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Um outro céu sobre uma mesma terra

"Refúgio" (2020), Arissana Pataxó. "Uma obra que remete ao luto, mas também à luta, pois mesmo em meio ao caos das mortes e sofrimento do luto, muitos povos foram atingidos por conflitos e tensões por conta da luta pelo território. No centro, traz uma pessoa como se tivesse de saída, procurando um refúgio", conta. Foto: Cortesia da artista/Divulgação

Ameaças de invasão territorial, desmatamento e exploração de recursos ambientais são apenas alguns dos muitos conflitos listados no Mapeamento de Violações dos Direitos Indígenas no Nordeste do Brasil. A pesquisa é um dos componentes de Um outro céu, projeto que une arte a estudos de ecologia política e antropologia para colocar em foco a luta indígena brasileira. Realizado por uma organização em rede, ele é ligado a professores e estudantes das Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e Universidade de Sussex na Grã-Bretanha.

Um mapa interativo repleto de símbolos que remetem a grafismos indígenas é o nosso primeiro contato com o projeto, ao entrar no ambiente virtual onde está exposto. Elaborados pelo artista e designer Denilson Baniwa, os desenhos designam diferentes tipos de conflito, e nos permitem localizar especificamente as batalhas vividas pelas populações de cada território. Ao lado delas, pequenas imagens nos permitem enxergar outro aspecto dessas mesmas localidades: a arte. É clicando em cada uma dessas fotografias que somos redirecionados às obras que compõem a exposição Um outro céu.

“Onde há conflito, também há arte. Territórios indígenas são territórios de guerra contra a conquista, de resistências anticoloniais, de retomadas, de reocupações, de criação e recriação de mundos, de arte”, apontam os coordenadores na descrição da plataforma online. E assim ocorre. Para a artista e professora Glicéria Tupinambá essa relação estabelecida entre arte e luta por território é um dos grandes diferenciais da iniciativa. “A visão de fora, geralmente é só para o belo, para a arte indígena. Mas assim não entendem quais conflitos influenciam ou acabam com esse belo.” 

Jurema Machado, Felipe Tuxá e Felipe Milanez, professores e coordenadores do projeto, contam que essa foi uma das maiores preocupações durante a elaboração do site. Era importante que os visitantes fossem além da contemplação das obras e entendessem os contextos que envolvem esses artistas, principalmente no momento atual. “Você olha os trabalhos artísticos e tem acesso a uma narrativa de muita dor, uma narrativa da Covid-19 dentro de um contexto extremamente conflituoso que não começou com a pandemia e nem vai acabar com ela. Você vê a exposição e depois fecha o site, segue com a sua vida. Mas aqueles conflitos não cessaram de acontecer”, explica Felipe Tuxá. Por isso, os coordenadores julgavam importante unir as imagens das obras às suas explicações e relacioná-las às tensões e ao momento de pandemia. Para Glicéria, é isso que dá ainda mais força ao projeto, pois é pela arte que ele consegue dar mais visibilidade às causas ali retratadas: “A arte tem uma linguagem mais acessível, então chega a um outro contexto, a um outro grupo, a um outro olhar”. 

Entre academia e ação política

Porém, não foi com a arte que Um outro céu teve início. Ainda muito antes do resultado que vemos hoje, um grupo de professores conseguiu financiar pela Academia Britânica uma pesquisa em rede internacional: o Desenvolvimento “Sustentável” e Atmosferas de Violências, coordenado por Felipe Milanez (UFBA) e Mary Menton (Universidade de Sussex). Nas discussões dentro do projeto, surgiu a ideia do Mapeamento das Violações aos Direitos Indígenas no Nordeste do Brasil, hoje financiado pela Universidade de Sussex, na Grã-Bretanha, e coordenado por Felipe Cruz Tuxá (Uneb), Felipe Milanez (UFBA), Jurema Machado (UFRB) e Mary Menton (Universidade de Sussex). “Quando estávamos no auge do mapeamento fomos atravessados pela Covid-19”, conta Machado. 

A iniciativa então crescia. À princípio, passaram a desenvolver uma nova frente, um plano de pesquisa emergencial para investigar os impactos da Covid-19 entre os povos indígenas. Mas, para os envolvidos, algo ficava ainda mais claro neste momento, os conflitos, unidos ao descaso frente as populações indígenas na pandemia de coronavírus, tinha (e tem) nome: genocídio. O momento intensificava a necessidade de visibilizar as violências sofridas e eles trabalhavam neste sentido. Porém, um ponto não era abarcado pelo projeto: “A gente precisava pensar: no meio de um processo de genocídio, como os povos indígenas vão sair disso e se reconstruir?”, compartilha Felipe Milanez. “Não teria como trabalhar pensando numa alternativa que não fosse em diálogo com as artes. Então passamos a trabalhar com artistas das comunidades indígenas como interlocutores, como pessoas com um pensamento de enfrentamento a esse genocídio, com uma visão de outros mundos, de um outro céu”, conclui. 

Desse diálogo, nasceu a exposição que dá nome ao projeto interdisciplinar. Quinze artistas de diferentes etnias foram convidados a participar e receberam um prêmio de 2 mil reais por suas produções. “Quisemos ter pessoas que são conhecidas e se reconhecem como artistas, bem como artistas que são vistos nas suas comunidades como aquelas pessoas que são muito especiais em fazer coisas se encantarem”. Hoje, a exposição conta com Arissana Pataxó, Eduarda Yacunã Tuxá, Glicéria Tupinambá, Olinda Yawar Tupinambá, Edivan Fulni-ô, Leide Pankararu, Lindaura Xukuru-Kariri, Ziel Karapotó, Benício Pitaguary, Reginaldo Kanindé, Arawi Suruí, Irekran Kayapó, Kryt Gavião Akrãtikatejê, Isael Maxakali e Ailton Krenak; e traz obras diversas, com cantos, desenhos, vídeos, mantos sagrados, poemas, cerâmicas, entre outros, caminhando entre expressões artísticas, políticas e espirituais, cruzando essas esferas e as costurando em uma só expressão.  

Entre arte e guerra

“É muito pungente que não é uma coisa apenas de uma expressividade artística. Acho que tem muito mais do que essa dimensão. Tem essa dimensão da guerra, é essa dimensão da luta, é essa dimensão do cotidiano que se repete na pandemia, dia após dia de quarentena”, diz Felipe Tuxá. E destaca: “Não dá para pensar Covid num mundo indígena sem pensar autodeterminação, soberania dos territórios e extrapolar todos esses limites do formato clássico do que é considerado arte”.   

Como explica o professor, ao pensarmos os conflitos vividos pelas populações indígenas, os territórios tornam-se centrais – são unidade comum tanto das lutas com garimpeiros, dos desmatamentos, como da pandemia. “Uma coisa que é importante marcar é que os conflitos que mapeamos vem principalmente da luta pela terra, da disposição dos povos indígenas de não abandonarem nunca seus territórios. Então se você perceber, as obras também têm muita relação com isso”, explica Jurema Machado. A exposição de certa forma reflete e intensifica essa busca por um outro céu – mais apurado nas realidades indígenas e menos genocida – sobre essas mesmas terras.

“Acho que não existe exposição de arte indígena, feita por um indígena, descontextualizada. A partir do momento que fazemos uma exposição, já estamos lutando contra uma sociedade que acha que não podemos ser artistas”, afirma Benício, participante da mostra e liderança jovem do povo Pitaguary. Para ele, a arte une-se à luta diretamente. “Acho importante mostrar que os indígenas estão presentes e ocupando esses espaços. A arte é mais um meio de estar ocupando, resistindo e fazendo uma luta”, explica. 

Mas outro aspecto de Um outro céu corrobora essa ocupação. Todos os estudantes pesquisadores bolsistas envolvidos nas propostas acadêmicas são de etnias indígenas. “Nos últimos dez anos, percebemos muita entrada de estudantes indígenas nas universidades, mas eu, particularmente, via os estudantes ali, mas não os via nos grupos de pesquisa, com bolsa de iniciação científica, por exemplo”, conta Jurema Machado. Felipe Tuxá faz coro. “De um modo geral a gente passa por um processo de marginalização muito forte na universidade e de uma lógica que tenta definir quais são os lugares previstos para nós lá dentro”, conta o professor universitário, que ingressou na faculdade em 2005, sendo um dos primeiros dentro de políticas afirmativas. Mas explica que a decisão de optar por apenas bolsistas indígenas é mais complexa do que parece. 

“No Giro do Maracá”, de Benício Pitaguary. “O maracá é como se fosse um universo dentro de uma cabaça, e as sementes como se fossem os planetas e as estrelas. Quando giramos o maracá, estamos agitando esse universo e gerando energia. Então, pra gente, o maracá é um artefato de muito poder, porque ele tem essa capacidade de afastar as energias ruins e chamar os espíritos bons. Eu quis representar que nesse momento de pandemia, o que une os povos indígenas são as orações desse giro do maracá”, conta. Foto: Cortesia do artista/Divulgação

“Fazemos isso não só por ser um projeto sobre indígenas, mas por entender o potencial de enunciação de um sujeito indígena falar sobre sua própria realidade. Ninguém está criando nada novo, a gente está apenas adequando essas ferramentas que foram tão excludentes no passado e continuam sendo. Vemos isso como uma potência de criação de um outro tipo de conhecimento”, diz. Felipe Milanez explica que na própria proposta apresentada à Universidade de Sussex, a escolha por bolsistas indígenas não foi uma política afirmativa, mas uma escolha metodológica, uma proposta de agregar uma nova forma de conhecimento e uma outra qualidade de olhar ao projeto. Ao lado de colaboradores não bolsistas (entre indígenas e não indígenas), os estudantes foram responsáveis pelo mapeamento das violações dos direitos das comunidades, conversando com lideranças dos diferentes povos, com contatos que já tinham nas regiões e, por vezes, com antropólogos que trabalham nas áreas. Além disso, fizeram contato com outras aldeias para entender os impactos da Covid sobre as diferentes etnias. Sempre em atividades coletivas, “porque nós, povos indígenas, sempre pensamos e trabalhamos na coletividade. Essa coletividade é o que nos fortalece a sempre seguir”, explica a bolsista Daniela, monitora do Museu Indígena Jenipapo-Kanindé, de seu povo, graduanda do curso de Museologia na UFRB e membro do Coletivo de Estudantes Indígenas na universidade.

