Dedico este texto a João Pedro Mattos[1]
“A escravidão foi o corpo real da modernidade, sua carne, sua energia, uma tecnologia. Sua herança define, certamente, muito de nossa atualidade, uma efetiva dialética da colonização. […] Mas na minha carne crioula há horrores cravados. E esses horrores, não os posso compartilhar. E, eu sei, horrores não se relativizam.”
José Fernando Peixoto de Azevedo, 2018, p. 17, 23.
Não existe violência física que não esteja acompanhada de violência simbólica. Estudar a história da arte afro-brasileira implica se emaranhar em continuidades centenárias de histórias de violência simbólica e física. Implica também uma possibilidade de se vislumbrar de modo claro não só a “dialética da colonização”, de que nos fala o dramaturgo e diretor teatral paulista José Fernando Peixoto de Azevedo na epígrafe, mas a própria “dialética do esclarecimento”, que Theodor Adorno e Max Horkheimer procuraram descrever enquanto a Europa ardia em chamas na primeira metade dos anos 1940 (Adorno & Horkheimer 1986). A história da arte negra afrodescendente brasileira é uma história que envolve repetições traumáticas de violências que muitas vezes se escamoteiam como “conquistas da civilização”. Nessa história, a ciência, a academia e todo o campo cultural se apresentam como partes estruturantes do sistema colonial.
O sistema de escravidão penetrou tão fundo nessa cultura que suas vítimas até hoje são em grande parte submetidas a uma série de violências que dão continuidade à violência escravocrata. A escravização como movimento de submissão do “outro” não se encerrou em 1888 e, pelo contrário, hoje ganha uma nova força, a partir de novas ou não tão novas biopolíticas. De dentro desse momento de retorno brutal das políticas coloniais no Brasil, com a redução do sistema econômico à exportação de commodities, com a suspensão dos direitos trabalhistas, com a imposição de um racismo descarado e oficial, com a política de destruição das florestas e de suas populações originárias, com o desmonte do sistema educacional que, finalmente, neste século havia se aberto às populações negras, o governo atual do Brasil impõe uma revisão da história brasileira e, especificamente no nosso caso, uma revisão da história da arte afrodescendente. Afinal, uma das pedras de toque da campanha e do atual governo é a edulcoração da história colonial e do período da ditadura de 1964-1985.
Em nenhum outro país da América Latina ocorreu que políticos nostálgicos da escravidão e da tortura conseguissem galgar os degraus mais altos da hierarquia estatal por meio do voto. O que ocorre atualmente no Brasil é uma espécie de campo de provas para uma política fascista radical que pretende devolver o país à era pré-República. Nunca o culto dos bandeirantes foi tão longe junto com o desprezo e a violência policial e dos políticos contra populações negras e indígenas. A pobreza, junto com esses grupos étnicos, é criminalizada e um genocídio negro é produzido a cada dia nas cidades e no campo. É nesse contexto que percebemos a história do Brasil agora. A história da arte negra deve ser revista dentro dessa macro história, como parte de um longo embate colonial que não se fechou, muito pelo contrário.
Arte negra, afrodescendente ou afro-brasileira e o dispositivo estético
É bom começar com a questão dos conceitos de “arte negra”, afrodescendente ou afro-brasileira. Considero esses três conceitos legítimos e eles são utilizados pelos historiadores da arte muitas vezes de modo quase intercambiável. Mas esse debate nominalista possui um aspecto que não podemos perder de vista. Existiu durante muito tempo ao longo do século 20 e até bem recentemente, como veremos, uma tendência a tratar de modo indiferenciado artistas afrodescendentes e artistas não afrodescendentes como parte de uma “arte afro-brasileira”. Apenas a partir do final do século passado que esse procedimento começou a ser questionado.
Nesse momento, que estará no centro deste artigo, surge uma nova arte “do corpo”, com forte teor testemunhal (Seligmann-Silva 2016), que tornou impossível a separação entre os artistas, a construção de sua subjetividade e de suas obras. Esses artistas atuam sobre o que denomino “subjeto”, o sujeito que ao invés de tentar idealisticamente “representar” um mundo exterior, dá forma ao mundo a partir de sua subjetividade constituída no contexto de conflitos de classe e de raça. Não podemos esquecer que essa “virada subjetiva” também foi uma virada étnica e, como teóricos da arte como Hal Foster o detectaram já nos anos 1990, etnológica (Foster 1996). Nesse novo contexto das artes tornou-se necessária a relação entre a produção artística e a identidade étnica racial, sobretudo quando se tratava de um artista com origem afro. Pois as identidades afro se estabelecem dentro e em combate à episteme e ao sistema colonial, “provincializando a Europa”, na expressão já clássica de Dipesh Chakrabarty (2007).[2] Elas, desse modo, não puderam ou podem aceitar mais a ideia de uma “universalidade da arte”, tal como fora formulada por um platonismo na Antiguidade (com a sua doutrina dos Eide, os ideais transcendentes) e reformulada por Kant na modernidade (com a sua ideia de arte como prazer “sem interesse”, desprovido de envolvimento e volição). Por mais que Kant tenha sempre enfatizado que o universal na arte é sempre subjetivo (Crítica do juízo §8), ele submete a sua estética a uma epistemologia de cunho iluminista e eurocêntrico bem como a um padrão de beleza clássico.[3]
Essa relação umbilical entre a doutrina do universalismo nas artes e o projeto colonial é fundamental e muitas vezes foi deixada de lado pelos teóricos e historiadores da arte, isso mesmo com relação à arte afro, o que é inadmissível. Para Kant, o artista é um meio de construção do belo (ou do sublime), mas a sua subjetividade é na verdade apagada assim como todo e qualquer contexto político o é: “Todo interesse vicia o juízo de gosto e tira-lhe a imparcialidade” (Crítica do juízo, §13; 1959 p. 62). Com Kant estabeleceu-se o discurso moderno da universalidade da arte que é indissociável de sua, apenas aparente, “apoliticidade”. Digo apenas aparente, porque por detrás da universalidade existe uma poderosa política de apagamento do “outro” e das diferenças. Admite-se como arte apenas a “grande arte europeia”, da Grécia à modernidade.
O classicismo, que está na base do nascimento da história da arte, com Winckelmann, e também sustenta a teoria estética da arte de Kant, impõe-se como uma poderosa máquina ontotipológica (Lacoue-Labarthe & Nancy, 1991). Esse modelo clássico gera o “próprio” eliminando o “outro” que é produzido nesse mesmo gesto de aniquilação. Estamos diante de um dispositivo, o dispositivo estético, talvez o mais violento que a modernidade criou, pois é a partir dele que se produz a linha divisória entre os dignos de direitos e de compaixão e aqueles que são a “carne” da máquina colonial (Seligmann-Silva, 2019). O dispositivo estético é um aliado do dispositivo colonial, ambos produzem e aniquilam os seus “outros”. O “próprio” (europeu) para existir, necessita de seu não eu, o “outro”, seja a África ou o Oriente, como autores como Frantz Fanon (1952), Abdias Nascimento ([1976] 2016), Edward Said (1978), e Stuart Hall (2003) o constataram no século 20 e, mais recentemente, toda uma série de autores pós-coloniais desenvolveram em seus trabalhos, como Achille Mbembe (2017), Walter Mignolo (2011), Grada Kilomba (2019) ou Bell Hooks (2014).
Podemos dizer que a luta que se dá no campo das artes afrodescendentes no Brasil é a luta pelo reconhecimento do elemento violento, ideológico, de apagamento dos negros e de uma miríade de culturas, no bojo dessa ideologia estética “universal” e universalizante, antes de mais nada branca, eurocêntrica e racista. Portanto, quando se fala aqui em “arte negra”, afrodescendente ou afro-brasileira, refiro-me à arte produzida por artistas que se entendem como parte de uma continuidade daquelas populações submetidas à história da violência e de sua resistência a ela. Mas, vale insistir: trata-se, para esses artistas, de uma conquista dessa continuidade. Trata-se da superação de um apagamento imposto por poderosas políticas de esquecimento que, no Brasil, procuram de modo ambíguo, glamourizar nossa história na mesma medida em que negam qualquer continuidade entre a violência do sistema escravocrata e as violências biopolíticas e raciais de hoje.
