcance da Bienal além do Brasil. Em Medellín, na Colômbia, por exemplo, a obra Quintino, de Éder Oliveira — retrato de um matador de aluguel transformado em anti-herói popular — encontrou identificação imediata. “Isso mostra como territórios distantes compartilham feridas parecidas”, diz a presidente. Pesquisas na Guiana Francesa e no Suriname confirmam essa dimensão plural da Pan-Amazônia, revelando uma região negra, caribenha, asiática, múltipla, justamente por ter sido atravessada pela colonização.

Ainda pesa a ideia de “arte regional”? Lívia Condurú não tem dúvida. “Pesa, mas é uma escolha política. Por que o artesanato não seria arte? Por que a crítica só existe no eixo Rio-São Paulo? O mesmo avião que me leva para lá traz críticos até aqui. Precisamos romper essa barreira”. O que move de verdade essa gestora? “Territorialidade e dignidade coletiva. Quero poder andar na rua à noite com segurança, quero um território respeitado. A arte é trabalho, com boletos e responsabilidades, mas também um instrumento de transformação. Seguimos porque acreditamos que fortalecer o território é fortalecer o mundo”.

Lívia Condurú vê a Bienal das Amazônias como voz ativa neste momento em que a COP 30, a Conferência do Clima que será em novembro, em Belém, se aproxima. Para ela, a Amazônia não pode ser tratada apenas como pano de fundo para debates climáticos, mas precisa ser vista como território vivo, político e cultural. “Aqui discutimos mineração, petróleo, extrativismo, mas também inventamos saídas. Acreditamos nas micropolíticas, em pequenas ações coletivas que, somadas, viram armas de resistência. A Bienal dá visibilidade a isso”. Assim, a mostra vai bem. Além de uma exposição de arte: é um chamado para olhar e escutar de outra maneira tudo o que está em jogo quando se fala da Amazônia.


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