Arcar com altos preços para ter um estande; pagar o transporte e o seguro das obras de arte; e desembolsar uma boa quantia em passagens de avião, hospedagem e alimentação da equipe. Isso tudo com o risco de não realizar vendas e voltar para casa no vermelho – sem contar o estresse físico e psicológico envolvido. “O custo total para participar de uma feira de arte é uma loucura. E é sempre muito cansativo”, afirma Luisa Strina, uma das mais experientes galeristas em atividade no mercado brasileiro. A opinião é compartilhada por outros cinco galeristas ouvidos pela arte!brasileiros, que enxergam um esgotamento no modelo em que as galerias gastam boa parte de seus recursos e tempo participando incessantemente de feiras ao redor do mundo. “É muito custoso em termos de dinheiro, mas também em termos físicos e psicológicos. No ano passado eu sai do Brasil em média duas vezes por mês. Não precisa ser assim”, diz Alexandre Gabriel, da Fortes D’Aloia & Gabriel. Para Karla Osório, “havia mesmo uma exaustão, mas infelizmente era visto como uma necessidade, uma regra de mercado”.
E a roda, que não podia parar, de repente parou. Com a pandemia de Covid-19 e a necessidade de isolamento social, feiras foram canceladas, viagens impossibilitadas e, assim como os mais variados setores da economia, o mercado de arte se viu retraído e sem respostas fáceis sobre como prosseguir. Ao contrário de outros campos, no entanto, justamente por estar vivendo um modelo que já demonstrava sinais de esgotamento, muitos galeristas de arte rapidamente perceberam que certas práticas podem – e devem – mudar, inclusive quando a pandemia passar. A busca de um “novo normal”, termo que em quatro meses de pandemia já soa repetitivo e por vezes apenas retórico, talvez seja de fato uma realidade no circuito mercadológico das artes, por demonstrar que outros modos de trabalho podem ser mais práticos e rentáveis. “Eu acho que essa parada também é um momento de reflexão. A gente estava naquele piloto automático, fazendo dez feiras por ano. Você entra numa rotina e nem percebe mais. Então acho sim que as pessoas vão ter que rever algumas coisas”, afirma Alexandre Roesler, da Galeria Nara Roesler.
A principal mudança para as galerias até o momento, para além da intensificação na atuação digital, da realização de lives, exposições virtuais e da criação de algumas iniciativas colaborativas com artistas – certamente os personagens mais frágeis na situação atual -, foi justamente a participação em feiras virtuais. O deslocamento deixou de ser para outra cidade ou país e passou a ser para a tela de computador ou celular mais próximos. A primeira a anunciar o cancelamento do evento presencial e a realização da versão online foi a Art Basel Hong Kong, em março, que contou com 231 galerias em suas viewing rooms (salas de visitação virtual), entre elas quatro brasileiras. Em abril foi a vez da Frieze Nova York, com 200 casas, sendo oito brasileiras; e em junho a Art Basel reuniu 282 galerias, entre elas cinco nacionais. Foi também em junho, na esteira de uma polêmica envolvendo o cancelamento da SP-Arte, que a inédita Not Cancelled Brazil foi realizada, com a participação de 57 galerias, todas brasileiras, e a duração estendida de um mês.
Paradoxalmente, com todas as mazelas causadas pela pandemia e uma consequente retração no mercado de arte, o novo formato das feiras explicitou para os galeristas que certas mudanças vieram para ficar, e que se as feiras presenciais não são totalmente substituíveis pelas virtuais, modelos híbridos devem se tornar mais frequentes. Mais do que isso, com uma expansão da atuação virtual, muito mais econômica, será possível selecionar melhor os eventos em que se considera realmente importante estar presente. “Talvez fazer presencialmente entre duas ou três boas feiras internacionais ao ano já seja o suficiente. Você reduz muito os custos de uma operação que é sempre de muito risco. Feira é roleta russa”, afirma a galerista Jaqueline Martins. “E no online o risco é menor, porque se vender menos a frustração é muito menor. Você trabalhou menos, não gastou. Sua condição financeira e seu tempo estão mais protegidos.”