A história da arte negra é a história da construção de pontes e de veios de comunicação com o passado (um passado traumático que não passa, que está em suspenso), é a história de ruptura da camada de concreto com a qual a ideologia colonial branca procurou enterrar a história da violência de classe e racial nesse país, bem como a história de lutas e resistências. Basta ver nossos cemitérios negros, literalmente sob o concreto de nossas cidades, seja no Valongo, no Rio de Janeiro, seja no bairro da Liberdade[4] em São Paulo. Na medida em que o magma dessa história de violência jorrou, a virada na história da arte negra levou também a uma ruptura radical com a ideologia do estético: a nova arte negra que nasceu desse banho no líquido amniótico do horror mas também da luta resistente, é eminentemente política e crítica do discurso do universalismo amnésico, assimilador e destruidor da identidade negra, na mesma medida em que procura estabelecer as bases de uma cultura afro-atlântica.
A luta negra também institui novos calendários e estabelece novas conexões com passados instituidores de novos presentes. A arte negra brasileira manifesta essa irrupção do passado recalcado que é libertado no curso de sua construção. Ela rompe com a falsa narrativa da historiografia colonial que relega a história negra ao campo de trabalho ou aos pelourinhos. Tratarei mais adiante dessas imagens que funcionam como verdadeiras imagens encobridoras (Deckerinnerungen, outro conceito de Freud, precioso aqui, como veremos).
Uma história da arte pacificadora
No entanto, é essencial, antes de nos aproximarmos de alguns exemplos dessa nova arte negra brasileira, que frequentemos a história de sua história, ou seja: como os construtores de narrativas da história da arte afro-brasileira se localizam nesse embate político-epistemológico entre a história da arte dita “central”, eurocêntrica, e a construção da especificidade da arte negra, seja ela vista como brasileira ou ocupando seu lugar no espaço afro-Atlântico como local multi-tópico da diáspora. Não nos surpreende que boa parte dessa história reafirmou um local excepcional, ou seja, marginal, dessa história da arte negra, reproduzindo uma série de padrões do modelo colonial da narrativa histórica. A força monstruosa do dispositivo estético em sua versão colonial não pode ser desprezada. Esse dispositivo também é reforçado por boa parte da história que narra a arte negra brasileira.
A mão Afro-Brasileira
Assim, mesmo em uma obra fundamental no processo de autoafirmação da arte negra brasileira, como foi o volume A mão Afro-Brasileira. Significado da Contribuição Artística e Histórica, organizado por ninguém menos que o artista, colecionador e fundador do Museu Afro Brasil, Emanoel Araújo (1988), podemos detectar esse fato. Esse catálogo veio à luz junto com a exposição no MAM com o mesmo nome e que, em 1988, aos 100 da Lei de Abolição, pretendia resgatar o papel dos negros na história da arte nacional. Mas já no título percebemos que a visão dominante na exposição e no catálogo reproduzia a ideia de que temos uma história da arte única, como um grande rio que flui, com seus afluentes secundários o alimentando, um deles sendo a “contribuição” da mão afro-brasileira. Temos aqui o poderoso modelo historicista de uma formação orgânica composta por partes, sendo que caberia agora reconhecer essa “contribuição” específica até agora pouco destacada. O organizador do volume recorda o longo processo de pesquisa para a construção desse importante volume e exposição visando recuperar “ao menos parcialmente, a participação do homem negro e mestiço na formação da cultura nacional” (1988, p. 9) A ideia de uma “cultura nacional” em formação reproduz um modelo colonial de formação da nação a partir de suas contribuições das diferentes etnias ou raças.
É importante que Araújo destaque já no título do livro a questão do afrodescendente e não da arte afro-brasileira, mas os textos não manterão essa fidelidade ao título, já que, em sua maioria, misturam análises de contribuições de artistas afrodescendentes ou não, mas que estariam todos valorizando a contribuição de uma certa origem africana, que havia sido até então pouco valorizada. Araújo escreve: “Não existe hoje uma arte legitimamente brasileira sem a criativa e poderosa influência do negro”. Nem vou discutir aqui a questão de gênero que perpassa essas colocações, já que sempre fala-se no “negro”, no masculino, a saber, ocorre o apagamento daquelas mãos afro-brasileiras que não seriam de homens, mas destaco novamente a ideia de um veio principal de uma arte legitimamente brasileira (o que seria isso?) que em sua formação recebe “influências” do “negro”. Araújo também elogia em sua apresentação a contribuição do médico psiquiatra e eugenista Nina Rodrigues: “Pioneiro dos estudos antropológicos no Brasil, foi quem primeiro chamou a atenção para arte dos colonos africanos” (1988, p. 10), referindo-se ao ensaio de 1904 de Rodrigues, que também faz parte da coletânea de 1988.
Arte, documento, testemunho: a crise do estético
A noção de arte como documento etnográfico, colocada por Nina Rodrigues, tem produzido muita confusão no debate estético dos últimos anos e é bom não deixar passar a oportunidade de tentar lançar luz nessa questão. Como me referi acima ao mencionar Hal Foster, ele detectara uma virada etnológica na produção artística no final do século 20. Essa virada tem a ver com o que denominei de virada testemunhal na produção cultural. (Seligmann-Silva, 2019, p. 28) Esse movimento em direção ao “documentário” (daí, aliás, a alta valorização nesse gênero desde então e que só aumentou em prestígio até hoje) levou a uma relação cada vez mais estreita da produção e da recepção de obras de arte com o campo da etnologia.
Para voltarmos a Benjamin, podemos ver essas suas teses redigidas em plena guerra como um marco na construção dessa sensibilidade da leitura documental das obras de arte. Na sua sétima tese ele escreveu de modo lapidar: “Não há um documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie.” (2020, p. 74; “Es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Barbarei zu sein”, 2010, p. 86). Trata-se aqui, portanto, de um aprendizado que implica perceber por detrás de qualquer obra cultural uma violência estrutural que sustentou a sociedade e que permitiu que nela se produzisse seus documentos de cultura. Com isso rompe-se com o mencionado esteticismo pretensamente inofensivo (que tanto mal faz) que pretendeu cortar os laços das obras de arte com a história e a política. Existe, portanto, algo de crítico e emancipador tanto na virada subjetiva-etnológica das artes no final do século 20 como nessa teoria benjaminiana da cultura como documento. Aprender a ler o teor testemunhal das artes implica abrir-se a essa leitura a contrapelo da história, cuja narrativa tradicional procurou sempre, em suas grandes construções teleológicas e triunfais, ocultar esse elemento de barbárie.
Ou seja, para deixar claro, ao falar-se do teor testemunhal de uma obra, não se está “reduzindo-a” ao seu “mero” elemento histórico e etnológico. Antes, está se rompendo com a hegemonia da ideologia do estético-colonial que ocultava esse elemento testemunhal da inscrição cultural.
“Não existe na arte brasileira contemporânea uma arte negra…”
Mas voltemos à construção histórica da arte negra brasileira. Aracy Amaral, ainda na coletânea de 1988, uma das mais destacadas críticas de arte do país, propõe-se a refletir em seu ensaio A busca da Forma de Expressão na Arte Contemporânea sobre essa busca “na arte contemporânea por parte de artistas epidermicamente não tão brancos” (1988: 247). Ou seja, de um modo um tanto atravessado, ela coloca a questão da afrodescendência como importante em sua proposta, mas acaba, ao longo de seu trabalho, mencionando também artistas que trataram de modo apenas “temático” de questões associadas à cultura afro-brasileira. Ela recorda com razão que:
Se no período colonial a maior parte de nossos tesouros artísticos vem de mãos escravas ou libertas – mestiços de índios, negros ou mulatos – por evidente tradição preconceituosa por parte dos portugueses brancos, muito recessivos no dedicar-se a atividades manuais, e se sobretudo aos artistas e artífices de origem africana devemos, por essa mesma razão, em grande parte do país, nosso patrimônio artístico, vemos que a situação parece alterar-se no século 19. (Id., 1988).
Com a Academia Imperial de Belas Artes durante o primeiro e segundo impérios, com a pintura de paisagens e naturezas mortas e sobretudo a partir do indigenismo (o culto romântico das populações originais da América), introduz-se também o negro e o caipira como temas nas telas dos pintores acadêmicos, como Almeida Junior, Abigail de Andrade e mesmo do espanhol Modesto Brocos, que com sua tela “A Maldição de Cã” (1895) comemora o branqueamento da população brasileira, um tema caro ao mencionado médico Nina Rodrigues. Amaral recorda dois acadêmicos que foram discriminados por sua origem étnica, Estevão Roberto da Silva e Antônio Rafael Pinto Bandeira, sendo que este último foi levado ao suicídio por conta desse constrangimento. Não cabe aqui refazer o percurso desse ensaio, mas apontar como ele encontra-se ainda antes da mencionada virada testemunhal na concepção das obras de artistas que, no contexto da história da produção de arte afrodescendente equivale também à virada decolonial. Isso mesmo Aracy Amaral ressaltando a violência a que os negros foram submetidos no século 19 e recordando a relação entre as políticas de branqueamento, o apagamento e esquecimento. Após apresentar em uma sequência rápida os nomes de artistas como Antônio Bandeira, Rubem Valentim, Almir Mavignier, Edival Ramosa, Genilson Soares, Maria Lidia Magliani, Octávio Araújo, entre outros, Amaral escreve: “Na apreciação da obra desses artistas, bem como de seus percursos, pode-se afirmar que, salvo exceções, não existe na arte brasileira contemporânea uma arte negra, com uma preocupação de afirmação como tal, pois tendências as mais diversas se assinalam nestes artistas de cor ou naqueles que nem sequer essa característica fora definidora em suas carreiras.” (1988, 248).
