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Trienal de Tijuana expõe arte como resistência

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A segunda edição da Trienal de Tijuana 2: Internacional Pictórica (México), inaugurada em 6 de setembro, tem como eixo conceitual o pictórico que, em sua forma disruptiva, é tomado como ponto de partida, ressaltando a capacidade da pintura de se expandir e dialogar com outras formas de expressão. Tal escolha remonta ao projeto inaugural da Trienal de Tijuana Internacional Pictórica (2019), idealizado pelo Centro Cultural Tijuana (Cecut) e proposto pelo crítico mexicano Heriberto Yépez, que via no pictórico a possibilidade explorar novas poéticas da pintura.

Tijuana, cidade atravessada pela fronteira considerada uma das mais visitadas e violentas das Américas, simboliza divisões políticas e sociais profundas. Esse ambiente complexo torna-se cenário ideal para a sediar essa efervescência artística que atraiu mais de 500 artistas de 14 países. Foram selecionados 88 trabalhos, com equidade de gênero, para compor uma trienal pensada a partir de uma convocatória, sem tema pré-definido e somente trabalhos inéditos. As obras abarcam uma diversidade de questões, desde a poética ao trash, passando pelo discurso político, ecologia, questões de escolha de gênero e espaço ancestral de violência e tortura. Como curadora geral da Trienal, após longas leituras e avaliações, eu consegui reunir um conjunto representativo da produção artística contemporânea.

As novas formas de ver e fazer arte inserem-se em um campo expandido, cuja evolução é histórica e contínua. Há um esforço deliberado entre os criadores da Trienal de Tijuana em distinguir o “pictórico” e a “pintura”. No contexto teórico, Hal Foster, crítico e teórico norte-americano, falou em um seminário de 1988 sobre Visibilidade, que o pictórico na pintura ocorre através da ótica: “A visão é também social e histórica, e a visualidade envolve corpo e psique. Essa diferença entre ver e ser levado a ver aponta para as formas em que somos conduzidos a perceber o mundo”. Em resumo, o pictórico é a imagem que expressa transformação. Para Foster, trata-se de uma visualidade “pré-ocular”, que emana do olho interior, o “olho antes do olho”.

As obras selecionadas para esta edição da Trienal, que vai até 28 de fevereiro de 2025, refletem um momento de transcendências, negações, inovações e contrastes geracionais. Regina Silveira, aos 85 anos é hoje uma das artistas latino-americanas mais importantes, segundo a crítica Mari Carmen Ramírez. Sua vídeo-animação “Trampa” é uma execução virtual de um bordado que muda de cor sobre uma parede, evocando a ideia de uma pintura expandida que inclui a dimensão temporal. Na outra ponta, a jovem mexicana Solis Apollon, de 21 anos, apresenta “Pés sobre areia”, uma obra que comunica a impermanência do ser humano tanto em seus territórios de origem quanto fora deles.

A trienal se move em meio a questões sociais e políticas. O fotógrafo norte-americano Scott Henry Hopkins realiza uma intervenção crítica no famoso muro que divide Tijuana e San Diego, restaurado e expandido durante o governo de Donald Trump. Sua obra reflete sobre a dualidade patológica que caracteriza a política de imigração nos Estados Unidos. Com uma pintura exemplar, o equatoriano David Santillán Caicedo usa seu trabalho como ferramenta de crítica social, apresentando uma paródia de autodefesa, em que “vestido” com estravagante e elegante pano, que sugere uma saia, aponta a espingarda para o espectador, em alusão ao armamento generalizado. Geoneide Brandão, a jovem artista brasileira, discute a binaridade de gênero e a heteronormatividade em sua obra, retratando corpos queer em um momento de toque íntimo, enquanto Patrícia Gerber, também do Brasil, faz referência ao corpo feminino com uma pintura indagadora, sobre um corpo feminino pintado de azul, sem cabeça, destacando a objetificação da mulher pelo machismo ao longo da história. A performance presente na Trienal também é notável por seu caráter transgressor. Renato Pera, brasileiro, cria uma instalação impactante em que divide seu espaço expositivo em dois ambientes contrastantes, um rosa pink metalizado e outro vermelho forrado de pelúcia, convidando o visitante a participar de uma narrativa visual que flerta com a estética do terror tendo como protagonista um “morto-vivo”.

A produção latino-americana encontra, nesta Trienal, um território fértil para o diálogo entre linguagens artísticas e culturais. Claudia Casarino, do Paraguai, trabalha “nuvens” diáfanas de tule que sugerem corpos em movimento de balé. A obra surge a partir de leituras com um grupo de mulheres latino-americanas. A instalação, ¿ijerga? de Marilá Dardot, brasileira que vive no México, é um resgate de um dos objetos mais presentes nas casas mexicanas: um pano com padrão nacional de tecelagem que, tanto pode servir para limpeza quanto para cobrir móveis. Marilá trabalha com os sinais de interrogação e exclamação, usados em espanhol no início de uma frase, desencadeando experiências pictóricas com pinturas carregadas de percepção poética. Jerga é ainda um linguajar, no sentido de gíria, que foi criado para driblar o colonizador.

