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“É preciso reativar o corpo erótico da sociedade”, diz Franco ‘Bifo’ Berardi

Franco "Bifo" Berardi. Foto: Divulgação

O diagnóstico do filósofo Franco Berardi sobre a atualidade é ácido e certeiro: vivemos a morte do sistema capitalista, habitamos um cadáver putrefato, mas que ainda se mantém de pé e dita as regras do jogo. Mesmo definindo de maneira tão cética a sociedade na fase terminal do capitalismo, o pensador propõe uma alentadora imagem de luta e transformação desse cenário sombrio, convocando a juventude, os poetas e os artistas como agentes estratégicos de transformação, vendo sobressair no caos as forças de luta necessárias para a superação dos graves problemas que assolam a humanidade e a colocam em sério risco de extinção. Contra o sentimento de que vivemos momentos inexoráveis, o desespero em relação à ascensão dos movimentos fascistas em todo o mundo e os graves desequilíbrios ambientais que o planeta enfrenta, Bifo – como é conhecido desde a infância – se posiciona claramente ao lado daqueles que não se conformam com os limites de um cotidiano opressor e ousam combater em defesa de uma sociedade mais justa, solidária e igualitária.

Responde assim com ousadia à referência à “arte do possível”, termo adotado como subtítulo do seminário “Em Defesa da Natureza e da Cultura”, do qual participou no último dia 8 de outubro. E enfatiza que não devemos considerar o “possível” como um limite que nos é imposto por uma naturalização das barbáries cometidas pelo capitalismo, mas sim a busca de um caminho novo, o fortalecimento de nossa capacidade para desafiar a marcha que, se não for contida, nos conduz à extinção. “Contra a miséria social, o caos geopolítico, a debacle econômica, temos uma saída: solidariedade e frugalidade também. Precisamos desenvolver a habilidade em focar naquilo que é útil para a nossa vida, para o nosso prazer, e esquecer o dinheiro, a competição, a abstração monetária”, defende o filósofo.

Bifo introduz um elemento fundamental de sua reflexão ao iniciar sua fala citando os protestos que sacudiram o Chile no ano passado e saudando a realização (em 25 de outubro) do referendo para derrubar a constituição que continua vigente desde o regime militar de Pinochet, o que segundo ele perpetua a ditadura – militar e neoliberal – imposta pelo regime autoritário inaugurado com o golpe de 1973. Assim, reforça a importância dos movimentos espontâneos, solidários, combativos, como aquele em defesa do meio-ambiente capitaneado pela resistência de Gretta Thunberg, as diversas manifestações que eclodiram em 2019 ao longo de todo o planeta e a explosão do movimento antirracismo nos Estados Unidos.

O tema adotado pelos protestos norte-americanos, “não consigo respirar” (em referência aos assassinatos de Eric Garder e George Floyd pela polícia), tornou-se peça estratégica na reflexão de Berardi, servindo inclusive de título para Asfixia: Capitalismo Financeiro e Insurreição da Linguagem, uma das três obras de sua autoria publicadas no Brasil pela editora UBU. Se o trabalho já apontava e refletia sobre o sufocamento, literal e metafórico, da sociedade contemporânea, a questão acabou adquirindo novos desdobramentos com a eclosão da pandemia do novo coronavirus, doença que debilita profundamente o sistema respiratório. Vivemos, segundo Bifo, “a convulsão de um corpo sufocado”.

O tema adotado pelos protestos norte-americanos, “não consigo respirar”, tornou-se peça estratégica na reflexão de Berardi. Foto: Fusebox Radio Photography

Os efeitos da pandemia, comparada por ele a uma tempestade avassaladora, que vem matando milhares e torna mais próxima a ideia de que a sobrevivência humana está em risco, de certa forma contiveram a potência transformadora dos movimentos sociais, dificultando ou tornando quase impossível a solidariedade. “É preciso reativar o corpo erótico da sociedade”, afirma o filósofo, que se revela extremamente preocupado com os efeitos devastadores dessa doença, não apenas no plano físico mas no plano psíquico. “A proximidade da pele se tornou uma espécie de perigo metafísico”, diagnostica ele, dizendo temer os efeitos dessa sensibilização fóbica em relação ao corpo, ao beijo. Mas alerta que é preciso ter consciência de que, apesar do perigo representado pelo vírus, ele não é a causa de nossos males. O filósofo, que desde a juventude se alinha com movimentos libertários como Maio de 1968 e o movimento autonomista italiano, ousa dizer que vivemos um momento apocalíptico. Afinal, em seu sentido etimológico, “apocalipse quer dizer revelação, uma repentina compreensão de que algo deu horrivelmente errado”.

“A real origem do desastre atual é a agressão capitalista contra a liberdade das pessoas, do meio ambiente, a aceleração do ritmo de exploração, o extrativismo. Tudo isso deixou a democracia esvaziada. Estamos sem poder”. E não adianta mais pensarmos em termos nacionais, já que os efeitos desse esvaziamento da política se espalham, como o vírus, pelo mundo todo. A epidemia de certa forma evidencia  o impasse diante do qual estamos. Torna mais intenso e palpável o colapso.

“A Covid-19 não é a catástrofe em si”, afirma Berardi, que no calor da hora, durante o confinamento da quarentena, escreveu uma espécie de diário. Extremo – Crônicas da Psicodeflação mergulha no significado dessa pandemia, procura analisar os efeitos dela no inconsciente coletivo e reaviva as esperanças de uma mudança profunda, norteada pelo prazer e não pela política destrutiva de “gente que odeia o mundo, porque odeia a própria vida”. “A razão política não consegue lidar com esse tipo de contração, de sofrimento. A psicanálise, a música, a poesia é que são as línguas políticas do futuro.”

Rivane Neuenschwander enfrenta a paralisia do medo na sociedade contemporânea

"Trópicos Malditos, Gozosos e Devotos 07" (2020), Rivane Neuenschwander. Foto: Divulgação.
"Trópicos Malditos, Gozosos e Devotos 07" (2020), Rivane Neuenschwander. Foto: Divulgação.

