Othelo, O Grande
Othelo, O Grande

Faz alguns dias assisti a um dos documentários mais interessantes lançados recentemente no Brasil com direção de Lucas H. Rossi dos Santos, Othelo, o grande que trata da vida e obra do ator brasileiro Grande Othelo.

Durante todo o filme, o único depoimento sobre o ator foi o do poeta Carlos Drumond de Andrade pois, para Othelo, o grande o que contou foram os vários depoimentos filmados do próprio artista, intercalados por fotos de épocas distintas e trechos icônicos de sua participação no teatro, cinema e na televisão. Creio que o tecido formado pela voz de Grande Othelo e suas imagens de tantas épocas constituiu a força do filme. Mais do que a obediência à cronologia, o propósito do documentário foi a coerência entre as falas do ator e as imagens sugeridas a partir delas.

Saí do filme com meus sentimentos revigorados em relação a Grande Othelo e satisfeito pela maneira respeitosa, carinhosa e esteticamente convincente com que ele e seu legado foram tratados.

Grande Othelo, além do talento peculiar que sempre manifestou (ou justamente por tal motivo), parece ter conseguido imprimir naqueles com quem cruzava uma impressão forte o bastante para romper qualquer dificuldade. E isso fica claro no documentário, por exemplo, quando somos levados a refletir sobre como ele, de alguma maneira, conseguiu ganhar o interesse de dois dos nomes mais importantes do cinema internacional do século passado: os diretores Orson Welles e Werner Herzog.

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Menotti Del Picchia (1892-1988). Foto de Menotti del Picchia, por M. Nogueira da Silva, em 1913.
Menotti Del Picchia (1892-1988). Foto de Menotti del Picchia, por M. Nogueira da Silva, em 1913.

O filme de Lucas H. Rossi dos Santos me fez recordar um texto intitulado Otelo [sic], publicado em 26 de outubro de 1926 pelo escritor paulistano Menotti Del Picchia, no Correio Paulistano, quando, em 2018, iniciei o levantamento e análise da produção jornalística do intelectual. Muito me impressionou a leitura daquele artigo porque nele, Menotti – então com 34 anos – relatava seu encontro com o então garoto de 11 anos – Grande Othelo – na época trabalhando como ator da Companhia Negra de Revista, do Rio de Janeiro, em turnê por São Paulo.

Como procurarei demonstrar aqui, Del Picchia parece impactado com a figura do cantor/ator-mirim, percebendo estar frente a um talento genuíno, uma visão que é imediatamente turvada por um olhar preconceituoso a respeito da negritude do garoto, o que, para o autor, parecia inviabilizar a manutenção de sua potência como artista. Contraditória, essa atitude de Menotti – acreditar no talento do garoto e, ao mesmo tempo, desacreditar na possibilidade do desenvolvimento de suas capacidades profissionais – trouxe-me duas questões para refletir: em primeiro lugar, ela nos permite inferir como a vocação e a espontaneidade de Grande Othelo, juntas, conseguiam cativar o interesse de quem podia observar seu talento; em segundo, dá-nos a dimensão do quanto o racismo borrava (e ainda borra) as possibilidades de real integração entre  brancos e pretos.

Quando Del Picchia escreveu sobre o jovem Grande Othelo, ele deixou explícito como o racismo estruturava o senso comum da maioria da população branca no Brasil, mesmo entre intelectuais bem-pensantes e supostamente a par do debate social e político local e internacional. Como será visto, parece que para Del Picchia não havia outra possibilidade de refletir sobre o talento de um jovem negro como Grande Othelo fora dos parâmetros que sustentavam sua visão de mundo.

Antes de adentrar propriamente nos comentários de Del Picchia sobre Otelo, considero importante trazer suas preocupações relativas à questão racial no Brasil.

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Naquele meio dos anos 1920, Del Picchia era um dos mais profícuos intelectuais com atuação em São Paulo: além da coluna que mantinha no jornal Correio Paulistano, intitulada “Crônica social”, colaborava com outros periódicos da cidade e do Rio de Janeiro, publicando igualmente coletâneas de textos, contos, poemas etc. Em “Crônica Social”, Menotti publicava artigos sobre o ambiente cultural de São Paulo, (sobre literatura, artes plásticas, música, cinema e uma série de outros assuntos).

