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34ª Bienal de São Paulo inicia programação de exposições em fevereiro

Beatriz Santiago Muñoz, "That which identifies them like the eye of the cyclops", 2016

A 34ª Bienal de São Paulo começou com a divulgação de suas atividades mais cedo. Isso porque a edição com curadoria-geral de Jacopo Crivelli Visconti terá início em fevereiro de 2020, com exposições no pavilhão do Ibirapuera e em instituições parceiras do evento. O projeto atual faz um movimento para inserir a Bienal no fluxo da cidade, criando ações que não se encerram apenas na mostra principal, que ocorre em setembro.

“Faz escuro mas eu canto” são os versos do poeta amazonense Thiago de Mello que dão título ao evento. A ampliação da rede institucional foi comentada por Visconti no mês de maio deste ano em entrevista à ARTE!Brasileiros, na qual relatou que essas parcerias evidenciam o desejo de trabalhar com uma linha curatorial que evidencia uma espécie de poética das relações, mostrando as várias possibilidades de criação de diálogos, em instâncias institucionais e curatoriais, mas também com o público: “O desafio para lidar com todos esses públicos é não ser nem hermético, nem excessivamente simples e, ao mesmo tempo, falar de uma maneira direta e honesta com todos eles”, declarou à época.

No primeiro informe de atividades, a novidade mencionada é que o Pavilhão da Bienal será tomado por três individuais entre fevereiro e agosto. A primeira, programada para 8 de fevereiro, será a da artista peruana Ximena Garrido-Lecca. Atualmente, a artista vive e trabalha entre Lima e Cidade do México. A exposição terá, em sua abertura, a apresentação da performance inédita A Maze in Graze, de Neo Muyanga, artista sul-africano que traz em sua prática uma conexão indelével com a música. Tanto os trabalhos de Garrido-Lecca quanto o de Muyanga desaguam em discussões que discutem as narrativas e as contranarrativas de processos coloniais.

No dia 25 de abril, é a vez da brasileira Clara Ianni ter uma mostra solo no espaço, acompanhada na abertura por performance de autoria do argentino León Ferrari, Palabras Ajenas (1965-1969). Nela, a violência, a guerra e o poder se apresentam nos diálogos criados a partir de apropriações de citações de personagens históricos, se conectando ao trabalho de Ianni que aborda a percepção do tempo, da história e do espaço no capitalismo globalizado. Encerrando as exposições no Pavilhão, com abertura em 18 de julho, a mostra da estadunidense Deana Lawson apresenta um conjunto de imagens produzidas em Salvador, na Bahia, como parte de sua série de fotos que retratam culturas que têm origem na diáspora africana. Esta última não terá uma performance, como nas anteriores.

Por outro lado, na abertura da mostra principal deve ser apresentada a obra A ronda da morte, de Hélio Oiticica, criada em 1979, mas nunca antes apresentada. A performance foi concebida pelo artista como uma resposta controversa à esperança otimista da população brasileira após o declínio da ditadura, já que ele acreditava que para a justiça social ser plenamente alcançada eram necessárias outras mudanças nas estruturas.

Por sua vez, nas instituições parceiras, as novidades anunciadas até então pela organização da 34ª Bienal de São Paulo dão conta de uma exposição individual da porto-riquenha Beatriz Santiago Muñoz no espaço Pivô, localizado no Edifício Copan. É a primeira mostra divulgada em uma das instituições parceiras da Bienal e terá Fernanda Brenner como curadora. A mostra acontece entre 29 de agosto e 7 de novembro e a artista também participa da exposição principal.

Além de Beatriz, outros dois artistas confirmados na mostra principal são o equatoriano Adrián Balseca e o austríaco Philipp Fleischmann. Ambos participaram de conversas organizadas pela instituição na Oficina Cultural Oswald de Andrade, em outubro e novembro deste ano, onde apresentaram as propostas das obras que serão exibidas na Bienal.

Além de Jacopo Crivelli Visconti como curador-geral, a 34ª Bienal de São Paulo tem Paulo Miyada como curador-adjunto e Carla Zaccagnini, Ruth Estévez e Francesco Stocchi como curadores convidados. Durante o ano de 2019 o projeto foi apresentado em diversos países, como Dinamarca, Argentina, Noruega, Equador e Irlanda. As parcerias institucionais incluem também organizações de fora do Brasil, evidenciadas na produção das mostras individuais que serão realizadas no Pavilhão, sendo a de Ximena uma coprodução com o CCA Wattis (EUA), a de Clara com o CCA Lagos (Nigéria) e a de Deana com Kunsthalle Basel (Suíça). A performance de Muyanga é uma iniciativa conjunta com a Bienal de Liverpool (Inglaterra).

Espaço Cultural Porto Seguro exibe obras icônicas e fotografias antigas de Cruz-Diez

Carlos Cruz-Diez
Carlos Cruz-Diez, "Ambiente Cromointerferente [Chromointerferent Environment]", 1974/2019. Exposição "Carlos Cruz-Diez. El color haciéndose", Museo de Arte Contemporáneo (MAC), Cidade do Panamá, República do Panama, 2019. © Photo: Articruz S.A. Panama / Rafael Guil

O Espaço Cultural Porto Seguro, em São Paulo, abre a mostra Cruz-Diez: a liberdade da cor, em 9 de novembro. A exposição é a última a ser apresentada em todo o mundo que teve a chancela do artista, que participou de todo o processo de concepção ao lado do curador Rodrigo Villela, diretor executivo e artístico da instituição paulistana.

Três fisiocromias e uma transcromia integram a primeira sala da exposição. Em uma delas, uma pequena fisiocromia de 1965, o trabalho de Cruz-Diez ainda passava por um período pré-industrial, conta Villela. “Depois o trabalho dele vai se tornando muito industrial. Ele tinha essa procura de fazer com que o trabalho saísse da escala de artesão. Ele falou que não se dedicou à pintura porque a pintura tinha muito artesanato e ele queria algo que pudesse ter mais escala”, comenta o curador.

O artista era muito assertivo naquilo que acreditava. Em texto de 1967, ao qual deu o título de Minhas ideias sobre a Cor, ele propõe o conceito de “cor autônoma”, na qual a cor não depende de forma, especificidade ou de suporte. E, desta forma, ele extrapola suportes e técnicas, utilizando vídeos, pinturas, instalações, fotografias e se apropriando de paredes, de ruas e até mesmo de jardins.