Em dias assombrosos como os atuais, Rivane Neuenschwander coloca o dedo na ferida ao lidar, de forma arguta e persistente, com alguns dos fantasmas que assolam a nossa época. São três os eixos centrais que conduzem sua exposição Trópicos Malditos, Gozosos e Devotos, que ficou em cartaz até 24 de outubro na galeria nova-iorquina Tanya Bonakdar: o medo, a violência sexual e a guerra. Em quatro séries de trabalhos aparentemente independentes, a artista resgata temas que fazem parte de seu repertório pessoal há algum tempo, promovendo uma conexão ora sutil, ora explícita entre os aspectos íntimos, construtivos e poéticos dos trabalhos com a crise social e política da atualidade. “O medo é uma construção também social. Ele é importante para mim porque a gente vê essa conexão da coisa cíclica, histórica, voltando”, afirma ela ao comentar a presença frequente de elementos ligados à sensação de impotência, angústia e temor em sua produção.

O medo é um afeto associado à infância. E é na investigação dos temores infantis que tem início a pesquisa que Rivane vem desenvolvendo há pelo menos quatro anos. Em uma série de workshops, realizados em instituições como o Parque Lage (Rio) e a White Chapel (Londres), a artista pediu que as crianças revelassem seus medos e ao mesmo tempo exorcizassem essas vulnerabilidades idealizando capas de proteção, como forma de abrigar ou afugentar seus receios. Realizou um processo semelhante, de depuração de imagens assustadoras, com seus filhos pequenos por meio de jogos de nomeação e descrição de fantasmas que supostamente rondavam a casa e as mentes, até que o sentimento vago de assombração se transformou em um terreno seguro e livre de ameaça. Esse processo de troca e investigação acabou fornecendo-lhe um amplo repertório de imagens e referências que vêm assumindo diferentes corpos e formas, ecoando aqui e ali em sua poética. “Às vezes ficam latências de um trabalho para o outro, algo que te incomoda e que você só vai resolver anos depois. Talvez através de outra obra”, explica.

"À espreita" (2020), Rivane Neuenschwander. Foto: Divulgação.
“À espreita” (2020), Rivane Neuenschwander. Foto: Divulgação.

Dois dos trabalhos em exposição em Nova York dialogam diretamente com esse processo de coleção e reelaboração: a série À Espreita, um conjunto de desenhos feitos a partir de material coletado com as crianças e retrabalhados como se fossem teatros de sombras, e Fear of, uma assemblage na qual se nomeiam e entrelaçam medos potentes e paralisantes da sociedade contemporânea. “A gente que viveu, foi criança durante a ditadura militar, e hoje tem filhos, vê o ciclo, o retorno do recalcado, percebe uma unidade e também que o fascismo não está do lado de fora. Ele está do lado de dentro”, afirma ela, reivindicando sempre essa ênfase no medo como fenômeno social, de necessidade de conectar qualquer mergulho pessoal com aspectos mais totalizantes. Os casos particulares também são iluminadores de como esse afeto fundamental é manipulado dentro do campo social, de como ele é usado calculadamente para a manutenção das forças autoritárias dentro da sociedade.

Partindo de referências como Vladimir Safatle e de uma apropriação permanente de referências do campo da psicanálise – “tem alguns conceitos psicanalíticos que eu pego emprestado sem maiores compromissos conceituais, acadêmicos; um vocábulo rico que me permite fazer essas derivas, essas brincadeiras” –, Rivane alerta para a necessidade de nomear, corporificar e enfrentar os medos, em suas dimensões íntimas ou coletivas. “A gente acorda todo dia, inclusive lutando contra esse medo. Então, temos que lutar contra essa melancolia, mas é difícil porque a destruição é muito grande. A gente fica muito tocado, porque a coisa é suicidária. A destruição é em todos os sentidos. Ela é física, ela é simbólica, acontece para todo lado. As atrocidades imorais que eles cometem em nome de uma falsa moralidade é algo estarrecedor”, acrescenta.

E ela também tem suas raízes na história. A série Trópicos Malditos, Gozosos e Devotos, referência à obra com título similar de Hilda Hilst e que nomeia toda a exposição de Rivane, propõe um interessante amálgama de referências, sexuais, simbólicas e históricas, que remetem tanto à nossa situação periférica como à relação predatória e violenta da nossa colonização. Inspiradas nas Shungas, gravuras eróticas japonesas do período Edo (1603-1867) e também tributárias da simplificação gráfica da literatura de cordel, essas pinturas e tapeçarias são representações de intensos embates que remetem, segundo à artista, ao estupro como ato inaugural da sociedade brasileira.

Esses trabalhos, sobretudo as tapeçarias, reforçam também a importância das referências e do trabalho coletivo na trajetória de Rivane. Decidida a transpor essas imagens – situadas em uma tênue fronteira entre erotismo e agressão, desejo e violência – para outra linguagem que não apenas a pintura, a artista optou por incorporar o trabalho de outros artesãos na feitura da obra. Convidou três artistas que dominam a técnica desenvolvida por um tapeceiro uruguaio, Ernesto Aroztegui, para que participassem do projeto: Elke Hülse, Magalí Sánchez Vera e Jorge Soto. Num processo lento e cuidadoso eles transferiram por meio do tear as imagens cuidadosamente planejadas por Rivane, com um desafio pela frente: propor uma leitura pessoal para os campos em vermelho, que corporificam o sangue e testemunham de forma mais explícita a violência contida nas imagens.

O caráter catártico das cenas representadas entra de certa maneira em choque com o rigor técnico da trama da tapeçaria e agrega um novo elemento ao trabalho, remetendo de forma bastante direta à tradição de narrativas ligadas ao ato de tecer como forma de iludir o tempo e postergar a consumação de um ato de violência e posse sexual, protagonizadas por figuras míticas como Penélope e Sherazade.

Se há algo em comum em todos os trabalhos reunidos em Trópicos é a importância hegemônica do papel da representação como forma de figurar uma vulnerabilidade, fazendo, assim, com que ela se torne menos ameaçadora, mesmo tendo consciência de que o medo, na vida e na teoria freudiana, é extremamente mutante. Os soldados do filme Les Carabiniers (Tempo de Guerra), de Jean-Luc Godard, que servem de fio condutor para a instalação A Ordem e o Método, por exemplo, lançam mão das imagens coletadas por meio de cartões postais para enfrentar seu medo da guerra e da morte. Parece tornar-se evidente que, figurar ou nomear aquilo que nos amedronta, nos permitiria torná-lo menos paralisante.

