"Redenção de Cã", 1895, óleo sobre tela, 199 x 166 cm, assinada M. Brocos Rio de janeiro. 1895. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram Foto: Rômulo Fialdini
"Redenção de Cã", 1895, óleo sobre tela, 199 x 166 cm, assinada M. Brocos Rio de janeiro. 1895. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram Foto: Rômulo Fialdini

Um dia alguém deveria escrever um livro, ou mesmo um artigo, sobre os títulos das obras de arte. Saber se aqueles, pelos quais hoje as reconhecemos, sempre foram, ou não, sua denominação original pode trazer dados interessantes sobre a própria obra, sobre seu autor e sobre o momento de sua primeira recepção.

Eu mesmo já me interessei sobre o assunto publicando um texto sobre Tropical (1917), pintura produzida por Anita Malfatti e hoje pertencente ao acervo da Pinacoteca de São Paulo. Ali chamava a atenção para o fato de que, de início, a obra era denominada Negra baiana e que apenas posteriormente passou a ser reconhecida como Tropical[1].

Tempos depois da publicação do artigo, e na continuidade dos meus estudos sobre o modernismo paulistano, encontrei dados que apontavam para o fato de que, desde o início, o título Tropical foi usado em concomitância ao de Negra baiana. Esse último dado, no entanto, não retirou a validade do que desejava chamar a atenção no artigo: durante algum tempo, a pintura de Malfatti – junto à artista e a seus admiradores –, oscilou entre uma proposição naturalista/nacionalista (o retrato de uma mulher de pele negra, nascida na Bahia) e uma alegoria (a pintura como síntese figurativa das regiões tórridas, entre os trópicos de Capricórnio e Câncer).

A meu ver, tal oscilação diz muito sobre a construção da própria imagem do modernismo de São Paulo que tentava responder à demanda naturalista/nacionalista do debate artístico da cidade e, ao mesmo tempo, buscava criar obras que, pelo próprio título – Tropical – reivindicavam para si a responsabilidade pela criação de um corpo de pinturas e esculturas concebido dentro da grande tradição da arte, porém uma tradição “renovada”, moderadamente “moderna”.

***

Essas questões me voltaram à mente enquanto relia um importante estudo sobre as relações do teatrólogo e jornalista brasileiro Arthur Azevedo com as artes visuais[2]. Ali, acompanhando a série de crônicas/críticas, em que o intelectual refletia sobre a produção e o ambiente artístico carioca do final do século XIX, deparei-me com um artigo, publicado em agosto de 1894, em que Azevedo dizia ter encontrado, no ateliê dos irmãos Rodolpho e  Henrique Bernardelli (então na Europa), “três dos nossos mestres da pintura”: João Zeferino da Costa, Pedro Weingärtner e Modesto Brocos, que ali reuniam seus trabalhos e produziam novas obras.

Ao comentar as pinturas do artista espanhol, radicado no Rio, Modesto Brocos, o teatrólogo após referir-se às paisagens que o artista havia produzido em sua mais recente viagem a Minas Gerais, afirma que, no jardim do ateliê dos Bernardelli, Brocos estava terminando a pintura A redenção de Cã, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Azevedo descreve a obra:

[…] No jardim do ateliê ao ar livre, Brocos está concluindo um grande quadro, A evolução, em que trabalha há já bastante tempo. Não se assustem com aquele título: a evolução de que se trata [é] da evolução das raças no Brasil. O quadro mostra-nos uma família inteira: a mãe africana, preta – a filha, brasileira, mulata – o marido desta, europeu, branco, e o fruto desse casal, um pequenino louro rosado.

O trabalho que esse quadro tem dado ao artista! Como se sabe, é Brocos um dos nossos pintores mais conscienciosos, e tem um respeito absoluto pela sua arte. A falta de modelos de profissão, que se prestem com docilidade a posar durante longas sessões, põe-no em verdadeiros trances [sic]. Entretanto, a obra há de lhe sair completa, e os leitores terão ensejo de admirá-la na próxima exposição de belas artes.[3]

De fato, A redenção de Cã foi apresentada na Exposição Geral de Belas Artes, da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, de 1895, conquistando a Medalha de Ouro daquele certame. Assim, a obra seria reconhecida como um dos principais trabalhos ali exibidos e, muito rapidamente, torna-se uma das pinturas mais significativas produzidas no Brasil, no final daquele século. Tal significação, no entanto, não se deu (e ainda não se dá) pelas suas supostas qualidades técnicas, mas por ter praticamente inaugurado, no campo da arte erudita do país, um nicho de obras cujos temas aderiam à questão racial no Brasil.

***

Antes de continuar nessa questão, no entanto, atento para um fato que os leitores e leitoras já devem ter percebido: Arthur Azevedo, quando descreve a tão afamada pintura, a ela não se refere pelo título que a acompanharia pelo resto de sua trajetória. Ele a denomina A evolução.

Pode ser que o intelectual tenha usado esse título porque, na época em que publicou o artigo, Brocos ainda a pintava e, apesar de bem adiantada, talvez não tivesse ainda recebido o título solene de A redenção de Cã. Tal hipótese é provável. Porém, sete anos depois, em 1901, quando Azevedo comenta uma gravura produzida por Brocos, em que retratava o poeta Gonçalves Dias, ele afirma:

É uma água-forte digna de ser apreciada em Londres, embora passe, como é natural, despercebida no Rio de Janeiro, onde a curiosidade pública só é despertada pelo escândalo. O aplaudido pinto d’A evolução e de A debulhada deu ao grande poeta um olhar penetrante, de uma expressão profunda que reflete, pode-se dizer, a obra do pensador e do artista. Não creio que o instrumento do gravador produzisse ainda, no Rio de Janeiro, uma estampa de tanto merecimento como esse retrato.[4]

"Engenho de mandioca" (1892), óleo sobre tela, 59 x 75,5 cm, assinada M. Brocos, 1892. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram Foto: César Barreto
“Engenho de mandioca” (1892),
óleo sobre tela, 59 x 75,5 cm, assinada M. Brocos, 1892. Coleção Museu Nacional de Belas Artes/Ibram
Foto: César Barreto

 

Mesmo passados alguns anos, Azevedo continuava se referindo à A redenção de Cã como A evolução.