Até aqui, portanto, estamos muito longe do que logo aconteceria com o boom da arte negra no início do século seguinte. A autora acha inclusive questionável fazer uma “exposição da produção plástica de artistas pela exclusiva razão da cor de sua pele ser mais morena”. Estar-se-ia apenas apontando para algo esquecido, ou seja, a origem desses artistas, já que “o avançado […] estágio de branqueamento faz com que no Brasil nem atentemos para a sua origem”. (1988, 272) Desse ponto de vista, o projeto eugenista de branqueamento teria triunfado e não haveria lugar para se pensar uma arte negra no Brasil. Mas Aracy Amaral acrescenta algo em seu raciocínio que deixa antever uma virada, ainda que siga não distinguindo artistas afrodescendentes daqueles que se inspiram na cultura afro:
As exceções, por isso mesmo do maior interesse, são artistas que deixam em suas criações transpirar a ancestralidade do rito afro-brasileiro, em afirmação de busca de identidade, como no caso de Rubem Valentim, ou no barroquismo generoso em sua construção acumulativa de um Emanoel Araújo, no misticismo da gravura de Hélio Oliveira, e na cerâmica e pintura de Miguel dos Santos (1988, 248).
Vejamos a contribuição intelectual de Rubem Valentim que nos anos 1970 formulou de modo claro uma proposta de revisão do campo estético e da colonialidade a partir da arte negra.
O Manifesto Tardio de Rubem Valentim: a luta “contra o colonialismo cultural”
Surpreende na coletânea de 1988 de Emanoel Araújo o pequeno e contundente Manifesto Tardio que veio justamente da pena de Rubem Valentim, uma das exceções destacadas por Aracy Amaral, como um dos poucos representantes de uma arte negra. Esse manifesto de 1976 é adjetivado como sendo “tardio” por seu autor e de fato o é, se pensarmos na longa história da produção artística negra no país. Não podemos esquecer que o tempo, quando estamos no campo dos traumas, é o tempo do “tarde demais”, do despertar “atrasado”, après coup. Mas ele também se adianta em muitos aspectos à virada étnica que viria a acontecer apenas após 1988, com a nova constituição pós-ditadura e com suas cláusulas de reconhecimento das culturas indígena e quilombola, incluindo o direito à demarcação de suas terras. Cláusulas estas, é sempre importante destacar, conquistadas por conta de muita luta por parte dos indígenas e dos movimentos negros. Valentim abre seu manifesto afirmando:
Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade; criando os meus signos-símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico, provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim (1988, 294).
Em diálogo com os concretistas paulistas, seus contemporâneos, Valentim busca fazer dessa linguagem a referida ponte entre o mundo da africanidade recalcado e o seu presente. Ele vê no seu projeto uma luta política: “A arte é tanto uma arma poética para lutar contra a violência, como um exercício de liberdade contra as forças repressivas: o verdadeiro criador é um ser que vive dialeticamente entre a repressão e a liberdade.” (Id., 1988) Essas palavras, escritas em meio à repressão da ditadura militar, e sob o signo da luta “contra o colonialismo cultural” (Id., 1988), voltam a ecoar nas lutas que se organizam hoje, em 2020, quando esse campo da resistência negra, armada pelas artes e que se desenvolveu nos últimos 20 anos, está sendo novamente assediado por poderosas forças aniquiladoras. Note-se de passagem que o fato dessas palavras de Valentim não serem mais reproduzidas e recordadas é um sintoma de que essas forças aniquiladoras estão vencendo a batalha.
Por fim, não posso deixar de destacar no catálogo de Araújo de 1988 o capítulo da fotógrafa e crítica de arte Stefania Bril sobre o Olhar Fotográfico em preto e branco, que retoma o trabalho de fotógrafos como José Medeiros (1921-1990), Januário Garcia (1943), e Walter Firmo (1937). Esses fotógrafos também dão prova de uma nova arte negra feita por artistas negros e voltada para redesenhar as geopolíticas, permitindo se imaginar outras constelações de vida em comum. Os artistas negros destacados por Aracy Amaral e esses fotógrafos levantados por Stefania Bril são a prova de que ao longo do século 20 foi se constituindo uma arte negra feita por negros no Brasil voltada para uma política da negritude, que emanciparam os artistas afrodescendentes dos modelos acadêmicos e também libertaram o corpo negro do papel de objetos de representação.
Abdias Nascimento
Um autor-chave nesse processo foi Abdias Nascimento. Em 1944 ele criou o Teatro Experimental do Negro, que marcou gerações de artistas, produziu uma importante obra como artista plástico e foi um dos primeiros a formular de modo claro a importância de uma resistência negra, contra a necropolítica, por meio da arte. Seu livro O genocídio negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado foi publicado em 1976 em inglês, próximo, portanto, do manifesto de Rubem Valentim. Como ocorre com este último, também Nascimento reconhece seu “lugar de fala” como constituinte de seu saber, como se passara também em Frantz Fanon no seu primeiro e revolucionário livro, Pele negra, máscaras brancas. Escreve Abdias Nascimento:
Quanto a mim, considero-me parte da matéria investigada. Somente da minha própria experiência e situação no grupo étnico-cultural a que pertenço, interagindo no contexto global da sociedade brasileira, é que eu posso surpreender a realidade que condiciona o meu ser e o define. Situação que me envolve qual um cinturão histórico de onde não posso escapar conscientemente sem praticar a mentira, a traição, ou a distorção da minha personalidade. (Nascimento 2016, p. 47)
Esse passo fundamental permitiu a ele repaginar a história do Brasil do ponto de vista do “genocídio”, um termo criado por Rafael Lemkin em 1944 no contexto das descobertas do que se passava com a população judaica na Europa nazista, mas que aos poucos foi empregado para outros assassinatos em massa de etnias, como a dos armênios durante a Primeira Guerra Mundial. O livro de Nascimento se abre com duas definições de genocídio extraídas de dicionários, um em inglês, outro em português. Ele, no capítulo “O embranquecimento cultural: outra estratégia de genocídio”, analisou criticamente o mito da “democracia racial” no Brasil destacando o compromisso entre racismo e capitalismo: “A palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação, aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície teórica permanece intocada a crença na inferioridade do africano e seus descendentes.” (2016, p.111)[5] Nessa mesma linha de pensamento, ele recorda a criação dos museus etnográficos ao longo do século 19 como parte do projeto colonial: “Essas instituições se mancomunaram aos cientistas, teóricos de toda espécie, e scholars na manipulação cabalística de teoremas baseados no suposto exoticismo e pitoresquismo dos povos selvagens, primitivos e inferiores que habitavam a África.” (2016, p.197) As ciências e dentre elas também a etnologia colonial, como afirmei acima, e os museus andaram inicialmente de mãos dadas com o projeto colonial genocida. Abdias do Nascimento nos anos 1970 denunciava ainda a estratégia de controle da população negra por meio da “redução da cultura africana à condição de vazio folclore” (a acima mencionada “cultura popular”), o que revelaria ao mesmo tempo desprezo e avareza, pois do estereótipo passa-se à comercialização das peças de cultura desinvestidas de força vital e fossilizadas, prática que descreveu corretamente como sendo de etnocídio. Daí o passo seguinte que foi dado já no final do século 20, como vimos, no sentido de se criticar a própria ideologia e máquina biopolítica da estética.