Em exposição recente, no espaço paulistano Auroras, Rivane segue o mesmo empenho, tenta dar corpo à fantasia e, através desse processo complexo, repleto de desvios e enganos, mostrar o efeito potente e muitas vezes tranquilizador de enfrentar nossos temores. No caso específico deste trabalho, que infelizmente foi pouco visto em função da pandemia (a exposição de Nova York também exige que o espectador interessado faça um agendamento prévio para poder visitar a mostra), as obras nasceram de um workshop realizado paralelamente à exposição Histórias da Infância, no Masp (2016). A artista pediu então que as crianças participantes situassem fisicamente, num determinado espaço arquitetônico, seus fantasmas. E a partir desses desenhos criou uma série de mapas, recobertos de tinta branca, a ser raspada numa espécie de caça ao tesouro (ou ao medo), figurando assim um conjunto amplo de caminhos possíveis.

Editorial: Contra a devastação!

detalhe da obra "Trópicos malditos, gozosos e devotos 7". Capa da edição #52 da arte!brasileiros
Rivane Neunschwander, detalhe da obra "Trópicos malditos, gozosos e devotos 7", 2020

Desde março de 2020, ao mesmo tempo que nos isolávamos como forma de segurança perante uma epidemia sem precedentes na nossa geração, acompanhávamos o fechamento dos nossos espaços cotidianos de encontro: padarias, bares, restaurantes, cinemas, teatros, museus, galerias, livrarias, cabeleireiros. Assim, cada um de nós organizava seu fazer buscando soluções para uma realidade completamente inesperada. 

Ao mesmo tempo, no mundo e no Brasil especificamente, acirravam-se crimes de omissão e ataques à vida: dos rios, dos manguezais, das florestas, dos animais, das mulheres, dos negros, dos imigrantes, das instituições culturais, enfim, de tudo aquilo que não representasse uma imediata retribuição socioeconômica ou que gerasse algum tipo de lucro imediato. Soluções para a saúde e a ciência começaram a ser questionadas em detrimento de supostos ganhos fiscais e financeiros. 

Tivemos a sensação de que abriram-se as comportas de uma represa recheada de atraso e ódio e, quase como num filme de ficção, saíram em debandada monstros de todas as espécies capazes de atualizar as atrocidades que já formaram parte da nossa história colonial. 

A capa desta edição, um detalhe da obra Trópicos malditos, gozosos e devotos 7, 2020, da artista Rivane Neuenschwander, é  quase que uma síntese do que o inconsciente e a arte podem vir a expressar, contra o medo e a violência.

Quando iniciamos as discussões sobre a realização do nosso VI Seminário Internacional em maio deste ano, junto aos diretores do Goethe-Institut, nossos parceiros no projeto, a urgência da defesa da natureza e do homem ficaram prementes. Sentimos a necessidade da arte fazer parte da reflexão sobre a noção do mundo que queremos habitar. 

Nesse sentido conseguimos viabilizar um encontro virtual, onde o elenco de convidados – artistas, filósofos, cientistas, líderes ambientais e curadores -, que vêm trabalhando neste cenário complexo já há muito tempo, tivesse a oportunidade de falar de suas atividades em seus diferentes países e lugares de atuação.

“Quando rompemos os fluxos da Terra, a gente a prejudica, porque ela é um todo, tem uma consciência própria e não podemos recortá-la como um mosaico, como estamos fazendo. Há centenas de anos nossos pajés alertam para cuidar da natureza, nós somos a natureza”, disse com sabedoria a jovem ativista e artista indígena Naiara Tukano. 

Assim, fizemos do encontro um lugar desde onde conseguimos nos sentir menos sós, como um método de defesa. A palavra e a arte tem sido armas fundamentais para reflexão, conforto e ataque. 

Andrea Giunta, pesquisadora e curadora da Bienal do Mercosul 12, que precisou mergulhar na adaptação do evento junto aos curadores do projeto, disse no Seminário: “A arte tem a capacidade de ser um arquivo, um arquivo de experiências que foram criadas em diferentes momentos. E com este arquivo podemos fazer as perguntas do presente.”

Esta edição está povoada de matérias que mostram ideias e produções de artistas e curadores que trabalham em diálogo com seu entorno; obras que refletem uma atitude de imersão em seu tempo; obras que expressam a necessidade de abandonar o sujeito autocentrado, de pensar a importância de aprender com o outro, de apreender do outro. 

PS: Ficamos muito felizes em saber, no encerramento desta edição que arte!brasileiros tinha sido reconhecida pela ABCA, com o Prêmio Antônio Bento 2019, como melhor veículo de difusão na mídia de arte e cultura. Seguiremos empenhados na qualidade e coerência do nosso trabalho.

“Terzo Paradiso”, obsessão por um mundo novo

A land art do italiano Michelangelo Pistoletto, agora finalizada, com 20 toneladas de pedras, encontra lugar permanente no Festival Arte Serrinha, em Bragança Paulista.
A land art do italiano Michelangelo Pistoletto, agora finalizada, com 20 toneladas de pedras, encontra lugar permanente no Festival Arte Serrinha, em Bragança Paulista.

A arte pode redirecionar o mundo e propor novas maneiras de viver? Michelangelo Pistoletto há quase dez anos se dedica ao ambicioso projeto Terzo Paradiso (Terceiro Paraíso), apoiado em um repertório crítico de terminologias matemáticas para desenvolver uma ação de respeito à natureza, aos espaços urbanos e ao homem, colocando a arte no centro de uma transformação social responsável.

Seria um engano imaginar que a proposta gira em torno dela mesma. Ao contrário, contamina outros circuitos, abre o campo das reflexões e narrativas por meio de atividades artísticas e educacionais envolvendo a população do local onde ela é instalada, provocando consequências sociais.

O conceito do projeto começa com o gesto de Pìstoletto de tomar o signo matemático do infinito como ponto de partida. O Terzo Paradiso é a fusão do primeiro círculo do símbolo, que ele diz ser integrado à natureza, com o segundo, imerso nas necessidades artificiais, para ambos formarem o terceiro que representa a nova humanidade.

De fácil identificação visual e teoricamente complexo, como ele mesmo define, Terzo Paradiso já foi desenhado, dançado, tocado, plantado, em diversas topografias: mares, rios, praças, projetado e até impresso em uma nave espacial italiana. Agora, em grande dimensão, chega à paisagem bucólica e montanhosa do 19º Festival Arte Serrinha, idealizado por Fabio Delduque em Bragança Paulista, que ocorre virtualmente até novembro, com o tema Arte e Ciência. A instalação reforça a ideia de Pistoletto de que a terra é a paisagem para um novo nível de civilização. A curadoria é de Marcello Dantas e Catarina Duncan, e a instalação foi feita sob a orientação do Pistoletto. “Não pudemos envolver a população nem os estudantes por conta da Covid-19. Mas agora o público poderá conhecer a obra feita com rochas da região durante todo o ano, porque já integra o acervo permanente do festival.”