“Acho isso um ponto muito importante, no sentido de dar autonomia dos povos indígenas fazerem suas próprias pesquisas e artes da maneira que achamos que deve ser feito, não em uma forma colonial”, aponta Benício Pitaguary. “Por muitas vezes somos só sujeitos de estudo. Hoje, com todo o nosso conhecimento fora e dentro das aldeias, sabemos que podemos ser os próprios agentes da nossa história”, afirma Daniela Jenipapo-Kanindé. E complementa: “Essa experiência me fez entender que nós é que temos que contar a verdadeira história dos nossos povos e não apenas ouvi-las vindo de outros pesquisadores não indígenas. Nós conhecemos as dores, porque muitas vezes passamos por situações parecidas, e isso faz com que tenhamos a liberdade de contar com mais precisão.”

Para Raquel Jenipapo-Kanindé, graduanda em Serviço Social pela UFRB e membro do coletivo identitário na universidade, a participação de indígenas tanto na exposição quanto no levantamento de dados é essencial para fortalecer a luta pelos territórios. “Esse projeto é também enfrentamento, porque a partir do momento que a gente registra e estuda isso, cria nossas próprias estratégias para que possamos ir de encontro com os homens brancos, com as pessoas que querem tomar nossa terra, nossas águas e nossas matas”.

Frame do filme “Equilíbrio”, de Olinda Yawar Tupinambá. “Equilíbrio foca na problemática ambiental e em como a civilização tem usado do planeta de forma hostil e desarmônica. ‘Equilíbrio’ é um alerta do espírito das matas para a humanidade”, conta a jornalista, cineasta, performista e ativista ambiental. Foto: Reprodução

Para um outro céu, um olhar sobre a terra

É nesse intercâmbio entre artistas e pesquisadores; entre academia, política e arte que traçam-se as possibilidades de visibilização das lutas e das expressividades. Mas Um outro céu segue em aberto. Hoje, o mapeamento cobre algumas das violações na área de atuação da Apoinme (territórios do nordeste, Espírito Santo e Minas Gerais), além do sul e sudeste do Pará. A perspectiva é de expandir: “É importante justamente para trazer à tona todas as violações que esses povos vêm sofrendo, porque muitas comunidades muitas vezes são invisibilizadas pelos próprios violadores. Eles tentam calar o nosso povo”, conta Daniela Jenipapo Kanindé. 

Se interessou? Acesse o projeto clicando aqui.

Eduardo de Jesus comenta “Parallel”, de Jiwon Choi, no novo Acervo Comentado Videobrasil

Cena da obra "Parallel", de Jiwon Choi. Foto: Reprodução

O curador e professor de Comunicação Social da UFMG Eduardo de Jesus comenta, no novo episódio do Acervo Comentado Videobrasil, a obra Parallel, da sul-coreana Jiwon Choi, trabalho que foi apresentada na 20a edição do Festival Sesc_Videobrasil, em 2017. “Trata-se de um potente filme ensaio em torno de questões da vida social contemporânea da Coreia do Sul”, conta o curador em seu depoimento.

O novo episódio da série é lançado no mesmo momento em que a instituição promove a mostra coletiva Antropoceno: Coreia x Brasil 2019-2021, na plataforma VB Online, com trabalhos de seis artistas sul-coreanas e curadoria de Juhyun Cho.

Nas palavras de Eduardo de Jesus, Parallel “de um lado busca um testemunho contundente das experiências vivenciadas pelo avô da artista na guerra da Coreia, por outro reproduz processos midiáticos que quase estruturam as formas subjetivas típicas da contemporaneidade na Coreia do Sul. Uma profusão de signos típica do sistema midiático”. Deste modo, a obra da jovem artista coreana – com trajetória consistente nas linguagens audiovisuais – faz um paralelo entre dois períodos da história do país, deixando claro continuidades e diferenciações no tempo.

“Isso fica bastante nítido em passagens em que ela aproxima a ambiguidade de sentidos da palavra shot entre ‘atirar’ ou ‘tirar foto’, para produzir uma espécie de reflexão em torno da excessiva produção de imagens na sociedade contemporânea e ao mesmo tempo o intenso processo de militarização pelo qual a Coreia atravessa, desde a guerra”, afirma Jesus. O próprio nome do filme, Parallel (paralelo, em português), também remete à divisão entre Coreia do Sul e do Norte e à DMZ (Zona Desmilitarizada da Coreia), faixa que divide os dois países.

Surge também com intensidade o universo do K-Pop – no filme a própria artista constrói uma banda de K-pop, na qual ela performa todos os integrantes do grupo. Para Jesus, fica claro estar em questão uma luta em busca da identidade. “Se naquele primeiro momento da guerra a questão era a democracia, agora é a identidade”. E ele conclui: “É bem interessante o modo com que a artista constrói uma critica bastante contundente, usando os próprios elementos da cultura midiática para elaborar essa crítica”.

Assista aqui também o depoimento dado pela artista ao Videobrasil em 2017 sobre Parallel. “Eu estou apresentando a cultura coreana contemporânea, resultante da Guerra da Coreia e da cultura popular coreana”, afirma. Ao falar da luta de seu avô, de seus pais e da cultura contemporânea da Coreia da Sul, a artista conclui: “Precisamos aprender mais uns com os outros, apenas escutar e dialogar mais”.

O avô da artista em cena do filme. Foto: Reprodução.

Ainda não conhece o Acervo Comentado?

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. Confira os outros episódios neste link.

Sobre Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.

“FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil-Portugal” no Sesc Pompeia

FARSA - sesc pompeia

“Como sentimos a linguagem nos dias de hoje?”. Essa é uma das perguntas que guiou Marta Mestre e Pollyana Quintella na curadoria de FARSA. Língua, fratura, ficção: Brasil-Portugal, mostra em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo.

Aproximando propostas experimentais das décadas de 60/70 da produção de artistas que emergiram no século XXI, no Brasil e em Portugal, FARSA dá ênfase ao poder da linguagem e às estratégias de desconstrução da mesma, em países que compartilham uma língua que foi simultaneamente fator de opressão e vetor de liberdade.

“Uma exposição que relaciona Brasil e Portugal poderia ser lida segundo uma suposta unidade linguística entre os dois países, no entanto o que FARSA busca fazer é justamente o contrário: desconstruir o mito da lusofonia e afirmar que existem muitas línguas portuguesas”, diz Pollyana Quintella. Para as curadoras, o português é um idioma disputado, múltiplo e ambíguo – ao que carrega tanto um caráter colonizador quanto a possibilidade de construção de outros mundos e horizontes – e isso não poderia ser relevado.

É nesse raciocínio que FARSA extrapola a língua falada. “Há nessa exposição muitos trabalhos que falam de linguagens outras, que resistem a essa monocultura colonial. Linguagens do corpo, do silêncio, do ruído, do segredo; e que produzem maneiras de escapar desse fascismo da língua”, explica Quintella. Como apresenta Marta Mestre,  vivemos um momento de proliferação de formas de linguagem cada vez mais diversas, em especial com a forte presença virtual. Por isso, FARSA busca também pensar “como o digital de certa forma veio infletir aquilo que entendemos como linguagem? Como nos posicionamos e como os artistas refletem sobre isso?”, conclui Mestre.

A arte!brasileiros visitou a exposição e conversou com suas curadoras. Assista ao vídeo e saiba mais:

FARSA fica em cartaz até 30 de janeiro de 2021. Para a segurança de todos frente à pandemia de coronavírus, a temperatura corporal de todos é aferida na entrada e o uso de máscaras é obrigatório durante toda a visitação.

Reserve seu ingresso no site do Sesc Pompeia clicando aqui.

Jean Paul Ganem faz land art para ver e saborear na Serrinha

"Desenho Infinito", de Jean Paul Ganem. Foto: Divulgação

Com a obra Desenho Infinito, inspirada em um grafismo da tribo Kaingang, o artista franco-tunisiano Jean Paul Ganem faz um cruzamento instigante entre a arte comestível e a cultura indígena brasileira. A certeza cultural é a chave dessa land art, inserida no movimento artístico inspirado no diálogo entre arte e natureza, surgido no final da década de 60.

Ganem mora entre Paris e Montreal, onde tem ateliê, e agora faz intervenção na Fazenda Serrinha, em Bragança Paulista. Para realizar o trabalho ele se aliou à chef e pesquisadora Bel Coelho, especialista em comida brasileira. “A sugestão dela foi a culinária indígena com plantas capazes de compor o desenho da cestaria Kaingang”. O novo se articula nessa invenção, que propõe um passeio pelos “corredores” assentados em um solo permeado de hortaliças, legumes, flores, plantas medicinais e comestíveis. Adentrar nessa vegetação, com topografia irregular e cartografia simétrica, faz você sorrir para si mesmo, acreditando que a vida no campo é algo extraordinário. O contato com essas plantas, algumas estranhas à mesa do habitante da cidade, constrói uma experiência emancipadora, a fusão da natureza com o urbano.

O Desenho Infinito está ligado à regeneração da terra, conecta o olhar contemporâneo do meio ambiente a uma cultura ancestral e tangencia o objetivo que move a Serrinha, dirigida por Fábio Delduque, artista plástico e dono da fazenda. “As plantas usadas nessa obra são desenvolvidas num sistema agro florestal consorciado com várias espécies, ao contrário da monocultura. Há 20 anos tudo aqui era pasto e, antes do gado, meu bisavô plantava café”. Com isso a terra ficou degradada e sua missão ao lado do irmão foi recuperá-la. “Hoje o bioma funciona, atrai pássaros e animais, na contramão do que muitos estão fazendo com a natureza”, comenta. A intervenção na natureza realizada por Ganem é matizada pelas mesmas preocupações. Ele também se envolve com territórios devastados pelas indústrias, pelo homem e por lixões urbanos. Desenho Infinito foi realizado por uma equipe que conta com arquiteto, agrônomo, estudioso de plantas comestíveis e medicinais e com algumas pessoas da fazenda.

