* Por Bernardo José de Souza
Fronteiras estabelecem limites entre um espaço e outro, ou entre algo e uma outra coisa. Ao demarcar territórios, elas se impõem como mapeamento arbitrário, divisando zonas de poder e controle sobre fluxos humanos, de informação e mercadorias. Fronteiras também sinalizam os limites entre o conhecido e o desconhecido, entre o que é possível e o que não é possível – ou entre o que nos é dado a ver e aquilo que resta invisível. Reais ou virtuais, também servem para marcar diferenças, forjar antinomias e estancar formas fluidas de conhecimento.
Alegórica em essência, a obra de Ayoung Kim (atualmente em exposição no Videobrasil Online) desloca-se no tempo e no espaço movida pelo espírito especulativo que faz borrar fronteiras geográficas e epistemológicas. Quando toma a ficção científica como plataforma política, a artista sul-coreana recupera passagens da história universal ao passo em que atualiza suas diversas mitologias em busca de uma linguagem comum, atemporal. Nesta toada, escavar o passado e prospectar formas anômalas no presente e no futuro constituem processos dinâmicos para o desenvolvimento das epopeias audiovisuais e performativas narradas pela artista.
Se as obras iniciais de Kim dão conta da investida neocolonial do Ocidente rumo ao Oriente no século 20, suas últimas avançam desde o futuro sobre o passado em marcha à ré, conformando uma paisagem ficcional onde utopia e distopia confundem-se ao ponto de tornarem-se uma coisa só; ao esfumar o horizonte histórico, a artista acaba por relativizar juízos categóricos quanto à natureza do avanço tecnológico. Sobretudo em suas obras mais recentes, as tecnologias passam a ser ferramentas tão naturalizadas pela humanidade a ponto de converterem-se em entidades vivas, investidas de seus próprios dilemas animistas, éticos e políticos, quer afetivos, quer morais.
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Acumulação Desigual de Tempos
Interessada nos processos de modernização que ganharam fôlego acelerado no pós-Guerra, os primeiros vídeos de Ayoung Kim investigam o impacto da cultura ocidental sobre as vidas e as cidades sul-coreanas. Em Every North Star Part 1 and 2 – Tales of a City (2010), confrontados com a cidade portuária de Busan, acompanhamos a trajetória decadente de uma estrela do turfe – Jin Hee Park, única mulher jóquei da Coreia do Sul até então – submetida às pressões de um esporte historicamente masculino, cuja perversa lógica competitiva reproduz as feições de um mundo globalizado a reboque da hegemonia cultural anglo-saxã, e do mercado capitalista de modo geral. Competitividade esta que também se revela no tríptico Please Return to Busan Port – Tales of a City 2, no qual a Olimpíada de Seul em 1988 é apresentada em reverse mode, com os atletas movendo-se em direção contrária ao pódio (e à vitória, portanto), enquanto noutra tela, simultaneamente, é possível observar um ciclista furtivamente escondendo drogas em sua bicicleta de corrida – uma alusão ao doping, mas possivelmente também ao contrabando que ali escoa através do mar. Ambas as obras são contos urbanos sobre sonhos perdidos num mundo de aparente prosperidade, muito embora fadado à arbitrariedade de sua herança neocolonial.
Situada na Ásia Oriental, a Coreia do Sul constitui uma democracia nos moldes ocidentais, em que pese o trauma de sua história recente marcada por governos autoritários e pela autofágica Guerra da Coreia (1950-1953), ainda hoje sem um ponto final, mas cujo desfecho objetivo, em meio ao contexto volátil da guerra fria, foi a secessão entre o norte e o sul da península orquestrado pelas forças soviéticas e norte-americanas. Já durante as últimas décadas do século 20, o país acabaria conhecido como um dos tigres asiáticos, convertendo-se numa das mais ricas e dinâmicas economias do mundo.
Valendo-se de uma passagem da biografia paterna – ele, funcionário de uma empresa coreana para prospecção de petróleo no Kuait –, em Zepheth – Whale Oil from the Hanging Gardens to You (2014), Ayoung Kim passa a explorar questões relacionadas à geopolítica, mas também à geologia e à ecologia em sentido amplo. Com esta obra, a artista propõe um outro arranjo midiático para suas narrativas, deixando o audiovisual momentaneamente num segundo plano para privilegiar a experimentação sonora, a musicalidade das vozes, a performance e o uso de algoritmos na composição dos textos. Na trilogia Zepheth (que em hebreu significa piche), são as imagens mentais que vão ganhar corpo; ora relatos burocráticos, ora passagens poéticas que versam sobre o petróleo e seus derivados, sobre o mar, os mergulhadores e as pérolas, sobre o deserto, o calor, a mudança da paisagem na estação das chuvas e os deslocamentos das tribos beduínas sobre a terra árida, dentre tantos outros arquétipos e iconografias ancestrais ou iminentemente atuais – ou mesmo ambas, a um só tempo.