No mezanino da instituição, o público encontra a obra Labirinto Transcromia. 1965/2017, pela primeira vez sendo exibida no Brasil. No subsolo, salas mostram Ambiente Cromointerferente, 1974/2019 e Cromossaturação, 1965/2004, além de duas obras efêmeras de parede com o mesmo princípio de combinação das cores. Encerrando a mostra, um núcleo mais documental abarca vinte fotografias em preto e branco tiradas por Cruz-Diez no início de sua carreira e ainda dois vídeos: um com fotografias de obras em espaços público e outra com depoimentos dele sobre seus trabalhos.

Art Weekend chega à sua quarta edição em São Paulo

Obra de Dan Coopey exposta na Galeria Estação. Foto: João Liberato

Acontece neste final de semana, em São Paulo, entre os dias 8 a 10 de novembro, a 4a edição do Art Weekend. Com exposições, performances, conversas, lançamentos de livros e visitas guiadas, o evento conta com a participação de mais de 40 galerias da cidade, nas regiões do Centro, Pinheiros, Vila Madalena, Itaim e Jardins (veja todas as participantes no site).

Realizado pela Associação Brasileira de Arte Contemporânea (ABACT), o Art Weekend começa na noite do dia 8 com um ciclo de debates e palestras no Cubo JK, do shopping JK Iguatemi (patrocinador do evento). Ao longo do fim de semana, o Talks, com curadoria de Paula Alzugaray, conta com a participação de nomes como as artistas Sonia Gomes e Mariana Manhães, o diretor artístico do IMS, João Fernandes, os curadores Mirtes Marins de Oliveira e Ricardo Resende, os colecionadores Beatriz Yunes (Coleção Ivani e Jorge Yunes) e Pedro Barbosa (MoMA e Pinacoteca), entre outros.

Para além do Talks, são destaques o programa Galerias recebem Galerias, no qual casas paulistanas recebem parceiras de outros estados (casas do Rio, Curitiba e Brasília), e as Visitas-caminhadas (veja abaixo os trajetos). “O Art Weekend é uma celebração em torno da arte. Queremos formar novos públicos e aproximá-los de artistas, curadores e galerias”, afirma Luciana Brito, presidente da ABACT, em texto de divulgação. “Nesta edição, comemoramos também a parceria internacional com o Gallery Weekend, que reúne organizações independentes, feiras de arte e associações de arte contemporânea de todo o mundo”, completa.

Visitas-caminhadas
Em parceria com o coletivo Cartografias Afetivas Urbanas (CAU), o Art Weekend São Paulo oferece ao longo do final de semana seis roteiros de visitas-caminhadas. Os circuitos podem ser realizados em grupos conduzidos por educadores do evento, com transporte gratuito, ou individualmente, por meio de audioguias disponíveis para download no site. Organizados por região, os três roteiros conduzidos têm duração média de 1h30, com tradução simultânea em libras, e comporta, em cada um, até 30 pessoas. Confira a seguir a programação:

Jardins Leste: Galeria Kogan Amaro, Galeria Luisa Strina, Sé Galeria, Galeria Berenice Arvani, Bergamin & Gomide, Galeria Superfície, Casa Triângulo, Zipper Galeria.
Ponto de saída: Galeria Kogan Amaro, Alameda Franca, 1054
09/11 (sábado) – às 11h (acessível em libras) e às 15h | 10/11 (domingo) – às 15h

Pinheiros: Bolsa de Arte, Fortes D’Aloia & Gabriel, Galeria Milan, Galeria Aura, Galeria Raquel Arnaud, Galeria Eduardo Fernandes.
Ponto de saída: Bolsa de Arte, Rua Mourato Coelho, 790
09/11 (sábado) — às 11h e às 15h | 10/11 (domingo) – às 15h (acessível em libras)

Jardins Oeste: Galeria Rabieh, Galeria de Babel, SIM Galeria, Galeria Marcelo Guarnieri, Paulo Kuczynski Escritório de Arte, Mendes Wood DM, Galeria Frente.
Ponto de saída: Galeria Rabieh, Alameda Gabriel Monteiro da Silva, 147
09/11 (sábado) — às 11h e às 15h (acessível em libras) | 10/11 (domingo) – às 15h
(CLIQUE AQUI para se inscrever).

Os outros três roteiros são temáticos e estão disponíveis em audioguias no site do Art Weekend: “Decifra-me ou te devoro” (Galeria Estação, Janaina Torres Galeria, Galeria de Arte André, Almeida e Dale Galeria de Arte, Gabriel Wickbold Gallery, Galeria Caribé, Galeria Verbo), Arquiteturas do Centro: exibidos e escondidos (Central Galeria, Galeria Jaqueline Martins, Galeria Vermelho) e Jardim Europa: a floresta no jardim (Galeria Arte Formatto, Galeria Nara Roesler, Galeria Lume, Galeria Marilia Razuk, Luciana Brito Galeria, Galeria Karla Osorio, Arte 57 – Renato Magalhães Gouvêa Jr.).

Neste mesmo fim de semana acontece na Argentina a Art Weekend Buenos Aires. Saiba mais aqui.

 

Ivald Granato: o furor de um performer

Granato no MAM do Rio com Lenira.

Ivald Granato morreu há três anos, mesmo sem a sua presença carismática a obra de cinco décadas continua a intrigar. Deitada no meio da retrospectiva My Name is Ivald Granato Eu Sou, no Sesc Belenzinho, a jovem vestida com cores berrantes, como as obras do artista, tentava entender tudo aquilo de outro ângulo. De início, encarei como recriação de uma performance, depois descobri que ela foi atraída pela obra de Granato, artista o qual ela não conhecia antes da retrospectiva. Performance com cara e assinatura de Granato. Ele aplaudiria.

Na busca incessante do imprevisível, do jogo efêmero, do risco, da alegria, sem se importar com as consequências, Granato traçou uma trajetória que o levava naturalmente aos palcos, com performances marcantes. Segui seu percurso em São Paulo e fui espectadora constante de suas performances, algumas delas feitas em festas na casa de amigos. A retrospectiva, com curadoria de Daniel Rangel, embora montada em um espaço pequeno para o volume de obras, que chega a 500, dá conta da abrangência da produção de Granato. Arte postal, pinturas, desenhos, vídeos, cadernos de artista, objetos, esculturas, mostram um artista que produzia febrilmente, com humor e prazer. Na sala principal, em um imenso painel, exemplares de suas linguagens convivem lado a lado, formando uma espécie de video wall que exibe, simultaneamente, todas suas fases.
A pintura, sua paixão primeira, é o eixo central de sua obra onde tudo começa e termina. Nas mãos de Granato, o pincel se transforma em projétil que desenha órbitas e espaços multicoloridos. Pintura e desenho correm juntos sobre as telas, derivados de pinceladas rápidas que se entremeiam e chegam ao desenho. Granato concordava que sua pintura estava ligada, indiretamente, ao automatismo surrealista deixando o inconsciente vir à tona.