Jean Paul Ganem na Serrinha. Foto: Divulgação

A paisagem tem importância fundamental nas utopias rurais. Ganem chegou à Serrinha há quatro anos acompanhado do chef canadense Michael Stadlander, com que já havia feito um trabalho de land art comestível em Montreal. Ele executava a obra e Michael preparava o banquete no próprio local de trabalho, numa performance em movimento concordante. Michael é pioneiro na gastronomia Farm to Table, que negocia diretamente com os pequenos produtores. Cada planta pode se transformar em um prato de forma e sabor especiais pouco conhecidos. Para Ganem, não há cisão entre o homem e a natureza. Trabalhar na terra e deixá-la pronta para o plantio é o mesmo que estar diante de uma folha em branco à espera de uma inspiração.

Razões analógicas sustentam a ideia desse artista querer intervir na paisagem brasileira. Mas como administrar a produção de um site specific desse porte? Ganem comenta que uma intervenção como essa pode demorar meses para ser concluída porque cada vegetal é colhido em períodos diferentes. Delduque lembra que Desenho Infinito começou a ser plantada em março deste ano e foi influenciada pela pandemia e por um calor intenso. “As verduras já foram colhidas por algumas vezes para o consumo da fazenda, outras encaminhadas para a cooperativa de produtos orgânicos e muitas doadas. A obra de Ganem está envolta na ideia de agro floresta, de horta orgânica e obra de arte, tudo ao mesmo tempo.”

Visto em retrospectiva, o artista há três anos realizou a intervenção Espelho d´Água, com um quilometro e meio de desenho sinuoso feito com a planta napier roxo, envolvendo reflorestação. Ele trabalhou um eco sistema coerente, associando uma floresta tropical às terras sinuosas da Serrinha, na parte mais baixa da fazenda. A vista aérea do Espelho d´Água e algumas intervenções de Ganem em outros países estão no livro Un art amoureux de nature, ao lado das obras de Robert Smithson e de outros ícones da land art.

Fazenda da Serrinha vista de cima. Foto: Divulgação

Ganem se inicia na arte pela pintura, atuando na zona rural, nos arredores de Paris. “Nessa região a paisagem se transforma rapidamente, o trigo passa do verde ao marrom escuro em um mês, sendo quase impossível captar essa transformação”. Com o tempo ele migrou para a land art, negociou com fazendeiros, mostrou esboços do que pretendia fazer e garantiu a eles que a colheita não seria prejudicada. “Convenci um deles a trabalhar com três tipos de trigo ao mesmo tempo, transformando suas terras em um imenso campo xadrez. Os agricultores não só produzem alimentos, eles criam imagens incríveis”. A intervenção na paisagem constrói sua audiência no próprio local onde é feita. Ganem acredita que a arte desenvolvida no campo, além do engajamento social é também pedagógica. “Os agricultores percebem a importância da natureza não só para sua plantação, mas também para as urgências ecológicas do presente e do futuro do planeta”. A ligação desses trabalhos com as preocupações sobre as mudanças climáticas, a destruição do solo é evidente e Ganem entende que os artistas têm a obrigação de se envolverem com essas emergências.

Entre suas land arts destacam-se um campo listrado em forma de código de barras, uma estrada sinuosa próxima ao aeroporto Charles de Gaulle em Paris, que se contrapõe às rotas traçadas pela aviação e O Caminho do Rio, feito no Jardim Botânico de São Paulo. O processo criativo dos últimos 20 anos de Ganem é narrado no documentário A Margem da Paisagem, de 52 minutos, dirigido por Eliane Caffé. Hoje seu trabalho integra o Parque das Esculturas da Serrinha, que reúne intervenções e esculturas a céu aberto, de artistas como Michelangelo Pistoletto, Luis Hermano, José Roberto Aguilar, Lucas Bambozzi, Bené Fontelles, Hugo França, Coletivo BijaRi, Fernando Limberger, Marcos Amaro, Laura Gorsky, Stela Barbieri, Eduardo Srur e Fábio Delduque.

“1978 – Cidade Submersa”, no novo episódio de Acervo Comentado Videobrasil

Still de 1978 - Cidade Submersa, de Caetano Dias. Cortesia Videobrasil.
Still de 1978 - Cidade Submersa, de Caetano Dias. Still de 1978 - Cidade Submersa, de Caetano Dias. Cortesia Videobrasil.

O vídeo 1978 – Cidade Submersa, de Caetano Dias, mostra a relação de um pescador com as lembranças da sua antiga cidade. Trata-se de um documentário que, por vezes, embaralha a ficção e realidade para contar uma história sobre saudades soterradas utilizando um personagem que navega e pesca sobre as próprias memórias. É sobre essa obra que a professora Alejandra Hernández Muñoz[1] reflete no novo episódio do Acervo Comentado Videobrasil. Confira abaixo:

Entre 1971 e 1982 foi construída a Usina Hidrelétrica de Sobradinho, no Rio São Francisco, na Bahia. Para isso, as antigas cidades de Pilão Arcado, Sento Sé, Casa Nova e a própria Sobradinho tiveram que ser alagadas. Muñoz nota que “nessas águas, um reservatório de outrora assinala uma resistência ao esquecimento”. É uma caixa d’água situada, agora, dentro da represa, com sua função nulificada, um puro recipiente de uma lembrança que daqui a pouco também não existirá mais.

No contexto do levantamento da barragem, mais de 70 mil pessoas foram alocadas para assentamentos construídos em locais próximos e receberam os mesmos nomes das cidades alagadas, cujas ruínas costumam aparecer nos períodos de seca, “resquícios da violência de um passado que subjaz à aparente serenidade da paisagem”, como observa Muñoz. Essas ruínas, no silêncio do vídeo e nas faltas de diálogo, trazem o enigma de “quem são esses inundados que caminham às margens do lago?”

A mesma água que fornece luz e energia para a comunidade é o modo de apagamento da sua existência anterior, e esse tanque, como uma presença incômoda da impossibilidade de cobrir tudo, vira uma espécie de resistência a esse rolo compressor das políticas progressistas e do discurso do desenvolvimento.

A professora reforça no Vídeo Comentado que “a barragem é resultado dessa operação hercúlea do homem sobre a natureza”, e deixa a pergunta: “Quais são os resultados dessa interferência colossal no ambiente?”

Na edição #52 de arte!brasileiros, através da obra do fotógrafo Gideon Mendel, mergulhamos brevemente nessa questão. Confira o trabalho de Mendel neste link.

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Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras, reunido em mais de 30 anos de trajetória. Confira os outros episódios neste link.

Sobre Videobrasil

A instituição foi criada em 1991, por Solange Farkas, fruto do desejo de acolher um acervo crescente de obras e publicações, que vem sendo reunido a partir da primeira edição do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil (ainda Festival Videobrasil, em 1983). Desde sua criação, a associação trabalha sistematicamente no sentido de ativar essa coleção, que reúne obras do chamado Sul geopolítico do mundo – América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio –, especialmente clássicos da videoarte, produções próprias e uma vasta coleção de publicações sobre arte.

Este projeto contribui para “redescobrir e relacionar obras do acervo Videobrasil, e vertentes temáticas, na voz de críticos, curadores e pensadores iluminando questões contemporâneas urgentes”, afirma Farkas.


[1] Alejandra Hernández Muñoz, uruguaia, reside em Salvador desde 1992, é arquiteta, Mestre em Desenho Urbano e Doutora em Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAU/UFBA). É professora permanente de História da Arte da Escola de Belas Artes (EBA/UFBA). Integrou as equipes curatoriais do Programa Rumos Artes Visuais 2011-2013 do Instituto Itaú Cultural (São Paulo), da 3ª Bienal da Bahia 2014 e da 21ª Bienal Sesc_Videobrasil 2019 (São Paulo).

Miguel Rio Branco, a riqueza na contradição e a denúncia das desigualdades sob esteróides

Fotografia da série "Coração, espelho da carne". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Palavras Cruzadas, Sonhadas, Rasgadas, Roubadas, Usadas, Sangradas fornece logo no seu título indícios do que se trata a nova exposição, no Instituto Moreira Salles, de Miguel Rio Branco, um dos nomes mais relevantes da fotografia brasileira atual. Engajado também na pintura, nas artes visuais e nas instalações, ele tem fotografado cada vez menos, logo, as obras que integram Palavras Cruzadas são, como o próprio fotógrafo as chama, suas “novas coisas velhas”. Nessa retrospectiva não ortodoxa – organizada pelo próprio artista e por Thyago Nogueira, curador e editor da revista ZUM -, temos um gosto das imagens emblemáticas de Rio Branco e sua “córnea erotizada”.

A visita a Palavras Cruzadas é mais uma caminhada pelas cidades de Miguel, sua experiência urbana e coletiva, com todas suas contradições, com todas suas violências; “forjada, por carne, pele, saliva, suor, sangue, nervo, gemidos, vertigens, provenientes de pugilistas, prostitutas, meninos, idosos, cachorros, que vivem entre facas, bebidas, cigarros, cicatrizes e tatuagens, e habitam as regiões onde as cidades ainda pulsam”, como observa a curadora Luisa Duarte no texto crítico da mostra. Nesta direção, Nogueira também comenta: “A cidade é o palco do encontro de uma série de questões, de culturas, de cheiros, de sabores, de pessoas, totalmente improvável. Quantas metrópoles ele circulou… Eu olho para essas imagens hoje e fico torcendo para que a gente não tenha perdido essa realidade, para que isso ainda tenha um sentido”, complementa.

Uma das três imagens componentes de "Billy's Triptych". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.
Uma das três imagens componentes de “Billy’s Triptych”. Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Para o curador, seria difícil imaginar as interações pessoais capturadas por Rio Branco no mundo asséptico em que tivemos que nos isolar por conta da Covid-19. Em relação ao vírus e às adaptações necessárias para poder reabrir a exposição – com as normas sanitárias respeitadas -, Nogueira explica que as mudanças mais significativas ocorreram no prédio do instituto. Foi indicada uma rota de circulação, estabelecidos horários de visita agendáveis, disposição de álcool em gel pelo IMS Paulista e um limite de pessoas por sala.

O planejamento de Palavras Cruzadas, apesar dos revezes, não sofreu tanto com a pandemia. Em tese, a exposição receberia o público em abril, pouco antes das restrições serem aplicadas em nível nacional. Com isso a equipe caminhava bem para a conclusão da mostra, cujos detalhes finais foram resolvidos por videochamadas com o fotógrafo.