Em meio à babilônia de relatos que se sobrepõem em Zepheth (vocalizados por um coro a ressoar a antiguidade grega), descortina-se um arco narrativo que alcança tempos tão remotos quanto os do Velho Testamento, e logo avança sobre a modernidade fazendo confluir um conjunto de histórias aparentemente disparatadas, mas que no fundo, e à rigor, respondem pela paisagem forçosamente sincrética com a qual convivemos na contemporaneidade. Da Arca de Noé revestida de betume às fontes de petróleo e suas labaredas, do óleo das baleias nos postes de luz ao ar-condicionado que ameniza as temperaturas do deserto, emerge um mundo globalizado no qual o espaço geográfico é tão resultado das formações geológicas, quanto das tecnologias desenvolvidas para transformar a natureza. Diante deste tumultuado panorama histórico, a presença nômade na paisagem desértica cede espaço à arquitetura intensiva das cidades e dos campos de petróleo no Golfo Pérsico e alhures – um abastecimento fóssil cujos dividendos retroalimentam os conflitos bélicos que só fazem “prosperar” entre as fronteiras territoriais do Oriente Médio, divisadas sob o signo do neocolonialismo europeu, contumaz em seu desprezo pela formação histórica, étnica e cultural dos povos nativos.
Esta acumulação desigual de tempos (Milton Santos) – essas camadas de história natural e humana sobrepostas no espaço físico, mas também no plano simbólico – talvez constitua a real operação semântica promovida por Ayoung Kim em seu ímpeto especulativo à contrapelo, quer da história, quer das formas assumidas pela memória. Ao justapor elementos inorgânicos, geologicamente consolidados há milhões de anos (a memória da pedra) aos vestígios narrativos compilados pela humanidade no curso de sua aventura sobre o planeta – seja por meio da oralidade, seja da palavra e da imagem gravadas analógica ou digitalmente –, a artista desborda as fronteiras do real, abre uma brecha no espaço-tempo e ingressa no reino da ficção, ou da virtualidade.
Porosity Valley (2017) vem justamente amalgamar diversos estratos de informação que se encontram dispersos nos âmbitos da natureza e da cultura & tecnologia, esferas em teoria distintas se levado em conta o paradigma epistemológico ocidental estruturado a partir da premissa dual sujeito/objeto – isto é, o sujeito apartado da natureza via cultura; ou, dito de outra forma, a humanidade e sua segunda natureza.
No campo especulativo conformado pela artista a partir desta nova narrativa audiovisual e suas sequências, imantadas pelo animismo, pela mitologia e pela ficção científica, a dicotomia real x virtual parece já ter sido superada, senão de todo no plano existencial, ao menos no tecnológico. Resta, entretanto, por entender como a inteligência artificial que emerge na dimensão futura de Porosity Valley vai projetar seu manto metafísico sobre a natureza e sua humanidade.
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Porosity Valley & Petra Genetrix e suas sequências (2017–2020)
Em meio à paisagem rugosa de Porosity Valley (espécie de pedra/placa-mãe) depositam-se criaturas pós-humanas cujas origens remetem tanto à ancestralidade geológica e às mitologias da antiguidade quanto à era da informação e à esfera da virtualidade. Animados por uma inteligência artificial – espécie de Deus ex-machina, guardião de uma nova natureza, híbrida, feita de big & meta data & resíduos psicoemocionais –, alguns habitantes desse futuro distante são levados a responder sobre sua condição ambígua no planeta Terra, bem como sobre sua promíscua relação com o fator humano, com os sentimentos e prerrogativas próprias da humanidade, cuja essência invariavelmente implica liberdade de pensamento e ação; em suma, livre-arbítrio.