Envolvido com tintas e pinceis desde os seis anos, o artista na adolescência pintava sob a influência do americano Robert Newman. Suas imagens, movidas dentro da cultura experimental, revelam Granato protagonista de um diálogo muito próximo ao público. Suas narrativas são construídas com proximidade e distância, influenciadas, especialmente, pelas inquietações dos anos 80.

Uma de suas performances marcantes ocorreu em 1978 em um evento idealizado por ele, Mitos Vadios, que ocorreu em um estacionamento da rua Augusta. O happening foi uma paródia crítica, debochada e irreverente da 1ª Bienal Latino Americana que acontecia no Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, com o título Mitos e Magia. Foi a primeira e única edição dessa bienal, eliminada do mapa depois de calorosas discussões entre críticos latino-americanos convidados pela Bienal para avaliar a importância de sua permanência. Granato chegou à festa travestido de Ciccillo Matarazzo Sobrinho e Lygia Pape de Yolanda Penteado, mulher do Ciccillo, para juntar-se a Hélio Oiticica, José Roberto Aguilar, Marta Minujin, Gabriel Borba, Regina Vater, Ubirajara Ribeiro e muitos outros. Um ano depois receberia o prêmio da ABCA de melhor pintor de 1979.

 

As performances como emergências estéticas são transgressoras dentro de uma cultura em que o corpo é voltado para ele mesmo, a partir das convenções vigentes. Para Granato, performances também são lugares de reencontro e atuações coletivas. Salomé e Luciano Castelli, dois pintores ligados ao neoexpressionismo, integrantes do movimento “os selvagens de Berlim”, atuaram com ele em São Paulo. Granato e Salomé executaram a quatro mãos um painel de 6×1,5m e dois anos depois, com Castelli, fez gravura a quatro mãos, além de performance na Galeria Subdistrito. Ambos permaneceram dentro de um cubo transparente de plástico pintando como Pollock. Isso aconteceu durante a 19ª Bienal de São Paulo, em 1978, da qual Castelli e Salomé participaram, sob a curadoria de Sheila Leirner.

Na pintura, seu interesse percorre formas inesperadas libertando-as da tela, transformando-as em objetos desenvolvidos sob influência expressionista em direção a um experimentalismo de técnicas e materiais. Com Granato, o processo criativo adquire um caráter de prazer, com capacidade de usar infinitas maneiras para atingir uma arte nada dramática, nada previsível ou nada burocrática.

O MAR não vai acabar

Em meio a uma enorme precarização em que o governo federal colocou a maioria das instituições nacionais, o sucateamento tem sido seríssimo no que envolve o Museu de Arte do Rio (MAR). O museu vem realizando um trabalho incrível junto à população do Rio de Janeiro e se preocupando em acercar artistas nacionais e internacionais, além da construção de um acervo riquíssimo de arte brasileira.

O diretor cultural Evandro Salles e a diretora executiva Eleonora Santa Rosa saíram de seus cargos como parte desse enxugamento.

Em paralelo, tentam-se soluções de resistência como uma forma de não permitir a destruição total da história do museu. A seguir, publicamos comentários do crítico de arte e curador, que hoje trabalha voluntariamente para a formação do acervo do museu e junto algumas curadorias, Paulo Herkenhoff:

“O MAR minguou muito, mas não vai fechar. A equipe teve que ser muito reduzida, mas de modo bem pensado em termos estratégicos para não fechar. Fica a segurança para manter o museu funcionando defeso e corretamente, uma equipe básica de monitores para dar a continuidade possível ao projeto educativo e uma sólida equipe de museologia, incluindo a montagem para cuidar do acervo e receber as novas doações.

Fotografias realizadas para o projeto www.museubr.org, com patrocínio da Petrobras

Na próxima semana chega uma obra prima do barroco brasileiro: uma talha do Vieira Servas, dito “o rival do Aleijadinho em Ouro Preto”. No próximo dia 30 de novembro se inaugura a exposição da Aranha de Louise Bourgeois, graças ao Itaú Cultural. Farei a curadoria de modo voluntário, agregando palestras, visitas guiadas e projeção de videos. Há uma empresa que quer implantar instalações para a captura de energia solar, que custeará o ar condicionado. Estão sendo programadas as exposições A casa carioca, Rio, onde começou a imigração japonesa para o Brasil, Maxwell Alexandre, De São Paulo para o MAR (doações paulistas) Tudo para o ano que vem.

 

São tempos difíceis, duros, mas não perdemos a crença na instituição, o entusiasmo e a direção para o futuro.


O Luis Chrysostomo de Oliveira, presidente do Conselho do MAR, continua zelando pela instituição e mantendo a ininterruptibilidade do projeto. Nesses dois anos de crescentes dificuldades, o MAR se tornou um dois dois museus mais visitados do Brasil, ao lado do MASP. O cuidado do Luiz Chrysostomo tem sido não permitir que as relações com o público percam a energia e o MAR continue sua vitalidade.

2020 se avizinha como mais promissor: será escolhida uma nova OS, parceiros tradicionais estão ampliando sua contribuição financeira, há boas perspectivas de novos doadores significativos. O arco da educação será restaurado, desde projetos para a primeira infância, até a retomada do MAR na Academia, com cursos, seminários e mesas redondas, como Louise Bourgeois e suas contemporâneas brasileiras, Clarice Lispector.

São tempos difíceis, duros, mas não perdemos a crença na instituição, o entusiasmo e a direção para o futuro. De minha parte, enquanto o Luiz Chrysostomo estiver no MAR, estarei junto, trabalharei como voluntário enquanto o museu precisar.”

Assim como o MAR, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV Parque Lage) está sendo esvaziada. Nas palavras de Katia de Marco, presidente da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC), publicadas em 4 de novembro no seu perfil de Facebook:

“Deixo aqui a minha indignação solidária ao Museu do Amanhã, Museu de Arte do Rio e Parque Lage, por estarem sendo alvo da censura e do desmonte das instituições culturais pelos governos conservadores e autoritários. A meu ver, tal fato não se dá pela ignorância e descaso destes para com a cultura, mas SIM por saberem justamente da importância social do setor nas ações libertadoras que estampam a História da humanidade, formando consciências críticas em prol de verdadeiras transformações sociais”.