Um ponto que talvez perpasse a quarentena é a retirada dos materiais impressos da mostra. Até mesmo a continuidade dos catálogos será avaliada, devido a um mercado já ferido antes da pandemia e lesionado ainda mais por ela, considerando a falta de circulação das pessoas pelas livrarias e uma queda na venda dos fotolivros, um ponto particularmente negativo neste caso, já que Rio Branco trata a elaboração dos fotolivros como uma obra à parte – aliás no catálogo da exposição podem ser conferidos alguns slides, uns mais derretidos que outros, sobreviventes de um incêndio que queimou boa parte do arquivo do fotógrafo na década de 1980. Na década anterior, no começo dos anos 1970 é quando se inicia o percurso por Palavras Cruzadas; são registros cotidianos de Nova York, em preto e branco, que antecipam várias marcas do artista, os contrastes marcantes e as diagonais afiadas, por exemplo. Tendo iniciado a carreira como pintor, Miguel passa a explorar a fotografia e o cinema: em 1970, aos 24 anos, foi para a cidade de Nova York, para a Escola de Artes Visuais, onde ficou apenas um mês antes de decidir fazer suas próprias explorações de Nova York com fotografia de rua.

Sem título, da série "New York Sketches". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.
Sem título, da série “New York Sketches”. Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Nessas imagens de 50 anos, também é reconhecível sua temática marginal, como nota Luisa Duarte: “Nas duas primeiras fotos que abrem a sequência, avistamos o que podem ser consideradas imagens-clichês da cidade — o Empire State Building e as torres gêmeas do World Trade Center. Cabe notar como ambas surgem deslocadas de suas vocações naturais de cartões-postais — na primeira, o topo do edifício encontra-se deformado; na segunda, as torres surgem ao fundo, ainda em construção, ocupando somente a parte lateral esquerda da foto, enquanto, no primeiro plano, o que se vê é um descampado no qual se ergue uma casa sobre rodas, feita de materiais reaproveitados. Parece haver mais interesse por parte do artista naquilo que acontece ao rés do chão, do que no topo dos edifícios imensos”.

“Vejo que a maior parte da população é marginal. Eu fui atraído por umas situações humanas que me chocavam e que ao mesmo tempo me atraíam por que havia uma força vital alí de resistência”

Afinal, o ambiente urbano que permite os encontros e estimula a vivacidade citada por Thyago é o mesmo que coloca a exclusão num microscópio, um mundo de desigualdades sociais sob esteróides. É uma ambiguidade complicada na qual se arriscar, uma corda bamba entre protesto e embelezamento da tragédia, visibilidade e fetiche, choque e atração, chamado para ação e desesperança. O desafio é multiplicado contando que cada fotografia na exposição é somada a outra num exercício constante do efeito Kuleshov. Para Nogueira, além da habilidade de Rio Branco para a captura dos momentos e sua composição, há de se notar a constante reconstrução dessas cenas em obras maiores, os tais dos “novos velhos”, remontados para provocar a cada vez uma nova reação em quem os observa.

São painéis enormes, alguns monocromáticos, a exemplo do grande paredão vermelho ao fundo da sala. “A cor nunca é usada só pela cor, ela tem que ter uma conexão com uma parte ou da dor ou do prazer que a imagem está trazendo”, afirma Miguel. Ela galga papel ainda maior à medida que o tempo vai passando na exposição; embora não seja uma retrospectiva no sentido literal, Palavras Cruzadas permite um olhar através de uma linha cronológica, ao qual Thyago estabelece a seguinte reflexão: “O grande barato do Miguel é que com o tempo ele foi cortando o lastro documental da imagem, foi tirando da imagem tudo aquilo que ligava ela ao contexto no qual ela foi feita”. O curador explica que “em 1970 e 1980, por exemplo, ele ainda usa 35mm, que é um tipo de imagem com mais agilidade, tirada com a câmera no estômago, porque ele vai em cima da cena, ele quase se debruça em cima das cenas e captura aquilo com o calor do momento. Então, progressivamente, ele vai trocando o 35mm nos anos 1990 pelo 6×6, o que vai gerando imagens bem mais compostas, até uma quase sublimação da própria imagem e da ideia de narrativa no quadro, assim a imagem se torna quase abstrata”.

Fotografia da série "Monalisa". Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.
Fotografia da série “Monalisa”. Foto: Miguel Rio Branco, cortesia IMS Paulista.

Essas provocações podem ocorrer fora da mostra? Para Thyago, a concentração de quem observa a fotografia independe do espaço físico, embora a “exposição ofereça uma outra escala. Você faz com que a pessoa adentre um espaço arquitetônico para sentir alguma coisa, você a envolve dentro de uma cápsula”. Ela “coloca um embate mais físico com o corpo”, diz ele.

“A percepção e o impacto que você tem de uma imagem nessa escala em relação à sua observação, ao seu corpo físico, à proporção que as coisas tomam dentro da imagem, mas também o que aquilo te causa, no deslocamento, nos olhares.”

Sobre Palavras Cruzadas, ele nota mais especificamente: “É muito diferente do que você tem da obra do Miguel vendo as obras com um livro no colo. Na exposição temos, por exemplo, uma instalação, isso é de um tipo da experiência física que penso ser o grande lance das exposições: engajar o espectador, o corpo do espectador na experiência”. O pensamento do artista sobre a questão vai ao encontro da fala de Thyago, acrescentando que “ir a uma exposição não é um ato social, é um ato individual; um ato individual da pessoa com aquela obra que vai ver”.

Rio Branco, na sua fala, reforça o comprometimento com a contemplação. Um olhar mais ou menos atento a um detalhe em Palavras Cruzadas pode ser crucial, afinal estamos falando de trabalhos que estabelecem relações de sentido entre si e que juntos compõem uma segunda obra. “Quis muito focar na questão da sintaxe, na forma como ele articula as imagens e constrói um raciocínio, constrói essas frases visuais, que são produto das combinações e da maneira de editar o trabalho, que eu acho que é muito original”, conta Thyago.

Inimigo à contemplação está o “Mundo Cassino” que Luísa Duarte nomeia, também em seu texto crítico no catálogo da exposição. Um lugar, talvez um ponto de espaço-tempo, onde e quando há um “estímulo monótono que antes anestesia do que calibra ou estimula a percepção”. Um mundo que faz o elogio incessante da aceleração, da vigília, e é inimigo do ócio, do sono, do sonho, da imaginação, sendo, assim, desencantado. É difícil imaginar uma época de ouro que tenha antecipado esse “Mundo Cassino”, mas as dificuldades da lógica 24/7 e da quarta revolução comercial são palpáveis até mesmo na arte. Para Rio Branco, ela virou um elemento ligado ao mercado, a uma grande parte de marketing, “aquela coisa que você pensa, mas não tem uma consistência estética”, e lamenta: “A galeria convence os curadores, e colecionadores, de que aquilo é uma coisa fantástica e não deixa a arte amadurecer por si própria”.

Um ano bom, ao menos para o mercado de arte

Cena de "SOAP" (2020), de Tamar Guimarães, filme apresentado pela Fortes D’Aloia e Gabriel na Art Basel Miami Beach e na plataforma fdag. Cortesia da artista, Dan Gunn London e Fortes D’Aloia & Gabriel

A previsão era a pior possível. Com a chegada do novo coronavírus ao Brasil e com os decretos de quarentena a partir do mês de março, os agentes do mercado de arte não podiam vislumbrar nada além de uma grandiosa crise no setor. Ao relembrar este momento, as falas dos galeristas entrevistados pela arte!brasileiros caminham sempre no mesmo sentido. “O começo foi o mais duro de todos, acho que nada se compara a esse período”, diz Eliana Finkelstein, da Vermelho. “O impacto foi realmente muito grande nos meses de março e abril. Parecia que ia ser o caos”, afirma Alexandre Roesler, da galeria Nara Roesler. Segundo Marcos Amaro, sócio da Kogan Amaro, abril foi um mês “quase nulo”, e seria impossível imaginar que em um momento de grande preocupação e cautela as pessoas pudessem pensar em comprar arte. Thiago Gomide, da Bergamin & Gomide, segue o mesmo raciocínio: “Nós somos o primeiro tipo de gasto que se corta em um período de incerteza. Comprar arte é um luxo e algo que se faz em geral quando se está animado, com boas perspectivas”.

O fato é que não demorou muito para o quadro mudar, já a partir de maio ou junho, e mesmo em um ano em que feiras presenciais foram desmarcadas, uma a uma, o balanço anual de diversos galeristas em 2020 destoa – por vezes drasticamente – do que se podia esperar. “Apesar do contexto externo todo, para nós o saldo foi extremamente positivo. Foi o ano em que a galeria mais vendeu”, conta Bruna Bailune, da jovem galeria Aura, fundada em 2015. Amaro também fala em meses “excelentes” após o susto inicial. Se nem todos tiveram performance assim tão positiva, ao menos uma recuperação e reaquecimento do mercado são confirmados pelos dez entrevistados, incluindo leiloeiros e diretores de feiras. Tamara Perlman, consultora sobre mercado de arte e cofundadora da feira Parte, sintetiza: “Tenho conversado com galeristas e o que se vê é que não foi um ano ruim, pelo contrário, em geral 2020 foi um ano bom. O mercado está aquecido”.

Uma pesquisa divulgada recentemente pelo Projeto Latitude – realizada pela ABACT em parceria com a Apex-Brasil e que entrevistou mais de 50 casas do país – confirma esta percepção. Na média, em comparação com suas vendas de 2019, as galerias apresentaram resultado igual ou superior no primeiro e terceiro trimestres de 2020, tendo números piores apenas no segundo trimestre – que se refere aos primeiros meses da quarentena. A pesquisa não alcança os últimos meses do ano, mas os galeristas contatados pela arte!brasileiros confirmam que deve ser mais um período positivo.

A quebradeira que se viu em outros setores do comércio no país, portanto, passou longe do mercado de arte e, ao invés de assistir ao fechamento de casas, o Brasil viu a abertura de galerias como a HOA e o Projeto Vênus, em São Paulo, a Index, em Brasília, além da expansão de galerias como Celma Albuquerque (com a nova Casa Albuquerque) e Jaqueline Martins, com a abertura de escritório em Bruxelas. Em outro caso notável, o leiloeiro James Lisboa afirmou em entrevista recente que em um leilão realizado em agosto chegou a vendar 97% das obras disponíveis (a média antes da pandemia era de 65%), incluindo peças com valores muito acima dos preços iniciais.