Petra Gentrix, a misteriosa personagem desta saga sci-fi, encontra-se em busca de um lugar no mundo, de uma identidade e de sua autopreservação. Após um desastre ambiental (uma erupção causada pela agressiva extração de petróleo), ela é forçada a uma fuga intempestiva cujo destino deve ser arbitrado por uma autoridade maior – uma instância que se situa entre a virtualidade da inteligência artificial e o aparato burocrático mediado por humanos servis aos desígnios maiores da tecnologia. Constituída como um ente atemporal, sem gênero definido (ou não aplicável), Petra Genetrix é o resultado do acúmulo de informações obtidas ao longo de sua vida útil em contato com a espécie humana – uma forma parasitária de inteligência, desprezada pelo tempo e depositada na natureza como dejeto tecnológico, um vestígio mental contaminado pelas pulsões e desejos humanos; ou um receptáculo virtual para os mais caros dilemas existenciais da humanidade: suas preocupações ontológicas, seus sofrimentos e dores da alma, bem como seus prazeres redundantes que operam na contramão das noções de eficiência.
No atual estágio de nossa civilização, quando a humanidade se acerca mais e mais à tecnologia – física e intelectualmente –, a meta-narrativa proposta por Ayoung Kim tem o condão de articular metáforas e alegorias que respondem pelas prementes indagações político-filosóficas de nosso tempo. À exemplo de sua personagem Petra Genetrix, a artista igualmente está buscando sentido no conjunto de transformações sofridas pela natureza (também humana) na esteira de processos culturais e tecnológicos cujos resultados se apresentam tão opacos quanto inimagináveis. Assim, a ficção científica formulada por Kim opera antes como ferramenta hermenêutica a inquerir sobre o presente do que como exercício de futurologia ou mero diversionismo – embora haja, subjacente, o desejo de tanto explorar cenários futuros quanto fazer troça das vicissitudes ora impostas pela tecnologia.
Ao investir a anti-heroína de um caráter ambivalente quanto à sua natureza híbrida (mineral/humana/tecnológica), a artista pergunta tanto dos dilemas ético-políticos contingentes à sua condição de guardiã virtual da memória humana, quanto daqueles relativos à autonomia do pensamento e dos fluxos de informação em sociedades contemporâneas gradativamente mais refratárias aos direitos individuais. A ausência de liberdade experimentada por Petra Genetrix, em razão de seu desterro e da instabilidade atribuída à sua carga emotiva, vai espelhar, em larga medida, o status social de indivíduos cujos Estados identificam como nocivos ao ambiente político – terroristas, muçulmanos, rebeldes, imigrantes, mulheres, transexuais, negros, indígenas, entre tantos outros “grupos de risco”.
Quando deposita em suas fábulas ingredientes de um mundo em descontrole, semelhante a este que se assoma ao nosso horizonte imediato – diante do Antropoceno, da pandemia, da guerra, da discriminação sócio-étnico-racial e de gênero –, a artista trata de estabelecer correspondências entre o futuro e o presente, assim posicionando o espectador vis-a-vis sua iminente realidade, qual seja, a de uma contemporaneidade cingida por formas obscuras de controle social. Petra Genetrix, em sua qualidade de monstruosidade – isto é, um ente cuja natureza ambígua, potencialmente subversiva e apátrida representa um risco ao status quo –, responde, por analogia, ao contingente humano hoje excluído da vida cultural, política e econômica por força da sociedade de controle (Gilles Deleuze), do biopoder (Michel Foucault) e da necropolítica (Achilles Mbembe) – instâncias ideológicas cultivadas por Estados e corporações cujo papel discriminatório aparta os cidadãos dos meios de produção e do sistema de bem-estar social; ou então os submete, de maneira sub-reptícia, à manipulação política por meio dos insidiosos algoritmos gerados pelas big techs.
Tais mecanismos disciplinares, de vigilância e controle, que se dão a ver lá e cá – quer na ficção, quer na realidade –, nos permitem pensar a disseminação virtual da informação a partir de, pelo menos, duas categorias distintas: uma virótica, outra viral, uma vez que as informações tanto podem responder a estímulos “infecciosos” que lhes são dados pela inteligência artificial, quanto podem se reproduzir exponencialmente de forma autônoma, e anômala, nas redes de comunicação. Daí concluir que, no caso virótico, a I.A. nos rouba a capacidade de pensar livremente, caçando o juízo crítico sempre que se impõe como narrativa totalizante (via algoritmos e fake news, por exemplo); já no caso viral, a informação se dissemina insidiosamente nas redes, de maneira fortuita, obliterando os mecanismos de censura virtual (o WikiLeaks é um bom exemplo disso; o que equivaleria, no campo da ficção, ao vazamento de emoções humanas por Petra Genetrix). Quando, entretanto, o resultado do processo é consoante ao sistema coercitivo, a engrenagem haveria cumprido sua meta evitando o dano; quando, alternativamente, algo escapa ao controle da inteligência artificial, então se procederia ao expediente da quarentena ou da neutralização do vírus (pensamento, sentimento ou informação).
