Fachada do pavilhão americano na 59ª Bienal de Veneza Foto: Timothy Schenck / Cortesia da artista e Matthew Marks Gallery

Realizada este ano entre os dias 23 de abril e 27 de novembro, a 59ª Bienal de Veneza se apresenta, de saída, como uma edição histórica, tanto por sua realização após longo período de pandemia quanto por ser a primeira em que o número de mulheres participantes supera o de homens. Ao mesmo tempo, para o curador e escritor Gabriel Bogossian, colaborador da arte!brasileiros presente na cidade italiana, o atual evento apresenta uma mostra principal caracterizada por certo escapismo, sem enfrentar os conflitos, ruídos e dissonâncias latentes no mundo atual – o texto completo você pode ler aqui (leia também sobre o pavilhão brasileiro, com obras de Jonathas de Andrade, aqui).

Dentre a grande quantidade de trabalhos apresentados no evento italiano, entre os tradicionais pavilhões Arsenale e Giardini e as representações nacionais, Bogossian escreve agora sobre o que considera alguns dos destaques do evento. Leia abaixo:

Legados britânicos

Feeling her way, obra de Sonia Boyce ganhadora do Leão de Ouro de melhor representação nacional, é parte de seu projeto Devotional Collection, que documenta as contribuições da música negra realizada por mulheres para a cultura. No pavilhão britânico, a instalação de Boyce combina vídeos, objetos, papel de parede e itens de memorabilia relacionados a essa produção musical. Os vídeos foram realizados em colaboração com cinco cantoras negras do Reino Unido e mostram improvisações, vocalises e interações entre as cinco, em gravações límpidas e visualmente minimalistas.

Fora dos Giardini, em diálogo incidental com a instalação de Boyce, o pavilhão da Escócia traz obras de Alberta Whittle, primeira mulher negra a representar seu país na Bienal de Veneza. Partindo de bell hooks, Audre Lorde, Christina Sharpe e outras autoras que abordam a diáspora negra, em especial a produzida pelo Império Britânico nas suas possessões no continente americano, as obras de Whittle abordam de modo mais direto e documental o mundo forjado pelo capitalismo escravagista.

Vale destacar também a videoinstalação de Tourmaline, na saída do Arsenale. A ativista, escritora e artista trans queer norte-americana trouxe à Bienal um curta-metragem ficcional passado em Seneca Village, primeiro bairro afro-americano da ilha de Manhattan, destruído para a construção do Central Park. Sua protagonista é uma mulher trans negra com dons mediúnicos que, no século 19, desafia as autoridades locais para defender sua comunidade enquanto é assombrada por visões do futuro, antevendo uma Nova York repleta de carros e arranha-céus.

Simone Leigh

Distribuída entre o pavilhão dos EUA e o Arsenale (dentro e no seu jardim, na parte externa), a participação de Simone Leigh chama atenção não só pela qualidade, mas pela escala contundente das obras, perfeitamente adequada para um evento do porte da Bienal de Veneza. Nos três espaços, Leigh mostra esculturas inspiradas no corpo ou em figuras femininas, trabalhando com técnicas e materiais tradicionalmente utilizados pela diáspora africana em sua produção de cultura material. A combinação de peças narrativas, como a lavadeira que recebe o público no interior do pavilhão norte-americano, com outras de caráter mais abstrato, ressalta a força política de suas obras e a dimensão ética contida em seu trabalho.

O jogo é uma coisa séria

Ocupando o pavilhão belga com uma série de pinturas em pequeno formato e outra de videoinstalações, Francis Alÿs é um dos grandes destaques desta edição. Artista belga radicado há muitos anos no México, Alÿs mostra, nas duas séries, crianças de diversas partes do mundo e suas variadas formas de brincar. Enquanto as pinturas recebem discretamente o público na entrada do pavilhão, as videoinstalações em grande formato registram de maneira documental e livre a algazarra de meninas e meninos se divertindo. Aqui, a simplicidade analógica da imaginação infantil e suas brincadeiras, com frequência desenvolvidas com materiais simples e baratos, responde de maneira eficaz a uma Bienal repleta de corpos fantásticos e sonhos tecnológicos.

Intimidade e desejo

No pavilhão romeno, a artista e cineasta Adina Pintilie desdobra a investigação em torno das políticas e das poéticas da intimidade com a qual conquistou o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2018. A videoinstalação apresentada nesta Bienal, You are another me, toma seu título de empréstimo de um cumprimento maia, que lança a um só tempo uma posição ética de interdependência entre interlocutores e em relação ao contexto em que atuam. Na obra, três indivíduos relatam suas experiências em torno da sexualidade, da constituição da subjetividade e do contato físico a partir de seus corpos dissidentes, expondo espaços de intimidade para a câmera de Pintilie de maneira generosa e delicada. A gramática documental da obra ofusca seu aspecto tecnológico, sem, no entanto, nenhum prejuízo para sua fruição.

Fantasmas industriais

Depois de seguidas edições com presença pouco significativa para o conjunto da Bienal, o pavilhão da Itália nesta edição é ocupado pela primeira vez por um só artista. Gian Maria Tosatti apresenta uma instalação que toma todo o interior do espaço, evocando, na forma de fantasmagorias, os sonhos industriais italianos e sua decadência. As salas são ocupadas por diferentes expressões dessa queda: máquinas enferrujadas e em desordem, cobertas de poeira; espaços assépticos, com tubos de ventilação pendentes; um dormitório que remonta aos anos 1950, década de início do “milagre italiano”; e máquinas de costura paradas, observadas por um crucifixo na parede. Na última sala do pavilhão, uma singela homenagem ao cineasta Pier Paolo Pasolini e seus vaga-lumes, que, depois de tudo, enfim permanecem.

Romani

Tal como ocorreu com o pavilhão Sámi, nesta edição a representação polonesa convidou para seu pavilhão nacional uma artista Romani, povo sem Estado historicamente alvo de ataques onde quer que se estabelecesse. Num hotel abandonado em Zakopane, sul da Polônia, a artista Małgorzata Mirga-Tas produziu uma série de 12 enormes obras em tecido, livremente inspiradas nos painéis do Palazzo Schifanoia, em Ferrara, na Itália. Cobrindo as paredes do pavilhão polonês de cima a baixo, e também parte de sua fachada, as obras de Mirga-Tas mostram as migrações dos Romani pela Europa e momentos de sua história vistos da perspectiva feminina, ressaltando a mútua influência entre as culturas romani, polonesa e as de outros países da Europa.

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*Gabriel Bogossian é curador independente e escritor. Sua prática é baseada em colaborações com artistas, curadores e organizações de direitos humanos para a realização de publicações, exposições e outros projetos culturais, com frequência articulando produções de diferentes campos da cultura visual, como a arte, o cinema, o jornalismo e os movimentos sociais. Foi curador convidado da 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil | Comunidades Imaginadas (São Paulo, 2019), da Screen City Biennial 2019 – Ecologies: Lost, Found and Continued (Stavanger, 2019) e do Festival VideoEx (Zurique, 2019) e curador adjunto do Galpão VB (2016-2020). Foi autor da tradução de Americanismo e Fordismo, de Antonio Gramsci (ed. Hedra, 2008), e do capítulo O contato e o contágio, conversa realizada com Ailton Krenak que integra a publicação No tremor do mundo (2020).

 

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