O quadro geral é bastante mais positivo no Brasil do que em outras regiões, incluindo polos centrais do mercado de arte como EUA e Europa. Em uma pesquisa divulgada pela Art Basel e pela UBS em setembro, realizada com 795 galerias de todo o mundo, os dados mostram uma queda de 36% nas vendas das casas. Um terço delas também havia cortado o número de funcionários. Apesar de não incluir boa parte de um segundo semestre em que o quadro foi menos dramático, a pesquisa dá um termômetro da crise no setor. Uma tentativa de compreensão dos resultados positivos para parte significativa do mercado de arte no Brasil – mesmo sendo um dos países com maior número de mortes por conta da pandemia e que vive intensas crises política e econômica – passa por uma série de fatores, que vão de aspectos macroeconômicos à mudanças comportamentais, parcerias entre casas e o aprimoramento de suas atuações virtuais.

A ArtRio foi uma das poucas feiras realizadas tanto online quanto presencialmente em 2020. Foto: Bruno Ryfer/ Divulgação

Em casa, com excedente

Uma das percepções de muitos galeristas é a de que o aumento do tempo passado dentro de casa com o isolamento social fortaleceu um desejo e possibilidade de comprar peças de arte. “Este novo modo de vida criou uma outra relação com o próprio espaço da casa, uma convivência intensa que fez com que muitas pessoas começassem a pensar em mudar as coisas”, conta Alexandre Roesler. Ele afirma inclusive que alguns de seus clientes decidiram morar períodos em suas segundas casas (fora da cidade) e passaram a adquirir obras para estes locais. Em sentido semelhante, Bruna Bailune destaca ainda que a diminuição em outros tipos de gastos como restaurantes e viagens, impossibilitados por um longo período, podem ter influenciado no aumento das vendas de obras.

A elite é quem compra arte e é quem menos sofreu com a pandemia. Então em um país tão desigual como o nosso, e que manteve ou aprofundou essa desigualdade, essa explicação faz sentido. Em geral, a principal correlação que existe para o crescimento do mercado de arte é, mais do que com o crescimento de riqueza do país, com o crescimento no número de indivíduos ricos e milionários”, explica Tamara Perlman.

Para além de povoar suas paredes e jardins, em um momento de instabilidade econômica e política no Brasil, com taxa de juros baixa e grandes oscilações na bolsa, a arte surgiu também como uma possibilidade de investimento seguro, ao menos quando se fala de obras de nomes bem estabelecidos ou consagrados. “Arte é um ativo que preserva o valor do seu patrimônio. Claro que isso se aplica a artistas já consolidados ou a caminho dessa consolidação. E quem trabalha com artistas desse patamar saiu privilegiado. Ouvi de muitas galerias com esse perfil que foi possível manter ou mesmo superar o patamar de vendas do ano passado”, afirma Fernanda Feitosa, fundadora e diretora da SP-Arte. Alexandre Gabriel, sócio da Fortes D’Aloia e Gabriel, também percebe este movimento: “Estamos lidando com um público que tem um excedente de capital, e esse excedente vai para algum lugar. Quando você tem uma oscilação grande de mercado – em meio a esse pandemônio, com tamanha instabilidade de governo -, um colecionador com segurança e uma boa relação com a galeria sabe que vai poder fazer um bom negócio, e que talvez tenha acesso a obras que antes não teria”.

O sucesso de vendas visto em parte dos leilões, que trabalham com o mercado secundário e majoritariamente com artistas renomados, também reforça a hipótese de que o investimento em arte foi para alguns uma espécie de diversificação de investimentos. Para Aloísio Cravo, um dos mais importantes leiloeiros do país, num contexto de juros baixos, dólar alto e ainda com uma pandemia, os ativos passam a ter muito valor. “O que você vê de lançamentos de apartamentos é uma loucura, ou mesmo os números sobre recordes de vendas de carros importados.” Após dois leilões difíceis no meio do ano, Cravo cita uma forte retomada em seu último evento, realizado em novembro, no qual uma obra de Jorge Guinle, por exemplo, tinha preço inicial de R$ 180 mil e foi arrematada por R$ 260 mil.

Novos compradores

Mas o fato é que não apenas obras de grande valor e de artistas consagrados foram comercializadas durante 2020. Em uma outra ponta, trabalhos de nomes jovens, com valores mais baixos e vendidas muitas vezes por galerias menores, também ganharam fôlego comercial no período. Segundo a pesquisa do projeto Latitude, as galerias que movimentaram em 2019 menos de R$ 500 mil tiveram este ano, proporcionalmente, um desempenho melhor do que as que movimentaram até R$ 10 milhões. Segundo Bailune, a Aura, que sempre teve um público jovem e prática em fazer negócios com compradores de primeira viagem, concretizou uma série de transações que estavam travadas antes da pandemia. “Vários clientes que a gente prospectava passaram a comprar, viraram clientes da galeria.”

A entrada de um novo público no mercado é confirmada por outros galeristas e diretores de feira. Entre os motivos apontados, para além da já citada permanência em casa que afetou todas as gerações, está o fato de os mais jovens terem maior facilidade e costume de comprar no universo online – espaço de vendas que ganhou maior relevância na pandemia. Segundo Perlman, dados do meio do ano mostravam que na Artsoul, plataforma de venda de arte contemporânea, o número de acessos tinha triplicado e o de vendas duplicado. Fernanda Feitosa conta que tanto na SP-Arte quanto na SP-Foto cerca de 70% dos visitantes deste ano estavam ali pela primeira vez, ou seja, não eram frequentadores das edições presenciais realizadas pela marca.

Neste sentido, a transparência adotada tanto pelas plataformas de venda, os market places, quanto pelas feiras, que em grande parte passaram a fornecer dados detalhados e preços das obras, pode ter facilitado a vida de jovens colecionadores. “Acho que isso evita um constrangimento que existe, principalmente em feiras, de pessoas que não fazem ideia dos preços e não se sentem confortáveis em frequentar esse segmento”, diz ele. Alexandre Roesler, que participou de cerca de uma dezena de feiras virtuais no ano, segue a mesma linha: “O fato de ter pelo menos a faixa de valores facilitou muito a pesquisa para as pessoas. Numa feira física normalmente você não sabe o preço, às vezes tem vergonha de perguntar… O site dá mais informações, possibilidades de consulta e permite que as pessoas comecem a se familiarizar com a área.”

Feitosa acrescenta ainda que houve uma aproximação de um público “mais sensível às questões do momento”, o que pode ter beneficiado as vendas destas galerias de menor porte. “Houve um apoio a artistas jovens, negros, mulheres e de minorias. Ou seja, um publico comprador mais consciente do seu papel”, acrescenta ela, citando a participação na SP-Arte dos projetos Levante Nacional Trovoa e Plataforma 01.01, que focam em produções de artistas afro-diaspóricos, não binários, asiáticos e indígenas. Não menos importante para os bons resultados foram as parcerias entre galerias que marcaram principalmente os primeiros meses de pandemia. Segundo a pesquisa do Latitude, 66,1% dos agentes do mercado brasileiro informaram ter realizado novas parcerias com foco na coletivização das soluções e com práticas como a divisão de metas de venda com outras galerias. A p.art.ilha foi umas dessas iniciativas coletivas, a mais citada pelos entrevistados da pesquisa, que estimulou as vendas também com benefícios comerciais para os compradores.

Relacionado a este olhar mais atento à questões políticas atuais, um fenômeno ligado às instituições é outro aspecto que pode ter favorecido o mercado brasileiro em tempos recentes. Seja por consciência da necessidade de mudança ou por pressão de diversos movimentos sociais e artísticos, importantes museus do mundo estão revendo seus acervos para incluir obras de artistas mulheres, negros, indígenas, LGBTs, latinos e asiáticos. Thiago Gomide, mesmo constatando que a média de vendas de sua galeria em 2020 esteve abaixo da de outros anos, acabou de concretizar a transação de uma escultura de Lygia Clark para o Guggenheim de Abu Dhabi por cerca de R$ 10 milhões. Vele lembrar que o MoMA de São Francisco recentemente vendeu uma obra do americano Mark Rothko por U$D 50 milhões para adquirir um conjunto de trabalhos de artistas mulheres ou integrantes de minorias étnico-raciais, e de que o Everson Museum de Siracusa se desfez de um trabalho de Jackson Pollock para suprir o mesmo tipo de lacuna. “Então os museus não só querem como precisam rever suas coleções. E nisso o Brasil se posiciona bem”, conclui Gomide.

Obra de Sérgio Camargo vendida este ano pela galeria Bergamin & Gomide. Foto: Divulgação

Experimentando e correndo atrás do atraso

Os Viewing Rooms, espécies de salas expositivas virtuais, foram o caminho encontrado por grande parte das feiras ao redor do mundo para não cancelar totalmente suas edições. Desde as estrangeiras como Art Basel, Frieze, TEFAF e Untitled até as nacionais como SP-Arte ou as inéditas Not Cancelled Brazil e Latitude Art Fair, todas recorreram à criação de espaços virtuais que, de modo geral, foram se sofisticando ao longo do ano. Se nem sempre os resultados de vendas alcançaram os números de outros anos, os gastos para as galerias também foram infinitamente menores. “Nas feiras, o preço do estande, as viagens, hospedagens, o transporte de obras e os seguros, tudo é um orçamento muito alto. E mesmo as exposições virtuais da galeria foram mais baratas de fazer. O que aconteceu, no final do ano, é que a gente conseguiu manter o faturamento, mas a despesa caiu”, afirma Roesler.

De modo quase forçado, a chegada da pandemia obrigou uma revisão de modelos e métodos de trabalho que, segundo os próprios galeristas e organizadores de feiras, já começavam a dar sinais de esgotamento. O excesso de deslocamentos pelo mundo, em uma agenda incessante ao longo do ano, certamente será revisto, mesmo em um futuro pós-pandêmico. “Acho que as feiras vão ficar cada vez mais locais, e o que vai conectar o evento com o mundo é o online. Uma feira em Londres vai receber principalmente o pessoal de Londres, e o virtual servirá para as pessoas de fora”, supõe Finkelstein. Para feiras em países de fora do eixo central do mercado, como o Brasil, isso pode ser proveitoso, segundo Feitosa. “Estamos a pelo menos dez horas de distância dos EUA, da Europa e ainda mais do Japão, por exemplo. Então o fluxo de visitantes internacionais para uma feira aqui é menor do que em outros países. Com o online, este ano eu tive na SP-Arte 15% de visitação estrangeira, enquanto na feira presencial este número era em média de 2%.”