Em ação contínua, o artista argentino TEC, radicado em São Paulo, irrompe seu trabalho pelas cidades criando pontes, invadindo territórios, reinterpretando o homem em conexão com o mundo, com um grafismo inconfundível. São tantas verdades acobertadas pelo tempo, uma delas é revelada pelo artista mexicano Othón Castañeda que reconstrói El Palácio Negro de Lecumberri, datado de 1885 que foi um centro de detenção, cárcere de artistas e cidadãos indesejados, que funcionou de 1990 até 1976. Com esta obra, Othón tenta gerar atributos “geométrico-espaciais”, como ele diz, numa clara referência à Crujía J, nome do lugar destinado a confinar homossexuais. O termo derivou a expressão “joto” reconhecida pela Real Academia Española para se referir a um homossexual, expressão corrente até hoje no México e Honduras.

Com vocação internacional, Tijuana é a cidade dos destemidos, dos sonhos, da esperança. O coletivo Ediciones Caradura, formado por artistas mulheres de cidade, captou muito bem a realidade local ao homenagear as trabalhadoras da indústria maquiladora, aludindo à exploração econômica e social dessas operárias, a maioria vinda de outras cidades ou países esperando o momento de realizar seu desejo: atravessar a fronteira para os Estados Unidos. Com a instalação “Siete Negros”, o mexicano Hector Zamorra, que vive parte no México, parte no Brasil, expõe um novo trabalho em que “instala” tijolos verticalmente sobre a parede conferindo a esses elementos o estatuto de uma criação artística. Reorganizada em novas composições, as peças se aproximam dos mesmos mecanismos de leituras de uma pintura e fluem para uma partitura musical. 

O coletivo brasileiro Duas Marias exibe “Pandora”, uma videoinstalação poética projetada por quatro munitores que registram um andar contínuo dos pés de uma mulher. Este foi um dos dez trabalhos escolhidos para a premiação, mas que não chegou a ser agraciado. O México conquistou os três prêmios atribuídos pela Trienal, em primeiro lugar ficou Samara Collina, que se destacou com uma pintura expressionista, “Apesar de tudo, a alegria do encontro” em que captura a tensão da multidão em um ato político. Já a primeira menção honrosa coube a María Orozco, com uma pintura não concluída pelo seu pai, também pintor e que ela a retoma depois de dez anos, em homenagem a ele. A segunda menção honrosa obteve Enrique Rubio, com a obra “Woolander” em que trabalha a questão de gênero e manualidades em um bordado com lã, empregando a técnica needle felting, feltragem com agulha.

Como ato de resistência R. Trompaz, pintor, performer, videomaker, reinterpreta criticamente a bandeira do Estado de São Paulo para denunciar o abismo social latente na cidade mais rica da América Latina, com uma pintura aliada ao expressionismo abstrato. Diversidade é a marca os videomakers nesta exposição. Yuan Gong (China/Inglaterra) aparece com um vídeo em que atua interpretando uma performance entre a teoria culta e a prática popular. Por meio de danças públicas em praças das cidades, ele coloca em cena o conceito de Beuys em que aconselha: “cada indivíduo deve se ver como artista”.  Com um trabalho intimista, Meneghetti, cineasta e videomaker brasileiro, reinterpreta em vídeo fragmentos da vida de seus ancestrais, imigrantes vindos da Itália e Áustria para trabalhar no Brasil nas plantações cafeeiras de São Paulo, entre 1897 e 1924. Seu trabalho resulta em uma obra quase abstrata, em que a história familiar se mistura a um experimento artístico e visual intrigante.

Trienal de Tijuana
El peso de la desigualdad, 2023. Luis Fitch Estados Unidos

Outro destaque do conjunto é a obra do artista norte- americano Luis Flitch, que traz à tona a memória de George Floyd, homem negro morto por um policial branco em Minneapolis. Com carvão recolhido das ruas após as manifestações, Flitch desenha dezenas de crânios humanos, criando um retrato sombrio da injustiça social estruturada nos Estados Unidos. A morte também está presente em alguns outros trabalhos. Márcio Almeida na série “Es salvo es alvo”, se apropria de placas de madeira com perfurações de balas que, descontextualizadas de seus usos nos clubes de tiro, são ressignificadas como arte em trabalhos multidisciplinares. O artista brasileiro faz uma reflexão sobre a violência simbólica e física, com uma abordagem antropológica/investigativa. A exposição também inclui o trabalho de José Patrício, cujo projeto “Momento Mori” explora o conceito das vanitas, expressões artísticas ligadas à efemeridade da vida e à morte. A obra foi executada com mais de mil pequenos quadrados pintados de azul e negro, que formam uma grande caveira pixelada, que evocam a fragmentação dos momentos da existência humana.

Em meio às tensões políticas e sociais que definem a cidade, a arte aqui exposta reflete tanto o espírito do tempo quanto o desejo de paz, neste momento em que o México se renova ao eleger Claudia Sheinbaum, a primeira mulher a presidir o país. ✱

Colaboradores da edição #68

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Agustín Pérez Rubio é historiador, crítico de arte e curador. Foi diretor artístico do MALBA (Argentina) e do MUSAC (Espanha), entre outros. Graduado em História da Arte pela Universidade de Valência, foi curador da Bienal de Berlín e aqui escreve sobre o Pavilhão da Espanha na Bienal de Veneza. formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou na Folha de S.Paulo, nas revistas Brasileiros e arte!brasileiros. Nesta edição, divide com Patricia Rousseaux a autoria da matéria sobre a artista-cientista Leticia Ramos

Renata Felinto é artista Visual, professora adjunta de Teoria da Arte do Centro de Artes da Universidade Regional do Cariri (URCA, CE) e líder do Grupo de Pesquisa NZINGA. É também integrante do Colegiado do Observatório da Violência da URCA. Ambas, Vanicleia e Renata, escreveram o ensaio de Dandara.