 

Carlos Motta aponta raízes do preconceito e racismo no século 21

Carlos Motta, still de "Corpo Fechado", 2018

“Negro, escravo, africano, sodomita, feiticeiro, exilado”, afirma Paulo Pascoal, o ator que interpreta José Francisco Pereira, sequestrado da República do Benim para Pernambuco, no século 18, e vendido como escravo. Lá, usava o sincretismo como meio de sobrevivência. Em 1731, Pereira foi julgado pela Inquisição de Lisboa por feitiçaria e sodomia.

A fala na cena de Corpo Fechado: a obra do diabo, de Carlos Motta, na galeria Vermelho, sintetiza as questões que envolvem o Brasil hoje, raízes do racismo fascista que polarizam o país. Motta, contudo, vai mais fundo no filme, associando à escravidão com a inquisição de forma clara através da Carta 31 – O Livro de Gomorra, escrito em 1049 por São Pedro Damião, considerado o primeiro texto da Igreja Católica que condena as práticas homoeróticas.

Corpo Fechado: a obra do diabo foi realizado e exibido me Portugal, no ano passado, em uma encenação sofisticada que mescla além da história de Pereira e da Carta 31, trechos das Teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin (1892 – 1940), texto canônico da crítica sobre as convenções do historicismo. Próximo do filme, está a projeção do vídeo “Eu marco minha presença com minhas próprias crenças”, onde Paulo Pascoal é entrevistado por Motta e conta as dificuldades que passou quando assumiu sua homossexualidade em Angola, seu país natal.

Essa espécie de espelho multiplicado, onde a história real do personagem no filme se reflete na própria história do ator que o interpreta, é chave para a compreensão da mostra Nós, x inimigx, que ocupa toda a galeria, e parece mais uma mostra institucional que em um espaço comercial.

Nela, Motta cria uma narrativa clara onde os trabalhos são peças que se por um lado abordam o surgimento do preconceito contra a homossexualidade, ao mesmo tempo cria elementos que, longe de se apoiar em um discurso de vitimização, vai em seu reverso para gerar a afirmação da cultura queer.

Já na fachada da Vermelho isto é visto pela apropriação do triângulo rosa, que no nazismo representava os gays condenados à morte, tornando-se a obra Formas de Liberdade: Triângulo, um mural com a própria imagem agigantada e um pôster com uma linha histórica, que narra, desde 1500, fatos relacionados tanto ao preconceito, quanto seu oposto, como a determinação, agora em 2019 pelo STF que transfobia e homofobia são crimes.

É em proposições como essa que práticas artísticas deixam de ser ilustração sobre uma temática, para se tornarem catalizadoras de experiências, gerando novas formas de representatividade, questionando padrões estabelecidos.

Os chicotes expostos no segundo andar da galeria seguem nessa mesma chave, pois se no filme Corpo Fechado: a obra do diabo os chicotes são usados como forma de martírio, na série denominada Corpo Fechado, se aproximam dos objetos de fetiche da cultura gay. Essa cena hardcore, aliás, retratada por Robert Mapplethorpe (1946 – 1989) em imagens icônicas, como que ele insere o chicote em seu ânus, é apropriada por Motta, que reencena a fotografia de 1978, escurecendo-a, em uma espécie de contextualização das questões da mostra.

É no vídeo We the enemy (2017), que dá título à mostra, onde o artista posiciona a questão central da mostra. Criado pelo coletivo SPIT! (Sodomite, Inverts, Perverts Together), composto por Motta, o escritor John Arthur Peetz e o coreógrafo Carlos Maria Romero, o vídeo é uma compilação de dezenas de termos depreciativos e insultos, ditos pela artista grega Despina Zacharopoulos, como “pervertidos, bambis, bonecas, pederastas, bichas” com uma conclusão enfática: “somos e sempre seremos os inimigos”.

Segunda mesa do seminário sobre gestão cultural reuniu artistas e especialistas na área

A segunda mesa do seminário. Foto: Jéssica Mangaba/ Itaú Cultural

Realizado em São Paulo no último dia 21 de outubro, o seminário “Gestão Cultural: Desafios Contemporâneos”, organizado pela ARTE!Brasileiros e pelo Itaú Cultural, reuniu gestores, especialistas e artistas para discutir temas essenciais sobre gestão nos tempos atuais, em um contexto de crise econômica e política. Enquanto a primeira mesa contou com a participação de gestores de importantes instituições do país, a segunda mesa reuniu dois artistas, Gabriela Noujaim e Jonathas de Andrade, e duas especialistas em gestão cultural e soluções criativas, Ana Carla Fonseca e Kátia Araújo de Marco Scorzelli.

Após apresentação da diretora editorial da ARTE!Brasileiros, Patricia Rousseaux, a mesa teve início com a fala de Gabriela Noujaim. Graduada em gravura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, a artista contou que teve grande parte de sua formação realizada em cursos gratuitos na EAV Parque Lage, com professores como Dionísio del Santo, Evany Cardoso, Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale. “Foram cursos muito importantes na minha formação como artista e que se não fossem gratuitos eu não teria como fazer”, destacou.

Além de apresentar seu trabalho, que lida com corpo, memória e ancestralidade e levanta questões políticas sobre as causas indígenas e ambientais, Noujaim adentrou o tema da gestão cultural ao falar sobre sua experiência de dez anos com projetos patrocinados pelos centros culturais do Banco do Nordeste. Através da instituição, que tem sedes em Sousa (PB), Juazeiro do Norte (CE) e Fortaleza (CE), a artista realizou mais de uma dezena de projetos na região. “Foi fundamental para mim poder conhecer o interior do país, conhecer a nossa cultura”.

“Esses centros culturais do Banco do Nordeste, diretamente ligados ao governo federal, também têm alguns pontos de cultura que eles apoiam em cidades menores. E atualmente eles estão enfrentando muitas dificuldades, estão em risco”, contou. “E eu considero fundamental a permanência destes centros, porque nessas cidades são o único movimento cultural existente, que fornecem acesso à teatro, cinema, arte contemporânea e oficinas de arte gratuitas.”