Conversa em Havana

Há projetos que enfeitiçam e agem como substâncias alucinógenas nos seus autores. Converso com Pistoletto no hotel Raquel, em Havana, em 2015, acompanhado de sua mulher, Maria, um farol de sua vida. Tranquilo, animado, ele dá sinais de que faria o Terzo Paradiso no interior de São Paulo, então guardo a entrevista para esta ocasião. Na capital cubana seu trabalho ganha outros contornos por trazer à tona um mecanismo de controle. Ele acabava de fazer a performance sem a autorização do governo, envolvendo dezenas de barcos de pesca, sob a coordenação do artista Kcho, da curadora Laura Salas, ambos cubanos, e de Lorenzo Fiaschi, da galeria italiana Continua, com filial em Havana.

Terzo Paradiso montada na Baía de Havana, em 2015, como uma grande performance realizada ao lado de pescadores locais. Foto: Divulgação

Sem consultar a burocracia cubana, ele convence os pescadores a fazerem o signo do Terzo Paradiso flutuar na Baía de Havana. Sabendo da complexidade da situação, pergunto como conseguiu intervir dentro de uma área da chamada “água costeira”, território soberano do Estado, lei vigente em qualquer país. “Os pescadores devem ter o direito, como qualquer cidadão, de se manifestar. Terzo Paradiso é uma obra de processo aberto, comunitário, de ação planetária em que todos são autores e protagonistas independente de seu país, raça, política ou religião”. De qualquer forma Pistoletto executou a obra e testou um modelo de como exibir eventos performáticos em zona proibida. Havana é uma das embaixadas do Terzo Paradiso, assim como San Gimignano, Pequim e Quebec.

O novo milênio alerta que o planeta está sob risco. Terzo Paradiso pratica duas questões recorrentes, a reciclagem e a sustentabilidade ambiental. A função reprodutora do projeto está nos subprodutos gerados em seminários, debates, workshops, residências, festivais, na defesa de um futuro no qual natureza e sociedade coexistam de forma sustentável e garantam vida à terra. Terzo Paradiso significa a passagem de um novo nível de civilidade planetária.

“O termo ‘Paraíso’ foi apropriado pela religião como doutrina, mas pertence à língua persa que significa jardim protegido. Naquela cultura, Paradiso se refere à agricultura, ao modo de produzir vegetais no deserto, construindo dois muros paralelos de pedras, com espaço suficiente entre eles para deter a umidade e permitir que floresça a plantação. Do ponto de vista da religião, se configura como o jardim que se pode alcançar depois da morte”, explica. Mas os homens querem um jardim em sua vida terrestre, daí o artista criou um símbolo a partir da trinâmica, elemento tomado do sinal matemático do infinito. “Quero falar de nossa vida finita na sociedade, fazer nascer um terceiro espaço que representa o início e o fim de nossa existência. Afinal, tudo o que existe tem uma duração e depois acaba”.

Nessa perspectiva Terzo Paradiso é participativo, espacial e, sobretudo, político. “A arte não pode ser separada da política. Arte é política e a política tem que ser arte. A arte tem a liberdade de ser livre e responsável”. A Cittadellarte, seu centro de arte em Biella, onde nasceu, é a sede do Terzo Paradiso. Lá ele fez a exposição A Crítica não é Suficiente, uma espécie de resposta aos artistas que criticam o status quo sem propor nada de novo em troca. “Crítica é utopia e se for simplesmente bloqueada em uma situação não provoca o novo. Não basta um artista criticar o sistema, é preciso que ele tenha uma proposta de mudança”.

Considerado um dos artistas fundamentais da arte contemporânea, Pistoletto, aos 86 anos, testou positivo para Covid-19, passou um mês no hospital, se recuperou, segue trabalhando e assumiu uma nova identidade, como ele diz, passando de sujeito individual ao sujeito coletivo da criação artística. “A arte deve ser colocada no centro de uma transformação, introduzindo uma atenção à ecologia e à pesquisa prática, acompanhada de um processo mental que permita que as pessoas comecem a conviver com novas motivações. Arte é enzima de fermentação social, equilíbrio da efetiva realidade do mundo”, finaliza.

VI Seminário Internacional Virtual ARTE!Brasileiros: Em defesa da natureza e da cultura – a arte do possível

Palestrantes do VI Seminário Internacional Virtual: em defesa da natureza e da cultura - a arte do possível
Palestrantes do VI Seminário Internacional Virtual: em defesa da natureza e da cultura - a arte do possível

Realizados em diferentes cidades e instituições, os seminários internacionais e debates organizados pela arte!brasileiros tornaram-se importantes espaços de reflexão, discussão e difusão do pensamento crítico contemporâneo, relativo não só ao mundo da arte, mas à sociedade como um todo. Desde “O Colecionismo no Brasil no séc. XXI”, em 2012, até “Gestão Cultural: Desafios Contemporâneos”, em 2019, uma grande quantidade de pensadores de diversos países e áreas puderam dialogar entre si e com o público sobre uma ampla variedade de temas.

Dando sequência a esta caminhada, nos dias 8 e 9 de outubro de 2020 a arte!brasileiros realizou, em parceria com o Goethe-Institut, o “VI Seminário Internacional Virtual ARTE!Brasileiros: Em defesa da natureza e da cultura – a arte do possível”. Dessa vez, não no Auditório Ibirapuera, no Itaú Cultural, no MAM-SP ou no CCBB Rio – locais que já abrigaram estes eventos -, mas sim na web, na plataforma do YouTube.    

A impossibilidade do encontro presencial, decorrente da pandemia de Covid-19 e da necessidade de isolamento social, trouxe vários novos desafios e algumas dificuldades, mas resultou também em uma grande “vantagem colateral” – por assim dizer -, um alcance de público bastante superior ao visto nos eventos anteriores. Foram cerca de 5 mil acessos durante os dois dias de seminário, com números que seguem subindo nas plataformas, já que o evento está disponível em nosso canal.

O tema da pandemia, que não surge desconectado da destruição da natureza e dos ataques à cultura vividos no mundo – e destacadamente no Brasil -, permeou as falas dos ambientalistas, filósofos, cientistas, artistas e curadores que participaram do seminário. Nas próximas páginas, em cinco textos, o leitor terá a cobertura completa das apresentações que reuniram, no dia 8, a artista e militante indígena Naiara Tukano, o líder indígena e ambientalista Ailton Krenak, o cientista Antônio Donato Nobre, a curadora Andrea Giunta (12ª Bienal do Mercosul), os artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca e o filósofo Franco “Bifo” Berardi; e, no dia 9, os curadores Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza (3ª edição da Frestas – Trienal de Artes), os artistas Edgar Calel e Aline Baiana e os curadores Agustín Pérez Rubio e Lisette Lagnado (11ª Bienal de Berlim).