Vanicleia Silva Santos é curadora da Coleção Africana no Penn Museum e professora no Departamento de Estudos Africanos da University of Pennsilvania. Especialista em História da África, Diáspora Africana, Cultura Material e Estudos Museológicos. Autora de diversos livros.

Fabio Cypriano é crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, colabora com a crítica ao 38º Panorama do MAM 2024 e com a resenha do livro História Potencial de Ariella Aisha Azoulay.

Coil Lopes é desenvolvedor multimídia e programador. Trabalha na arte!brasileiros desde sua fundação, auxiliando nas produções de fotografias, vídeos, newsletters. Nesta edição colaborou especialmente com a montagem gráfica da revista impressa e digital.

Fotos: arquivo pessoal

Museu Oscar Niemeyer abriga festa de casamento e gera polêmica

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Um dos maiores museus da América Latina, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, com um acervo de 14 mil obras e 35 mil metros quadrados de área construída, o Museu Oscar Niemeyer (MON), de Curitiba (PR), é patrimônio público, vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do governo do Estado. A secretaria destinou R$ 3.129.379,00 ao MON em 2024. Por causa disso, causou polêmica essa semana a celebração, pela primeira vez, de um casamento privado no espaço museológico do MON – tombado pelos órgãos do patrimônio paranaense e em estudo de tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

O casamento foi no sábado, 12/10, unindo Yasmin Bonilha, filha de um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Paraná (Ivan Lelis Bonilha), com Gregorio Nissel. Isso suscitou também uma crítica de suposto conflito de interesses. Os convidados eram recepcionados na parte da frente do museu. O espaço recebeu algumas interferências cenográficas para a festa, como adesivagem do piso da rampa e fechamento das paredes do salão com tecido que imitava estampas de tecidos tradicionais árabes (reproduzindo um cenário das Mil e Uma Noites, com colunatas e portais). As mesas centrais continham réplicas de faisões. A cerimônia foi organizada pela produtora de eventos Ilze Lambach.

A instituição abriga referenciais importantes da produção artística nacional e internacional nas áreas de artes visuais, arquitetura e design, além de manter coleções de arte asiática e africana. No total, o acervo conta com aproximadamente 14 mil obras de arte (entre elas, peças de Andy Warhol, Tarsila do Amaral, Candido Portinari, Caribé e Tomie Ohtake). É visitado por mais de 200 mil pessoas por ano. O Museu Oscar Niemeyer (MON) divulgou uma nota, no final da tarde desta segunda-feira, a respeito da permissão dada à realização de um casamento em suas dependências.

Segundo a direção do museu, a Associação de Amigos do MON (AAMON) possui autorização expressa da Secretaria de Estado da Cultura para locação de espaços para eventos privados, incluindo eventos de natureza social. “Esta é uma fonte de recursos que viabiliza as atividades do Museu, incluindo melhorias em sua infraestrutura, produção de exposições, atividades educativas, entre outros. O objetivo principal é oferecer sempre a melhor experiência ao visitante, democratizando o acesso”. Não foi informado o valor cobrado pela cessão do espaço para a festa de casamento.

Conforme a nota, como o espaço está sendo preparado para receber nova exposição após o encerramento e desmontagem da mostra “Extravagâncias”, de Joana Vasconcelos, a visitação ao museu estava suspensa, o que evitou algum prejuízo ao visitante normal. “Além disso, no espaço Olho foi realizada apenas cerimônia de casamento breve, com todas as restrições para preservação do espaço e com aproximadamente uma hora de duração, e a festa de casamento ocorreu fora das dependências do museu, no Salão de Eventos e Vão Livre”, prossegue a nota.

Uma postagem em uma rede social, com registros da festa, incendiou a controvérsia. Os registros mostram equipamento extra para iluminação e sonorização, o que suscitou dúvidas acerca da segurança. O museu sustenta que a locação ocorreu com autorização dos órgãos competentes, com emissão de alvará temporário específico para o evento e licença perante o corpo de bombeiros. A instituição também informou que esse tipo de atividade é comum em diferentes museus públicos e privados, nacionais e internacionais, citando os casos do Instituto Inhotim, Museu Histórico Nacional, Museu do Amanhã, MAC Niterói, MAM-RJ, MUBE-SP, National Gallery (Londres), Art Institute Chicago, Museu de História Natural de Nova York, Museum of the City (New York), Asian
Art Museum (San Francisco) e o Brooklin Museum de Nova York.

Na direção do MAC USP, José Lira e Esther Hamburger querem um museu cada vez mais transdisciplinar

Pouco mais de dois meses após assumirem o comando do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) para uma gestão de quatro anos, José Lira (diretor) e Esther Hamburguer (vice-diretora) deixam claro que pretendem dar continuidade ao trabalho construído ao longo dos últimos anos pela gestão de Ana Magalhães e Marta Bogéa (leia mais aqui). Lira ressalta que, na verdade, se trata de entender a gestão como continuidade de um trabalho até mais antigo de “construção institucional e acadêmica” deste museu paulistano que possui uma das mais importantes coleções de arte moderna e contemporânea do país – com mais de 10 mil obras.