Noujaim apresentou um de seus trabalhos realizados em Sousa, em parceria com um músico local, e falou também sobre sua pesquisa com os índios da aldeia Maracanã, no Rio, sobre sua mostra Maraca, com vídeos e instalações expostas na galeria Simone Cadinelli Arte Contemporânea, e sobre o trabalho que apresentou em sua participação na ArtRio deste ano – e que agora faz parte do acervo do MAR.

O segundo a falar foi o artista alagoano Jonathas de Andrade, que ressaltou a importância das bolsas, incentivos e residências em sua trajetória. “Eu tenho total clareza de que se eu estivesse começando nessa conjuntura atual, teria muito mais dificuldade em me desenvolver como artista”, afirmou, se referindo ao que chamou de um “processo de sucateamento e de desmonte cultural que vivemos hoje no Brasil”.

Artista multimídia, Jonathas participou da 7a Bienal do Mercosul, da 32a Bienal de São Paulo e fez residências na Jordânia, na Holanda e na Inglaterra. O artista contou sobre sua trajetória nas artes, que começou após a desistência em concluir a faculdade de Direito na UFSC e a escolha de realizar o curso de Comunicação Social na UFPE. Ao final da formação em Recife Jonathas apresentou sua primeira exposição, de fotografias, que foi montada na Fundação Joaquim Nabuco após um processo de seleção para jovens artistas. “E nesse momento, em que eu estava tentando me entender como artista, todos os incentivos, bolsas e possibilidades públicas foram fundamentais no desenrolar das coisas.”

Esse primeiro trabalho resultou também em uma publicação financiada pelo Funcultura, “um fundo do estado de Pernambuco que foi parceiro em vários momentos cruciais da minha carreira”. A primeira mostra em São Paulo, por sua vez, aconteceu no próprio Itaú Cultural. Em diferentes momentos, o artista contou ainda com apoios do Banco Real, da Funarte e de bienais, entre outros. “E isso me faz pensar que é urgente que tanto as instituições quanto as empresas que tenham condições desenvolvam programas voltados para as artes”.

“Nesse momento crítico, temos desastres ecológicos, genocídios e uma série de questões urgentíssimas. Mas, para pensar a cultura como um articulador disso tudo, para dar fôlego de verdade para esse país, eu acho que apoiar as artes também é urgente, porque estamos lidando com memórias que persistem”, concluiu Jonathas, que durante sua fala apresentou também trabalhos como Ressaca Tropical, O Peixe, Procurando Jesus e Caravana Museu do Homem e do Nordeste.

A apresentação seguinte foi de Ana Carla Fonseca, administradora pública pela FGV, mestre em administração e doutora em urbanismo pela USP, assessora para a ONU e o BID em economia criativa e cidades. Ela falou especialmente sobre seu trabalho com a Garimpo de Soluções, empresa que comanda ao lado de Alejandro Castañé e que é voltada para a economia criativa, cultura, negócios e desenvolvimento de cidades.

Fonseca apresentou cinco exemplos de projetos desenvolvidos ou que tiveram acompanhamento da empresa. O primeiro deles foi o trabalho feito pela neozelandesa Tui Te Hau, especialista em revolução digital, para o Museu Nacional da Nova Zelândia. Diretora do hub de inovação Mahuki, que incentiva negócios inovadores voltados para museus e patrimônio cultural, Tui Te Hau desenvolveu um projeto que transformou o museu em um lugar efervescente, aumentando a eficiência de gestão e criando novas fontes de receitas.

O segundo caso apresentado foi um projeto que exemplifica como é possível trabalhar com as tradições e com o patrimônio intangível de um lugar. Um concurso realizado para selecionar a identidade visual da sardinha (alimento tradicional e muito consumido em Portugal), “entendida como elemento de conexão com questões de revitalização e da identidade lisboeta”, repercutiu de diversos modos na economia local. Uma antiga empresa local de cerâmicas, por exemplo, passou a produzir louças estampadas com as sardinhas selecionadas no concurso, criando um novo e rentável ramo de mercado.

Fonseca falou ainda sobre o trabalho da empresa cubana Habaguanex, que por mais de 20 anos ajudou a revitalizar a região histórica de Habana Vieja a partir de um projeto cuidadoso de gestão patrimonial. “Porque a cidade é sempre uma grande plataforma de discussões, e uma grande desculpa também para se discutir economia”, afirmou. No caso de Havana, a empresa conseguiu restaurar mais de 300 edifícios, dando a eles destinações que vão de restaurantes e hotéis até habitação social.

Os dois últimos casos apresentados por ela foram o de uma pizzaria no México e de uma empresa de caixas de som no Chile. A primeira, criada por um jovem mexicano, é um exemplo de modelo híbrido de negócio, no qual a cada cinco pedaços de pizza vendidos a empresa destina um pedaço para moradores de rua que tenham um passado de problemas com drogas. No exemplo chileno, por sua vez, um projeto que lida simultaneamente com ancestralidade e tecnologia foi o responsável por criar as caixas de som da Mapuguaquén, feitas em estrutura de barro a partir de técnicas locais tradicionais.

Última participante a falar na segunda mesa do seminário, Kátia de Marco apresentou resumidamente o trabalho da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC), da qual é fundadora e presidente, antes de traçar um panorama sobre os desafios para a gestão cultural nos dias de hoje. Kátia, que é também coordenadora da pós-graduação em estudos culturais e sociais na Universidade Cândido Mendes e diretora do Museu Antonio Parreiras (Niterói), falou sobre o trabalho da ABGC tanto na área de ensino quanto na militância em causas culturais. “Hoje mesmo entramos com um pedido de impugnação do edital para a concessão do Museu do Amanhã, pois é um edital totalmente equivocado”, contou.

Sobre o panorama atual, a professora traçou um pequeno quadro da situação das politicas culturais nas duas primeiras décadas do século 21. “E essas décadas têm características muito distintas. Nós começamos o século de uma maneira muito promissora, com muitas esperanças, tendo esse binômio cultura e desenvolvimento de uma maneira muito aberta e muito livre”, afirmou. “A cultura surge nesse momento em sua dimensão ampliada, interagindo com diversas camadas do conhecimento, da vida instrumental, no intercâmbio com a economia, como suporte de políticas de desenvolvimento, como canal de comunicação entre diversos campos.”