Apesar de não utilizar o conceito psicanalítico de Unheimlich (o estranho, familiar e não-familiar ao mesmo tempo), Abdias do Nascimento percebe a necessidade de se tratar desse conceito psíquico e utiliza termos que traduzem esse conceito freudiano para tratar da situação do negro: “O negro e sua cultura sempre tinham sido mantidos como estranhos dentro da sociedade brasileira vigente, cujo único propósito, como o do próprio [Waldir Freitas] Oliveira, é que as populações afro-brasileiras desapareçam, sem deixar rastro, do mapa demográfico do país.” (2016, p.115; eu grifo) Ele cita também o verbete “negro” de um dicionário inglês – português de A. Houaiss e C. Avery de 1967: “negro, -gra (negru, -gra). I. a., black (also fig.); dark; (anthropol.) Negro; somber, gloomy, funeral; shadowy, tenebrous; sinister, threatening; cloudy, obscure, stormy; ominous, [eu grifo] portentous; horrible, frightening; adverse, hostile; wretched, odious, detestable.” (Houaiss e Avery apud Nascimento, 2016, p.55). O “negro” surge como o protoelemento recalcado da cultura colonial moderna, que ainda é a nossa cultura. Como “horrible” ele representa o oposto do corpo clássico a que as belas-artes classicizantes se dedicam em dar forma. Mais adiante reencontraremos esse tema.
Seu livro também trata especificamente da arte negra brasileira. Em uma passagem cheia de significado, lemos:
Na concepção de meu colega Olabiyi Babalola Yai, da Universidade de Ifé, o candomblé, cuja mensagem no Brasil é essencialmente a mesma, como na África, significa: “Uma religião na qual nem o inferno nem o diabo têm lugar e que não aflige a vida do homem com um pecado original do qual se deve purificar, mas que convida o homem a sobrepujar suas imperfeições graças ao seu esforço, aos esforços da comunidade dos orixás.” Constituindo a fonte e a principal trincheira da resistência cultural do africano, bem como o ventre gerador da arte afro-brasileira,[6] o candomblé teve que procurar refúgio em lugares ocultos, de difícil acesso, a fim de suavizar sua longa história de sofrimentos às mãos da polícia (2016, p. 125).
Ele também já formulava palavras de ordem fortes com relação ao tema da arte negra roubada por instituições policiais e mantidas também em instituições de psiquiatria, história e etnografia. Sua ideia era a de criar um Museu de Arte Negra para valorizar a cultura afro-brasileira. (2016, p. 173) No capítulo “Arte Afro-Brasileira: Um espírito Libertador” ele pensa essa arte a partir do genocídio de africanos nas três Américas, rompendo, portanto, com as fronteiras nacionais e com a narrativa tradicional da formação da arte brasileira que reservava à arte afro-brasileira apenas um papel secundário de fonte de influência.
É verdade que Abdias algumas vezes (2016, p. 197) mostra estar ainda vinculado a um projeto de valorização estética da produção artística afro, não percebendo o colapso dessa tradição estética, o compromisso entre o estético e o colonial, e que na verdade é a arte estetizada que está se dirigindo ao leito da arte afro, LGBTQIA+, feminista etc., produzida por artistas agentes autoconscientes, que não “representam” mais mundos externos, pacificados, com geografias sempre vistas a partir de instrumentos eurocêntricos, a começar pela técnica da perspectiva e passando pelos gêneros clássicos que dominaram a história da arte do século 15 ao 19. Antes, esses novos agentes produzem uma arte que rompe com a divisão entre o sujeito e seu objeto, gerando uma fusão, como afirmei no início, um “subjeto”, com o perdão do neologismo. Mas Abdias também procurou romper com a “definição elitista de ‘belas-artes’ que envolve exclusivamente a arte branco-ocidental” (2016, p. 201) no que ele tinha razão, pois se tratava e se trata de “desoutrizar” as artes e culturas tendencialmente “outrificadas” pelo Ocidente (Ndikung 2019; Seligmann-Silva 2019). Romper com essa definição elitista de belas-artes significa desmascarar a cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial.
Portanto, suas palavras são extremamente válidas ainda hoje no contexto dos movimentos artísticos negros contemporâneos, não só no Brasil. Sua concepção, como a de Rubem Valentim, é da arte como parte de uma técnica de luta. Indo mais longe, ele formula uma arte negra da diáspora:
Pois a arte africana é precisamente a prática da libertação negra – reflexão e ação/ação e reflexão – em todos os níveis e instantes da existência humana. […] A arte dos povos negros na diáspora objetifica o mundo que os rodeia, fornecendo-lhes uma imagem crítica desse mundo. E assim essa arte preenche uma necessidade de total relevância: a de criticamente historicizar as estruturas de dominação, violência e opressão, características da civilização ocidental-capitalista. Nossa arte negra é aquela comprometida na luta pela humanização da existência humana, pois assumimos com Paulo Freire ser esta “a grande tarefa humanística e histórica do oprimido – libertar-se a si mesmo e aos opressores” (2016, p. 203-204).
Não por acaso, no início da mencionada encenação da peça Black Brecht – E se Brecht fosse negro, lia-se em um estandarte com desenhos de obás e de formas geométricas inspiradas em um imaginário afro as letras garrafais: “RE-EXISTÊNCIA NEGRX”.
Essa luta é calcada também na desconstrução daquilo que Abdias denomina de “mito do ‘africano livre’” (2016, 79):
Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado, aqueles que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo satisfatória capacidade produtiva – eram atirados à rua, à sua própria sorte, qual lixo humano indesejável; estes eram chamados de “africanos livres.” (Id.)
Ou seja, essa libertação era um gesto genocida, a última etapa no processo: e o mesmo o foi a chamada abolição ou Lei Áurea de 1888: “Não passou de um assassinato em massa, ou seja, a multiplicação do crime, em menor escala, dos ‘africanos livres.’” (Id.) As artes afro-brasileiras aos poucos se entenderam como esse espaço de luta pela efetiva liberdade, revertendo esse gesto genocida cujas consequências se desdobram mais de cem anos depois daquele teatro da libertação sintomaticamente aclamado ainda hoje por nossos políticos bandeirantes, a saber, a edição da Lei Áurea.
Musa Michelle Mattiuzzi: Habitar as ruínas da colonialidade
Impossível apresentar aqui outras tentativas de se construir a narrativa acerca da história da arte negra no Brasil. Em termos de conceituação, nenhuma no século 20 foi tão radical quanto as formulações de Abdias Nascimento, ainda que algumas vezes seu trato do tema caia para uma espécie de hagiografia condescendente de artistas. Menciono apenas mais duas obras.
O historiador da arte Roberto Conduru tem um livro de caráter introdutório voltado para a escola, mas nem por isso menos interessante e cheio de informações, o seu Arte afro-brasileira, de 2007. Ele não se limita a artistas afrodescendentes e tampouco se alinha a uma leitura decolonial da questão, contentando-se em fazer uma história da arte mais escolar. Já o livro de 2013 de Kimberly L. Cleveland, Black art in Brazil. Expressions of Identity, apesar de não romper com a tradição brasileira, que tem sua origem na ideologia da “democracia racial”, de tratar sob o conceito de arte negra e afro-brasileira artistas que não são afrodescendentes, discute com muita ponderação esse tema trazendo o enorme aporte dessa discussão nos Estados Unidos. Sua obra é uma importante contribuição e deveria ser traduzida no Brasil para poder enriquecer o debate sobre esse tema. A autora trata explicitamente em capítulos das obras dos seguintes artistas: Abdias Nascimento, Ronaldo Rego, Eustáquio Neves, Ayrson Heráclito e Rosana Paulino.