O formato híbrido, em que o evento acontece em escala reduzida no presencial e é complementado pela plataforma virtual, foi experimentado pela ArtRio, realizada em um período em que a primeira onda da pandemia parecia estar diminuindo e a segunda não havia chegado. O resultado foi elogiado pelos galeristas entrevistados, que confirmaram a realização de um alto número de transações. “Acredito que esse modelo híbrido é o que vai funcionar tanto para feiras quanto para galerias. Vão sobreviver as que conseguirem operar tanto online quanto no offline com a mesma força”, diz Bailune. Quanto aos leilões, Aloísio Cravo completa: “Daqui para a frente, para fazer um leilão presencial tem que ser com uma coleção excepcional, uma solenidade. Porque sinto que esse modelo online deu muito certo”.

É notável, neste sentido, a grande movimentação e o esforço das casas brasileiras para se manter ativas e presentes nas plataformas virtuais ao longo do ano. Exposições se tornaram Viewing Rooms; lives com galeristas, curadores e artistas pipocaram nas redes sociais; novas plataformas surgiram e a produção de conteúdos em vídeo, áudio e imagens foi intensificada. “A pessoa que fazia comunicação digital passou a ser a pessoa com mais importância na galeria”, brinca Thiago Gomide. Para Alexandre Gabriel, “qualquer projeto que a gente vá fazer a partir de agora, eu vou pensar em qual é a imagem dele online, como ele acontece também virtualmente. E isso não tem volta”.

É nesse sentido que Tamara Perlman percebe uma mudança importante, que já se fazia necessária há tempos. “Muito rapidamente as galerias se juntaram de uma forma ou outra, mudaram modelos de negócio, adotaram tecnologias e testaram coisas. E isso foi muito interessante porque elas se deram o direito de experimentar, o que era uma coisa muito difícil – até por uma razão compreensível, já que elas vivem de reputação. Então na construção de uma marca, as casas têm muito receio de errar. E a pandemia, principalmente o começo, foi um momento em que isso mudou: pode testar; pode experimentar; tudo bem uma galeria grande estar ao lado de uma pequena.” A Fortes D’Aloia e Gabriel, por exemplo, participou da Art Basel Miami Beach apenas com filmes de artista, o que seria impensável em outro contexto, e aproveitou para lançar a plataforma fdag, voltada apenas para obras audiovisuais.

O insubstituível 

Apesar do balanço positivo, do avanço virtual e da entrada de novos colecionadores no mercado, os galeristas admitem certo esgotamento com a situação. “Vou te dizer que estou começando a me sentir com o HD riscado”, comenta Gabriel. “Foi muito trabalho, uma coisa insana.” Murilo Castro, que promoveu 50 lives durante a pandemia, vai na mesma direção: “Eu diria que nunca trabalhei tanto quanto neste ano. E sinto falta das relações, porque a nossa área vive de contato pessoal, de confiabilidade. Então não acho que o online pode substituir isso, mas sim incrementar informações e possibilidade”.

Alexandre Roesler, mesmo vislumbrando menos viagens – “já vimos que é possível resolver muita coisa em uma videoconferência” – ressalta também que mesmo a experiência em uma feira, por vezes cansativa, tem vários benefícios insubstituíveis: “Você faz uma viagem e vai a museus, exposições, encontra pessoas que só vê nesse circuito, conhece novos artistas”. O que se espera, portanto, é que em um mundo pós-pandêmico os avanços digitais, somados à inserção de novos e jovens compradores, se somem a uma retomada de atividades presenciais. “Eu diria que em termos de mercado nós teremos um ganho no futuro”, conclui Castro. Mas não se pode negar: “Culturalmente, sim, este foi um ano muito ruim”.

Frantz Fanon, a força da linguagem

O psiquiatra, escritor e militante anticolonial Frantz Fanon
O psiquiatra, escritor e militante anticolonial Frantz Fanon. Foto: Arquivo Frantz Fanon/Divulgação

*Por Eugênio Lima

Reembarcar nesse mundo Fanon foi muito intenso. Lembrei de coisas que tinha esquecido e pouco a pouco fui reconstruindo tudo, desde a minha primeira leitura, em 2014, até hoje.

A primeira vez que voltei ao livro de Frantz Fanon foi quando resolvi que ele seria a minha preparação para a mediação do debate “Arte e Sociedade: a Representação do Negro”, em maio de 2015, no Itaú Cultural em São Paulo. O debate foi realizado em resposta às manifestações do público com relação à peça A Mulher do Trem, de Os Fofos Encenam, acusada de racismo. Quero deixar explícito que mediar tal encontro não foi uma atividade fácil, tampouco agradável. Em muitos momentos, os paradoxos e contradições da função “mediador” me deixaram muito desconfortável. Apesar de entender tudo como parte de um grande processo histórico e saber que o debate teve um impacto catalisador para a discussão do racismo na sociedade brasileira e sua relação com a cultura e a arte, tal evento me traz uma lembrança ácida e órfica.

Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, publicado pela editora Ubu em 2020 (320 p.). Foto: Divulgação
Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, publicado pela editora Ubu em 2020 (320 p.). Foto: Divulgação

É deste ponto de partida arbitrário que inicio a minha jornada com o livro Pele Negra, Máscaras Brancas, de 1952, que hoje tem uma nova edição em português feita pela Ubu Editora, que é primorosa. A leitura dessa edição, traduzida por Sebastião Nascimento com a colaboração de Raquel Barreto, começa com o prefácio da Grada Kilomba, segue com os textos complementares de Francis Jeanson e Paul Gilroy, o posfácio de Deivison Faustino e se encerra com o texto de Homi K. Bhabha. É um percurso incrível que cria uma malha intensa de contexto, reflexão, crítica e beleza e traz a magnitude e a complexidade da obra de Fanon. Ler este livro é uma imersão no pensamento do autor e não há como sair ileso. Sua escrita fere, queima e nos arremessa num turbilhão de pensamentos e sensações.

Além disso, existe a matéria do tempo que opera sobre a obra, tornando a leitura, às vezes, um exercício muito difícil, pois, diante de tanta conceituação, como encontrar uma leitura própria? Como buscar na própria obra algo que reverbere para além dela mesma? E, principalmente, se existem diversas leituras possíveis deste livro primoroso feitas a partir de escolas de pensamento e ação distintas, quem é você, leitor/leitora, neste diálogo com Fanon?

Não, cara leitora/caro leitor, eu também, como o autor, não venho armado com verdades definitivas, ou melhor, “não chego armado de verdades categóricas”. O que pretendo deixar explícito é que ler Fanon é estar diante da cisão, é caminhar num universo intenso de desejos, urgências, tensões entre cultura e classe, raça e sexualidade, ironia e poesia, voz e escritura, entre outras tantas coisas. É ser atravessado por tensões que precipitam a ruptura. Não há como buscar afirmações decisivas ou qualquer teoria geral da opressão colonial. Do meu ponto de vista, as questões levantadas são um jorro intelectual e poético. Refletir sobre elas é sempre lacunar, é perguntar: O que aconteceu? E depois juntar os inúmeros pedaços de si espalhados pelo chão. Como diz Homi K. Bhabha em seu brilhante texto Recordar Fanon, Eu, A Psique e a Condição Colonial:

“Essa alienação social extrema – esse fim da ‘ideia’ de indivíduo – produz, em Fanon, uma urgência incansável por uma forma conceitual apropriada para o antagonismo social da relação colonial. Sua obra se divide entre a dialética hegeliano-marxista, uma afirmação fenomenológica do Eu e do Outro e a ambivalência psicanalítica do inconsciente – sua passagem do amor para o ódio, do senhor para o escravo. Em sua malfadada e desesperada busca por uma dialética da salvação, Fanon explora os extremos desses modos de pensamento: o hegelianismo restaura a esperança na história; a evocação existencialista do ‘Eu’ recupera a presença do marginalizado; e a estruturação psicanalítica joga luz na “loucura” do racismo, no prazer da dor, na fantasia agnóstica do poder político” (p. 3).

Sei que o caminho ainda é longo até que possamos de fato desconstruir o ideário racista. Porém, reler Fanon é estar em pé na montanha dos horrores do mundo colonizado. É estar com olhar pousado numa sociedade que foi/é (?) escravocrata durante 400 anos, recebeu quase 40% do tráfico negreiro do mundo, teve o maior porto da história da escravidão moderna, que ainda hoje constrói apartamentos com quarto de empregada (senzalas nos apartamentos), que mata, mata, mata e continua matando suas crianças e sua juventude negra e que tem a maior população negra fora da África.

É estar diante do passado que não passa.

É ter a consciência que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra.

É compreender cotidianamente que no mundo colonial em que vivemos a causa é a consequência, que mitos como o “Ser Humano” e a “Sociedade” perdem a sua base de sustentação e que a vida gira num círculo vicioso e delirante.

“É fato: os brancos se consideram superiores aos negros. Mais um fato: os negros querem demostrar aos brancos, custe o que custar, a riqueza de seu pensamento, o poderio equiparável da sua mente. Como escapar disso?” (Frantz Fanon)

O psiquiatra, escritor e militante anticolonial Frantz Fanon
O psiquiatra, escritor e militante anticolonial Frantz Fanon. Foto: Arquivo Frantz Fanon/Divulgação

Evidentemente, neste espaço, não será possível discorrer sobre como a escravidão e o racismo moldaram e moldam a sociedade brasileira, bem como todos os países do continente americano criados a partir da “mão-de-obra negra” escravizada, ou sobre por que o Haiti, o único país das Américas a declarar independência e abolir a escravidão ao mesmo tempo, sofreu enormes boicotes e foi destruído sistematicamente ao longo da história.

“O que é meu

um homem só, prisioneiro de branco

um homem só, que desafia os gritos brancos da morte branca

(TOUSSAINT, TOUSSAINT LOUVERTURE)”.

Aimé Césarie, Diário de um Retorno
ao País Natal (1939, p. 46)

Quero deixar “claro” que o meu maior desafio ao ler Fanon foi compreender o que significa uma identidade não existir na sua própria língua, seja ela escrita ou falada. Essa mesma língua na qual escrevo mantém praticamente intacta as relações de poder e violência que a constituíram. O português preserva a sua herança colonial e patriarcal branca no centro de sua dimensão política. As palavras que usamos definem o lugar de uma identidade e para nós, negros e negras e todas as humanidades subalternas e racializadas, a primeira batalha para existir é no campo da linguagem. Como já disse o Racionais MC’s: “Essa porra é um campo minado”.