Poucos dias após a realização do evento recebemos, com grande alegria, a notícia de que a nossa editora Patricia Rousseaux e a arte!brasileiros foram vencedores do Prêmio ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte – 2019, na categoria Prêmio Antônio Bento (difusão das artes visuais na mídia). Este reconhecimento valida o nosso trabalho e nos dá forças para continuar.

Dia 8

Dia 9

34ª Bienal de São Paulo abre mostra coletiva

"Parade", Yuko Mohri, obra que está na exposição "Vento". Foto: Divulgação

Em 14 de novembro, a Bienal de São Paulo volta a abrir as portas para o público, acompanhando o movimento de reabertura iniciado pelo circuito cultural, com a exposição Vento, um recorte sugestivo do que será a 34ª edição do evento, adiada para setembro do ano que vem por causa da pandemia. A instituição também apresentou à imprensa nos últimos dias os detalhes de um novo conjunto de iniciativas planejadas para o mundo virtual, confirmando que ainda vamos conviver por muito tempo com estratégias de comunicação e troca que nos permitam limitar os encontros presenciais. 

A mostra coletiva, que reúne trabalhos de 21 artistas (dentre os cerca de 100 que participarão da mostra final), vem de encontro a alguns elementos fundamentais do projeto original da 34ª Bienal – intitulada Faz escuro mas eu canto. É uma espécie de atualização de um de seus pilares básicos: a proposta de estender o evento no tempo, apresentando em mostras individuais sucessivas parte das obras selecionadas, dando ao espectador a possibilidade de interagir com elas em diferentes contextos, ampliando assim a possibilidade de leituras. “Queríamos um índice do que virá ano que vem”, sintetiza Jacoppo Crivelli Visconti, curador da Bienal. Trata-se de uma seleção propositalmente diversa, que reverbera os efeitos da pandemia e do isolamento. “Procuramos fazer uma reflexão sobre o próprio processo de construir a exposição, não fingimos que nada disso nos afetou”, afirma o curador-adjunto Paulo Miyada, destacando a importância de não aferrar-se a um projeto fechado, incapaz de “sentir o tremor dos tempos”.

Além da heterogeneidade de poéticas, uma representação propositalmente ampla de gerações e culturas, a mostra traz como grande índice inovador uma ocupação completamente experimental do espaço. As obras ocuparão os três andares do Pavilhão do Ibirapuera numa configuração no mínimo provocativa. Foram abolidos qualquer tipo de suporte expográfico, com os trabalhos convivendo apenas com as paredes, janelas e colunas existentes no projeto original. “São 30 mil metros quadrados e cerca de 20 artistas, o que cria uma escala muito rara, que reorganiza os planos originais do pavilhão e remete ao contexto específico da pandemia”, descreve Miyada, sublinhando a importância das noções de aproximação e afastamento nessa montagem.

Vento funciona como uma espécie de ensaio aberto. Coloca em fricção obras mais clássicas, como as pinturas evocativas de Eleonore Koch, e experiências que extrapolam o campo da visualidade, como as esculturas musicais de Yuko Mohri. A escolha do título, que segundo Crivelli evoca “aquela sensação de sentir na pele o que não consegue ver”, também ecoa em determinados trabalhos, como o vídeo Wind, de Joan Jonas, que alude ao desejo de reconectar diferentes elementos da natureza.

No campo das atividades virtuais, a 34ª Bienal de São Paulo também traz novidades. Atividades como “Visitas aos ateliês” e “Encontros com os Artistas” vem se somar à outras iniciativas reforçadas durante a quarentena, como as correspondências curatoriais (programação completa pode ser vista em aqui). A série de encontros entre os artistas, por exemplo, terá ao todo seis encontros. O segundo deles está programado para o dia 26 de novembro e deve colocar em sintonia artistas indígenas (Jaider Esbell, Jaune Quick-to-see, Sebastián Calfuqueo Aliste e Sung Tieu), tendo os cantos tikmũ’ũn por tema.

As visitas aos ateliês mantém um ritmo mais intenso. Serão divulgados um encontro por mês até a abertura da grande exposição geral, no segundo semestre de 2021. Por meio deles, é possível entender melhor a conexão entre as poéticas selecionadas e a estrutura geral da mostra. Eles também funcionam como uma espécie de alerta em relação aos impasses éticos, políticos e estéticos que se tornaram ainda mais agudos neste momento. Na primeira dessas conversas, divulgada na última quarta-feira, o artista baiano Juraci Dorea deixa claro a importância de traçar caminhos originais, que fogem do circuito da arte tradicional, mas ao mesmo tempo sua fala soa como um alarme de defesa e resistência: “A Bienal de São Paulo acontece, apesar de tudo”, conclui.

“Entre Bordas – Sons que Escapam”, nova exposição presencial do Sesc Santo André

No primeiro plano, divisões de madeira na parede tem o escrito "Entre Bordas", na vertical. Ao fundo, uma mulher olha quadros da exposição "Entre bordas - sons que escapam" na parede
Exposição "Entre Bordas - Sons que Escapam" do Sesc Santo André. Foto: Letícia Gouveia.

Quais são os sons que escapam das bordas? É dessa pergunta que parte Entre Bordas – Sons que Escapam, a nova exposição presencial do Sesc Santo André. Com curadoria de Paula Braga, a mostra traz o conceito do som em potencial em homenagem ao músico e performer John Cage.

É a partir de obras de Bruno Kurru, Marília Coelho, Paulo Nenflídio, Renan Marcondes, Sandra Cinto e Thomaz Rosa que a exposição trata da sutileza sonora, da quietude e do poder enunciativo do que é esse som em potencial. A mostra coletiva é parte da série Entre Bordas, organizada pelo Sesc SP. A sequência de exposições convida artistas e curadores que se relacionam de alguma forma com o ABC paulista, essa região “que fica na borda do campo”, como explica Paula Braga.

Assista ao vídeo e saiba mais sobre Entre Bordas – Sons que Escapam:

 

A exposição fica em cartaz até março de 2021. Para a segurança de todos frente à pandemia de coronavírus, as visitas acontecem em grupos de 10 pessoas com intervalos a cada 30 minutos. A temperatura corporal de todos é aferida na entrada e o uso de máscaras é obrigatório.

