"Chão-Pão", segundo episódio de "A extinção é para sempre", projeto idealizado por Nuno Ramos. Foto: Matheus Brant

Em memória a todos que perderam a vida na pandemia, uma chama se acendeu esta semana no Sesc Avenida Paulista. Um pequeno isqueiro zippo, que geralmente manteria a flama por cerca de quinze segundos, foi aceso e assim ficará de forma ininterrupta por um ano. A escultura é o primeiro episódio de A extinção é para sempre, projeto multilinguagem idealizado por Nuno Ramos e realizado pelo Sesc São Paulo com apoio do Goethe-Institut. Fechada para visitação, a obra pode ser apreciada no site da iniciativa, onde sua transmissão acontecerá ao vivo até que o fogo se extinga. 

Envolvendo artes visuais, literatura, música, teatro, dança e cinema, o projeto é composto de sete episódios, desenvolvidos através de diálogos com artistas de diversas origens e linguagens, como a escritora Noemi Jaffe, o cineasta Jorge Bodanzky, a atriz Edna de Cássia, o coreógrafo Eduardo Fukushima e o encenador Antônio Araujo. “É quase que a configuração de um corpo que anda junto, uma orquestra de câmara, na qual esses trabalhos tem que jogar um com o outro, mas têm muita voz independente”, explica Nuno Ramos.

Apesar da potência individual de cada ato e de seus conceitos próprios, os episódios giram em torno de uma mesma questão: a busca por uma resposta poética à conjuntura brasileira e à pandemia, situação que para Nuno se configura através de uma série de extinções. “O que sinto é que não vamos voltar ao que era antes através de uma eleição. Vamos precisar de muito mais”, diz. E completa: “Existe a entronização da própria violência na Presidência da República, como um projeto que teve o aval da elite e do próprio ressentimento popular. O Brasil está passando por uma tragédia inacreditável, não só pela Covid-19 – que é uma espécie de visualização explícita disso -, mas também na destruição minuciosa de toda uma trama institucional.”

O artista Nuno Ramos durante os ensaios de Chão-Pão. Foto: Matheus Brant

Para o artista, essa situação foi agravada ao que o mundo político oficial se paralisou, sem conseguir superar as divergências e apontar um caminho de reação à barbárie. “Tenho a impressão de que a gente precisa realmente criar esse lugar de respiração, de trocas, de sublimação, de simbolização da vida. Então acho que tem um pouco desse desespero: como é que eu faço frente a uma situação como essa que a gente está passando?”. Junto a outros artistas, Nuno agiu pela cultura, expressando-se através de múltiplas linguagens de forma simultânea. “É uma forma de fazer arte ‘a quente’, uma produção em movimento, que vá contra o atual estado de apatia e responda aos assuntos que percorrem o espaço público hoje – como o luto, a violência, a ameaça às instituições e a relativização da nossa história”, declara.

A arte!brasileiros conversou com o artista sobre os conceitos que envolvem cada um dos sete episódios de A extinção é para sempre. Atualmente configurado como um laboratório artístico. O projeto segue em desenvolvimento e está previsto para durar um ano, o tempo da chama acesa no zippo.

A caminho da extinção

Se em 2020, em Marcha à Ré – performance feita pelo artista em parceria com o Teatro da Vertigem e comissionada pela Bienal de Berlim – buscava-se reverter a energia de descaso do governo frente à pandemia de coronavírus, homenageando suas vítimas, CHAMA aprofunda essa ideia, ao se configurar como um gesto artístico de luto. Nas próximas semanas, o público poderá participar ativamente da obra, entrando na transmissão ao vivo. “Se uma pessoa no Canadá quiser fazer uma fogueira e nos mandar, colocamos o fogo na transmissão. Outro vai pegar uma lata de combustível embaixo de um viaduto em Jacarepaguá? Coloco o fogo dele. Assim, vamos mantendo uma chama acesa ao vivo, numa espécie de monumento da chama eterna”, explica Nuno.

Imagem horizontal colorida. Isqueiro zippo aceso. Monumento virtual CHAMA, de Nuno Ramos, parte do projeto A EXTINÇÃO É PARA SEMPRE.
“CHAMA”, monumento virtual que compõe o projeto “A extinção é para sempre”, de Nuno Ramos. Foto: Eduardo Ortega

Entre os dias 28 e 30 de maio, Chão-Pão vai ao ar, sempre às 20h30. Nesse episódio, um grupo de performers monta um chão feito com lajotas e pães impróprios para consumo. Sobre esse terreno, caminham e dançam, quebrando e modificando esse chão-pão. No meio da cena, dois monitores trazem em loop trechos dos filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, de Glauber Rocha, nos quais a fala “a culpa não é do povo” está presente. “Os atores jogam um pouco com a ambiguidade dessa frase e dessa estrutura. Com esse pão sustentando e sendo despedaçado por esse chão do qual ele é a base original, que ele é quem segura”, explica. “Então tem algo da perda de horizonte popular, da perda de vocalização do que era ainda vocalizado há alguns anos e que foi sumindo.”