Por sua vez, o volume de textos críticos fruto da exposição ocorrida em São Paulo, em 2018, Histórias afro-atlânticas, nos capítulos introdutórios de Adriano Pedrosa, Heitor Martins, Amanda Carneiro e André Mesquita localizam a tarefa de repensar a arte brasileira a partir do prisma decolonial. Além disso, o catálogo contém textos de Achille Mbembe (p. 125-144) e a contribuição de Okwui Enwezor (p.145-158), que também nascem dentro do atual debate de reconstrução pós-colonial do campo estético. Mas nem todos os textos do catálogo seguem essa perspectiva, pois a intenção era mostrar também um panorama do debate sobre as histórias afro-atlânticas no Brasil. O antropólogo Kabengele Munanga, em Arte afro-brasileira: o que é afinal?, inclusive localiza a sua leitura da arte afro-brasileira na chave do belo, do “universal e necessário” (2018, p. 113, 120) e comemora o “trabalho pioneiro de Nina Rodrigues” na fundação da história da arte afro-brasileira (2018, p. 118). Ele se distancia da expressão “arte negra no Brasil” por desconfiar de existir aí um “certo biologismo” e defende que seria a partir de uma noção “mais ampla, não biologizada, não etnicizada e não politizada, que se pode operar para identificar a africanidade escondida numa obra” (2018, 122). Por que a africanidade se esconderia numa obra? Estamos a quilômetros, aqui, do manifesto de Rubem Valentim e da postura combatente e abertamente política também defendida por Abdias Nascimento. Nessa linhagem desses dois autores, o pequeno texto da artista performática Musa Michelle Mattiuzzi, ao final do catálogo, tem um caráter quase de manifesto decolonial. Ela escreve:
Na história contada pela branquitude – que ainda hoje apresenta facetas de um Brasil colonial – a noção compulsória sobre o “outro” é o que qualifico de mirada folclórica branca sobre aspectos da estética negra e indígena. É um olhar e uma prática construídos a partir do uso de signos que engendram a necropolítica como possibilidade de inclusão e de representatividade, em um jogo perverso da linguagem branca de captura e visibilidade. Penso isso quando investigo as narrativas que fazem parte desse imaginário supremacista. Penso isso de Tarsila do Amaral (1886-1973), artista que pintou a obra A negra que, se analisada friamente, é de cunho racista, embora tenha conseguido fazer-se creditada por uma falsa narrativa de que a representatividade importa e tenha sustentado durante muito tempo o mito da diversidade racial e cultural desse país. Há uma tecnologia política dos colonos herdeiros de criar soterramentos. […] A “arte” destas terras que nunca deixaram de ser colônia, uma “arte” instituída aqui com o violento processo de inserção na modernidade ocidental. “Arte” como o meio privilegiado por onde circulam as ideias escritas e a criação visual realizadas por colonos herdeiros, estes que fazem parte de uma classe social abastada, que operam os signos na onda de apropriação e tratam as suas ideias como universais. Na representação do discurso de que somos todos iguais eles nos expropriam. Vejo a etnografia como parte e como exemplo de agenciamento do poder dessas elites aplicado por meio de um método científico. […] Se não vamos mudar nada, que ao menos possamos habitar as ruínas da colonialidade e sobreviver de alguns encontros. […] Escurecer com o meu negrume. […] Saber habitar e reviver as ruínas dessa pluralidade afro-atlântica (2018, 607-609).
Podemos pensar nessas palavras finais do texto de Mattiuzzi como um acompanhamento e trilha epistêmica das obras de afrodescendentes que têm sido feitas nos últimos 20 anos no âmbito afro-atlântico, brasileiro ou não. Sua coragem de desconstruir a famosa obra de Tarsila é um gesto que felizmente encontramos em outras artistas. Na arte deste século no Brasil, artistas e agentes do mundo das artes estão se dando cada vez mais conta da relação entre modernidade, modernismo e colonialismo. O “cubo branco” modernista é uma prisão higienista que corresponde ao modelo da propalada “autonomia” das artes. Lembro aqui apenas dos trabalhos das artistas Clara Ianni e Lais Myhrra, que tem mostrado a violência do projeto modernista brasileiro em algumas de suas obras dos últimos anos: O instante interminável (2015) e Projeto Gameleira, 1971 (2014), de Myhrra e Forma livre (2013) e Do figurativismo ao abstracionismo (2017), de Ianni. Que fique claro, essas duas artistas não fazem parte da produção de arte afrodescendente, mas suas obras incidem criticamente sobre o dispositivo colonial. A virada política decolonial não está de modo algum restrita a artistas afrodescendentes.
Artistas afrodescendentes decoloniais
A referida exposição que ocorreu no MASP e no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo em 2018, Histórias Afro-Atlânticas, com curadoria de Adriano Pedrosa, Ayrson Heráclito, Hélio Menezes, Lilia Schwarcz e Tomás Toledo, foi uma das mais importantes sobre o tema da negritude já feitas no Brasil, mas é importante ver como ela faz parte de um percurso que pode ser traçado desde a exposição A mão afro-brasileira, de 1988, passando por muitas outras também essenciais. Inspirado no levantamento feito por Hélio Menezes para seu texto no catálogo de Histórias Afro-Atlânticas eu destaco as seguintes exposições: Incorporações – Arte afro-brasileira contemporânea (2011/2012), no International Arts Festival Europalia, Bruxelas, curadoria de Roberto Conduru; Afro como ascendência, arte como procedência (2013-2014), no Sesc Pinheiros, São Paulo, com curadoria de Alexandre Araújo Bispo; Histórias Mestiças (2014), no Instituto Tomie Ohtake, com curadoria de Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz; Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca (2015-2016), na Pinacoteca de São Paulo, com curadoria de Tadeu Chiarelli; A cor do Brasil (2016-2017), no Museu de Arte do Rio, com curadoria de Paulo Herkenhoff e Marcelo Campos; Diálogos ausentes (2016-2017), no Instituto Itaú Cultural, São Paulo, com curadoria de Rosana Paulino e Diane Lima; Agora somos todxs Negrxs? (2017), no Galpão VideoBrasil, com curadoria de Daniel Lima; PretAtitude (2018), no Sesc Ribeirão Preto, com curadoria de Claudinei Roberto (Menezes 2018, p.591-592); e acrescento a exposição mais recente de Rosana Paulino, A costura da memória (2018-2019), ocorrida na Pinacoteca de São Paulo, com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery. Também incluiria nesse hall de exposições as Bienais Videobrasil, com curadoria de Solange Farkas, e a exposição A empresa colonial (2015-2016). Farkas é curadora geral do Festival de Arte Contemporânea Videobrasil que acontece desde 1983. Sua perspectiva voltada para o eixo sul-sul tem participado de modo muito importante na afirmação de uma arte mais comprometida com os temas da decolonialidade. Em 2000 ela foi curadora, ao lado do crítico sul-africano Clive Kellner, da exposição Mostra Africana de arte contemporânea, que ocorreu no Sesc Pompeia, em São Paulo. A exposição A empresa colonial, ocorrida na Caixa Cultural São Paulo, com curadoria de Tomás Toledo, apesar de não ser uma exposição com proposta curatorial étnica, tratou com muita propriedade do tema da continuidade do poder colonial no Brasil contemporâneo.
Jaime Lauriano, um dos mais importantes artistas negros no Brasil hoje, emprega em uma de suas obras dessa última exposição uma “pemba branca”, giz utilizado em rituais de umbanda, sobre “algodão preto”. Com esse material, Lauriano retraçou o mapa do Brasil, essa linha política, como parte de uma política do corpo e de autoafirmação. Usurpando o poder de traçamento dos agentes cartógrafos a serviço do poder, ele inscreve com pemba branca limites ressignificados: o branco da pemba vira agente de inscrição das populações historicamente oprimidas. Seu título estampa em tom irônico: República (democracia racial) (2015). E, tensionando a imagem com um texto, Lauriano inscreve ao pé do mapa do Brasil uma estrofe do “Hino à Proclamação da República”, um verdadeiro monumento ao esquecimento, já que suas palavras (de autoria de Medeiros de Albuquerque) perpetram: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País…/ Hoje o rubro lampejo da aurora/ Acha irmãos, não tiranos hostis”. Esse texto foi escrito em 1889, apenas um ano, portanto, após a “abolição” oficial do sistema de escravidão. A abolição revela-se, como lemos com Abdias Nascimento (2016), um modo de aniquilamento, de morte e de política do esquecimento. Lauriano tem outras importantes obras feitas com pemba sobre fundo negro que traçam os contornos do mapa do Brasil para repensar esses limites do ponto de vista decolonial. Recordo aqui seu impressionante Invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural, de 2017, que esteve na mencionada exposição Agora somos todxs Negrxs?
O que corre nessas exposições, curadorias e com essa multiplicação de artistas negrxs? Antes de mais nada, a ruptura da cumplicidade entre o dispositivo estético e o colonial. Não se pode mais falar de modo inocente de “democracia racial” ou comemorar nossa cultura “sincrética” e a “miscigenação” sem perceber o trauma que está na origem dessa hibridização. Com as mudanças profundas ocorridas no campo das artes nas últimas décadas do século XX ocorreu uma ascensão, como vimos, do sujeito, do agente da arte, que antes estava em parte submetido ainda ao campo da representação. Uma série de artistas afrodescendentes, quase todos formados em artes visuais, e coletivos artísticos passaram a interagir na cena cultural brasileira desse ponto de vista da virada decolonial. Eles vão imaginar a negritude nos espaços da diáspora. Imaginar no sentido de criar imagens, mas também de criar um campo de ação lúdico e político.[7] Com a entronização do sujeito e o deslocamento do campo estético em direção à política e micropolíticas, essa repolitização da arte implicou novas costuras da memória, para jogar com o título da exposição de Rosana Paulino na Pinacoteca. O elemento testemunhal se torna central. Ao mesmo tempo, no Brasil ocorre na primeira década deste século um aumento do apoio às artes, com mais prêmios, bolsas e opções de espaços expositivos, fruto de uma expansão econômica acompanhada de uma democratização que se refletiu também nas Universidades e na cultura como um todo. Esse movimento começou a oscilar de volta em direção à crise econômica e política a partir de 2013. Mas nem por isso as exposições deixaram de ocorrer: o campo estético já estava por demais ocupado por essas novas políticas e modos de imaginar e costurar a memória. O programa do atual governo (2020) visa, via censura e cortes profundos no investimento na área cultural, asfixiar esse boom de arte crítica no qual a arte negra se inseriu. Teremos que acompanhar que tipo de efeito essas políticas de opressão vão ter.