Até o momento, as feiras realizadas virtualmente não cobraram das galerias o valor do estande (no caso, dos viewing rooms). Se isso seguirá assim ou se foi apenas uma medida de emergência por conta da crise, ainda não se sabe. “Provavelmente no futuro vai ter algum custo, mas não se compara ao de uma feira normal”, diz Strina. Desse modo, por mais que o número de vendas tenha sido mais baixo do que o de costume – o que é confirmado pelos galeristas -, a quantidade de transações necessárias para não sair do evento no vermelho é infinitamente menor, já que os custos se resumem à preparação de fotos, vídeos ou campanhas de divulgação. “Com bem menos vendas, eu diria que no saldo final nós tivemos resultados melhores na Frieze e na Basel esse ano do que no ano passado. Porque quando a despesa é zero, você vende uma obra e já está no lucro”, ressalta Gabriel.
Outras práticas, novos comportamentos
Os resultados alcançados pelas galerias são variados. Algumas passaram em branco em determinado evento, mas venderam bem em outro. Os galeristas percebem também que a rápida evolução nas plataformas disponibilizadas pelas feiras têm ajudado a aumentar as interações. Para Eliana Finkelstein, da galeria Vermelho, o número de visitações aos viewing rooms e os contatos com possíveis novos clientes de variados países surpreenderam positivamente a galeria, que até agora participou da Frieze e da Not Cancelled. Ela destaca, ainda, a necessidade de se compreender as novas formas de trabalhar no universo digital. “Eu acho que há obras que se adequam muito bem ao meio virtual, como uma fotografia por exemplo. Outras são mais difíceis.” Alexandre Roesler vai na mesma direção: “Talvez um quadro ou uma foto sejam mais fáceis de visualizar do que uma escultura, ou uma pequena peça de renda, por exemplo”.
Nesse sentido, o galerista vislumbra ainda outros caminhos de criação. “É possível conceber experiências digitais diferentes. Veja o que os programadores de games são capazes de fazer, por exemplo, com a realidade virtual”. Para as próximas feiras, portanto – incluindo a SP-Arte, que deve anunciar em breve sua versão online -, novas possibilidades passam a entrar na mira dos galeristas. Finkelstein ressalta que passa a não haver limites de peso ou espaço para apresentar uma obra; Strina considera que uma feira virtual funcionará melhor com obras mais alegres e coloridas; Gabriel destaca a vantagem de poder apresentar obras que estão fisicamente em diferentes lugares do mundo, sem precisar transportá-las; Jaqueline, por sua vez, relembra que a galeria londrina Rodeo apresentou em seu viewing room na Basel apenas obras sonoras. “Quando eles teriam coragem de fazer um investimento físico desse em uma feira caríssima como a Basel? Seria impensável correr esse risco presencialmente. Então acho que esse desprendimento que o online nos proporciona é também maravilhoso, e nós temos que explorar isso.”
Karla Osório, responsável pela realização da edição brasileira da Not Cancelled – uma feira criada originalmente pela agência austríaca Treat e que já teve versões em outros países – diz perceber também um novo perfil do público comprador, de faixa etária mais baixa. “Todos os novos clientes que eu tenho agora no período da pandemia, cerca de 20 pessoas, têm no máximo 45 anos”. Segundo artigo publicado recentemente pelo The New York Times, uma espécie de conflito de gerações estaria ocorrendo no mercado de arte durante a pandemia, considerando que colecionadores mais jovens se mostram mais dispostos a comprar virtualmente e os mais velhos (em geral com maior poder aquisitivo) são mais reticentes. Deste fato decorreria também uma escolha, por parte de muitas galeristas, de expor nas feiras obras “mais baratas”, mais suscetíveis de serem vendidas aos millennials – geração nascida nos anos 1980 e 1990. “Até um certo limite de preço você consegue trabalhar bem virtualmente”, diz Finkelstein.“Na Not Cancelled levamos só obras de até 16 mil reais.”