Outro tema que lhe interessava era a questão racial e o quanto ela influíra e ainda poderia influir no futuro do Brasil. Filho de imigrantes italianos, chegados em São Paulo no final do século 19, Menotti, como vários outros intelectuais surgidos antes, durante e depois de sua atuação mais efetiva, acreditava que os brasileiros descendiam da assim chamada raça latina, de origem europeia – clássica e pagã – e que, naquele continente, se contrapunha à raça dita germânica – romântica e cristã. Para ele o ramo ibérico dos latinos teria imigrado para as Américas, com ampla presença portuguesa no Brasil, mais tarde ampliada por outros povos latinos europeus.

Por sua vez, os portugueses tiveram que se haver com os indígenas aqui presentes quando de sua chegada, e com os negros escravizados, vindos da África. Para Menotti, o primeiro grupo praticamente já não mais existia em território brasileiro, uma vez que teria sido dizimado ou misturado ao branco e ao negro, sendo que seus remanescentes haviam sido expulsos para os recônditos mais distantes. 

Em 1921, quando Menotti se posicionou contra “Peri” – o personagem de José de Alencar, principal mito indianista da literatura brasileira, – confundiu, propositadamente ou não, o personagem com o indígena real, negando a relevância de ambos para a cultura e para a sociedade brasileiras:

(…) Peri é um inimigo falso: nunca existiu. Nunca acreditei na real existência dos índios, de que os europeus julgam andar cheios nossas [sic] praças e avenidas. As notícias que deles tenho, em tratados etnográficos e em documentações de museus, fazem-me pensar neles como na vaga legenda dos primatas, dos antropotecos [sic], dos megatérios e outras coisas crepusculares. Às vezes chego a imaginar que Peri – emprestado a Chateaubriand, portanto francês legítimo – nunca passou de uma ficção literária de Alencar.

O que nos custou, porém, essa blague (…). Peri foi uma mancha nua e bronzeada a sujar a dignidade nacional. Essa mentira lírica, transformada em função social pela inacionada [sic] admiração fetichista dos zoilos, chegou a perturbar nossos etnólogos. Admitiu-se essa hipótese romântica como elemento formador da raça, atribuindo-se ao índio vadio, estúpido e inútil, uma função alta no caldeamento do nosso tipo nacional (…).

Nada mais falso! Nunca vi índios, mas o que li de sério – … – sobre a índole dessa gente de tez acapetada [sic], nariz chato, higiene discutível, foi apenas um depoimento psicológico que reverte em séria acusação contra a sua inferioridade étnica e absoluta inadaptabilidade social (…)

Transformados em abstração literária e, ao mesmo tempo, configurados como emanações do demônio (“tez acapetada”), os indígenas não eram problema para Menotti. Para ele, a questão era como lidar com a população de origem africana no Brasil, um entrave a ser levado em conta nos debates sobre os projetos para a nação.

Desde pelo menos 1917 – quando lançou seu primeiro grande sucesso editorial, o poema Juca mulato – Del Picchia oscilava entre perceber o afrodescendente como um ser que se sabia inferior ao branco (o personagem Juca mulato seria aqui o melhor exemplo), ao mesmo tempo em que comungava com o sentimento-padrão que grande parte dos católicos minimamente letrados pareciam então adotar  em relação à população afrodescendente: um sentimento que mesclava gratidão e culpa, matizado pela arrogância de crer-se superior. Ou seja: Menotti reconhecia a humanidade do negro e sua importância para a transformação do Brasil. Mas, por outro lado, como latino “legítimo” (não esquecer sua ascendência italiana), não abdicava de entender a população brasileira como fundamentalmente branca, eurodescendente.

É, portanto, com esse posicionamento em relação aos negros brasileiros que Menotti conhece o jovem Grande Othelo, quando o ator visita a redação do jornal Correio Paulistano, para divulgar as apresentações em São Paulo da Companhia da qual fazia parte.

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De início, Menotti faz questão de afirmar que o Othelo ao qual se refere não era o personagem da peça de Shakespeare, Othelo, o mouro de Veneza, do começo do século 17, transformada em ópera dois séculos depois por Verdi. Assim afirmou ele:

Este [Othelo] não ringe os dentes, não salta como um símio de ébano, não amordaça com suas mãos uxorcidas [sic] a alva Desdêmona (…). Não veste o veludo plateal [sic] e mirabolante dos cantores de ribalta, nem pinta a cara com fumaça de fundo de panela. É preto mesmo. Tem pouco mais de meio metro. Azougado como um saci…

Nota-se Menotti impressionado com aquele jovem Othelo que, ao contrário dos atores que interpretavam o personagem de Shakespeare, não usava do artifício da black-face. O jovem Othelo que descrevia era um ator negro, tão negro que, para ele, lembraria o saci. Enfim, “um negrinho inteligente, encontrado por almas piedosas nos bancos do jardim público de Uberabinha”.