É forte a percepção de que tenho que existir imerso em uma língua que me aparta, me “denigre” e me “judia”, em um idioma no qual o universal é masculino – aliás, o próprio Fanon foi bastante criticado pela universalização do masculino como o sujeito do pensamento humano. Todos esses mecanismos nos afastam do pleno reconhecimento das humanidades racializadas, as quais foram e são transformadas pela hierarquia racial do projeto colonial em humanidades subalternas, sem agência plena no mundo dos vivos.

Mas se a presença não está inscrita na língua, o extermínio está. O genocídio negro e indígena no Brasil é uma realidade.

Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, publicado pela editora Ubu em 2020 (320 p.). Foto: Divulgação
Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, publicado pela editora Ubu em 2020 (320 p.). Foto: Divulgação

Assim como eu nesse artigo, Fanon escreve na língua que o aparta, que tenta embranquecê-lo e que, em última análise, o aniquila. E isso, o nosso querido Lima Barreto já sabia:

“[…] A língua é a mais alta manifestação da inteligência de um povo, é a sua criação mais viva e original; e, portanto, a emancipação política do país requer como complemento e consequência a sua emancipação idiomática.”

Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma (1915, p. 26)

Não é por acaso que Pele Negra, Máscaras Brancas começa com um poema/introdução, no qual conceitos, poéticas, manifestos e desejos se entrecortam. Não é à toa que o primeiro capítulo seja intitulado “Negro e a Linguagem” e que a sua primeira frase seja: “Conferimos importância fundamental ao fenômeno da linguagem”. A luta é, sobretudo, sobreviver diante da linguagem que denigre, seja para existir como sujeito (agente no mundo dos vivos), seja como representação simbólica.

A seguir, algumas das palavras fanonianas que atravessaram os tempos:

“Falar é ser capaz de empregar determinada sintaxe, é se apossar da morfologia de uma outra língua, mas é acima de tudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.”

“[…] O problema que enfrentamos neste capítulo é o seguinte: tão mais branco será o negro antilhano, quer dizer, tão mais próximo estará do homem verdadeiro, quanto mais tiver incorporado a língua francesa. Não ignoramos que essa é uma das atitudes do homem diante do Ser. Um homem que possui a linguagem possui, por conseguinte, o mundo expresso por essa linguagem e implicado por ela. Pode-se ver aonde queremos chegar: existe no domínio da linguagem uma potência extraordinária.”

Por fim, deixo aqui o convite para que mergulhem nessa jornada sem volta que é ler e reler Pele Negra, Máscaras Brancas e suportem o atravessamento da força da linguagem.


*Eugênio Lima é Dj, ator-Mc, diretor de teatro, pesquisador da cultura afro-diásporica, membro-fundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, da Frente 3 de Fevereiro e do Coletivo Legítima Defesa.

Politizando o mercado de arte: como novas propostas têm trazido à tona questões de raça, gênero e orientação sexual para o circuito

Integrante da plataforma Piscina, Juh Almeida expôs a obra A woman speaks no SP-Foto VR
Integrante da plataforma Piscina, Juh Almeida expôs a obra "A woman speaks" no SP-Foto VR. Foto: Cortesia Piscina e artista

*Por Ana Letícia Fialho e Luciara Ribeiro

O resultado das últimas eleições, tanto no Brasil como nos EUA, foi marcado por presenças que, de alguma maneira, apontam um desdobramento dos atos antirracistas que cresceram no mundo a partir do mês de julho, quando o assassinato do afro-estadunidense George Floyd e o movimento Black lives matter mobilizou multidões de pessoas pelo mundo. Foi neste período também que, em meio a crise pandêmica da Covid-19, esse debate cresceu dentro do sistema das artes brasileiro, adentrando o espaço das instituições e exigindo posicionamentos e ações mais assertivos. De lá pra cá vimos o aumento de discussões que pautaram o revisionismo crítico dos museus, acervos e políticas de aquisição; a contratação de mais profissionais negros, indígenas e trans para cargos de coordenação, curadoria e gestão; abordagens em torno das linguagens e metodologias adotadas pela academia e as mídias artísticas, entre outras. Apesar do empenho de diversos agentes e da maior visibilidade alcançada por tais questões, poucas foram as alterações efetivas concretizadas.

Embora possamos nos deixar embalar por exemplos positivos que vêm se multiplicando, cabe destacar aqui pesquisas que evidenciam o longo caminho ainda a ser percorrido. Os primeiros resultados do Mapeamento de curadores negros, negras e indígenas, realizado de modo colaborativo através das redes sociais com a coordenação de Luciara Ribeiro e divulgado em parceria com o Projeto Afro e o Coletivo Trabalhadores de Arte, demonstra que mesmo com o aumento das contratações de curadores não brancos e com a abertura de exposições que contam com a participação desses profissionais, dos 76 curadores negros e dos 20 indígenas listados, 80% deles atuam de maneira independente/autonoma, sem vínculos efetivos com as instituições museais, artísticas e culturais. Sem desconsiderar as escolhas pessoais de cada um, esse dado revela baixa taxa de empregabilidade formal dos curadores negros e indígenas.

A MUNA, Mulheres Negras nas Artes, fundada por Fabíola Rodrigues e Mariana de Matos, lançou em 2017 uma pesquisa precursora em evidenciar a grande desigualdade de raça e gênero existente no sistema das artes no Brasil. Os resultados, divulgados na página da MUNA no Facebook, informam que nas 30ª, 31ª e 32ª Bienais de São Paulo, por exemplo, participaram 390 artistas, entre os quais 45 mulheres, das quais apenas quatro artistas negras. A pesquisa também levantou números do mercado de arte: uma amostra de 5 galerias do Sudeste (A Gentil Carioca, Celma Albuquerque, Mendes Wood DM, Nara Roesler e Vermelho) computava um total de 160 artistas representados, entre os quais 56 eram mulheres e apenas 1 artista negra.

Uma pesquisa mais recente, desenvolvida pelo artista, curador e pesquisador Alan Ariê, em 2019, mapeou as diferenças de gênero, raça e local de nascimento de 619 artistas representados por 24 galerias da cidade de São Paulo, e foi divulgada através de um perfil criado nas redes sociais, o Negrestudo. Um dado que diz muito sobre a reatividade do mercado de arte em tratar do tema foi a recusa expressa de algumas galerias contatadas em participar do levantamento. Quando da divulgação dos resultados, algumas das galerias marcadas nas redes sociais se desmascaram, evidenciando incômodo com o tema e os resultados, que apontam, por exemplo, que entre os “619 nomes levantados pela pesquisa, apenas 46 pessoas não são brancas. Destas, 27 são pessoas negras – 23 homens e apenas 4 mulheres; 14 são pessoas asiáticas – 9 homens e 5 mulheres; 4 são pardas – todos homens; e apenas 1 pessoa é indígena.”

Diante disso, não podemos fechar o ano de 2020 sem reforçar a importância de que esses debates sejam permanentes nas artes, assim como compromisso na construção de um sistema mais democrático e para todos. Se no plano institucional e curatorial esse debate já vinha ocorrendo há bastante tempo e se tornado mais recorrente e consistente nos últimos anos, no mercado de arte o fenômeno parece ser bem mais recente e ainda bastante embrionário no Brasil. Não obstante, embora possam ter temporalidades distintas, tendências observadas no campo institucional e no mercado não devem ser dissociadas, afinal, o sistema da arte é composto por instâncias distintas mas interdependentes, todas sujeitas a macrodeterminantes, como os movimentos sociais e o contexto pandêmico, que têm impulsionado e mesmo acelerado mudanças no setor.

Nesse sentido, vimos algumas ações ocorridas neste ano que merecem destaque. A p.art.ilha, que surgiu como um coletivo de galerias para pensar em estratégias coletivas e compartilhadas de âmbito comercial e institucional, hoje reúne cerca de 40 galerias de distintas localidades e propostas curatoriais. Além das ações pensadas para a atuação externa, são recorrentes discussões e contribuições colaborativas (crowdsourcing) para organização interna desse setor. Como exemplos podemos citar a criação de uma listagem unificada de curadores e suas linhas de pesquisa, uma planilha conjunta de prestadores de serviço e indicações de transportadoras e a possibilidade de dividir e planejar custos em traslados de obras para o mesmo destino, que têm sido frequentes e proveitosas em termos de custo, tempo e facilidade.

Outros setores dentro do circuito da arte se fortaleceram através da auto-organização; é o caso da Art Handler Brasil, que foi criada a partir da necessidade de ações emergenciais para auxiliar os montadores de exposições de arte, e que inclusive foi uma das beneficiadas pelas primeiras ações coordenadas das galerias da p.art.ilha.

Demandas político-sociais têm também instigado a criação de novas galerias já alicerçadas em prerrogativas mais inclusivas. Pioneira nesse quesito, a Diáspora Galeria, lançada em 2019, que também participa da p.art.ilha, enxerga o diálogo com o setor e as outras galerias e agentes culturais como um caminho necessário e incontornável para expandir a presença das pautas sociais dentro do sistema da arte. Yvette Mutumba, fundadora da revista Contemporary&, em uma matéria para a ArtForum, citou a galeria como um dos dez projetos de destaque para seu ano, o que apenas reforça a importância política de novas galerias para renovar o mercado.

Registro da performance Tálamo, no Crato (CE), da artista Foto: Jaque Rodrigues/Cortesia Levante Nacional Trovoa e artista
Registro da performance Tálamo, realizada no Crato (CE) pela artista Maria Macedo, integrante do Levante Nacional Trovoa. Foto: Jaque Rodrigues / Cortesia Levante Nacional Trovoa e artista

A HOA, galeria de Igi Ayedun, também precisa ser mencionada como uma boa novidade. Lançada neste ano de 2020, a galeria se define como uma organização de arte liderada por artistas, dedicada à arte contemporânea latino-americana, e visa romper a noção de atraso e dependência do sistema europeu e norte-americano nas artes. Em seu elenco, consta apenas artistas não brancos.