Reserve seu ingresso no site do Sesc Santo André clicando aqui.

Entre Bordas – Sons que escapam teria início em março, mas foi adiada presencialmente em função da pandemia do novo coronavírus. “Se a exposição propunha o silêncio, nós ficamos vivendo em casa esse tipo de silêncio que foi causado pela pausa no cotidiano.  Nós tivemos que entrar em contato com nossos ruídos interiores, que muitas vezes não deixamos escapar de uma certa borda do cotidiano. Tudo isso fez a exposição adquirir um outro significado”, conta Paula. Nesse período, o Sesc produziu vídeos e conteúdos que permitissem o contato virtual com a exposição (assista clicando aqui).  

Afastar-se do sujeito autocentrado; produzir arte no atrito e na diferença

O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de "One Hundred Steps", filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação
O documentarista irlandês Bob Quinn em cena de "One Hundred Steps", filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Foto: Divulgação

Após uma primeira mesa focada em olhares para as questões ambientais, os conhecimentos indígenas, a possibilidade de uma ciência “menos fria”, além do questionamento da falsa dicotomia entre natureza e cultura, a segunda apresentação do VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros aproximou o debate de questões mais diretamente vinculadas à produção artística. Nas apresentações de Andrea Giunta, curadora da Bienal do Mercosul 12, e da dupla de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca (que participam da MANIFESTA 13), questões sobre a responsabilidade da arte no mundo contemporâneo, a busca de um fazer coletivo, a visibilidade de saberes marginalizados e a necessidade de fugir da lógica do “corpo autocentrado” nas artes reforçaram uma linha condutiva entre as diferentes falas.

Primeira a apresentar, Giunta traçou um panorama da edição deste ano da Bienal do Mercosul (Bienal 12 Online), que aconteceria presencialmente em Porto Alegre e acabou migrando para o ambiente virtual por conta da pandemia. Destacando a pluralidade envolvida nas temáticas e no próprio título da mostra, Feminino(s). Visualidade, ações e afetos, a argentina ressaltou a importância desta diversidade estar presente na própria constituição da equipe curatorial da bienal. Nesse sentido, frisou o papel fundamental de Fabiana Lopez, Dorota Biczel e Igor Simões, que trouxeram olhares atentos à produção artística especialmente latino-americana, mas também de outros países do globo. Foram ao todo 25 países representados por mais de 70 artistas e coletivos.     

O termo “feminino(s)” – e não “femininas”, nem “feminismos” – representou para Giunta essa escolha por uma pluralidade de pontos de vista, nem sempre só de mulheres, acreditando na “ideia da diferença como multiplicidade e não como separação”. Nesse sentido, a palavra “afeto” também ganhou espaço, ainda mais em um momento de tamanha fragilidade com a pandemia. “E quando ficamos todos isolados, foi muito importante perguntar: como estão os artistas que estavam prestes a viajar para Porto Alegre e não puderam ir? Então pedimos que eles gravassem pequenos vídeos com o celular para o nosso site, o que foi muito importante. Isso criou um arquivo de afetos, um tipo de presença dos artistas na bienal que não tínhamos planejado anteriormente. São algumas coisas boas que aconteceram.”

Sobre La Familia en el alegre verdor, obra de Chiachia & Giannone exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

O afeto, como afirmou Giunta em entrevista recente à arte!brasileiros, não está desconectado das lutas, protestos e de uma arte que clama por mudança social. “Com afetos, poderosas revoltas foram criadas”, disse. Neste sentido, Giunta apresentou no seminário uma série de trabalhos que considera representativos das temáticas tratadas na bienal, a começar por uma tapeçaria de Chiachio & Giannone que apresenta uma cena de integração entre o homem e a natureza, onde pessoas e animais fazem parte de uma mesma família – “não o homem como dono, controlando a natureza, mas o homem em natureza”. Em seguida, a curadora apresentou uma fotografia do coletivo feminista argentino Nosotras Proponemos: “Levamos em conta os ativismos, os direitos das mulheres, mas também os femininos e os feminismos como a necessidade de pensarmos novamente todas as relações entre o humano e o mundo”, disse

Ressaltando que “a luta do feminismo é uma luta pelos direitos sobre o próprio corpo”, ela apresentou ainda trabalhos que tratam do feminicídio, como o de Fatima Pecci Carou, e das variadas formas de experimentar o corpo, como nas obras de Jota Mombaça, Liuska Astete, Janaina Barros, Lorraine O’Grady ou Priscila Resende. A possibilidade de uma reestruturação da linguagem no campo da discussão de gênero surgiu na produção das Mujeres Públicas, enquanto questões cruciais sobre a memória – e especificamente a memória colonial e afrobrasileira – foram tratadas na obra de Aline Motta. Neste ponto de sua fala, Giunta relembrou uma frase de Rosana Paulino, “que me disse uma coisa muito importante relacionada com o tema deste seminário: nas tradições cristãs e católicas, baseadas na bíblia, Deus deu a natureza para os homens; nas religiões afrobrasileiras, o homem e a natureza estão juntos”.

Psicanálise do cafuné catinga de mulata, de Janaína Barros, obra exposta na Bienal do Mercosul. Foto: Divulgação

Irlanda, França e norte da África em diálogo

Dando sequência à uma série profícua e diversa de produções audiovisuais filmadas em diferentes cantos do globo, a dupla Bárbara Wagner (Brasil) e Benjamin de Burca (Irlanda/Alemanha) acaba de estrear, na MANIFESTA 13, em Marselha, a obra One Hundred Steps. O filme, de 30 minutos, foi o tema da apresentação da dupla no seminário, que contou ainda com a exibição em primeira mão de trecho do trabalho. No seminário virtual, enquanto Benjamin apareceu com seu celular na Escola de Música de Marselha, expondo o término da montagem da obra, Bárbara falou de sua casa sobre o processo de produção do filme, iniciado ainda no final de 2019. Alguns dias depois do seminário a arte!brasileiros conversou por telefone também com Benjamin. 

Após trabalhos sobre o frevo ou o brega em Recife, sobre os gêneros maloya na Ilha de Reunião (departamento francês próximo à África), schlager em Munster (Alemanha) e rap em Toronto (Canadá), a dupla adentra os universos da música popular irlandesa (com suas gaitas, cantos e sapateados) e da música norte-africana de raiz árabe em Marselha, no sul da França. Se de um lado o filme aprofunda a pesquisa da dupla em universos musicais marginalizados, num diálogo constante entre documentário e ficção, entre o que é cultura pop ou manifestação tradicional, de outro o filme parece trazer elementos inéditos ao trabalho de Bárbara e Benjamin. One Hundred Steps é, por exemplo, o primeiro filme que se passa em dois países distintos e que adentra de modo contundente a história colonial europeia e africana.   