Para finalizar esse painel reflexivo sobre a arte negra contemporânea no Brasil me deterei na produção de duas artistas, mesmo que de modo breve, para indicar a força dessa produção.
Rosana Paulino: anarquivando o arquivo da colonialidade
Rosana Paulino é reconhecida como uma pioneira na nova arte negra brasileira. Sua obra Parede da memória, de 1994, é uma referência dentro dessa produção. Essa obra é composta por 11 fotografias de sua família que se repetem atingindo diferentes números, chegando a atingir 1500 dessas fotos, que são impressas sobre tecido em tamanho de cerca de 8x8x3cm cada, formando patuás, ou seja, um elemento da religiosidade afro que tem um valor de amuleto no candomblé. Cada patuá leva cores específicas, associadas a Orixás que irão então proteger aquele que porta o talismã. Lembremos do que Abdias Nascimento escreveu sobre o candomblé como “o ventre gerador da arte afro-brasileira”. É importante pensar que a própria Rosana Paulino narra a sua carreira a partir dessa obra emblemática que esteve também presente na sua recente exposição na Pinacoteca de São Paulo de 2018-2019.
Parede da memória, na sua apresentação aparentemente simples, sintetiza na verdade o encontro de vários gestos: o fotográfico, o da costura, o da rememoração tanto da família como de uma origem afro. A obra também alude aos universos da religiosidade, do jogo (jogo de memória) e da montagem, já que se trata de um arranjo que está sempre em movimento, sendo remontado, sem nunca deixar de ser a Parede da Memória. Essa parede com uma série de patuás, não deixa de ser uma versão contemporânea afro dos loci memoriai, os lugares de memória da mnemotécnica. Nessa tradição une-se a memoria rerum, memória das coisas, com a memoria verborum, memória das palavras. Os imagnines agentes, ou seja, agentes da memória, são colocados em certos locais para se narrar imageticamente histórias (Yates 1966). Existe um movimento nessa obra de Paulino de apropriação de elementos da memória, de uma memória próxima, familiar, mas também distante, associada a uma ruptura, a uma deriva, de um saber e de um modo de estar no mundo o qual, de certa forma, a artista reconhece como seu. Como nas palavras de Musa Michelle Mattiuzzi, Rosana Paulino parece de fato “habitar as ruínas da colonialidade”, ela se apresenta como alguém que sabe “habitar e reviver as ruínas dessa pluralidade afro-atlântica”.
A fotografia se tornou uma metáfora fundamental na arte contemporânea e no Brasil tem estado na base da produção de artistas que lidam com a memória e, mais ainda com o esquecimento. Recordo Hélio Oiticica, com seu Bólide Caixa 18 “Homenagem a Cara e Cavalo, de 1966 ou o seu famoso seja herói, seja marginal de 1968.[8] A fotografia, sobretudo a analógica, tem um momento de “impressão” (vale lembrar que Rosana Paulino é bacharel e especialista em gravura; Lopes 2018, p. 171). A fotografia reatualiza outras metáforas da memória, como a escritura, metáfora também fundamental na referida tradição da arte da memória com sua ideia de inscrições mnemônicas. Afinal, a fotografia é literalmente uma escrita de luz. Mas ela também remete à concepção psicanalítica de nossa memória como camadas, umas mais outras menos conscientes. A inscrição do trauma também já foi comparada ao flash fotográfico. A fotografia enquanto retrato tem também um elemento corpóreo e fantasmático: o retrato fotográfico literaliza ambiguamente o aparecer e o desaparecer, a presença e a ausência, o desejo de ver e o evanescer da imagem. Paulino se torna também nessa sua obra/jogo quem dá as cartas na cena da apresentação dos corpos negros. Como Eustáquio Neves e seus retratos, ela afirma-se como agente de suas imagens e não mais como objeto representado e sem fala própria. A obra consegue ser ao mesmo tempo extremamente contemporânea e citar passados mais ou menos próximos. Ela é um buraco no tempo, cria uma metaespacialidade e outros cronotopoi. A fotografia é tratada como fragmento, escombro, sobrevivência de um naufrágio e é em torno de fotografias apropriadas, suas cópias, recortes e inversões, que boa parte da obra de Paulino se constrói. Isso sem, no entanto, romancear alguma origem perdida, ou estabelecer alguma ontologia identitária. Antes, a reprodução técnica das fotografias desconstrói qualquer visada essencialista. Trata-se de abrir espaço para se imaginar origens e narrativas alternativas às construídas pelos discursos coloniais.
Na sua série de 1997 de Bastidores, ela costura os olhos, a garganta, a boca e a fronte de retratos fotográficos de mulheres negras colecionadas por ela nos álbuns de sua família. Como em muitas obras da mencionada Rosangela Rennó, essas fotografias são precarizadas, para indicar apagamentos, perdas, subtrações, mas também para indicar que essas mulheres são ao mesmo tempo um indivíduo singular e todas aquelas que se identificam com elas. O ato da artista é sempre duplo: ao costurar a boca e o pescoço ela se assume como agente da fala, descosturando a sua boca e a de quem admira o seu trabalho. Ao costurar os olhos ela se institui como agente na construção das imagens e do imaginário contracolonial, descosturando os seus olhos e os dos que veem sua obra. Ao costurar a fronte ela se assume como agente pensante e não como objeto pensado, dissecado pela ciência e esmagado pelo trabalho servil, descosturando o seu cérebro e do seu espectador. Em uma palavra, ela afirma: sou dona do meu corpo, a mulher negra manda em seu corpo, isso em uma sociedade ainda colonial, falocêntrica e racista que oprime tanto corpos negros como femininos ou que não correspondam ao padrão cisgênero. Ao denominar sua obra Bastidores ela joga com o significado múltiplo do termo: por um lado, ela explicita os bastidores dessa sociedade com seu gesto de costurar nos rostos desses retratos. Mas, bastidor remete aqui também ao suporte da tecelagem que é onde essas fotografias foram impressas. Ao invés de costurar “comportadamente” e fazer as suas tecelagens cumprindo o papel “feminino” que a sociedade impõe às mulheres, Paulino desloca o bastidor, rompe com seu papel de instrumento de controle de gênero e transforma-o em dispositivo de sua arte eminentemente política.
Mais recentemente a artista tem trabalhado com a costura de fragmentos de tecido, que chamarei de “retalhos” para enfatizar o seu elemento de fragmentação e de precarização, nos quais se vê impressas algumas das fotografias e gravuras mais icônicas realizadas por fotógrafos e artistas, na sua maioria viajantes ou emigrados, feitas no Brasil no século 19. Em alguns desses “retalhos” estão impressas imagens de azulejos, representativos da arquitetura e da cidade colonial portuguesa (como ocorrem também em muitas obras de outra importante artista brasileira que tematiza a violência colonial, Adriana Varejão). A obra de Paulino Musa paradisíaca, de 2018, reproduz três vezes a mesma fotografia de Marc Ferrez (“o mais importante dos fotógrafos atuantes no Brasil no século 19”; Lago, 2001, p.14), conhecida como “Uma vendedora de banana” (Ermakoff 2004, p. 116), ao lado de reproduções de três representações “científicas” de temas da botânica, uma radiografia de uma bacia e um retalho branco com inscrições em letras maiúsculas em vermelho, de diferentes tamanhos, citando a conhecida marchinha de carnaval “YES, NÓS TEMOS BANANA”. Aqui vemos um traço irônico na obra de Paulino. Irônico, mas sarcástico também, com relação aos clichês que constituem a “brasilidade”. Ao costurar esses “retalhos”, cacos da história montados pela artista, novamente ela descostura as estruturas do imaginário colonial realizando o que eu gostaria de chamar de um anarquivamento do arquivo colonial. As fotografias e imagens coloniais dos negros os enquadram em um imaginário que busca reproduzir a opressão. Essas imagens são imagens encobridoras, Deckerinnerungen, nos termos de Freud. Essa mulher anônima fotografada por Marc Ferrez em torno de 1885 também foi enquadrada por ele em uma moldura dupla, ao lado de outra negra vestida como “baiana”. Estamos, portanto, da baiana à “mulata do samba”, em pleno nascedouro de uma poderosa construção da imagem da mulher brasileira negra, de seu corpo e de seu comportamento. Esse clichê (fotográfico e de papel social) vai aos ares com a montagem costurada por Paulino.