Essas movimentações também reverberaram nas edições anuais da SP-Arte, que ocorreu online durante o mês de agosto, e da ArtRio, que ocorreu presencialmente no mês de outubro. Ambas, possibilitam a entrada de projetos que não se configuram especificamente como galerias de arte, mas que abrem caminhos na criação de novos modelos para a circulação e comercialização das artes. Entre eles estão a Plataforma 0101, a Nacional Trovoa e a Piscina, que, além de surgirem como propostas de renovação para o mercado, possuem como base o fato de serem  coletivos pautados em debates não hegemônicos, como o feminismo interseccional e as lutas antirracistas.

As edições Viewing Rooms da SP-Arte e SP-Foto demonstraram que com a virtualidade é possível alcançar não apenas outros públicos de compradores e galerias, mas democratizar o acesso à feira, e, em alguma medida, descentralizando-a do sudeste. Em live do dia 11 de agosto, no canal do instagram do Arte que Acontece, a diretora da feira, Fernanda Feitosa, comentou sobre o desejo de expandir a SP-Arte para outras regiões do país, descentralizando-a do eixo sudestino e contribuindo para outras noções da produção nacional. Promover o debate sobre a geopolítica das artes no campo nacional e internacional em uma feira com a projeção da SP-Arte se faz fundamental, visto que em sua estrutura ainda se mantém a presença majoritária de galerias dos eixos economicamente favorecidos. Talvez, entender a configuração das artes por via dos Sul-Sul’s geopolíticos possibilite a ampliação de perspectivas para as artes, tendo a inclusão das regiões do norte, nordeste e centro-oeste brasileiros, assim como Ásia, África e América Latina na mesma medida que as demais.

"Azul Profundo II', do duo Takeuchiss, representado pela Pisicina, plataforma para mulheres artistas, no SP-Foto VR
“Azul Profundo II”, do duo Takeuchiss, representado pela Pisicina, plataforma para mulheres artistas, no SP-Foto VR. Foto: Cortesia Piscina e artista

A ativação do virtual como espaço para a comercialização não foi utilizado apenas pelas feiras. Na busca de alternativas acessíveis, artistas se reuniram em coletivos para comercializar suas obras. Uma dessas experiências foi o Birico, uma plataforma digital organizada por 40 artistas de diversas regiões do país e com condições sociais diferentes, que vendem impressões gráficas de seus trabalhos com o intuito de gerar um fundo emergencial para seus participantes e para ações na Cracolândia, como uma “Residência Artística Social” oferecendo moradia e formação em diferentes áreas, podendo as produções realizadas serem comercializadas e contribuírem na geração de renda.

Ação do Birico na Cracolândia. Foto: Cortesia Birico
Ação do Birico na Cracolândia. Foto: Cortesia Birico

Não há uma previsão segura sobre quando as atividades do mercado de arte, fortemente ancorado em relações pessoais e atividades presenciais, poderão se restabelecer plenamente. Mudanças significativas estão em curso, relacionadas à forma de produção, exibição, circulação e consumo de arte, exigindo adaptações e transformações dos modelos de negócios, onde as estratégias digitais assumem uma relevância inédita. Dessa capacidade de reinvenção e de ação dependem a sustentabilidade e mesmo a sobrevivência de empresas e agentes que atuam no mercado de arte, enquanto a pandemia durar, e também a recuperação do setor num cenário pós-pandêmico no qual o contexto econômico mais amplo seguirá bastante adverso. Acreditamos que uma das mais relevantes e positivas transformações em curso se dá na direção de um sistema das artes mais diverso, includente e colaborativo. Iniciativas como p.art.ilha, Diáspora, Birico e todas as demais citadas, já estão apontando para esses novos caminhos.


*Ana Letícia Fialho é gestora, professora e pesquisadora nas áreas de economia da cultura e mercado de arte. Doutora em Ciências da Arte e da Linguagem, é assessora para o projeto do Novo Museu do Ipiranga.
*Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca e pelo Programa de Pós-Graduação da UNIFESP. É técnica em Museologia pela ETESP e diretora de conteúdo da Diáspora Galeria.

Arte!Afro-Brasileiros

O professor Renato Araújo da Silva. Crédito: Rosana Gonçalves
Por Renato Araújo da Silva

Ainda com crise de identidade e às margens do centenário da Semana de 22 e do período africano de Picasso, a arte brasileira, em sua “virada cultural”, continua o seu rumo procurando possíveis respostas para o velho desafio modernista. Como a arte do início do século XXI poderia fazer frente ao seu uso instrumental asfixiante dentro do multiculturalismo, identitarismo e a aflição de se tornar uma mera inclusão social (financeira) de alguns artistas e instituições, quase todos ciclicamente à beira da insolvência, quer seja econômica, moral ou existencial? Cem anos percorridos, aboliu-se mesmo o futuro primitivo?

Para o nacional modernismo, parece que o desafio estrutural era uma busca sincera por uma identidade brasileira distinta das imposições externas, ainda que vagamente identificada às culturas mestiça, indígena e negra nacionais. Como técnicos, os modernistas quiseram organizar essa equipe, naquilo que os atletas tinham de mais “primitivo”, “genuíno” e “autêntico” – isso a despeito da agressividade e violência com que foram tratados no país desde sempre. Enquanto o fundamento dessa identidade afro-indígena brasileira no flerte próprio das classes médias culturais esteve continuamente em ebulição, não supúnhamos que também estivesse em jogo.

Passado esse tempo, o que impediu a realização da vitória modernista neste jogo da arte e da sociedade? Dito de outra forma, por que o “herói da nossa gente” e a divisa tupi or not tupi deixaram rapidamente de fazer sentido já lá atrás, em seu lapso histórico original, porém isolado, quase idealista? Os historiadores sociais que se debruçaram sobre esse problema culparam acertadamente as modificações advindas da segunda grande guerra (a política da boa vizinhança), as ditaduras Vargas e a militar, o fado provinciano daquele Brasil “país do futuro” eternamente agrário, atado ao passado colonial, oligárquico, clientelista, entre outros atrasos que tanto nos definem. No entanto, há algo de extremamente notável na arte brasileira, ainda difuso e mesmo assim bastante óbvio e que, tão logo emerge, vai sendo constantemente varrido para debaixo do tapete: no campo onde se joga a arte, uma das regras do jogo é o racismo.

Tal como aquela agressividade que o ego (identidade) introjeta, internaliza no sentido de si próprio criando o superego e o sentimento de culpa, a agressividade contra a identidade mestiça ou afro-indígena na civilização brasileira – ou seja, o nosso racismo – expressou-se na forma de uma necessidade de punição e autopunição. Como o indígena foi absolvido dentro de nós citadinos ou fora expulso do jogo e desde o início desterritorializado, como é extemporâneo, isto é, já nasceu assassinado, que se puna, então, o negro! 

Antes das rupturas e interrupções “por falta de luz”, o jogo modernista prosseguia com excelentes jogadores que explicitaram a identidade afro-indígena brasileira; na “zaga”: Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr.; tivemos poucos bons goleiros!, mas atacantes, sim, muito bons: Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Mário Pedrosa, Antônio Cândido, Joel Rufino, entre tantos outros. Mas hoje, com estes jogadores física e ideologicamente mortos e com este jogo sem possibilidades de prorrogação, quão gigante deverá ser o peso para a consciência da historiografia da arte brasileira se o negro e o índio tiverem de ser incluídos “por cotas” ou apenas na forma do sentimento de culpa?! Pior ainda, que reedição de um desastre social emergiria se essa inclusão acontecesse no mundo artístico apenas por pressão forçada a partir do multiculturalismo (em sua contraditória evocação pós-racial)? Que estratégia de negócios acolheriam os negros em museus e galerias senão a mesma dos algoritmos e anúncios focais – a dos números? No momento desse massacre cultural da sociedade digital –, esta que ajudou a dar o último golpe para fazer desaparecer não só a identidade negra dentro da brasileira, mas o próprio interesse numa identidade qualquer que não fosse a consumidora – o fundamento afro-índio-mestiço-luso-brasileiro é vislumbrado agora na forma desse game over deprimente que nos acorda: a perda da bela partida antropofágica que parecia de vitória tão certa aos olhos joviais de um Mário e um Oswald
de Andrade.

Os Macunaímas das ruas, assim como os Timótheos e Estevam Silvas dos museus, estão sendo cirurgicamente exterminados na raiz. Premia-se o garrancho na estética da sociedade de consumo, porque o escândalo foi deglutido e naturalizado. É por isso que hoje, apesar do noticiário mainstream e dos “mapas da violência”, o racismo na era digital volta à esfera da indiferença ou do tabu. Na era da pós-verdade e do “salve-se quem puder” impostos pelas grandes corporações e novas oligarquias, a diminuição da dignidade humana é proporcional ao aumento da dignidade da máquina, assim como a elite negra e os negros artistas ora chamados ao gueto pelas ondas de valorização institucionais das quais participam como alimentos, o fazem dentro de um risco calculado: não por dignidade e talento, mas pela vazão deste sentimento de culpa mesclados ao cumprimento das ordens do politicamente correto.

Como falar agora de arte brasileira, corpo negro, consciência negra, arremedos de cidadania, resquícios da dialética do senhor e do escravo se todos nós somos mais ou menos escravos dos números e dos algoritmos? Apenas para falar o óbvio ululante de que “uns são mais iguais que outros”? De que negros também fazem arte? De que Black lives matter? A única resposta possível é que tendências sociais muito mais profundas advindas da trágica (ou patética) lógica cultural do capitalismo tardio impuseram a todos nós, seres biológicos, que joguemos no mesmo time: o dos derrotados; mas sem crises de identidade, porque não há como falar de uma arte brasileira se ela não for realmente brasileira.

Arte afro-brasileira, a propósito, não é um estilo, não é uma vanguarda, sequer mesmo um movimento social ou artístico; é a arte do Brasil – senão pleonasmo. Mas, neste caso, ter vergonha do que somos ou tentar nos livrar do prefixo “afro”, deste substantivo composto, união semântica de palavras tão sinonímias, supondo que com isso aliviaríamos tensões sociais, pesos de consciência ou pressões temáticas sobre uma certa “liberdade do artista”, seria o mesmo que refrear aquela pulsão carnavalesca que reside em cada brasileiro e força-la de volta para o inconsciente de onde invariavelmente ela voltará a gritar: Arte!Afro-Brasileiros!