É importante reparar que, para Menotti, Grande Othelo não era uma criança inteligentíssima, mas sim um “negrinho inteligentíssimo”. Como era de se esperar, a racialização da criança foi imediata porque, para o intelectual, o fato de Grande Othelo ser uma criança talentosíssima ganha outro componente – um componente que traz um grau de surpresa à sua escrita – quando é sublinhada que ele era “um negrinho”. “Um negrinho” que, se não fossem as almas caridosas (e brancas) que o acolheram, “teria sido um vagabundo ou gavroche. Teria furtado rapadura e dado nós nas caudas dos cavalos amarrados nos mourões junto das vendas da cidadezinha pequena”. O que significa que, para Menotti, o jovem Grande Othelo não teria seguido seu destino – ou seja, seu destino como qualquer “negrinho”, como um saci – porque contou com a bondade e a boa vontade da gente que o “acolheu” e o levou para o Rio de Janeiro.

É após essa apresentação, que o intelectual informa o leitor que o jovem cantor/ator teria ido até à redação do jornal divulgar o trabalho da Companhia que integrava. Após descrever a elegância das vestimentas do garoto, Menotti arremata: “Uns olhos móveis, vivos sagazes, um narizinho esborrachado, uma cabeça de pepinos, eriçada de pixaim. Mas que vivacidade! Que inteligência!”

O autor parecia impressionado com aquela criança que, segundo ele, a despeito de ser negra, era vivaz e inteligente. A realidade se impunha ao preconceito de Menotti sobre a criança. O intelectual não mede elogios para se referir à apresentação de Grande Othelo, elogios surgidos no meio de uma estrutura de pensamento eivado de elementos racistas:

[Othelo] ontem à noite […] nos deu uns instantes de alegria. Aquele meio metro de cútis negra, com dois olhos prematuramente velhacos, com sua beiçorra tátil e aberta em tudo [sic] de gramofone, canta o “Ciondolo d´oro” com a emotividade que o faria um grande artista. Isso em italiano. Depois, mostrou que sabia espanhol. E disse a mágoa sonora de um tango […] depois recitou versos de Campoamor. Depois um monólogo…

Emotividade “que o faria um grande artista”. Interessante o uso de “faria”, e não de “fará”. É como se Menotti, mesmo reconhecendo o talento de Grande Othelo, não confiasse na possibilidade daquela criança vir a ser um grande astro. A razão o intelectual não explica. Porém, quando descreve a saída do palco do jovem artista, é como se Grande Othelo voltasse para o anonimato e para a marginalidade de onde viera:

Demônio de pretinho! Todos ficamos gostando dele. Saiu como um salta-martim, aos pulinhos, consciente do seu êxito, sentindo-se um “astro” que por certo há de acabar fazendo virar a cabeça à mais bela e mais preta estrela da Companhia Negra, que anda fazendo diabrururas por aí…

Para Menotti, Grande Othelo não passava de uma curiosidade sem importância real para a arte e para a cultura do Brasil. Era um fenômeno circunstancial. Impossível qualquer tipo de investimento nele, uma vez que sua condição de “demônio” lhe retirava qualquer possibilidade de angariar um futuro. O mesmo, com certeza, pensava Menotti sobre a Companhia Negra de Revista que, segundo suas palavras, ao invés de fazer arte, fazia “diabruras por aí…”. 

                                                         ***

Como mencionado, a maioria das opiniões emitidas por Menotti Del Picchia não era original. Pelo contrário, dava prosseguimento (e ampliava) ideias preconcebidas que há muito habitavam o imaginário da maioria dos brasileiros brancos, de classe média, intelectual ou não. Como supostos herdeiros e continuadores, nas Américas, do legado racial e cultural latino, não devia haver cabimento reconhecer como legítima, e/ou acolher qualquer tentativa de partilhar com os afrodescendentes o palco da cultura, mesmo em uma produção ligada não propriamente à erudição, mas à cultura de massa que então se fortalecia (afinal, a Companhia Negra era uma companhia de teatro de revista).