Ao mesmo tempo, é claro que toda nova direção traz suas ideias próprias e lida com novas realidades, sejam elas na estrutura do museu (que se mudou da Cidade Universitária para o Ibirapuera em 2012), nas dinâmicas de trabalho e, especialmente, nos modos de atualizar seus discursos e linhas curatoriais, “em função das transformações que a sociedade e a mentalidade contemporânea estão impondo”, diz Lira. Para falar sobre os planos e visões da nova gestão, a arte!brasileiros conversou com Lira e Hamburger, que falaram sobre estes e outros temas.

O principal conceito que norteia a dupla é o que intitulam Colégio das Artes, um projeto de transformar o MAC USP em um museu cada vez mais transdisciplinar, que dialogue com os mais diferentes departamentos da universidade e com organizações e atores de diferentes áreas também de fora dela. As próprias áreas de atuação de Lira, vindo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), e de Esther, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) – mais especificamente da área do audiovisual – reforçam este desejo.

O Colégio das Artes não deixa de ser, também, um caminho para lidar com um mundo complexo, em crise, e com uma produção artística contemporânea que reflete este contexto. “Temos uma crise ambiental, crise política, crise cultural e o mundo está em guerra. (…) Então eu acho que as artes e as ciências humanas estão no cerne dos desafios que o mundo enfrenta. E o MAC tem potencial de ser um laboratório incrível”, afirma Esther.

Outro importante eixo de trabalho destacado por Lira será a gestão de um “centro de ciências do patrimônio”, um sofisticado laboratório de preservação e restauro de obras de arte, com tecnologia de ponta, que está sendo instalado no museu. O local, ligado também à pesquisa acadêmica, deve não só cuidar do acervo do museu, mas formar profissionais que atuem no MAC e também em outras instituições.

Criado em 1963, quando foi transferido aos cuidados da USP o acervo do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP), formado inicialmente a partir das doações do casal Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado, o MAC USP apresenta no momento tanto exposições montadas a partir de seu acervo (como Tempos fraturados e Acervo aberto) quanto uma mostra em parceria com a Terra Foundation for American Art (EUA), uma do artista Luiz Sacilotto e uma grande instalação de Anna Bella Geiger (Circumambulatio). Além disso, o museu recebe o 38º Panorama da Arte Brasileira, realizado tradicionalmente no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM SP), que passa atualmente por reforma. 

Leia abaixo a íntegra da entrevista.

arte!brasileiros – José e Esther, vocês assumiram a direção do MAC USP há menos de três meses. A proposta não é de rompimento ou mudança de rumo em relação à gestão anterior, mas há algumas novidades, como aquilo que intitulam Colégio das Artes. Podemos começar falando um pouco desta transição de gestões e, a partir disso, dos principais eixos de trabalho que vocês propõem a partir de agora?

José Lira – Sim, você tem razão, acho que a nossa proposta não se propõe a uma ruptura ou um desvio de rota. Um museu dessa importância, dessa dimensão que tem o MAC USP, envolve um trabalho de gerações, tanto de construção institucional quanto de construção acadêmica – afinal se trata de um museu de arte universitário. Então entendemos que se trata de contribuir nesse processo em uma instituição que, desde que foi criada em 1963, passou por mudanças muito significativas, mas dentro do processo de consolidação desse museu de arte no interior da USP. Então, em 1963 a coleção tinha uma certa identidade que era dada pelo Ciccillo Matarazzo, muito marcada de um lado pela revisão do modernismo e atualização no nível internacional do modernismo brasileiro e, por mais importantes e singulares que tenham sido as gestões do MAM, por parte de figuras como Lourival Gomes Machado, lá atrás, essa identidade da coleção foi muito decisiva para o que viria a ser o museu.

Além disso, envolvido com a Fundação Bienal, Matarazzo tornou a coleção também próxima dessa outra instituição, por volta dos anos 1950. As obras premiadas dentro da Bienal iam enriquecendo e atualizando esse acervo. E com a vinda para a USP, o grande esforço do Walter Zanini, que foi o primeiro diretor do MAC, por cerca de 15 anos, foi de estabelecer de fato um lugar do museu dentro da universidade. Zanini era professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) e antes havia sido da Filosofia e foi, sem dúvida, uma figura muito importante para a introdução da pesquisa dentro da instituição. Pesquisa que ele desenvolvia, mas também que ele fomentou em torno da coleção. Pesquisa que era acadêmica, mas também que era estética.

Enfim, há várias revisões dessa longa história do MAC USP disponíveis. Vários diretores se preocuparam em recontar essa história, em estabelecer esses grandes marcos temporais. Mas o museu, recentemente, passou por duas transformações muito significativas, uma já no século 21. E o MAC atual é filho dessas transformações. Uma é a autonomia do museu dentro do estatuto da universidade, há cerca de 15 anos, quando ele se equipara com uma unidade de ensino. O museu já tinha um corpo de pesquisadores, inclusive no quadro de funcionários, mas ainda não tinha uma atuação plena dentro da universidade através de carreiras docentes próprias, dessa figura do docente do museu. O surgimento dos quatro museus estatutários da USP, entre eles o MAC, permitiu que ele se entrosasse com as políticas de graduação, de pós, de extensão e de pesquisa que são a rotina de qualquer unidade de ensino. Isso deu uma autonomia e uma complexidade nova ao museu.