O que o projeto Petra Genetrix nos sinaliza, em seu futuro especulativo, é a noção de afeto enquanto risco: elementos humanos residuais a transitar pelas redes de circulação de dados, mas que devem ser detidos, controlados, ou então classificados como mental waste (resíduo mental), e, portanto, enviados ao exílio permanente sempre que houver afronta ao padrão de eficiência do sistema. Neste campo minado pela virtualidade, Kim acena com uma forma sui generis de cyber terrorismo “passivo”, qual seja, a do perigo representado pelas manifestações de humanidade e afeto no fluxo supostamente estável da I.A. Tão logo a fragilidade psíquica é introduzida na matriz informática, percepções de erro e ineficiência acabariam por corromper o sistema, produzindo falhas e desequilíbrios, provocando o colapso do (utópico ou distópico?) hibridismo entre homem e máquina.
Tal qual ocorre sob as placas tectônicas, por analogia a “lava” de sentimentos e dúvidas humanas a penetrar a rede pode provocar uma irrupção instantânea, como um vulcão – ou um erro fatal a comprometer a integridade do sistema operacional. É quando a volatilidade dos afetos finalmente encontra a solidez do disco rígido, malgrado a tão propalada virtualidade da rede – o afetivo (deficiente) alcançaria, então, a matriz de eficiência tecnológica.
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A natureza ainda não existe
No universo ficcional de Porosity Valley e Petra Genetrix (e de suas sequências em vídeo ou performance), os movimentos migratórios de placas tectônicas, indivíduos e informações, bem como a confluência entre as mais diversas culturas – que se encontraram e contaminaram no curso da história e do avanço tecnológico – nos leva a todos de roldão, como num cataclismo, relativizando as noções de utopia e distopia ao pôr em xeque o próprio entendimento sobre a natureza.
Segundo Theodor W. Adorno, “A natureza ainda não existe” – antes, trata-se de uma construção empreendida pela humanidade desde sua segunda natureza, aquela da convenção cultural e da tecnologia. Já a simbiose entre humanos e inteligência artificial proposta por Kim configuraria possivelmente um outro estágio, ou uma terceira natureza; não mais a segunda, tão naturalizada pela humanidade a ponto de exigir uma projeção romântica que pudesse dar conta, ao menos no plano ideal, do que seria o reino da primeira natureza, destituída das formas engendradas pela cultura: ou seja, a ideia de uma natureza (primordial) redentora, capaz de libertar a humanidade das amarras impostas pela segunda natureza – paradoxalmente, esta última resultado da obra e engenhosidade humanas.
Nesta terceira natureza, por assim dizer, homens e mulheres se tornam objetos, e não mais sujeitos em face da inteligência artificial. Ao reificar os sentimentos eminentemente humanos como material degradante a ser excluído em definitivo da matriz (espécie de bit rot), a I.A. acaba por remover a humanidade da equação sujeito/objeto que bem caracterizava a cultura iluminista ocidental, qual seja: nós, humanos, como agentes transformadores e controladores da natureza. Na obra de Ayoung Kim, ao revés, seríamos nós, humanos, os submetidos a esta outra força que mimetiza a natureza e, por consequência, a própria humanidade, a saber, a inteligência artificial.
Bibliografia:
SANTOS, Milton. 2007. Pensando o Espaço do Homem. São Paul: EdUSP.
DELEUZE, Gilles. 2010. Conversações. São Paulo: Ed. 34 Ltda.
FOUCAULT, Michel. 1999. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
MBEMBE, Achilles. 2011. Necropolítica. Barcelona: Melusina.
ADORNO, Theodor W. 2013. Aesthjetic Theory. New York: Bloomsbury Academic.
*Bernardo José de Souza é curador, professor e crítico de arte. Foi Diretor Artístico da Fundação Iberê Camargo até 2019. Atualmente, como curador independente, reside em Madri. Foi Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria de Cultura de Porto Alegre entre os anos de 2005 e 2013 e integrou as equipe de curadoria da 9a Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2013) e da 19a Bienal Sesc_Videobrasil (2015).