Outra obra com recursos semelhantes é A ciência é luz da verdade 3?, de 2016. Ela é composta por três “retalhos” costurados um ao lado do outro. Os dois da ponta reproduzem com as mesmas letras vermelhas da obra anteriormente comentada a frase que dá título a esta obra: A ciência é luz da verdade? No centro vemos uma fotomontagem que sobrepõe a uma imagem de azulejo duas caveiras, uma acima da outra. O tema da ciência é recorrente na obra de Paulino e remete em grande parte às doutrinas eugenistas (defendidas por Nina Rodrigues, assim como por alguns dos fotógrafos e artistas que circularam no Brasil no século 19). Assim, sua obra Atlântico vermelho, de 2017, monta 11 pedaços de tecido, sendo que no do canto superior esquerdo temos uma das famosas fotografias antropométricas realizadas por August Stahl.
Stahl foi um fotógrafo de origem alemã que chegou a Recife em 1853, tendo se instalado a partir de 1870 no Rio de Janeiro. Em 1865 chegou ao Brasil a Expedição Thayer, financiada por um milionário norte-americano Nathaniel Thayer, e que tinha por função fazer fotografia de negros, indígenas e asiáticos tendo em vista alimentar as pesquisas do professor suíço naturalizado norte-americano Louis Agassiz. Posteriormente Agassiz fará referência a esse trabalho fotográfico de Stahl em seu livro onde apresenta a sua visão antropométrica das raças humanas e que deveria revelar como falsa a teoria de Darwin sobre a origem das espécies, mas sem imprimir no livro as fotografias feitas por Stahl. Esse livro, redigido junto com a sua esposa, se chamava Permanence of characteristics in Different Human Species. Segundo nos conta Sérgio Burgi em sua apresentação das fotografias de Stahl, como Agassiz havia solicitado as fotos a Stahl no ano da abolição da escravidão nos Estados Unidos, essas imagens depois não puderam ser aproveitadas, pois depois da Guerra Civil Americana “não permitiram mais especulações antropométricas que tivessem um caráter discricionário, como mostram as imagens comparativas encontradas nos álbuns [com as fotografias de Stahl], provavelmente inseridas por Agassiz, comparando a estatuária greco-romana clássica com os retratos produzidos por Stahl, para fins de comparações de raças.” (Lago 2001, p. 11) D. Pedro II, o imperador do Brasil então, apoiou com entusiasmo essa expedição de Agassiz.
Voltando ao Atlântico vermelho de Paulino, além da mencionada foto de Stahl para Agassiz, com um negro de perfil nu, vemos nessa obra também uma fotografia de João Gaston (um fotógrafo da Bahia), Negra posando em estúdio, de 1870 (Ermakoff, 2004, p. 158), que apresenta uma negra com um barril na cabeça. E ainda temos três azulejos impressos em tecido, um deles com o título da obra inscrito em vermelho, um “retalho” com a imagem de um fêmur humano, dois com imagens de embarcações que lembram caravelas e um último com escravizados trabalhando no canavial. As fotografias de Gaston são reveladas uma de modo padrão, positivo, outra com a luminosidade de um negativo, invertendo os preto e branco, o mesmo ocorrendo com as imagens das “caravelas”. Os rostos de uma das fotos da negra com um barril na cabeça e a da mulher na imagem na plantação de cana de açúcar estão vazados.
Esse procedimento de retirar os rostos das imagens apropriadas acontece em outros de seus trabalhos a partir do relativamente vasto acervo da fotografia de escravizados e “negros libertos” do século 19. Isso acontece com a fotografia, também de August Stahl, Mina Ondo, de 1885 (Ermakoff 2004, p. 240), parte central da prancha As gentes, do livro-obra ¿História natural?, 2016. Nessa mesma prancha, Paulino reproduz flanqueando a Mina Ondo a imagem famosa do indígena Muxuruna do volume de 1823, Reise in Brasilien, de Johann Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius. O indígena também está sem rosto. O mesmo acontece na série Paraíso tropical, de 2017, com fotografias de Marc Ferrez, com a mesma vendedora de bananas que vimos acima; ocorre ainda com uma foto de Albert Henschel, de 1870, de uma “negra posando em ateliê” (Ermakoff 2004, p. 117) e com outra de August Stahl de Mina Bari, de 1865, de uma mãe com o filho às costas (Ermakoff 2004, p. 233), entre outras. Em Paraíso tropical essas imagens são associadas a caveiras e imagens de tipo representação botânica “científica” dos viajantes. Esses rostos ausentes podem ser lidos tanto como uma metáfora do vazio, como o faz Juliana Ribeiro da Silva Bevilaqua no catálogo da exposição na Pinacoteca de 2018, como também podem remeter ao processo de desumanização pelo qual essas pessoas fotografadas passaram, do qual fez parte e foi cúmplice o próprio dispositivo fotográfico. Esse dispositivo estava aliado aos dispositivos colonial e ao estético. A fotografia sempre esteve, como qualquer aparelho técnico, eivada de ambiguidades; serviu à arte, à memória, mas também aos órgãos de polícia, aos projetos de eugenia e de genocídio, como na Alemanha nazista, no Camboja de Pol Pot e nos cárceres das ditaduras latino-americanas, como nas conhecidas fotografias da ESMA, em Buenos Aires. Paulino explora essa ambiguidade da fotografia, como, por exemplo, Harun Farocki o fez em muitas de suas obras, apontando a cumplicidade entre fotografia e guerra, destruição. Assim, como lemos no catálogo sobre as fotografias antropométricas de Stahl, essas imagens foram colocadas pelo cientista Agassiz em um álbum ao lado de representações da beleza clássica. Os rostos deveriam ser confrontados, para provar a suposta superioridade de uma raça sobre as demais. Estamos em plena cena não só de eugenia, mas de genocídio, como o formulou Abdias Nascimento.
Essa ausência de rosto significa também o tornar-se anônimo dessas pessoas objetificadas por um trabalho que as matava e por uma fotografia que as reduzia a peças de um teatro macabro da ciência. O rosto, para o filósofo Lèvinas, vale lembrar, é a nossa parte mais exposta e mais frágil e também a portadora do nosso ser para o outro. “A epifania do rosto é ética”, ele escreveu. (1988, p. 178) E ainda: “O rosto onde se apresenta o Outro – absolutamente outro – não nega o Mesmo, não o violenta […]. Fica à medida de quem o acolhe, mantém-se terrestre. Essa apresentação é a não violência por excelência, porque em vez de ferir a minha liberdade, chama-a à responsabilidade e implanta-a.” (1988, p. 181) O trabalho escravo, a violência de ser reduzido a corpo-instrumento, corpo carregador de fardos, corpo torturado, corpo fotografado, destitui o indivíduo dessa outridade que institui a ética a partir da outridade absoluta do rosto. Ao retirar o rosto dessas mulheres ou do indígena, Paulino apaga o rosto para mostrar que esses grupos de pessoas tiveram seus rostos anulados. Ao invés do infinito que todo rosto guarda, eles eram reduzidos a fachadas de seres sem outridade e sem ipseidade. Paulino nos chama novamente à responsabilidade diante dos rostos na medida em que ela os apaga para os restituir.
A cena retratada em Atlântico vermelho é uma poderosa síntese das narrativas da arte afrodescendente contemporânea brasileira. Dessa obra pendem ainda fios vermelhos, que extravasam os “azulejos” e escorrem pela parede como sangue. Esses corpos sem rosto, mas que sangram remetem também à obra anterior de Paulino, em nanquim sobre papel, Autorretrato com máscara para comedores de terra, de 1997. Nela, uma mulher “posa” como as escravas fotografadas no século 19, portando essa máscara tão emblemática da violência colonial. Debret, entre outros artistas que passaram pelo Brasil naquele século, registrou imagens do emprego dessas máscaras. Comer terra era um meio de se suicidar, buscando a liberdade da escravidão na morte. O acima mencionado artista mineiro Paulo Nazareth, na sua série Para venda, realizou um autorretrato de perfil portando uma caveira bovina que faz às vezes de uma máscara para comedor de terra (2011). Nessa performance de Paulo Nazareth ele coloca a máscara para que consigamos finalmente ver aquilo que parece estar para além do visível e nos cega diante da violência que essas imagens friamente descritivas de Debret apresentam.