Ao negro poderia caber manifestar-se por meio da música e da dança de origem africana, desde que devidamente afastadas de qualquer insinuação de práticas fora da ordem branca burguesa, e cristalizada como manifestação pretensamente pura e sem contradições.

Assim, o jovem e talentoso Grande Othelo não passava – e não podia e não devia passar – de uma curiosidade cativante, mais um elemento exótico daquele grupo de pessoas que ficava e devia permanecer do outro lado da “verdadeira” sociedade brasileira: branca e herdeira da tradição europeia.

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Aqui se encontra a importância do filme Othelo, o grande: nele, o ator é revelado e definido por si mesmo, sem intermediários, sem ninguém que o enquadre em qualquer tipo de rótulo. Em seus depoimentos percebemos um indivíduo que se jogou inteiramente na vida e na vida profissional, e enfrentou as adversidades que apareceram em seu caminho como homem e como ator.

Não encontramos no filme o “grande ator negro”. O roteiro e a direção do documentário nos levam a nos deparar, isso sim, com um profissional (e um indivíduo) que reflete sobre a própria vida e carreira no teatro, no cinema e na televisão, sem, em nenhum momento, ser atropelado por visadas sobre a pretensa excepcionalidade de ser um artista, que “mesmo sendo negro”, conseguiu furar a bolha branca. Othelo, o grande não traz essa armadilha da excepcionalidade. O filme parece lidar com a consciência de que, se assim procedesse, estaria reafirmando a marginalidade da população negra no país, em que apenas um ou outro sujeito conseguiria escapar da sina de viver sob a exclusão.

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Finalizando, registro que, a meu ver, os posicionamentos preconceituosos de Menotti e de outros intelectuais locais não deveriam servir para o cancelamento de todos eles. Se assim agirmos, corremos o risco de que, no final, restem poucos, pouquíssimos nomes sobre os quais possamos constituir uma compreensão menos rasa da sociedade brasileira, deixando de lado um debate que dê conta de toda as nuanças que o racismo assumiu e continua assumindo em nossa coletividade. O caso da recepção do talento de Grande Othelo por um intelectual brasileiro branco como Menotti Del Picchia, é apenas um dos inúmeros exemplos da rejeição efetiva que, por trás, sustentava a benevolente (e falsa) comiseração branca em relação aos negros.

E esta questão precisa ser mais explorada por brancos e negros, porque diz respeito a todos nós brasileiros.

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Agradeço às leituras atentas do texto realizadas pelo amigo Fabio D´Almeida e da amiga Eliane Pinheiro.

²Grande Othelo, nascido Sebastião Bernardes de Souza Prata em Uberabinha (atual Uberlândia, MG) descendia de escravizados. Com dotes de ator, foi levado para o Rio de Janeiro onde começou a trabalhar no teatro ainda criança. Transformou-se num dos principais atores brasileiros. Faleceu em Paris em 1993.

³Filho de um casal de imigrantes italianos nascido em S. Paulo em 1892, Paulo Menotti Del Picchia se notabilizou como poeta e romancista. Foi crítico e publicista. Participou da Semana de Arte Moderna de S. Paulo, em 1922, e foi um dos protagonistas da ala mais conservadora/reacionária do movimento modernista de S. Paulo. Formado em advocacia, foi deputado por São Paulo. Morreu em sua cidade natal em 1988.

⁴Com tal estudo, informalmente dava prosseguimento ao trabalho realizado pela pesquisadora Yoshie S. Barreirinhas que, em 1983 publicou um livro (nomeado em seguida) contendo significativa amostra dos textos publicados por Del Picchia, entre os anos 1917 e 1922. Meu levantamento busca ampliar o período abarcado pela colega incluindo a produção do autor, entre 1922 e 1932. BARREIRINHAS, Yoshie Sakiyama (org.). Menotti Del Picchia. O Gedeão do Modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

⁵No texto, Menotti Del Picchia afirma que Grande Othelo, em 1926 estava com 7 anos, o que não é correto. O artista contava com 11 anos quando veio para São Paulo.

