Fotografia da série "Coração, espelho da carne". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Palavras Cruzadas, Sonhadas, Rasgadas, Roubadas, Usadas, Sangradas fornece logo no seu título indícios do que se trata a nova exposição, no Instituto Moreira Salles, de Miguel Rio Branco, um dos nomes mais relevantes da fotografia brasileira atual. Engajado também na pintura, nas artes visuais e nas instalações, ele tem fotografado cada vez menos, logo, as obras que integram Palavras Cruzadas são, como o próprio fotógrafo as chama, suas “novas coisas velhas”. Nessa retrospectiva não ortodoxa – organizada pelo próprio artista e por Thyago Nogueira, curador e editor da revista ZUM -, temos um gosto das imagens emblemáticas de Rio Branco e sua “córnea erotizada”.

A visita a Palavras Cruzadas é mais uma caminhada pelas cidades de Miguel, sua experiência urbana e coletiva, com todas suas contradições, com todas suas violências; “forjada, por carne, pele, saliva, suor, sangue, nervo, gemidos, vertigens, provenientes de pugilistas, prostitutas, meninos, idosos, cachorros, que vivem entre facas, bebidas, cigarros, cicatrizes e tatuagens, e habitam as regiões onde as cidades ainda pulsam”, como observa a curadora Luisa Duarte no texto crítico da mostra. Nesta direção, Nogueira também comenta: “A cidade é o palco do encontro de uma série de questões, de culturas, de cheiros, de sabores, de pessoas, totalmente improvável. Quantas metrópoles ele circulou… Eu olho para essas imagens hoje e fico torcendo para que a gente não tenha perdido essa realidade, para que isso ainda tenha um sentido”, complementa.

Uma das três imagens componentes de "Billy's Triptych". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.
Uma das três imagens componentes de “Billy’s Triptych”. Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Para o curador, seria difícil imaginar as interações pessoais capturadas por Rio Branco no mundo asséptico em que tivemos que nos isolar por conta da Covid-19. Em relação ao vírus e às adaptações necessárias para poder reabrir a exposição – com as normas sanitárias respeitadas -, Nogueira explica que as mudanças mais significativas ocorreram no prédio do instituto. Foi indicada uma rota de circulação, estabelecidos horários de visita agendáveis, disposição de álcool em gel pelo IMS Paulista e um limite de pessoas por sala.

O planejamento de Palavras Cruzadas, apesar dos revezes, não sofreu tanto com a pandemia. Em tese, a exposição receberia o público em abril, pouco antes das restrições serem aplicadas em nível nacional. Com isso a equipe caminhava bem para a conclusão da mostra, cujos detalhes finais foram resolvidos por videochamadas com o fotógrafo.

Um ponto que talvez perpasse a quarentena é a retirada dos materiais impressos da mostra. Até mesmo a continuidade dos catálogos será avaliada, devido a um mercado já ferido antes da pandemia e lesionado ainda mais por ela, considerando a falta de circulação das pessoas pelas livrarias e uma queda na venda dos fotolivros, um ponto particularmente negativo neste caso, já que Rio Branco trata a elaboração dos fotolivros como uma obra à parte – aliás no catálogo da exposição podem ser conferidos alguns slides, uns mais derretidos que outros, sobreviventes de um incêndio que queimou boa parte do arquivo do fotógrafo na década de 1980. Na década anterior, no começo dos anos 1970 é quando se inicia o percurso por Palavras Cruzadas; são registros cotidianos de Nova York, em preto e branco, que antecipam várias marcas do artista, os contrastes marcantes e as diagonais afiadas, por exemplo. Tendo iniciado a carreira como pintor, Miguel passa a explorar a fotografia e o cinema: em 1970, aos 24 anos, foi para a cidade de Nova York, para a Escola de Artes Visuais, onde ficou apenas um mês antes de decidir fazer suas próprias explorações de Nova York com fotografia de rua.

Sem título, da série "New York Sketches". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.
Sem título, da série “New York Sketches”. Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Nessas imagens de 50 anos, também é reconhecível sua temática marginal, como nota Luisa Duarte: “Nas duas primeiras fotos que abrem a sequência, avistamos o que podem ser consideradas imagens-clichês da cidade — o Empire State Building e as torres gêmeas do World Trade Center. Cabe notar como ambas surgem deslocadas de suas vocações naturais de cartões-postais — na primeira, o topo do edifício encontra-se deformado; na segunda, as torres surgem ao fundo, ainda em construção, ocupando somente a parte lateral esquerda da foto, enquanto, no primeiro plano, o que se vê é um descampado no qual se ergue uma casa sobre rodas, feita de materiais reaproveitados. Parece haver mais interesse por parte do artista naquilo que acontece ao rés do chão, do que no topo dos edifícios imensos”.