Segundo Bárbara, a pesquisa teve início com a aprovação de um projeto de financiamento público do Irish Arts Council. Surgiu, deste modo, a primeira oportunidade para a dupla desenvolver um trabalho no país natal de Benjamin. Foi na pesquisa pela região irlandesa de Connemara que eles se depararam com o trabalho do documentarista irlandês Bob Quinn. “Nos anos 1980 ele desenvolveu um quarteto de documentários que falava da origem da cultura irlandesa de um jeito muito sofisticado, questionando a hegemonia europeia na formação da cultura de lá e sugerindo que o contato com países do norte da Africa foi fundamental”, contou a artista. Na série, intitulada Atlantean, “ele pergunta: e se a nossa cultura irlandesa estiver muito mais próxima da África do que da Europa?”.

Cena de One Hundred Steps filmada em Marselha; trabalho de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca integra a MAMIFESTA 13. Foto: Divulgação

Partindo dessa hipótese e do convívio com Quinn, hoje com 87 anos, Bárbara e Benjamin tinham um projeto inicial em mente até o momento em que o convite da MANIFESTA veio para “dar uma amarrada formal no trabalho”, segundo Bárbara. Ao fim, o filme se tornou “uma espécie de experimento visual e de montagem entre a Irlanda e o sul da França, em diálogo com o norte africano”. A dupla convidou, para isso, artistas populares para performarem em dois espaços emblemáticos para a história colonial nestes locais – palácios que se tornaram museus -, criando ambiguidades, atritos e momentos de beleza com várias camadas de sentido.

Na Irlanda, músicos e dançarinos foram filmados em espaços da Bantry House, palácio do fim do século 17 diretamente relacionado ao imperialismo britânico no país e que, além de um jardim suntuoso, possui uma escadaria de 100 degraus – os “hundred steps” do título – construída entre 1840 e 1850, a década da grande fome irlandesa. “Em cada canto da Irlanda tem uma mansão enorme construída pelo povo que estava morrendo. E se formos pensar, essa grande fome, que criou uma diáspora de quase 2 milhões de pessoas, ainda é muito recente na história do país”, diz Benjamin. Os artistas que entram na casa, portanto, – e Bob Quinn aparece ali com sua câmera – “se transformam nessa outra voz, que é a voz da cultura irlandesa”, segundo Bárbara.

Em Marselha, por sua vez, uma casa museu em uma antiga residência burguesa, “com uma história similar, apesar do contexto bastante diferente”, serviu de palco para a performance de músicos norte-africanos radicados na cidade. “Então a gente criou uma forma de aproximar, sem necessariamente estar comparando. É uma especulação, novamente, mas sobretudo rítmica e musical”, explica Bárbara. Se a cultura árabe do norte da África surge explicitamente na casa em Marselha, ela também pode estar difusa na música irlandesa que, segundo Quinn, bebeu dessas raízes. “E de repente a gente olha para esses artistas, como se fossem visitantes, os irlandeses e os árabes, e o filme cria esse dispositivo fantástico em que a gente consegue perceber a ocupação desses espaços com outra história”, conclui a artista. Porque, segundo Benjamin, “o colonialismo continua existindo de outra forma, mais mental, mais imaterial”.

Nas falas ao final da mesa, Andrea Giunta ressaltou, em consonância com a apresentação de Bárbara e Benjamin, que “a arte tem a capacidade de ser um arquivo, um arquivo de experiências que foram criadas em diferentes momentos. E com este arquivo podemos fazer as perguntas do presente”. Além disso, para ela é preciso repensar a relação do corpo com o mundo, no sentido de se afastar da ideia do sujeito autocentrado tão comum na arte – “para compreender, experimentar e sentir que nós estamos no mundo”. Ao que Bárbara concordou: “No sentido do corpo que experimenta uma outra forma de conhecimento, que é partilhado. Nosso trabalho é um trabalho audiovisual que se sustenta na colaboração. Não dá pra fazer trabalho sozinho, não dá para fazer sem atrito, sem diferença”.

Aby Warburg em diálogo com o contemporâneo

Detalhe de um retrato de Aby Warburg por Rudolf Dührkoop, em 1925.
Detalhe de um retrato de Aby Warburg por Rudolf Dührkoop, em 1925. Foto: Bundespressekonferenz.

*Por Rafael Cardoso

No exato momento em que a Bienal de Berlim vem dar sua contribuição ao esforço para tornar a cena artística mais inclusiva e atual, dois importantes espaços expositivos da capital alemã voltam a atenção para a obra de um historiador da arte, falecido há mais de noventa anos, especialista em Renascimento Italiano. As exposições Aby Warburg, atlas de imagens Mnemosine: o original e Aby Warburg, entre cosmos e páthos: obras berlinenses do atlas de imagens Mnemosine, ocupam respectivamente a cultuada Haus der Kulturen der Welt (HKW) e o museu Gemäldegalerie. O que torna a obra de Warburg tão relevante para o presente que mereça esse duplo destaque e, mesmo em tempos de pandemia, atraia um público cada vez maior?

Aby Warburg. Sala de leitura da biblioteca de estudos culturais Warburg, Heilwigstr, em Hamburgo, fevereiro de 1927. Foto: cortesia HKW.
Sala de leitura da biblioteca de estudos culturais Warburg, Heilwigstr, em Hamburgo, fevereiro de 1927. Foto: cortesia HKW.

Aby Warburg (1866-1929) não é nenhum desconhecido na história da arte, mas antes um dos grandes nomes da geração que teorizou uma “ciência das imagens” (Bildwissenschaft, em alemão), no início do século 20. Com o ressurgimento desse tipo de abordagem, no rastro de seguidores como Georges Didi-Huberman e Horst Bredekamp, sua reputação intelectual se avultou ao ponto de ele virar modismo entre estudiosos da arte. O problema é que Warburg é daqueles autores mais referidos do que lidos. Muitos dos que invocam seu nome o fazem apenas para justificar aproximações entre obras de contextos distintos. Dizer-se warburguiano virou, no meio curatorial, uma licença para misturar alhos com bagulhos. O chamado pseudomorfismo (isso parece com aquilo, portanto deve existir uma relação) é efeito colateral comum de quem toma pílulas de Warburg fora da dosagem indicada.