⁶Em seu livro de memórias, Del Picchia assim se pronuncia sobre seus pais, nascidos na região da Toscana, Itália: “[Minha mãe] nascera (…) perto de Pisa (…). Era de estirpe rural (…) Era uma aguda inteligência inculta, servida por uma severa energia que lhe dava dignidade (…)
Pouco sei dos meus antecedentes paternos. Papai sempre foi displicente e discreto para as coisas tradicionais do mundo. Socialista que era (…) escolheu o Brasil que adotou como sua nova pátria.
Pintor, arquiteto, jornalista, poeta satírico, a multiplicidade das suas aptidões e o amor que tinha por todas elas não o deixaram optar profissionalmente por determinada arte. Era um eclético lançando mão de todas como líder de artistas tão diversos que ele capitaneava mais como companheiro que como empreiteiro e que reunia em casa como amigos”. DEL PICCHIA, Menotti. A longa viagem. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1970, vol. 1, p. 26.
Por tais informações fica-se sabendo que os pais de Del Picchia formavam um casal que, a princípio, fugia dos padrões dos imigrantes de origem agrária. Embora sua mãe tivesse nascido em uma aldeia, dedicando-se ao trabalho doméstico, seu pai, além de exercer uma atividade notadamente urbana – era empreiteiro –, era ligado também às artes e à cultura em geral.

Na antevéspera do início da Semana de Arte Moderna, Menotti, para justificar porque o movimento modernista de 1922 começava em São Paulo, publica um artigo em que compara o paulista ao “nortista”, atentando para o seguinte fato: foi para São Paulo que veio uma nova leva de europeus que, ao transplantarem novamente a cultura latina, rejuvenescida, para cá, transformaram a cidade e o estado no mais pujante e inovador do Brasil: “O sentido do termo [futurista] – que necessita ser bem compreendido – exprime a modalidade própria, […] do povo paulista, antípoda completo dos cismarentos patrícios do norte, os quais ainda descansam, pacíficos, nas velhas normas ancestrais, sem as perturbações criadoras da concorrência, do industrialismo insone, da batalha financeira americana.
Com tal origem, o paulista devia sentir, em todas as manifestações de sua atividade, o reflexo da ambiência em que se agita. Irrequieto, bandeirante, trabalhador, libertou-se do fatalismo. À obra maravilhosa e histórica da fixação da nacionalidade […] seguiu-se o natural desnervamento [sic] que alquebrou a raça formadora do primeiro extrato étnico da nação brasileira. As novas levas latinas, vindas de outras bandas do mar a tonificar esse enervamento, encontraram bem adubada a terra bendita […].
Confluindo para S. Paulo esse rebojo de sangue novo, S. Paulo criou, antes de qualquer outra unidade de federação, um pujante surto de vida atualizada nos seus limites, uma civilização integral, incorporada dia a dia pelos últimos paquetes, como se um pedaço do mundo se deslocasse, geograficamente, para a América brasileira” DEL PICCHIA, Menotti. “Semana de Arte Moderna”. Correio Paulistano. São Paulo, n. 21.052, 11 de fevereiro de 1922, p. 5. Republicado em BARREIRINHAS, Yoshie, op. cit. p. 317.

⁸Logo em seguida, a partir dos protestos surgidos contra virulência do artigo – dentre esses, aquele de Mário de Andrade –, Menotti irá recuar de seu posicionamento tão radicalmente preconceituoso, tentando separar o personagem de Alencar, do indígena real. DEL PICCHIA, Menotti. “Matemos Peri!”. São Paulo: Jornal do Commercio, n.83, 23 de janeiro, 1921, p.3. Republicado em BARREIRINHAS, Yoshie, op. cit. p. 194. Além deste, outros artigos sobre o assunto foram publicados na coletânea.

Em agosto de 1922, em artigo sobre a suposta tristeza do brasileiro, o crítico propõe uma curiosa definição das três “raças” que teriam formado o Brasil. Ignorando os indígenas, ele os substitui pelos imigrantes europeus que então chegavam. Assim, os portugueses e os demais imigrantes vindos da Europa formariam a maioria da “raça” brasileira. Nessa definição é reconhecido o papel da população de origem africana, embora como um elemento minoritário e de pouca força. No texto, o autor assim se refere ao povo vindo escravizado da África: “O negro, arrancado como uma árvore, abruptamente, ao solo do seu berço, vinha estiolar-se aqui, doente de banzo, enchendo o ar com as nênias que avozeava no samba…”. Ou seja, uma população triste, fraca e saudosa, sem o vigor dos imigrantes que vinham do continente europeus. DEL PICCHIA, Menotti. “Rir! Rir! É preciso rir!”. Correio Paulistano. São Paulo n. 21.232, 16 de agosto, 1922, p. 3 Republicado em BARREIRINHAS, Yoshie, op. cit. p. 357


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