Miguel Penha, Igarapé / Bienal das Amazônias
Miguel Penha, Igarapé. Foto: Patricia Rousseaux

Por Vânia Leal*

Nasci às margens do Rio Amazonas, em Macapá, no Amapá. Ser conterrânea fortalece o vínculo que tenho com a região Norte do Brasil porque este rio foi o primeiro que me levou a navegar por outras águas que me trouxeram à 1ª Bienal das Amazônias. Evento que já inicia com abordagens do próprio lugar e nos convoca para uma construção discursiva acerca da complexidade de distintos ecossistemas que formam o bioma, como florestas densas de terra firme, florestas estacionais, florestas de igapó, campos alagados, várzeas e formações pioneiras que, naturalmente, constituem os múltiplos tempos do espaço amazônico.

Debater e refletir arte na Amazônia requer a compreensão desse espaço geográfico de diferentes épocas e ambiências. A partir desses diferentes, o geógrafo e escritor brasileiro Milton Santos se torna uma inspiração pessoal quando diz sobre tempos onde convivem, simultaneamente, diferentes temporalidades. É com essa referência que sigo a jornada atenta à urgência de repensar e decolonizar o espaço da arte enquanto lugar que pode ser ocupado por corpos de artistas diversos, compreendendo a perspectiva intercultural do Brasil. 

Valorizar a produção de artistas nas Amazônias aqui e agora também é evidenciar um corpo amazônida de multiplicidade de povos indígenas, negros, afro-indígenas, caboclos ribeirinhos, mulheres, quilombolas, corpo LGBTQIAPN+ e de outros artistas que estão cravados na floresta. Todos com distintas nuances aliados a uma linguagem pessoal, que potencializam esse espaço da arte – não como um ambiente estanque, mas como um território de ocupação resistente aos processos coloniais e que se reinventam potencialmente com o diálogo entre as culturas, que não se dá num vazio de relações sociais e de poder.

Além da riqueza da biodiversidade amazônica, ressalta-se a diversidade cultural existente no Norte. Realidade que deve nos conscientizar de que existem Amazônias e amazônidas e o desafio em pensar a região como uma extensa floresta tropical úmida e complexa, com uma área equivalente a 8 milhões de km2, como se fosse homogênea implica tornar invisíveis ecossistemas habitados por diversos povos e suas territorialidades ancestrais, que aliam experiências próprias com as ambiências dos lugares de origem.

O lugar do sujeito artista produzindo arte nas Amazônias com o sentimento de pertencimento do lugar, com atitude e olhar de dentro para fora, cria diferenciadas experiências de práticas artísticas. Cada uma advinda com o conhecimento intrínseco que acontece, por vezes, através de tensões, violências, intimidade, aproximações e distanciamentos. Infindáveis narrativas que visibilizam o seu potencial político e cultural sem enrijecimentos dos modos de vida. As narrativas não são fantasiosas, são reais.

Neste sentido, a bienal aponta que é imprescindível não desperdiçar o grandioso acervo de conhecimentos e os complexos tecnológicos dos povos que habitam a região Norte do Brasil. Apostar na pluriculturalidade é necessário, no diálogo de saberes e práticas para qualquer projeto de futuro da Amazônia. Importante ressaltar que o conhecimento e a intimidade com a natureza para os povos que aqui habitam é condição do viver. Não há fazer sem sentir e saber. 

Evna Moura, Brasil, Pará, Orí da série “Água”, 2017. Fotoperformance
Evna Moura, Brasil, Pará, Orí da série “Água”, 2017. Fotoperformance.
Foto: Patricia Rousseaux

Amazônias na Bienal

Diante disso, é inegável a importância da 1ª Bienal das Amazônias ao trazer visibilidade ao que as Amazônias têm projetado e produzido com artistas já consolidados no circuito das artes e outros com novas produções que estão surgindo. O evento abre caminhos de descentralizações oportunas de produção e fruição sensível a todas as regiões que compreendem as Amazônias como um território transcultural, com potencial para constantes trocas de experiências com outros lugares do país.

Nesta perspectiva, a representatividade na produção dos artistas do território da Amazônia brasileira – nas cidades que fazem parte do território amazônico previsto em lei (Amazônia Legal), que compõem esta edição do evento, de forma alguma é alicerçada por uma história única e alienígena. Pensar nesta possibilidade é reforçar um imaginário regional exotizado amparado por oposições semânticas que não cabem. 

Por exemplo: centro e periferia, pois chegará o dia em que entenderemos que não há “centro” e, como diz o escritor e teórico da arte brasileira Ariano Suassuna, “ao redor do buraco, tudo é beira”. Outro ponto de atenção importante é persistir no pensamento da existência de um fazer artístico Amazônico como algo modelado esteticamente. Tais afirmativas, além de nivelar as multifacetadas diferenças culturais e territoriais, é o disparador de um pensamento colonial. 

Acredito que visibilizar o potencial político, social, intelectual e cultural da produção artística das Amazônias é premissa necessária na agenda. Tentar padronizar a arte produzida nas Amazônias é fazer o caminho inverso que diz respeito à relação com a natureza. Os artistas, os povos amazônicos e os espíritos florestânicos são guardiões e não importam modelos e relações. Colocam-se como interlocutores em qualquer debate sobre o futuro da região e do mundo. Afinal, a arte nos ensina a ver e fortalece a existência.

Por sua vez, os artistas lançam o convite para conhecer a vida pulsante desses territórios. Compreender o jeito de ser dos povos daqui é o início dessa jornada para escutar e vivenciar as infindáveis histórias que transbordam nos cantos, pajelanças, ciência caseira, rezas das benzedeiras, alternâncias de marés, festas coloridas, florestas, águas, cheiros, danças, mulheres erveiras e tantas outras experiências significativas. Como cabocla tucuju do Amapá, reforço a nossa amorosidade desejante para que estejamos em comunhão. É o que me move na arte e na vida.

*Curadora da primeira Bienal das Amazônias


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