No Brasil, segundo ela, isso foi refletido no trabalho do Ministério da Cultura, pautado em uma visão humanística e social. “Isso antes do apagão humanístico que estamos vivendo nessa segunda década.” A partir daí ela traçou um panorama de algumas ideias, conceitos e eventos que ilustraram esse período, num contexto de falência do modelo neoliberal no fim do século 20. Com a realização de diversos encontros e a concretização de acordos internacionais, emergiram conceitos que passam pelas ideias de sustentabilidade, tecnologia, gestão, cidadania, bem-estar e inclusão. Nesta transição aparece também uma necessidade de atuação e empoderamento da sociedade civil, como explicou a presidente da ABGC.

Ao mesmo tempo, considerando questões sociais, ambientais e políticas que percorreram essas duas décadas do século 21 e desembocaram no obscuro quadro atual, surgem fenômenos como a escassez dos recursos, o crescimento caótico das cidade, o terrorismo, os fluxos migratórios e a ascensão da extrema-direita. “E nesse cenário, para pensar o futuro do planeta é preciso criar saídas, alternativas, novas institucionalidades, novos modelos de negócio e novos conceitos”, afirmou a professora. As respostas, muitas vezes, partem dos artistas, “se pensarmos que a arte é como um radar, que antevê e ao mesmo tempo reflete o seu tempo”.

“Uma coisa que parecia impensável, e que estamos vivendo, é esse autoritarismo com apelo à censura na arte. E se formos pensar porque isso está impactando tanto o meio cultural, vamos ver que no Brasil cerca de 70% dos equipamentos culturais estão atrelados à gestão pública, aos governos. E aí a gente para para pensar que talvez seja hora de se desatrelar um pouco do Estado, criar mecanismos de uma autonomia nas instituições artísticas”, defendeu Kátia. Surgem soluções como os fundos patrimoniais, por exemplo, entre outras alternativas para “esse momento em que não temos mais aquela atmosfera da primeira década desse século, da cultura sendo expressa em políticas culturais inclusivas e de socialização”, concluiu.

Com curadoria de Márcio Harum, 2ª Bienal do Barro acontece em Caruaru

Isabella Stampanoni, "Um sábado futuro após o meio-dia"

A cidade de Caruaru, no Pernambuco, recebe a 2ª Bienal do Barro, que acontece até o dia 15 de novembro. A mostra, idealizada pelo artista Carlos Mélo, com o tema “Nem tudo o que se molda é barro” acontece no Galpão da Fábrica Caroá e no Sesc Caruaru. Reunindo 16 artistas de todo Brasil, convidados pelo curador Márcio Harum, o evento busca fundir a arte popular e a arte contemporânea, especialmente através de suas ações educativas.

A bienal que teve sua primeira edição em 2014, mas sofreu um atraso em sua segunda edição devido à falta de recursos financeiros para ser realizada. Neste ano, a mostra tem apoio de um edital de fomento da Funcultura, além de investimentos do Sesc e da Prefeitura de Caruaru.

A mostra conta com instalações e performances de Alan Adi (Aracaju, SE), Amanda Melo da Mota (Recife, PE), Aline Motta (São Paulo, SP), Flávia Pinheiro (Recife, PE), Isabela Stampanoni (Recife, PE), Jared Domício (Fortaleza, Ceara), Júlio Leite (Campina Grande, PB), Sallisa Rosa (Goiânia, GO), Zé Carlos Garcia (Aracaju, SE), Aline Motta (São Paulo, SP), Conceição Myllena (João Pessoa, PB), Cristiano Lenhardt (Recife, PE), Denilson Baniwa (Rio de Janeiro, RJ), Renata Felinto (São Paulo, SP), Matheus Rocha Pitta (Tiradentes, MG), Paulo Meira (Arcoverde, PE), Claudineide Rodrigues e Virgínia de Medeiros (Feira de Santana, BA).

Outro destaque da 2ª Bienal do Barro é o Programa Educativo, que acontece no Galpão da Fábrica Caroá. Coordenado pelos educadores Lucia Padilha e Hassan Santos, a ação promoverá rodas de conversas semanais, tour com mediadores culturais e entrega de kits educacionais para estudantes.

Aproximações e distanciamentos entre J. Carlos e Mucha na avenida Paulista

Desenho de J. Carlos. FOTO: Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha / Acervo IMS

Se o visitante entrar na sala do Instituto Moreira Salles onde estão expostas obras de J. Carlos (J. Carlos: Originais, até 26 de janeiro de 2020), e se encaminhar à esquerda, rumo à cronologia ilustrada da vida e carreira do artista, não deve deixar de reparar em uma ilustração colocada logo no início: a reprodução da capa da revista A Avenida, de 25 de junho de 1904, um dos primeiros trabalhos publicados por J. Carlos. Examinando aquela imagem fica nítido como o desenhista parece ter como um dos seus parâmetros a produção do artista tcheco Alphonse Mucha, nascido em 1860, falecido em Praga, em 1839.

É certo que a presença de Mucha na produção de J. Carlos parece pontual e concentrada sobretudo no início de carreira do brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 1884 e falecido na mesma cidade em 1950. Se caminharmos pela cronologia, e depois pela própria exposição percebemos como, aos poucos, J. Carlos começa a desenvolver uma linguagem que se distancia daquele que deve ter sido um dos seus primeiros modelos, até forjar seu lugar próprio na cultura visual brasileira. Esse lugar, por sua vez, pode ser aproximado – se bem que não de maneira absoluta –, ao âmbito do que se convencionou chamar Art Déco, tendência que, tendo absorvido e deglutido certos ensinamentos retirados das vanguardas históricas, sobretudo das vertentes cubistas (isso: existiram algumas e não apenas uma vertente cubista), espalha seu delírio geometrizante para tudo quanto é objeto, das capas de revistas a edifícios, de frascos de perfumes a automóveis e assim por diante.

Carlos absorve aqui e ali alguns princípios do Art Déco na quantidade impressionante de obras que produziu, mas, antes de continuar os comentários sobre sua produção exibida no IMS da Paulista, minha ideia é chamar a atenção para a mostra que ocorre na mesma Avenida, no Centro Cultural Fiesp: Mucha: o legado do Art Noveau (até 15 de dezembro).

Incrível como São Paulo anda pródiga em encontros, ou melhor dizendo, concomitâncias. Como já me referi em outra dessas “conversas”, há pouco São Paulo teve, num mesmo período, as exposições de Marc Ferrez e Man Ray (leia aqui); agora temos, ao mesmo tempo, a exposição de J. Carlos e a de Alphonse Mucha. Que experiência excepcional visitar as obras dos dois artistas, separadas apenas por uma rápida caminhada entre o IMS e o CCFiesp, na Paulista! Mucha e J. Carlos, embora tenham se manifestado pelas artes gráficas, percorreram caminhos distintos, devido à diferença de geração (embora tenham sido contemporâneos), às filiações estéticas e aos ambientes que frequentaram. Mesmo assim, o cotejamento entre as obras dos dois vale uma visita às duas retrospectivas.