Essa dificuldade de expressar as situações está presente também no terceiro episódio de A extinção é para sempre, construído a partir de Os Desastres da Guerra, de Goya. Nele, teremos um tableau vivant (pintura viva), no qual atores vestidos de soldados napoleônicos vocalizam os duros depoimentos de pessoas que perderam seus parentes na guerra, colocando em foco as vítimas da violência do Estado. A brutalidade dos relatos os torna difíceis de ouvir e Nuno buscou trazer essa ideia à apresentação. Para isso, os textos foram traduzidos para o braile e então transformados em partitura percussiva. “No braile, temos dois pontos por casa: um tempo forte e um tempo fraco”, explica. É a partir disso que os músicos tocam os relatos, sobrepondo a fala dos atores. “Estamos lidando com a impossibilidade de representação de uma violência dessas, através de uso amalucado de todas as linguagens”, conta.

Registro de “Os Desastres da Guerra”, terceiro episódio de “A Extinção é Para Sempre” Foto: Matheus Jose Maria

Os ataques ao meio ambiente e às identidades indígenas são outro ponto de barbárie que vem sendo denunciado nos últimos anos. É visando se aprofundar nas discussões ecológicas e antropológicas que o filme Iracema – uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, é retomado em Iracema Fala. O episódio, que está previsto para ser lançado em agosto, funciona como “uma espécie de reparação e também uma atualização dessas questões”, explica Nuno. Para isso, Edna de Cássia, atriz principal do filme, que saiu da carreira artística logo após o prêmio recebido por sua atuação, revisita o texto que interpretou nos anos 70, dirigindo e interferindo em uma reencenação.

O quinto episódio traz foco à polêmica em torno de monumentos espalhados por todo o Brasil. Elaborado em colaboração com a escritora Noemi Jaffe, o trabalho busca reinaugurar uma estátua em uma das praças da cidade de São Paulo. Porém, ao invés das autoridades comumente chamadas para discursar nesses eventos, uma sequência de reinaugurações convida pessoas de várias configurações sociais, que travam discursos a partir de suas vivências dissidentes – “como que tentando reencontrar um espaço de significação para aquela escultura que já não quer dizer nada, ou que quer dizer algo muito ruim, que carrega uma memória muito violenta”.

Então, o luto volta à cena. Helióptero, sexto episódio, retoma Antígona, que enfrenta o Estado para poder velar o corpo de seu irmão morto. Em A extinção é para sempre, a tragédia grega é atualizada; Creonte, o Estado, passa a ser representado por uma máquina de guerra: um helicóptero. Com sua linguagem militar e a memória de violência e assassínio que carrega ao passar sobre as favelas brasileiras, a aeronave enfrenta Antígona, que no chão se expressa através do funk, projetado por caixas de som voltadas ao céu.

Do luto à extinção de fato, o projeto se encerra com o episódio que o dá nome. Uma pequena peça, escrita por Nuno Ramos e dirigida por Antônio Araújo, conta a história da última tartaruga gigante, que não conseguiu reproduzir e levou consigo seu código genético. Ao lado de um personagem sobrevivente de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, a tartaruga palestra sobre sua vida e as extinções que permanecem em sua memória.

O projeto será disponibilizado de forma virtual ao longo desse um ano na plataforma de A extinção é para sempre, bem como nas redes sociais do Sesc Av. Paulista, e está sujeito a alterações de cronograma devido à pandemia de coronavírus. Porém, como coloca Nuno Ramos no texto base da iniciativa: “Vivemos algo da ordem do irreversível, numa proporção cujo desenho é difícil definir. Podemos perder tudo e, por isso, o que quer que façamos agora é dramático e decisivo. A hora é nossa”.

Imagem horizontal em tons de vermelho, com escritos em preto. Reprodução da tela principal da plataforma online de A EXTINÇÃO É PARA SEMPRE. Um isqueiro zippo aceso é encoberto por uma série de finas linhas vermelhas, que criam um filtro da cor na imagem. Sobre o zippo lê-se em caixa alta, com letras pretas, A EXTINÇÃO É PARA SEMPRE, e espalhados os nomes de cada um dos episódios do projeto, sendo HELIÓPTERO, CHÃO-PÃO, MONUMENTO, CHAMA, IRACEMA FALA, OS DESASTRES DA GUERRA e A EXTINÇÃO É PARA SEMPRE.
Tela principal da plataforma online “A extinção é para sempre”. Foto: Reprodução

A extinção é para sempre 
ONDE: Clique aqui para acessar a plataforma virtual do projeto
QUANDO: 25/05/2021 a 25/05/2022


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