A dupla italiana Masbedo Protocol. No 90/6, 2018. Comissionado pela Manifesta. Foto: Divulgação

Quando o Ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, proibiu o desembarque de 629 imigrantes do navio Aquarius, em junho passado, o prefeito de Palermo, Leoluca Orlando tentou contrariar a ordem: “Estamos convencidos que imigrantes não são um problema. Esta situação é uma oportunidade de defender os direitos de todos os seres humanos em se mover e viver no lugar que lhes convier”, disse Orlando naquele momento. Como os portos italianos são de cuidado do poder federal, os imigrantes tiveram que desembarcar na Espanha, quase uma semana depois. A defesa do livre trânsito, contudo, ecoou nos dias seguintes, quando o prefeito participou dos eventos de abertura da 12a. edição da Manifesta, a bienal itinerante da Europa, que segue em Palermo até 4 de novembro. Político raro, ele roubou as atenções dos jornalistas que acompanhavam os dias de inauguração, com discursos que contrastam com o cenário conservador e reacionário do mundo atual.

Nascido em Palermo, onde se formou em direito, Orlando, 71, estudou em Heidelberg, na Alemanha, com professores como os filósofos Martin Heidegger e Hans Georg Gadamer. Eleito prefeito em Palermo, em 1985, foi um dos líderes que conseguiu reduzir o poder da máfia, historicamente no controle da Sicília.

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Jelili Atiku, Festival of the earth, Alaraagbo XII, 2018. Performance realizada no Planetary Garden durante a Manifesta 12 em Palermo. Foto: Divulgação

Desde então, foi reeleito quatro vezes e o mandato atual foi conquistado com 74% dos votos. Desde os anos 1990, quatro mil mafiosos foram presos e o discurso de Orlando a favor da imigração, consolidado na Carta de Palermo, de 2015, não é apenas teórico: nos últimos dois anos 400 mil imigrantes entraram na Sicília, quantidade impressionante para uma população de 5 milhões de habitantes.

Jardim planetário

Esse contexto não podia ser mais favorável a uma mostra como a Manifesta: “Queremos ser uma bienal radicalmente local e relevante, por isso é uma mostra sobre Palermo, e as questões essenciais aqui, de uma ilha entre três continentes, que luta contra o crime, contra o racismo e o aquecimento global”, disse Hedwig Fijen, diretora e criadora da Manifesta.

Desde 1996, a Manifesta já passou por 12 cidades europeias, começando por Roterdã, na Holanda, onde a bienal foi concebida, passando por São Petersburgo (2014) e Zurique (2016), nas edições mais recentes.

Em Palermo, a concepção da mostra teve início com um projeto conduzido pelo escritório de arquitetura holandês OMA, que criou o “Palermo Atlas”, uma compilação de informações da arquitetura, cultura e história da cidade.

A mostra em si foi organizada por um time de quatro mediadores culturais, dois deles arquitetos — o espanhol Andrès Jaque e o italiano Ippolito Pestelleni Laparelli, que também trabalha no OMA —, a artista holandesa Bregtje van der Haak — que participou da 27a Bienal de SP, em 2006, e a curadora suíça Mirjam Varadinis.

“Trabalhamos em conjunto tanto na seleção como na escolha dos locais, o objetivo foi buscar espaços que não costumam apresentar arte, já que há ótimos museus aqui, para criar um novo percurso pela própria cidade”, contou Haak à arte!brasileiros. Para tanto, a mostra se divide em 20 espaços, desde pequenas capelas, passando por imensos palácios, chegando no Jardim Botânico da cidade.

É de lá, aliás, que vem o nome desta Manifesta: “O Jardim Planetário”. O termo é  emprestado do botânico francês Gilles Clément que, em 1991, usou a expressão jardim planetário, para apontar como natureza e cultura humana são corresponsáveis na manutenção da Terra. A partir desse conceito, a mostra se desenvolve por três seções: Jardim dos Fluxos, Sala sem Controle, Cidade no Palco.