Boa parte da desorientação em torno de Warburg advém do fato de que sua última obra, possivelmente a maior delas, permaneceu inacabada. Ao falecer em 1929, o autor trabalhava sobre um atlas de imagens intitulado Mnemosine – em homenagem à deusa grega da memória, mãe das nove musas. Seguindo uma lógica própria, Warburg montava imagens sobre painéis, organizando-as por grupos temáticos e palavras-chave, apontando persistências e coincidências, buscando ecos e repetições entre obras não necessariamente oriundas de contextos culturais vizinhos. Isso permitia comparações, às vezes geniais, às vezes tortuosas, entre antiguidade e modernidade; Oriente e Ocidente; cartas celestes e cartas de tarô; desenhos renascentistas e cartazes publicitários. Fundamentado em sua vasta erudição e conhecimento histórico, ele foi desenvolvendo um método original de pensar não somente o significado das imagens, mas também o modo como elas significam.

Aby Warburg. Montagem do "Atlas Mnemosine". em exposição na Haus der Kulturen der Welt. Foto: cortesia do museu.
Montagem do “Atlas Mnemosine”. em exposição na Haus der Kulturen der Welt. Foto: cortesia do museu.

Quando da morte de Warburg, o conjunto do atlas consistia de quase mil pranchas distribuídas por 63 painéis. A ascensão do nazismo colocou em dúvida o destino de sua biblioteca em Hamburgo, e seus discípulos organizaram a transferência dos livros e materiais iconográficos para Londres, onde serviram de base para a criação do Warburg Institute em 1934. Desde então, houve várias tentativas de publicar versões do atlas, na íntegra ou em parte, o que só fez aumentar as disputas em torno do sentido da obra. A exposição atual na HKW tem por propósito reconstituir a versão “original”, garimpada em extensa pesquisa nos arquivos do Warburg Institute, onde as pranchas se encontravam dispersas entre milhares de outras. Em paralelo, a exposição na Gemäldegalerie agrupa meia centena de obras estudadas por Warburg e incluídas nos painéis de Mnemosine por meio de reproduções. Juntas, as duas mostras oferecem uma oportunidade ímpar de vislumbrar os processos por trás do pensamento dele.

Qual a relevância desse legado intelectual para os dias de hoje? Não resta dúvida que Warburg foi um pioneiro em conceber as imagens de modo disseminado e universal, sem divisões hierárquicas entre culturas e mídias. Para ele, uma fotografia interessava tanto quanto uma pintura, povos não europeus tanto quanto a Europa. Foi precursor não somente em seu olhar para a linguagem das formas – a chamada iconologia – como também por seu interesse em estudos etnográficos como instrumento para compreender a arte. Era um pensador que entendia a cultura humana como um todo e buscava seguir o devir das imagens como pista para desvendar o que temos em comum. Antecipou, em vários sentidos, as ideias de cultura visual e arte global que hoje desafiam não somente historiadores como também artistas. Podemos aprender muito com sua obra – sobretudo que o melhor pensamento visual requer aprofundamento no repertório. Mnemosine, afinal, é memória. Do seu ventre, brotaram as artes e a história.


* Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte, PhD pelo Courtauld Institute of Art. É membro do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da UerJ e atua como pesquisador associado junto ao Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin. É autor de diversos livros sobre história da arte e do design, além de quatro obras de ficção.

Pivô abre inscrições para o programa de residências artísticas

Ateliê Aberto no Pivô Pesquisa 2020
Ateliê Aberto Pivô Pesquisa 2019 - Ciclo III. Foto: Julia Thompson

Há sete anos o Pivô desenvolve um programa de residências artísticas: o Pivô Pesquisa. Em atividade permanente desde 2013, o programa busca tanto um desenvolvimento de pesquisas individuais quanto a criação de um ambiente de interlocução entre os participantes, equipe curatorial e profissionais convidados. O programa é oferecido de forma gratuita. 

Até o dia 6 de novembro, às 16h, o programa recebe inscrições para sua edição de 2021. Excepcionalmente, a convocatória está aberta apenas para artistas residentes no Brasil, devido às incertezas provocadas pela pandemia de Covid-19. Podem se inscrever pessoas maiores de vinte e cinco anos que tenham ao menos três anos de atividade profissional artística comprovada. Serão selecionados 24 nomes, divididos em três ciclos ao longo do ano. O projeto acontecerá presencialmente na sede da associação cultural no Edifício Copan, no centro de São Paulo. 

A pesquisa no Pivô

Pensando no intercâmbio artístico e cultural entre artistas e curadores, o Pivô Pesquisa propõe atividades coletivas, levando em consideração os interesses conceituais, formais e as necessidades técnicas do grupo em residência. Ao mesmo tempo que desenvolve o intercâmbio coletivo, cada artista tem acesso a um espaço individual de trabalho (de 24 ou 32 metros quadrados), garantindo seu tempo de criação e o desenvolvimento de pesquisa própria.

Ciclo III de residências Pivô Pesquisa 2020
Ateliê Aberto Pivô Pesquisa 2019 – Ciclo III. Foto: Julia Thompson

Os novos ciclos

O programa de residências de 2021 conta com três ciclos, de doze semanas cada, sendo:

  • Ciclo I: 08 de março a 01 de junho 2021;
  • Ciclo II: 14 de junho a 09 de setembro 2021;
  • Ciclo III: 20 setembro a 14 dezembro 2021.

Cada ciclo terá um profissional convidado, responsável pelo acompanhamento curatorial do grupo de oito artistas. Beatriz Lemos – curadora da Frestas Trienal de Artes do Sesc Sorocaba (assista à fala da curadora no VI Seminário Internacional ARTE!Brasileiros) e idealizadora da plataforma de pesquisa Lastro – Intercâmbios Livres é guia o primeiro ciclo. Ela é seguida da programadora cultural e curadora do Solar dos Abacaxis Catarina Duncan. O último grupo receberá Helio Menezes, antropólogo e curador de arte contemporânea do Centro Cultural São Paulo.

Os candidatos podem se inscrever para todos os ciclos, mas apenas poderão participar de um deles. A seleção contará com um júri composto pela equipe do Pivô e pelos
curadores convidados, e levará em consideração as especificidades de cada grupo de artistas no ciclo, a coerência do trabalho artístico desenvolvido e a proposta específica para a residência.

Para saber mais e se inscrever, acesse o edital clicando aqui.