A segunda mudança foi a transferência para a sede do Ibirapuera, que é uma transferência que veio se desenvolvendo desde 2012 e praticamente se completou na gestão anterior. O acervo está quase inteiramente reunido aqui na sede, que comporta os laboratórios, as reservas, as áreas acadêmicas, as áreas de programação e um espaço de exibição da coleção e do trabalho curatorial que é dez vezes maior do que o espaço anterior. Resumindo, o que eu queria dizer com esse retrospecto é que por mais que tenha tido contribuições singulares de uma gestão específica ou outra – O MAC teve grandes diretores e, claro, algumas inflexões de rumo, algumas ênfases –, a construção institucional de um museu dessa escala não é uma coisa rápida, nem trabalho de uma geração. Então não se trata de romper o nosso passado, mas de desenvolver, aprofundar, se apoiar nas realizações anteriores para fazer as novas realizações. 

Sigamos então para as realizações que vocês pretendem deixar.  

José Lira – Eu diria que tem duas coisas importantes, além da continuidade, que talvez não estivessem tão claramente presentes nos programas anteriores. De um lado, a presença da Esther, vinda do audiovisual, e a minha, vindo da arquitetura e do urbanismo, tem também o significado de apontar para um diálogo maior entre as artes visuais e esses campos. Um diálogo e uma presença maior do audiovisual, da arquitetura, do urbanismo e do design no interior da programação, das curadorias e mesmo do acervo do museu. O MAC já tem algumas coleções e itens, alguns fundos de audiovisual e de design, mesmo alguma coisa mínima de arquitetura, mas isso sem dúvida pode ser incrementado. Qualquer grande museu de arte contemporânea tem os seus departamentos e as suas curadorias de cinema, de filme, de arquitetura, de design.

E a ideia de Colégio das Artes tem a ver com essa multidisciplinariedade? Em entrevista ao Jornal da USP, você falou do MAC USP como “um lugar neutro, que não pertence a nenhuma disciplina específica, mas tem um interesse transdisciplinar congênito”. A ideia, portanto, é a de que o museu possa ser um centro aglutinador de iniciativas, tanto de diferentes departamentos da USP quanto de projetos externos a ela? 

Esther Hamburger – Sim, o MAC já vem trabalhando numa linha bem transdisciplinar, inclusive nas exibições. Se você observar a exposição Experimentações gráficas, da Coleção Ivani e Jorge Yunes, que explora as relações entre esse acervo que está entrando no museu e o acervo que já existe, ela cruza fronteiras disciplinares. Porque é uma coleção de desenhos gráficos. Então você tem na mostra capas de revistas do Di Cavalcanti colocadas em diálogo com outras obras dele que são do acervo do MAC, por exemplo. Enfim, o museu já tem um conceito curatorial que procura extravasar as bordas disciplinares.

Da minha parte, inclusive, eu tenho uma formação bem transdisciplinar, desde sempre. E eu acho que nós vivemos em tempos especialmente desafiadores, né? Quer dizer, temos uma revolução técnica acontecendo e as ciências duras e as universidades têm muito a ver com essas modificações. E, ao mesmo tempo, temos uma crise ambiental, crise política, crise cultural. Assim, o mundo está em guerra. E não tem nada mais quente, digamos, que a guerra, o aquecimento global… Então eu acho que as artes e as ciências humanas estão no cerne dos desafios que o mundo enfrenta, embora nem sempre se reconheça assim, e o MAC USP tem potencial de ser um laboratório incrível. Ele já é, na verdade, então trata-se sempre de incrementá-lo, de abri-lo mais para colegas de outras unidades da USP, para estudantes das mais diversas áreas terem contato com o acervo, terem oportunidade de fazer cursos, workshops, etc. 

Atualmente o predomínio nos cursos do MAC USP é de alunos da ECA (unidade da USP que inclui o departamento de Artes Plásticas) ou é variado?  

Esther Hamburger – É bastante diverso, porque o museu oferece cursos abertos. Eu acho até que esse é o modelo que a universidade deveria estimular, que as grades curriculares fossem mais abertas para os estudantes poderem optar. Eu acho que precisamos muito disso e os alunos querem isso. Nesse sentido, o MAC tem um modelo muito interessante. Ele não tem um curso de graduação próprio, ele oferece disciplinas optativas abertas a vários cursos. Então tem alunos da ECA (comunicações e artes), da FAU (arquitetura e urbanismo), da FFLCH (cursos de humanas) e creio que devemos ter de outras unidades, até da POLI (engenharia). 

José Lira – O MAC tem esse potencial de aglutinação, que a Esther acabou de dizer, de aglutinação entre disciplinas e entre colaborações de áreas do conhecimento muito diferentes. Esse potencial é do próprio DNA do museu. Ele não é uma unidade de ensino e pesquisa, não tem um curso de graduação específica, mas ele contribui, colabora, através de seu corpo docente, com o ensino de graduação na forma de disciplinas eletivas, acessíveis a alunos de qualquer área.