A exposição dedicada à obra de Mucha, na Fiesp – em si mesma, um acontecimento a ser prestigiado –, está dividida em três segmentos. O primeiro, aquele que apresenta as obras produzidas em seu período parisiense, quando ajudou a forjar, consolidar e expandir aquela que foi a primeira grande vertente estética de (e para as) massas, o Art Noveau. Poder observar, frente a frente, a excelência de seus cartazes, pôsteres e outros produtos gráficos (capas de revistas, rótulos de perfumes, de biscoitos etc.) é reviver a passagem do século 19 para o 20 a partir de uma produção visual que, mesmo levando-se em conta seu sentido intrinsecamente comercial, visava, da mesma maneira, expandir um determinado conceito de beleza que – concordemos ou não –, buscava naturalizar a técnica, a indústria e o comércio, tornando a metrópole menos madrasta, talvez, e seu habitante menos órfão da afetividade da forma.

O que chama a atenção é como, já na produção parisiense do artista, a imagem da mulher é instrumentalizada para a venda dos mais diferentes produtos. Nos cartazes de Mucha, os logos das mais diversas mercadorias mesclam-se aos cabelos, às mãos, aos braços, a todas as partes de suas representações femininas, altamente idealizadas, acabando por confundir os nomes dos produtos às formas da mulher.

O segundo segmento da exposição apresenta a continuidade do trabalho de Mucha, agora em Praga, após quase 25 anos vivendo em Paris.

Se na capital francesa a busca de fusão entre a imagem da mulher e o logo do produto a ser comercializado, era alcançado dentro de uma leveza serpentina e de um delicado erotismo (não, bolsominion, não se trata de uma exposição pornográfica), em Praga essas características dão lugar a composições mais solenes e comprometidas sobretudo com questões sociais e políticas de seu país. Visitando essa parte da mostra, sente-se saudades da imagem de Paris que Mucha e seus cartazes, rótulos e pôsteres ajudaram a criar. Não que as obras produzidas em Praga não tenham interesse, longe disso, mas carregam um compromisso ideológico que acaba por se impor de maneira, talvez, contundente demais, diferindo-se do período anterior quando se percebia resoluções mais eficientes no entrosamento entre a forma e conteúdo.

Já a terceira e última parte apresenta o alastramento daquilo que os organizadores da retrospectiva chamaram de expansão do “estilo Mucha”, fenômeno que se espalha, dos Estados Unidos à Coreia do Sul, passando pela Inglaterra, Índia e outros países. Esse é outro momento alto da exposição, sobretudo pelos cartazes produzidos em Londres e San Francisco. Neles, a presença de Mucha é fundamental e totalmente envolta num clima psicodélico que, apesar de tudo, ainda mantém lá seu interesse estético. (Por outro lado, essa produção nos leva a pensar sobre as ironias da história das imagens: afinal, como formas típicas de uma arte forjada para vender bens de consumo, passadas algumas décadas conseguem imperar no universo visual de partes do underground internacional?).

Se alguém me perguntasse se, ao sair da mostra, senti falta de algo, eu diria que sim. Senti falta, sobretudo, de um segmento brasileiro, que informasse ao público sobre a presença de Mucha em produções de artistas importantes do Brasil, como Eliseu Visconti, Theodoro Braga e do próprio J. Carlos, entre outros. Essa ausência de brasileiros que, com certeza, tiveram a arte de Mucha como parâmetro, apenas seria possível, na verdade, se o Centro Cultural Fiesp não funcionasse somente como um espaço receptor de boas exposições (muitas delas vindas do exterior, como essa, cuja origem é a Fundação Mucha, de Praga), mas que agisse também como uma instituição comprometida com a pesquisa e a formação mais profunda do público paulistano, aprofundando questões suscitadas a partir das mostras que importa.

Rever as contribuições dos artistas que ajudaram a expandir o “estilo Mucha” no Brasil, sem dúvida seria trabalhar para que a retrospectiva ganhasse raízes mais significativas junto aos visitantes. É claro que esta postura nada propositora do CCFiesp pode vir a mudar. Depende apenas de uma escolha da instituição de querer tornar-se ainda mais importante e significativa do que já é.

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A lacuna percebida na mostra dedicada à obra de Mucha pode ser pelo menos parcialmente suprida com uma visita à retrospectiva dedicada à obra de J.Carlos no IMS, ali perto. Não que com essa mostra se esclareça o quanto J. Carlos pode ter devido a Mucha em seu início de carreira (na verdade, esta é uma hipótese ainda a ser comprovada e não fez parte dos objetivos dos organizadores da exposição), mas, pelo menos, J. Carlos: Originais pode levar o público a comparar as duas mostras, a refletir sobre como as artes gráficas se desenvolveram de forma plural do final do século XIX até meados do século passado.

J. Carlos: Originais, a meu ver, parte de uma premissa problemática: apesar do cuidado dos curadores de, no catálogo (excelente, por sinal), advertirem que, com a exposição, não pretendiam contribuir para o “culto ao objeto único”, J. Carlos: Originais, já a partir de seu título, valoriza os desenhos preparatórios para capas de revistas, historietas etc., em detrimento das imagens publicadas.

A partir do título, subsiste uma desnecessária valoração do conceito de “original”, que entende ser o desenho preparatório melhor ou mais significativo do que sua resolução gráfica final. Ora, realizar uma exposição de um dos mais interessantes artistas brasileiros da primeira metade do século passado, que se manifestava por meio das artes gráficas, e não reforçar que nesse campo não existe “original”, que o trabalho existe enquanto forma impressa, é confundir o público.

Realizar uma exposição de um artista que se manifestava por meio de técnicas da indústria cultural e, ao mesmo tempo, enfatizar os “originais” é, consciente ou inconscientemente, induzir o público a rever a situação de J. Carlos na arte brasileira, para que ele deixe de ser entendido, supostamente, como um “mero” ilustrador, um “mero” caricaturista, um “mero” quadrinista e possa ser visto como um “verdadeiro” artista.