A série Assentamento, de 2013, de Paulino, retoma um dos grupos de fotografias de Stahl de 1865 para o projeto de Agassiz que se encontra hoje no Peabody Museum of Archeology and Ethnology de Harvard (em um bairro de Cambridge, aliás, que se chama Agassiz). (Ermakoff 2004, p. 252) As três fotografias, em tamanho natural, recuperando a sua dimensão humana, foram recortadas cada uma em cinco tiras e recosturadas de modo irregular. Na fotografia frontal da mulher nua, Paulino insere um coração pintado, como um órgão externo, do qual escorrem, novamente, fios vermelhos “de sangue”. Na fotografia de perfil, ela introduz uma gravura de um nenê no útero, mas, novamente, como algo externo, transparente. Na fotografia da mesma personagem, sempre nua, de costas, a artista não remenda a parte de baixo da fotografia, correspondente ao final da perna e aos pés, e em seu lugar costura um tecido que possui uma costura de veios que lembram raízes que se ramificam, como se a retratada estivesse criando raízes. Essas três fotografias constituem uma instalação da qual fazem parte também pedaços de lenha empilhadas, como se fossem para uma fogueira. Ao chão, do lado das duas “fogueiras”, dois pequenos monitores apresentam ondas em um oceano se quebrando na praia. É importante lembrar aqui também o duplo sentido do título da obra: assentamento, entre outras coisas, é o ato de se assentar azulejos ou ladrilhos, ato de construção, portanto, que remete ao corpo dos que constroem no Brasil desde o século 16 – que assentaram, entre outros, os azulejos aos quais algumas das obras de Paulino se referem. Por outro lado, assentamento pode ser também um local que recebe os sem-terra, categoria de muitos negros expelidos da força de trabalho no Brasil, herdeiros do fardo da “libertação” dos escravizados de 1888. No candomblé, por fim, assentamento é um conjunto de objetos colocados em um lugar específico para homenagear um Orixá. Nesse local assenta-se a força do Orixá. Podemos pensar como em Assentamento circulam esses significados. Essa obra, de modo explícito, trata dos traumas, das feridas abertas pela escravidão. Feridas que não se fecham. Trauma vem do grego e significa ferida. Não existe suturação possível para quatro séculos de regime escravocrata ou para a violência do tráfico de pessoas escravizadas. Paulino nos fala dessa violência, no entanto, não reproduzindo as famosas imagens de Rugendas e Debret que retrataram os gestos de tortura dos colonizadores e de seus algozes sobre os corpos negros, que povoam os livros didáticos no Brasil (produzindo uma associação que naturaliza a relação entre “corpo negro” e “corpo violentado”). Antes, ela opta pela costura inexata, por mostrar a fragilidade desse corpo de pessoas que foram objetificadas pela escravidão, pela fotografia, pela ciência e pelo voyeurismo.[9] As imagens dos “corpos escravizados” no século 19 colocam-nos apenas nesses dois lugares: do trabalho ou do sofrimento. Rosana Paulino opta por fazer um assentamento, um ritual de homenagem, de religadura, impossível, mas necessária, com o passado que não passa. Coração, útero e raízes não restituem a vida ou curam as feridas, mas servem para deslocar nosso modo de nos aproximar dessas imagens fantasmáticas do passado, permite iniciar um diálogo com os mortos, abre uma varanda sobre o oceano, contextualizando a escravidão no mundo afro-atlântico. Restituir raízes aos que foram cortados delas, dar-lhes descendência e vida, mesmo que uma sobrevida, é um trabalho delicado ao qual a arte de Paulino tem se dedicado de modo original e poderoso.
Aline Motta: reflexos de um (des)encontro
Estabelecer uma corrente de memória que ao mesmo tempo costure com sua nervura o território brasileiro na sua longa história de escravidão e nunca realizada libertação e, ao mesmo tempo, abra uma varanda sobre o oceano são partes de um mesmo projeto mais ou menos explícito dentro da produção da arte afrodescendente. No caso da artista niteroiense Aline Motta, por exemplo, com sua trilogia de videoinstalações, isso fica evidente. Suas obras Pontes sobre Abismos (2017), Se o mar tivesse varandas (2017) e (Outros) Fundamentos (2017-2019) apresentam, a partir de uma narrativa em off da autora, com imagens captadas em Serra Leoa, na Nigéria e em diversos locais de sua origem no Brasil, a história de uma busca por fragmentos de passado visando instituir um “assentamento” (para retomarmos a imagem de Paulino) no presente. Suas obras nascem a partir de um momento de ruptura, de quebra de um “segredo”, de uma camada de silêncio dura que manteve na penumbra a sua origem, ainda no século 19, na prática de um filho de aristocrata que violou a sua bisavó. Sua avó porta em sua certidão de nascimento apenas o nome de sua mãe e a qualificação de “filha natural”. A partir dessa descoberta, da violência recalcada, dessa origem negativa, a obra de Aline se desdobra como um enorme rio caudaloso que jorra, repleto também de fotografias de família que, em seus vídeos, navegam literalmente boiando pelas águas do oceano Atlântico e por rios do Brasil e da África. Nessas obras plenas de transparência, de água e de espelhos, de superfícies que (se) refletem para nós refletirmos, a artista busca os caminhos que podem religar os fios quebrados, de sua história de família e os que ligam, também, os continentes das duas margens do Atlântico sul.
No final de sua obra (Outros) Fundamentos assistimos a cenas na cidade de Lagos com pessoas sobre canoas e à beira do rio portando pequenos espelhos em suas mãos. A narradora fala: “Se pertencer é uma ficção, posso apontar um espelho para a Nigéria e ver o Brasil? O inverso também é possível? Para além do oceano, um aponta o dedo para o outro e pergunta: é você mesmo? Por que demorou tanto?”.
Palavras finais
Como no Manifesto Tardio, de Rubem Valentim, também Aline Motta pontua essa temporalidade do “demorar”, o après coup que, como vimos, não é nada mais do que a temporalidade do trauma, com o seu retardamento característico. O tempo do trauma é um tempo que nos atravessa, que faz com que o tráfico negreiro, a violência de quase quatro séculos de escravidão e as políticas eugenistas e genocidas contra os negros que existem até hoje sejam parte de um mesmo presente. Trata-se de um passado que não passa. A arte negra contemporânea brasileira, que procurei apresentar aqui a partir de seu difícil nascimento, que se ergueu contra tantos apagamentos, recalcamentos e tantas mortes e violência, essa arte de certa forma mora nesse “demorar” de que Aline nos fala. Habitar a demora implica sempre uma urgência de falar, de inscrever infinitas histórias não simbolizadas, não imaginadas, ainda não traduzidas em imagens. As obras de tantos artistas aqui mencionados e dos não mencionados são verdadeiras construções híbridas, marcadas pela montagem, pela costura, por serem coletas de cacos e escombros, por serem instalações, impressões gráficas ou fotográficas, performances e cenas teatrais. A força desses dispositivos artísticos consiste em serem trabalhos de memória que lançam e abrem diante de nós novos territórios, ajudam a erguer novas casas para habitarmos para além do desabrigo e do mal-estar. Esses dispositivos rompem como picaretas muros de esquecimento e de silenciamento forçado. Como afirmei na abertura deste texto, a impressionante força e originalidade da arte negra brasileira contemporânea também responde à terrível ascensão de neo-fascismos que repetem hoje seus desígnios genocidas.
A arte negra existe apenas em um devir, em um construir-se que é paralelo ao devir negro. Para ela existir, artistas, críticos e curadores precisaram desvencilhar-se de séculos de uma historiografia brancocêntrica que invisibiliza a arte negra. Curadores precisaram desvencilhar-se de sua cegueira colonial para perceber que a arte negra não é apenas um afluente da “arte brasileira”, mas constitui um campo cultural e simbólico que, pelo contrário, deve ser lido no contexto da diáspora negra, para além da máquina trituradora das diferenças do dispositivo da nacionalidade. Pensar em uma arte afro-brasileira só tem sentido se o termo “brasileira” servir para localizar o espaço da diáspora, o seu contexto, e não para impor limites nacionais no sentido da construção de uma ilusória grande “arte brasileira”. A arte negra transcende as fronteiras da colonialidade, ela explode o código usual da história da arte com suas histórias nacionais, lineares e ascendentes, pontuada por seus “grandes vultos”. Ao construir seus teatros de memória que possibilitam a imaginação de outros espaços de ação lúdica, essa arte negra aqui tratada nos instiga a repensar o próprio sentido da arte e de suas fronteiras.
Bibliografia