Qual é a transcendência da Bienal de Havana depois de 30 de atividade? O maior evento cultural de Cuba  tem passado por diferentes períodos sócio-politico-culturais desde sua criação em 1984. Sobrevive com exposições de qualidade e outras que cumprem o calendário com grande dificuldade, como é o caso da 13ª Bienal. A Bienal reúne sete curadores, todos cubanos: Nelson Herrera Ysla, José Manuel Noceda Fernández, Margarita González Lorente, Nelson Herrera Ysla, Margarita Sánchez Prieto, José Fernández Portal, Ibis Hernández Abascal e Lisset Alonso Compte, além dos convidados internacionais que integram a programação de conferências e exposições. Nelson Herrera Ysla lembra que a Bienal foi criada em 1984 adotando um modelo tradicional para ganhar experiência de curadoria, produção, montagem. “Dois anos depois  abriu  as portas aos países em desenvolvimento e se inscreveu na história da arte como a primeira Bienal global a convidar artistas da África, Ásia e Oriente Médio, para juntar-se aos do Caribe e América Latina. Ele concorda que ainda não fizeram  mudanças substanciais, mas acredita nelas em um futuro próximo. “Hoje a novidade é a inserção de outras cidades cubanas como vias de investigação e busca de novos públicos”. A Bienal de Havana exercita o ativismo do trabalho coletivo e colaborativo, todas as instituições da cidade podem ser acionadas. Nelson diz se sentir hoje mais animado diante de novas ideias, em termos de estrutura e modelo. “Atualmente posso fazer coisas que pareciam impossíveis ou distantes anos atrás”. O  traço fundamental do evento é lançar artistas saídos da Escola Superior de Arte (ISA), com expressiva formação teórico- conceitual.

Nesta última Carta de Cuba coloco foco em quatro artistas, filhos legítimos da Bienal que ganharam o mundo:  Kcho (Alexys Leyva Machado), Carlos Garaiocoa, Los Carpinteros e René Francisco Rodriguez. Todos com carreiras estabelecidas e poéticas identificáveis e, nesta edição da Bienal, reunidos na mostra Museus Interiores, no Museu Nacional de Bellas Artes.

Kcho é a cara de Cuba: criativo, inquieto, alegre e senhor de si. Constrói e codifica visualmente objetos, retirando-os de seu cotidiano e fazendo-os dialogar com o espaço. A nostalgia que interliga terras distantes domina Regata, instalação de 1993 e realizada aos 23 anos, um ano antes de Kcho entrar para o acervo do Museu Reina Sofia, em Madri, e integrar o elenco da galeria Barbara Gladstone, de Nova York, com 24 anos. O predomínio do barco em sua obra, símbolo recorrente no imaginário coletivo dos cubanos, é traduzido tanto em desenhos gestuais como em esculturas ou instalações feitas de aglomerados de objetos que se nutrem de várias poéticas. O mar funciona como o farol de sua imaginação, matriz de uma paixão que Kcho alimenta até hoje, aos 49 anos. Ir de uma margem a outra é muito natural para quem é ilhado duplamente: ele nasceu na Ilha da Juventude, um estado de Cuba. Como diz Foucault: “Em civilizações sem barcos, os sonhos secam” .

Ao analisar os princípios da obra de Kcho chega-se às arquiteturas primárias, arquétipas, que críticam as técnicas formais. Nesta viagem a Havana visitei mais uma vez seu Centro de Arte e Ateliê Romerillo. Internamente o museu particular abriga parte de suas obras em papel e materiais perecíveis e a céu espaço, as esculturas agigantadas e que recentemente foram expostas na Itália. Numa perspectiva poética, a obra de Kcho em 2002 tomou todo o MUBE – Museu Brasileiros da Escultura em São Paulo, em 2002, com a retrospectiva El Huracón (O Furacão), com  minha curadoria. O trabalho de Kcho mantém camadas de inter-relação com o sistema de arte. Com menos de trinta anos entra para o acervo do MoMA de NY, do MoCA de Los Angeles e do Reyna Sofia, de Madri, entre outros. O elemento chave do crescimento de Kcho foi o interesse despertado por críticos como Pierre Restany, Harald Szeeman e Achille Bonito Oliva que o apoiaram fortemente.

Como afirmou o geógrafo Milton Santos, a arte de rua, naturalmente urbana e pública, traz forte carga política por ocupar espaços fora dos campos institucionalizados da arte e por tocar as realidades sociais de perto.

Carlos Garaicoa reconfigura o cotidiano das cidades com recortes de espaço e tempo, do sujeito e do objeto. Partitura (2017) é a síntese desse pensamento, uma sinfonia que toma grande sala do Museu Nacional de Bellas Artes de Cuba. Desenvolvida ao longo de dez anos, a instalação que já foi exposta em São Paulo, tem a participação de mais de 70 músicos de rua, de Madri e Bilbao. O encontro dos intérpretes se materializa na instalação composta por 70 suportes de partituras. Tabletes e fones de ouvido presos a eles exibem desenhos criados por Garaicoa, inspirados nas melodias. Trata-se de uma grande orquestra com 35 vídeos de músicos ambulantes tocando peças diversas. Uma partitura final, elaborada pelo músico cubano Esteban Puela, como fechamento deste conglomerado de sonoridades citadinas, é transmitida para uma grande tela digital que assume a direção da orquestra. Com essa obra Garaioca homenageia as cidades, lugar de vivências, afetos, derrotas, improvisos. Também exalta o músico de rua, símbolo da máxima “arte é vida”.

Los Carpinteros, em uma de suas últimas atuações como dupla, coloca em Alacenas, de 2016, uma visão crítica do resultado das fortes tormentas que invadem o Caribe. Os sons emitidos pelos furacões foram gravados e reproduzidos a partir de desgastados armários de cozinha de onde se escuta o barulho aterrador dos furacões. Eu mesma pude experimentar em Havana essa sensação em 2006, quando estive próxima ao epicentro do Furacão Kate, ranqueado como um dos mais fortes deles. Os armários de cozinha, velhos e vazios, incorporam outras questões como a situação de escassez e precariedade.

Grandes mostras podem ser mediações entre o artista e o mercado. René Francisco Rodríguez também se notabilizou ainda jovem, a partir de suas experimentações na Bienal de Havana. O sentimento que impregna sua instalação Talles de Reparación, um de seus trabalhos mais significativos, está mais forte na versão atualizada. Ele armazena experiência, interação dos objetos e pessoas neste diário pessoal e profissional. Ao longo de sua vida foi incorporando à sua obra uma coleção de testemunhos materiais e simbólicos que vão se acumulando no local de trabalho. Esta instalação acumulativa é uma obra in progress muito próxima a do brasileiro Paulo Brusky.

Os quatro artista formam um núcleo lógico e de consenso, mas vale lembrar que há pelo menos duas dezenas de outros artistas, igualmente resolvidos profissionalmente, que gravitam por exposições internacionais.


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