Nada mais problemático do que pensar, hoje, em uma exposição com tal propósito, pois, em se tratando de J. Carlos, é fundamental insistir que ele tem sua importância na história da arte do país porque produziu uma obra que, por meio da gráfica, levou sua produção para um número incalculável de fruidores que jamais teriam tido a oportunidade de conhecer seu talento e humor (às vezes discutível, como será visto), caso ficasse restrito apenas à produção de seus “originais”.

O que exatamente são desenhos preparatórios, a não ser proposições que ajudam o artista a conceber e desenvolver sua contribuição visual ou verbo-visual e que apenas ganhará plenitude quando impressa na capa ou na página de uma revista?

Felizmente os organizadores da exposição tiveram a sensatez de apresentar tanto os desenhos preparatórios, quanto o resultado final, impresso. E é por essa razão que J. Carlos: Originais se torna outra exposição imperdível em São Paulo.

Percorrer a imensa produção exibida, sempre cotejando os desenhos preparatórios com as imagens efetivas nas páginas impressas, é, de fato, um privilégio que permite ao visitante, não apenas entender o profundo entranhamento da poética de J. Carlos com o cotidiano carioca, como também as várias estratégias de linguagem usadas por ele, não apenas para comentar a vida da antiga Capital Federal, mas também seus diálogos com a produção gráfica brasileira e internacional.

É nesse trafegar por sua obra que se entende com maior clareza como J. Carlos foi atualizando sua maneira de desenhar, ampliando suas referências: daquele possível diálogo inicial com Mucha, nota-se o artista superando o modo gráfico de Angelo Agostini – uma referência vinda de meados do século XIX – e trazendo para a arte brasileira as ressonâncias das vertentes nacionais e internacionais do Art Déco.

Aliás, esses diálogos de J. Carlos com a cultura visual de sua época, extremamente qualificada por sua própria produção, foi um aspecto pouco explorado na mostra e no catálogo que o acompanha, lacuna que, espero, poderá ser superada em breve, com outra mostra, agora mais atenta a esse aspecto. A curadoria preferiu investir na imagem de J. Carlos como um cronista do Rio de Janeiro, e nesse quesito se saiu muito bem, diga-se.

Inclusive, a exposição enfrenta um desconforto que, logo no início da mostra, o visitante mais atento começa a sentir ao se deparar com inúmeras imagens em que se explicitam os graves preconceitos de J. Carlos: são constrangedoras para nosso olhar do século XXI as diversas peças em que o artista tripudia contra a mulher, contra judeus e sobretudo contra os negros. É interessante como a curadoria peita essa questão tão espinhosa, explicitando os problemas em alguns textos espalhados pela mostra.

Os diversos preconceitos de J. Carlos serão discutidos com maior profundidade no catálogo da exposição, no texto, “O moderno e o arcaico em J. Carlos”, assinado pelo estudioso Rafael Cardoso. Nele, o autor enfrenta com respeito, mas sem meias palavras, sobretudo a questão do preconceito contra a população negra do Rio de Janeiro, por parte do artista, atentando para o fato de que J. Carlos, com seus desenhos racistas, não apenas “refletia” o preconceito racial de sua época, mas o intensificava, devido à contundência de suas imagens, assim como pelo poder de penetração das mesmas.

Por essas e por outras é que J. Carlos: Originais se apresenta como uma das exposições mais importantes do circuito paulistano deste ano, uma exposição que deve ser visitada, não apenas pelos interessados por arte e cultura visual brasileira, mas também por todos que se interessam pelas questões sociais do Brasil.

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Finalizando, volto a enfatizar o privilégio de termos separadas por poucos quarteirões da Paulista, retrospectivas de dois artistas indispensáveis para a cultura visual brasileira (caso de J. Carlos) e internacional (caso de Mucha). Visitar as mostras é entrar em contato com uma série de estímulos para que possamos refletir, tanto sobre questões de filiações e superações estéticas, mas também sobre o papel fundamental que a indústria cultural assumiu em nosso cotidiano nesses últimos cento e tantos anos.

21ª Sesc_Videobrasil: comunidades imaginadas — Sesc 24 de Maio

Com uma série de novidades e um conjunto potente de trabalhos, o Videobrasil e o Sesc inauguraram em 9 de outubro a 21ª edição desta parceria sob o tema “Comunidades Imaginadas”. Em primeiro lugar, a mostra assume o título de Bienal, confirmando assim sua importância no cenário artístico nacional e internacional. Referência incontestável no campo das artes que têm o vídeo como um elemento constitutivo importante, o evento também abre espaço para outras formas de expressão artística, ajudando a dissipar fronteiras estanques entre as linguagens.

Outra inovação proposta este ano foi a adoção de um fio condutor prévio. Ao invés de agrupar posteriormente os trabalhos selecionados por temas afins, a curadoria lançou desde sua convocatória a demanda por trabalhos que de alguma forma lidassem com a ideia de coletividades baseadas em critérios afetivos, identitários, de desejo de construção de novos grupos sociais para além das normas e fronteiras estabelecidas. Ou, nas palavras da diretora artística do evento, Solange Farkas, que buscassem “uma utopia de reconstrução do mundo”.

Ao todo foram mais de 2 mil inscrições, provenientes dos mais diferentes cantos do planeta, com ênfase no sul geopolítico, recorte que vêm pautando há décadas a ação do Videobrasil. No total foram selecionados 50 artistas de 28 nacionalidades, que se somam a um grupo de cinco artistas convidados (Andrea Tonacci; Hrair Sarkissian; Teresa Margolles; Rosana Paulino; e Thierry Oussou) e duas coleções emblemáticas (uma de jóias africanas e outra do jornal Snob, que propôs discutir, em plena década de 1960, questões sobre identidade sexual e de gênero) para compor um conjunto intenso e diversificado de poéticas. Dentre as várias temáticas exploradas, sobressaem-se algumas vertentes mais fortes: o drama indígena, a luta das comunidades LGBT, os conflitos raciais e as tensões de fronteira.

Além da mostra, o evento – produzido pelo Videobrasil em parceria longeva com o Sesc e que pela primeira vez ocupa sua sede na rua 24 de Maio – também contempla a realização de uma série de programas públicos (palestras, debates, performances e ciclos de vídeo) e duas publicações bilíngues.

Assista ao vídeo com o curador Gabriel Bogossian falando à ARTE!Brasileiros sobre a bienal.

21ª Bienal Sesc_Videobrasil I Comunidades Imaginadas
Sesc 24 de Maio – Rua 24 de Maio, 109, Centro – São Paulo
De 9 de outubro de 2019 a 2 de fevereiro de 2020
Entrada gratuita