Na rua 

A parte da mostra no Jardim Botânico, contudo, é a que menos empolga na Manifesta, afinal é difícil competir com as plantas que crescem no local desde 1789, uma das referências mundiais para o estudo de espécies exóticas. Originalmente, o local foi criado para o cultivo e pesquisa de plantas medicinais pela Academia de Estudos de Palermo. Atualmente, ele possui mais de 12 mil espécies. Dos oito artistas que participam desta seção, o colombiano Alberto Baraya é o que melhor explora a relação com espaço, usando uma série bastante conhecida, na qual reúne plantas falsas e as apresenta como se fossem objeto de estudo científico, o que foi apresentado na Bienal de São Paulo em 2006. “É um trabalho que na verdade não consegui evitar aqui, afinal é totalmente adequado ao Jar-
dim Botânico”, afirmou, perto de uma vitrine com vários pedaços de limões sicilianos de cerâmica em um dos viveiros do espaço.

No entanto, é nessa fricção entre a cidade, seus locais e as intervenções dos artistas que a Manifesta se realiza de fato e um dos melhores exemplos disso foram as procissões realizadas na semana de abertura. Elas ocorreram inspiradas pelas dezenas de festividades religiosas que ocorrem ao longo do ano em Palermo, entre elas a da padroeira da cidade, Santa Rosália, um dos marcos da cultura siciliana explorada por Coppola nos filmes de “O Poderoso Chefão”, uma referência impossível de se evitar por ali.

O nigeriano Jelili Atiku, a italiana Matilde Cassani, e a dupla italiana Masbedo usaram as ruas de Palermo, cada um a seu jeito, criando situações que simularam procissões e festividades públicas. No caso de Atiku, a performance Festino dela Terra misturou as celebrações de Santa Rosália com arquétipos antigos da cultura Iorubá dos homens
verdes. Já Cassani ocupou o cruzamento mais suntuoso da cidade, Quattro Canti, com uma ação denominada Tutto, jogando milhares de papéis coloridos no local, uma referência à tradição barroca da cidade. Esses trabalhos fazem parte da seção Cidade no Palco.

Manifesta
Matilde Cassani, performance realizada em Palermo com a colaboração de Francesco Bellina e Stefano Edward. Foto: Divulgação.

Golpe

As obras mais contundentes da Manifesta fazem parte da seção Sala sem controle, uma ironia explicita ao termo Sala de Controle, e nela artistas como a cubana Tania Bruguera, o francês Kater Attia, o turco Erkan Özgen, a holandesa Patricia Kaersenhout e o italiano Filippo Minelli, entre outros, dão um tom político à mostra, ao retratar dramas contemporâneos.

Esses artistas se dividem em dois palácios: Ajutamicristo e Forcella de Setta, ambos exemplos de uma Palermo suntuosa nos séculos 18 e 19, mas decadentes após o período que a máfia dominou a cidade ao longo do século 20. Esse estado de quase ruína foi cenário para a peça Palermo, Palermo, que a coreógrafa alemã Pina Bausch criou na cidade, em 1989.

No palácio Ajutamicristo, Bruguera faz uma instalação em colaboração com Movimento No
Muos, contrário ao sistema chamado Mobile User Objective System (MUOS), utilizado por uma base norte-americana que controla drones para usos bélicos e cujas antenas parabólicas são prejudiciais aos habitantes de Niscemi, a cidade siciliana onde estão instaladas. A instalação é uma espécie de compilação dos materiais de protesto dos militantes italianos contra o MUOS. A artista norte-americana Laura Poitras também aborda
o mesmo tema, apresentando em uma projeção a região onde se localizam as antenas parabólicas. Já Özgen exibe “Purple Muslim”, uma instalação criada em colaboração com refugiadas sobre o impacto da guerra nas mulheres que fogem de zonas de conflitos, um documentário que retrata os traumas da violência a partir de relatos sensíveis. Finalmente Minelli pendurou no Palazzo Ajutamicristo dezenas de bandeiras de protestos de várias procedências, entre elas uma verde e amarela com a palavra golpe em destaque.

Atual e atenta a questões locais que merecem atenção global, a Manifesta 12 é uma edição vibrante, que explora Palermo de maneira respeitosa: ao mesmo tempo que revela espaços até então não visitáveis, os preenche com obras de impacto e conteúdos urgentes.

  • Leia também sobre a Manifesta 13, aqui.

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