A constatação de que os colecionadores experientes estão mais reticentes a comprar virtualmente, no entanto, não é compartilhada por todos os galeristas entrevistados. Segundo eles, a prática de vender obras a partir da troca de imagens – basicamente por Whatsapp – já é corrente muito antes da pandemia. “Eu diria que 50% das vendas da minha galeria, e posso dizer que de muitas outras também, já acontecia online, com essa troca de fotos”, ressalta Jaqueline. “Claro que isso é mais raro com novos clientes, mas para um cliente assíduo, que já confia em você e conhece o artista, isso é comum. Então eu acho também que o recuo do mercado não se deu só por esse fato das vendas online, mas porque entramos num caos de saúde, econômico e político.” Alexandre Roesler diz o mesmo: “A gente já vende obras por Whatsapp há vários anos. É raro hoje em dia o colecionador ir à galeria”. Para ele, isso se relaciona, inclusive, com o boom no número de feiras nas últimas décadas – eventos em que o comprador pode ver em um só lugar centenas de galerias.
Crise econômica
O recuo de mercado destacado por Jaqueline foi citado também por todos os outros galeristas, especialmente no que se refere ao primeiro mês de isolamento social. Todos constatam, também, uma retomada gradual dos negócios nos meses seguintes. Neste sentido, dados recentes mostram um quadro que soa surpreendente no contexto político e econômico vivido pelo país. Uma pesquisa realizada em abril pela The Art Newspaper com 236 galerias ao redor do mundo mostrou que 34% delas imaginam que não sobreviverão à crise gerada pela pandemia. Os dados mostram também que as galerias, na média, calculavam uma queda de 72% em suas receitas anuais em 2020. Uma pesquisa semelhante realizada em maio no Brasil – por Tamara Brandt Perlman, da Parte Arte e Cultura – revelou um quadro bem menos dramático para as 47 casas nacionais entrevistadas. Com uma expectativa de redução de faturamento da ordem de 30%, apenas 4% das galerias imaginavam não sobreviver à crise, sendo que 23% das casas preveem crescimento no ano.
Segundo a pesquisa, são as galerias menores e com menos anos de atividade as que demonstram menor fôlego financeiro, caso a crise demore a passar. Neste sentido, Karla Osório destaca que as feiras online possuem um caráter de democratização importante, ao colocar todas as galerias no mesmo nível e com o mesmo espaço de apresentação. Ela não imagina, no entanto, que a Not Cancelled Brazil, realizada em caráter de urgência, passe a fazer parte do calendário de feiras, já que eventos tradicionais como SP-Arte e ArtRio voltarão a acontecer. “Mas elas também terão de repensar seu modus operandi, porque esse momento mostrou que é possível, com muito pouco gasto, ter uma presença digital forte”, afirma.
Modelos híbridos, em que presencial e virtual se complementem, parecem o caminho mais provável, segundo os entrevistados. “O formato online veio para ficar, mas não acho que veio para substituir”, diz Gabriel. “Provavelmente vai haver uma redução no número de feiras, mas as grandes, que tem uma robustez econômica maior, certamente vão continuar com os eventos físicos, mesmo que com atividades digitais paralelas”. Alexandre Roesler concorda: “Acho possível que elas continuem acontecendo como um complemento das feiras, até para ampliar o alcance de público. Mas a experiência de estar presencialmente numa feira é muito diferente. Não é só o fato de ver a obra ao vivo. É porque você encontra e reencontra gente, mantém contato com uma rede de colecionadores, conhece ao vivo alguns artistas. Aí tem a festa, e às vezes você vai para outras cidades do país… Quer dizer, é uma vivência que vai muito além de ver as obras ao vivo.”
Por fim, Gabriel destaca um outro aspecto relevante dos eventos digitais: “O online tem muita transparência. Você sabe o preço antes de perguntar, sabe o que está vendido ou não, ou seja, tem uma coisa mais direta, mais reta”. Mas talvez seja essa objetividade digital, justamente, o que jamais poderá satisfazer totalmente o mercado de arte. “Uma vez, discutindo sobre esse esgotamento com o diretor de uma feira, ele me disse que as feiras nunca vão acabar porque as pessoas adoram eventos sociais. E é verdade”, conclui Jaqueline. “E não digo num sentido vulgar, mas é um lugar onde você vai encontrar pessoas, se comunicar, fazer contatos. E é difícil imaginar uma outra oportunidade para, em dois ou três dias, se misturar a tantas pessoas de lugares e culturas tão distintas.” Mas, sim, conclui Luisa Strina, “a feira virtual veio para ficar, e as pessoas precisam se acostumar” ✱