Em 2023, o artista alemão Boris Eldagsen chegou a vencer a premiação Sony World Photography Awards por uma fotografia gerada com inteligência artificial; Eldagsen recusou a honraria
Em 2023, o artista alemão Boris Eldagsen chegou a vencer a premiação Sony World Photography Awards por uma fotografia gerada com inteligência artificial; Eldagsen recusou a honraria

Segundo o autor Frank Wynne, em seu livro Eu fui Vermeer, o falsário holandês Han van Meegeren pintava como Johannes Vermeer, mais de dois séculos após a morte do artista. Ainda segundo o romance, Meegeren havia nascido na época errada, e possuindo habilidades muito valorizadas na época do Renascimento, mas sem qualquer relevância na era dos Cubistas e Surrealistas, teria produzido obras no estilo Vermeer. Para tanto, usou a melhor técnica, habilidades e conhecimentos químicos, motivado especialmente pela oposição à um curador da época. Enriqueceu com as obras, mas se auto delatou após a Segunda Guerra Mundial, para não ser considerado colaborador do nazismo, provando que havia enganado o Reich quando lhe vendeu obras de Vermeer. As obras falsas são tão perfeitas em estilo e elementos químicos que, até hoje, especialistas mantém a suspeição sobre a verdadeira autoria de algumas obras no acervo de grandes museus.

Essa história ilustra perfeitamente o que está ocorrendo hoje com a produção de obras pela inteligência artificial. A diferença está no fato de que não se copia apenas um autor, nem é necessário um artista com formação super especializada. A IA generativa aprende com todas as obras disponíveis na rede e, a partir de comandos específicos, cria novas obras como se fosse determinado pelo autor original. Importante perceber que não é uma cópia idêntica ou quase idêntica, mas uma obra nova, feita a partir de todas as referências, estilo, técnica e maneirismos do autor copiado. Assim, é possível produzir pseudo novas obras de Picasso, Matisse ou Renoir sem qualquer participação dos respectivos autores.

Na época da avalanche de informações, não parece improvável, portanto, que uma obra criada pela IA seja “descoberta” como se do seu autor original fosse, siga os caminhos das obras falsas de Vermeer e acabe nas paredes de um museu. A questão é que, o que parecia romântico e sob controle – afinal para pintar como Vermeer, o plagiador precisava ser excepcional – pode agora ser escalado e credibilizado nas redes.

Além disso, a IA vem criando obras novas a partir da combinação ad infinitum das obras disponíveis nas redes. Neste caso, não são mais obras apresentadas como as de um autor específico, mas de autoria nova (de quem programou a IA?) feitas a partir de todas as obras criadas pelos mais diversos autores do Brasil e do mundo. A IA aprende, sem custo, com esses gênios humanos, e monetiza as obras resultantes. O tal aprendizado da IA não se confunde com o humano, seja pela escala de armazenamento, classificação e síntese, seja pelo fato que não contribui com compra de livros ou com pagamento de royalties, cursos e escolas. É uma atuação parasitária, e bastante lucrativa. São produções que não tem um autor, como o conhecemos até então.

O resultado atual, que muitos defendem será superado, ainda é muito superficial. Mas, a produção dessas obras pela IA será cada vez mais perfeita e sofisticada, e tem potencial claro de impactar o mercado de produção artística, entre outros pontos: circulando obra falsa como verdadeira; criando obras que remuneram o proprietário da tecnologia e não o autor e artista; sonegando o pagamento de direitos de autor e imagem das obras utilizadas pela IA; embaralhando a autoria e a figura do autor após série infinita de reconstruções.

Assim, as obras geradas pela IA serão a versão atual e tecnológica das obras de Vermeer, que seguem sem a certeza de sua autoria. Mas, com o agravante que serão produzidas em escala incontrolável, com uso e exploração da criação de terceiros e sem rastreio das redes. A saída para autores e artistas será chancelar o que é produção humana, como obra made in human. Mas, teremos tempo de preferir obras feitas por humanos?

*Cris Olivieri é advogada, diretora da Olivieri & Associados Advogados, especialista em direito da cultura, arte e entretenimento.


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