De fato, pode ser que ele tenha absorvido o primeiro título concedido à pintura, talvez pelo próprio Brocos, para ser referida informalmente enquanto ainda era produzida. Pode ser que, mesmo tendo passado um determinado período, Azevedo não tenha assimilado sua nova denominação.

Independentemente de quanto tempo a obra foi conhecida – entre o pintor e seus amigos – como A evolução, e independentemente também do fato de que, ao que tudo indica, somente Arthur Azevedo tenha continuado a denominá-la como tal, o que interessaria sublinhar é que ocorreu, com a pintura de Brocos, o mesmo que, poucos anos mais tarde, ocorreria com Tropical, de Malfatti.

O título A evolução, tão explícito, escancarava o que uma parcela da intelectualidade pensava sobre a solução para a questão racial no país: a miscigenação – caminho “natural” para o embranquecimento da população, a meta a ser buscada para a “evolução” da sociedade brasileira.

Concebida a partir de valores estéticos que enfatizavam, tanto a descrição étnica dos personagens, quanto seu entorno[5], a pintura de Brocos, pela composição e pelo título inicial, autoexplicativo, sintetizava uma resposta direta , produzida no campo da arte, ao debate que então era travado sobre os destinos da “raça” brasileira.

No entanto, na época, a boa recepção das obras de arte no ambiente carioca, necessitava do aval da Escola Nacional de Belas Artes – núcleo do poder legitimador do campo das artes no Brasil, também por ser a organizadora das Exposições Gerais. Brocos não podia usar aquele título tão direto para submeter sua pintura ao escrutínio rigoroso da Escola.

Afinal, apesar de algumas “modernidades” absorvidas, seja no âmbito da técnica, seja na temática, a instituição ainda era a guardiã de princípios sobre o papel das belas artes em uma sociedade, princípios considerados nobres e acima de qualquer circunstância. Ou seja: por mais efetiva que fosse a pintura em seu escopo – inclusive devido ao seu título original – era necessário que ela adquirisse uma dimensão moralizante, exemplar, como toda obra de arte deveria ser, ou tentar ser, para que fosse aceita naquele ambiente fundamentalmente tradicional da Escola.

É por esse motivo que, ao que tudo indica, Brocos buscou, primeiro na tradição bíblica, depois no senso comum, um título que se adequasse à grande tradição de exemplaridade da arte, mesmo que sua pintura, pela técnica e pela temática, tentasse quebrar aquelas amarras.

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Como é sabido, Cã, filho mais novo de Noé, tem sua descendência amaldiçoada pelo pai por tê-lo flagrado nu e embriagado. Noé vaticinou que o filho de Cã, Canaã, assim como seus descendentes, iriam servir para sempre aos seus outros dois filhos, Jafé e Sem. A tradição afirma que Jafé e herdeiros povoariam a Europa, os de Sem, os países do Oriente Médio, e os de Cã e Canaã, o continente africano.

Esta lenda, por muitos anos, justificou, para muitos, que os africanos fossem vistos como amaldiçoados e nascidos para servirem os descendentes de Jafé e Sem, ou seja, os povos europeus e do Oriente Médio.

É disso, então, que passa a se tratar a pintura de Modesto Brocos. Do laico e “científico” A evolução, ela almeja, agora, uma transcendência absoluta e exemplar, a partir da apropriação do texto bíblico.

A história da senhora negra, descendente de Cã e Canaã, à esquerda na tela, é salva, é redimida, pela miscigenação de sua prole. Sua descendência deixa de ser escravizada, mas também deixa de ser negra.

Ao mudar o título da pintura, de A evolução para A redenção de Cã, Modesto Brocos encobre com um verniz de moralidade bíblica o desejo “científico” de apagamento da presença dos negros na história do país.

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É claro que a importância de A redenção de Cã não reside apenas na existência dessa sua outra denominação. Porém, creio que, levado em conta nas reflexões sobre essa que foi, como mencionado, foi uma das pinturas mais importantes do século XIX, aquele pequeno “lapso” laico – logo corrigido –, pode contribuir para ampliar ainda mais as discussões sobre A redenção de Cã e seu papel como elemento catalisador da questão racial no país, durante o início da República.

[1] – CHIARELLI, Tadeu. Tropical, de Anita Malfatti. Novos Estudos CEBRAP, vol. 80, 2008, pág. 13 e segs.

[2] – SILVA, Frederico Fernando Souza. Arthur Azevedo: o crítico de arte como colecionador/o colecionador como crítico de arte. São Paulo: Tese de doutoramento. PPGAV ECA USP, 2016.

[3] – AZEVEDO, Arthur de. Coluna Palestra, Rio de Janeiro: Jornal O Paíz, 12 de agosto de 1894. Apud SILVA, Frederico Fernando Souza. Arthur Azevedo: o crítico de arte como colecionador/o colecionador como crítico de arte. Op. cit. Pág, 236.

[4] – Idem, pág. 291. A obra referida pelo crítico como A debulhada, seria reconhecida como Engenho de mandioca, 1892, hoje no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro.

[5] – Descrição esta, próxima daquela empregada pelo pintor Almeida Jr., embora não com a qualidade das pinturas “caipiras” desse último.


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