“Vejo que a maior parte da população é marginal. Eu fui atraído por umas situações humanas que me chocavam e que ao mesmo tempo me atraíam por que havia uma força vital alí de resistência”

Afinal, o ambiente urbano que permite os encontros e estimula a vivacidade citada por Thyago é o mesmo que coloca a exclusão num microscópio, um mundo de desigualdades sociais sob esteróides. É uma ambiguidade complicada na qual se arriscar, uma corda bamba entre protesto e embelezamento da tragédia, visibilidade e fetiche, choque e atração, chamado para ação e desesperança. O desafio é multiplicado contando que cada fotografia na exposição é somada a outra num exercício constante do efeito Kuleshov. Para Nogueira, além da habilidade de Rio Branco para a captura dos momentos e sua composição, há de se notar a constante reconstrução dessas cenas em obras maiores, os tais dos “novos velhos”, remontados para provocar a cada vez uma nova reação em quem os observa.

São painéis enormes, alguns monocromáticos, a exemplo do grande paredão vermelho ao fundo da sala. “A cor nunca é usada só pela cor, ela tem que ter uma conexão com uma parte ou da dor ou do prazer que a imagem está trazendo”, afirma Miguel. Ela galga papel ainda maior à medida que o tempo vai passando na exposição; embora não seja uma retrospectiva no sentido literal, Palavras Cruzadas permite um olhar através de uma linha cronológica, ao qual Thyago estabelece a seguinte reflexão: “O grande barato do Miguel é que com o tempo ele foi cortando o lastro documental da imagem, foi tirando da imagem tudo aquilo que ligava ela ao contexto no qual ela foi feita”. O curador explica que “em 1970 e 1980, por exemplo, ele ainda usa 35mm, que é um tipo de imagem com mais agilidade, tirada com a câmera no estômago, porque ele vai em cima da cena, ele quase se debruça em cima das cenas e captura aquilo com o calor do momento. Então, progressivamente, ele vai trocando o 35mm nos anos 1990 pelo 6×6, o que vai gerando imagens bem mais compostas, até uma quase sublimação da própria imagem e da ideia de narrativa no quadro, assim a imagem se torna quase abstrata”.

Fotografia da série "Monalisa". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.
Fotografia da série “Monalisa”. Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Essas provocações podem ocorrer fora da mostra? Para Thyago, a concentração de quem observa a fotografia independe do espaço físico, embora a “exposição ofereça uma outra escala. Você faz com que a pessoa adentre um espaço arquitetônico para sentir alguma coisa, você a envolve dentro de uma cápsula”. Ela “coloca um embate mais físico com o corpo”, diz ele.

“A percepção e o impacto que você tem de uma imagem nessa escala em relação à sua observação, ao seu corpo físico, à proporção que as coisas tomam dentro da imagem, mas também o que aquilo te causa, no deslocamento, nos olhares.”

Sobre Palavras Cruzadas, ele nota mais especificamente: “É muito diferente do que você tem da obra do Miguel vendo as obras com um livro no colo. Na exposição temos, por exemplo, uma instalação, isso é de um tipo da experiência física que penso ser o grande lance das exposições: engajar o espectador, o corpo do espectador na experiência”. O pensamento do artista sobre a questão vai ao encontro da fala de Thyago, acrescentando que “ir a uma exposição não é um ato social, é um ato individual; um ato individual da pessoa com aquela obra que vai ver”.

Rio Branco, na sua fala, reforça o comprometimento com a contemplação. Um olhar mais ou menos atento a um detalhe em Palavras Cruzadas pode ser crucial, afinal estamos falando de trabalhos que estabelecem relações de sentido entre si e que juntos compõem uma segunda obra. “Quis muito focar na questão da sintaxe, na forma como ele articula as imagens e constrói um raciocínio, constrói essas frases visuais, que são produto das combinações e da maneira de editar o trabalho, que eu acho que é muito original”, conta Thyago.

Inimigo à contemplação está o “Mundo Cassino” que Luísa Duarte nomeia, também em seu texto crítico no catálogo da exposição. Um lugar, talvez um ponto de espaço-tempo, onde e quando há um “estímulo monótono que antes anestesia do que calibra ou estimula a percepção”. Um mundo que faz o elogio incessante da aceleração, da vigília, e é inimigo do ócio, do sono, do sonho, da imaginação, sendo, assim, desencantado. É difícil imaginar uma época de ouro que tenha antecipado esse “Mundo Cassino”, mas as dificuldades da lógica 24/7 e da quarta revolução comercial são palpáveis até mesmo na arte. Para Rio Branco, ela virou um elemento ligado ao mercado, a uma grande parte de marketing, “aquela coisa que você pensa, mas não tem uma consistência estética”, e lamenta: “A galeria convence os curadores, e colecionadores, de que aquilo é uma coisa fantástica e não deixa a arte amadurecer por si própria”.


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