A realidade que enxergamos hoje, não só na USP, mas na universidade, no ensino superior em geral, é de uma atomização muito grande, né? Das escolas, das áreas de conhecimento e das disciplinas. A marcha da especialização, que durante um certo momento parecia inevitável, hoje está pedindo atitudes, formações ou intervenções mais plurais, mais abertas do ponto de vista da disciplina, mais híbridas mesmo. Eu diria, até, mais ecléticas. Aquela ortodoxia científica, disciplinar, epistemológica, já faz algum tempo que está em crise. É uma crise da educação em geral, da universidade, é uma crise da cultura ocidental, desse modelo de civilização e de ciência também, de tecnologia, de desenvolvimento, que gerou esses problemas de ordem ambiental, humanitária e política. Então abordagens mais transdisciplinares, sem dúvida, são muito bem-vindas.

Agora, essa atomização, por outro lado, eu não diria que ela deu as costas às artes. Pelo contrário, muitas vezes nós vemos, espalhados pela universidade, docentes, discentes, grupos de pesquisa e laboratórios que, de dentro de suas disciplinas – seja história, arquitetura, jornalismo, cinema, psicologia, sociologia ou antropologia –, estão trabalhando com as artes. Só que dentro de seus nichos. O que é um paradoxo, porque muitas vezes esses grupos, essas carreiras que perseguiram a reflexão sobre a arte, são dissidentes já dentro de suas áreas de conhecimento, desafiando a própria fronteira de campos que têm os seus objetos duros, que têm as suas linhas de pesquisa clássicas e que raramente passavam pelas artes. E hoje, nós temos um universo imenso de gente trabalhando na USP, em todas as áreas de conhecimento, com uma quantidade de trabalho acumulado que nem sempre chega fora dessas redomas.

Agora, saindo um pouco dos muros da universidade, queria perguntar sobre o diálogo também com possíveis instituições parceiras, com a comunidade artística, com outros projetos de fora da USP. Esse trabalho já vem sendo feito pelo MAC, mas qual a ideia de vocês neste sentido?

José Lira – É importante salientar isso, porque não se trata simplesmente de reunir a USP num lócus excêntrico, digamos assim. Se trata também de atrair e dialogar com a produção artística espalhada na sociedade, inclusive fora de São Paulo. Então estamos em uma fase de estruturação, começando um pouco por essa dinâmica extensionista, cultural que o museu já tem, para ir constituindo um modus operandi diferente. Encarando esses eventos, esses cursos, essas oficinas que muitas vezes aconteciam dentro do museu de maneira mais solta, agora dentro de um projeto comum de publicização do debate artístico, da produção artística. Então, estamos tentando fazer as iniciativas que já acontecem convergirem para esse projeto.

Outra coisa é se valer desses recursos mais imediatos, que são de nossos colegas, de nossos alunos, de nossos programas de pós-graduação, que estão convidados a colaborar nesse processo de expansão do debate artístico, não só interdisciplinar, mas também interinstitucional e com a sociedade civil, com os produtores de arte, as pessoas que estão pensando a arte e outros lócus de conhecimento que não a universidade.

Esther Hamburger – Só para dar um exemplo, o museu tradicionalmente faz atividades com o Instituto Moreira Salles, com quem temos um convênio. Eu estou também em uma comissão na FAPESP que organiza uma escola interdisciplinar, e ela vai trazer o Takumã Kuikuro, que é um cineasta indígena, para participar de uma atividade em dezembro. E aí, logo depois, ele vai dar um workshop no IMS com o apoio do MAC. Quer dizer, queremos congregar os esforços que já estão em curso. Outro exemplo, nós vamos ter um workshop da Rita Duffy, que é uma artista irlandesa, que está vindo para São Paulo a convite da Cátedra de Estúdios Irlandeses da USP, financiada pelo consulado da Irlanda. E ela vai fazer uma exposição na Maria Antônia e um workshop aqui no museu. 

Enfim, eu acho que isso tudo parte de uma vocação natural do museu, que já existe, e que se desenvolve hoje nos eventos que o corpo docente e o corpo técnico do museu estimulam – e que são equipes de uma qualidade impressionante, gente muito bem formada, de uma dedicação incrível ao museu, uma coisa que salta aos olhos. E são equipes acostumadas a promover coisas, estão voltadas a isso e nós pretendemos incrementar esse caldo de cultura.

E só pra concluir, o museu também participa de dois programas de pós-graduação que são interdisciplinares e inter-unidades. Você vê que a vocação está aí. Um é o de museologia, que é sediado no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP) e o outro é o programa em História e Estética da Arte.

Já falamos então dessa relação do MAC com a universidade, um pouco da relação com instituições de fora, agora eu queria saber mais sobre o grande público, digamos assim (foram 410 mil visitantes ao museu em 2023). Enfim, como pretendem trabalhar esse diálogo com a sociedade como um todo, para atrair as pessoas, dialogar com elas, intensificar essa relação? 

José Lira – Vimos recentemente um mapeamento sobre isso e percebe-se como a vinda para o Ibirapuera já representou, em 2013, uma expansão imensa de público. A saída da cidade universitária para cá já representou uma guinada importante no fluxo mensal de visitantes. No início do funcionamento do museu aqui a visitação era da ordem de 10, 12 mil visitantes por mês. Isso veio crescendo desde então, chegando a quase 40 mil. Excluindo os anos da pandemia, claro. E precisamos estudar melhor quem é esse público, como é que ele está visitando o museu, quais os seus interesses. 

Enfim, há uma parcela que é o público do museu propriamente dito, outra que é público do edifício, inclusive do terraço panorâmico que nós temos lá em cima. Lembrando que esse é um edifício tombado, projetado por Oscar Niemeyer, um espaço público acessível, como não era em outras épocas. E ele se tornou um marco turístico, principalmente com a abertura do terraço para a visitação pública. Então também há um público leigo, que não é de frequentadores da cena artística, que muitas vezes está chegando pela primeira vez em uma exposição. Tem gente, inclusive, que às vezes nem entra, vai ver a vista e fica fora. Então precisamos mapear, conhecer melhor esse público e trabalhá-lo, enfim, formá-lo. Fazer um trabalho formacional. E eu acho que um dos impactos que a gente espera do Colégio de Artes não é simplesmente a dinamização, mas é também a expansão do público, sempre com qualificação.

Um outro aspecto que acho fundamental para essa conversa é falar sobre o acervo do MAC USP, de mais de 10 mil obras, e o trabalho que tem sido feito com ele – que inclusive foi premiado pela Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) em 2023. Nesse sentido, desde que vocês assumiram foram abertas duas exposições: Acervo aberto e Experimentações gráficas: Doação Coleção Ivani e Jorge Yunes. Uma apresenta uma coleção doada recentemente ao museu e a outra discute justamente a ideia de reserva técnica, mostrando também obras que nunca antes foram expostas. Vocês poderiam falar sobre esse trabalho constante de ativação do vasto acervo do MAC?

O acervo é um acervo histórico. Apesar de ser um museu de arte contemporânea, ele já tem uma identidade. Muitas pessoas vêm ao MAC para ver o Modigliani, o Boccioni, a Tarsila do Amaral, uma Anitta Malfatti específica etc. E isso é um trunfo do museu. Agora, é um museu de arte contemporânea e que está, desde a sua criação, a partir desse núcleo histórico precioso, se ressignificando, se atualizando. E eu tenho impressão que o trabalho da Tempos Fraturadas ou da Lugar Comum, que foram duas exposições da gestão anterior, foi um trabalho muito fino de intervenção no acervo curatorialmente. Quando nós recebemos o prêmio da ABCA não foi apenas o acervo, mas o trabalho em torno dele. Então, por exemplo, essas mostras recolocaram as obras-primas, digamos assim, as grandes peças, em diálogo com produções menos conhecidas no desenho. Tempos diferentes, com técnicas diferentes, com gêneros diferentes, materialidades diferentes.

E esse cruzamento se deu a partir de recortes curatoriais altamente relevantes no presente. Então, são questões que foram aparecendo que não eram as mesmas que se faziam presentes nos anos 1960, nos 1980, nos anos 2000, mas que estão brotando na sociedade e na cultura de maneira latente… Questões de violência, de sexualidade, de corpo, de raça, de classe, crise ambiental, enfim, assuntos que estão permeando o debate público foram absorvidos aqui dentro.

Esther Hamburger – E sempre a ideia de relacionar o acervo com coisas contemporâneas e outros também históricas. Quer dizer, é o acervo como um arquivo vivo. 

José Lira – E há outra coisa muito importante: recentemente o museu foi selecionado para sediar um equipamento multiusuário diretamente ligado ao acervo. Esse equipamento multiusuário, EMU, foi aprovado pela FAPESP na forma de um centro de ciências do patrimônio. Um laboratório, um equipamento ligado à preservação, conservação, restauro de obras de arte, pesquisa físico-química, pesquisa do estado de conservação, da composição original, das camadas de degradação ou de confecção do trabalho artístico… Está sendo instalado, nesse momento, aqui no museu. A instalação não está completa, os equipamentos ainda estão chegando, mas é incrível.

Esther Hamburger – Sim, até porque é uma coisa que um museu universitário faz e que um museu que não é universitário dificilmente tem a mesma condição de fazer. Porque nós somos uma unidade de pesquisa também. Nosso quadro técnico e docente é de pesquisadores. E a pesquisa entendida em um sentido amplo, desde a pesquisa técnica necessária à preservação e restauro das obras, que é o que esse laboratório pretende fazer. Ele é chefiado pela professora Ana Magalhães e pela professora Márcia Rizzuto, que é professora titular do Instituto de Física e tem uma vinculação subsidiária aqui no MAC. Isso é uma semente de um Colégio das Artes incrível.

Posso estar enganado, mas acho que algo assim é raro, ou mesmo inexistente, em museus no Brasil… 

Esther Hamburger – No Brasil vai ser o primeiro do tipo. E ele é um centro que envolve parcerias com outros museus e outras universidades, ele pretende atuar em rede. Então, com isso, o MAC está valorizando o seu acervo, assim como a pesquisa de técnicas de restauro e preservação, além da formação de gente. Tanto pessoal ligado a outros museus, como alunos de pós-graduação…

José Lira – É um equipamento sofisticadíssimo que está chegando. De microscopia eletrônica, radiografia de última geração, digitalização de grande escala, peças tridimensionais, mapeamento, scanners e por aí vai.

Vocês acham que isso pode até ajudar a mais gente querer doar obras ou coleções para o museu?

Esther Hamburger – Sim, porque é isso, é saber que o acervo está sendo bem cuidado. E exibido! Então o acervo está sendo cuidado de maneira inovadora e exibido de maneira inovadora. Por exemplo, a doação da coleção Yunes chegou e já tem uma exposição, que é um tipo de celebração. Isso também é um diferencial. E assim o MAC USP mostra como esse material novo se relaciona com aquilo que você tem. Por vezes, com coisas que você não tem, mas que outras pessoas têm e que nós podemos ir atrás. Experimentações Gráficas, nesse sentido, trabalha com o acervo do museu e com outros acervos também.

José Lira – Isso que você falou é importante, do incentivo a doações. Porque não é mesmo qualquer museu no Brasil que oferece a um artista, a seus herdeiros, a um colecionador, as condições de preservação, estudo, perpetuação e conservação das obras de arte como o MAC oferece. 

Por fim, eu queria falar um pouco da conexão do MAC USP com os debates políticos contemporâneos, especialmente em relação a algumas pautas que são hoje incontornáveis no meio cultural e artístico, como violência contra minorias, desigualdade social, racismo, questões de gênero, destruição do meio ambiente e assim por diante… Estes temas são foco para essa nova gestão do MAC? 

Esther Hamburger – Essas são as questões contemporâneas, são as questões que os artistas estão trazendo. Eu mesma, no meu trabalho como pesquisadora, lido com as várias maneiras pelas quais o audiovisual capta e expressa as desigualdades e às vezes transforma. Enfim, eu acho que nós estamos muito voltados para isso, nossa agenda está permeada por essas questões e a arte contemporânea está lidando com isso, está enfrentando os desafios. Então, por exemplo, uma das instalações em Tempos Fraturados é um jardim, que está na área externa do museu e plantou plantas típicas do Ibirapuera – afinal, o museu é uma extensão do Parque Ibirapuera que foi atravessado pela cidade, pelas vias expressas. E a gente pensa com muito carinho nessa área externa do museu, para trabalhar essas questões ambientais. Se pensarmos a questão ambiental de uma maneira ampla, ela inclui os humanos no ambiente, com os seus corpos e as discriminações, então podemos pensar nesse conceito de ambiente como um conceito que abarca essas tensões todas. O próprio título da exposição de longa duração, Tempos Fraturados, já sinaliza a atenção às maneiras pelas quais as tensões sociais e políticas se expressam na arte. Não existe arte fora dessas implicações, pois ela é como o ambiente todo, ela é fruto dessas tensões. 

José Lira – Eu complementaria chamando a atenção para uma transformação que a universidade como um todo, e não só a MAC, está vivendo, também em função das transformações que a sociedade e a mentalidade contemporânea estão impondo. A universidade hoje é um lugar onde as questões da desigualdade, do acesso ao ensino superior, do acesso à cultura, do acesso ao trabalho, às oportunidades profissionais, estão muito presentes. Então o MAC vem procurando acompanhar essa reflexão e ajustar também as suas políticas institucionais a essa dimensão. Quero salientar, por exemplo, como a agenda das artes indígenas está hoje presente dentro da agenda do museu. A professora Fernanda Pitta tem sido uma grande incentivadora e estudiosa, dentro do corpo docente, a respeito dos desafios que essas produções culturais, artísticas e filosóficas desses povos ameríndios colocam para instituições como “museu”, “arte”, “arte visual”, “belas artes”. Enfim, todo um conjunto de desafios que são políticos, que estão sendo trazidos por esse aprofundamento do diálogo com as culturas indígenas. 

Dentro do conselho deliberativo do MAC, por exemplo, nós temos hoje uma artista indígena [Tamikuã Txihi Gonçalves Rocha], do povo Pataxó, habitante de uma das aldeias da reserva do Jaraguá, que vem muitas vezes trazendo o seu estranhamento em relação aos nossos protocolos, às nossas condutas, às nossas rotinas. Coisas que são tradições também, e que a gente nem sempre se coloca nessa perspectiva de um outro radical, que é de uma indígena migrante, desterritorializada, confrontando permanentemente no seu corpo, na sua existência, na sua mentalidade, na sua espiritualidade, no seu ambiente, a exclusão. Então, essas questões também estão sendo muito valorizadas, e elas têm se mostrado do interesse de nosso corpo discente, do nosso corpo docente, e que o museu tem procurado fortalecer.

Por fim, vocês estão agora recebendo o 38º Panorama da Arte Brasileira (linkar matéria Edu), realizado tradicionalmente no MAM, que este ano está em reforma. O MAC entra com o espaço expositivo, mas eu queria saber se o museu se envolveu também de outros modos na exposição? 

José Lira – Bom, quando fomos procurados pelo MAM, em função da circunstância de reforma da marquise do Ibirapuera e o desalojamento temporário do museu, justamente nesse momento tão importante do calendário artístico deles, que é o Panorama, obviamente a acolhida foi imediata. Foi discutida, foi refletida, um termo de acordo foi selado entre as duas instituições, porque também não é simplesmente ceder o espaço. Não é tão simples. É um espaço sensível, porque envolve uma infraestrutura que não é a mesma com que eles estão acostumados, envolve uma coabitação de times de funcionários, envolve demandas que são específicas, envolve muitas vezes o mesmo público. O público do MAM é vizinho do público do MAC, um está interessado também nas exposições do outro, então há toda uma preocupação de construir uma sintonia cotidiana entre essas dimensões de conservação, infraestrutura, cotidiano de trabalho. 

Esther Hamburger – São museus irmãos e a ideia é que possam trabalhar juntos.

O Grande e o pequeno, ou quando Del Picchia conheceu Grande Othelo*

Faz alguns dias assisti a um dos documentários mais interessantes lançados recentemente no Brasil com direção de Lucas H. Rossi dos Santos, Othelo, o grande que trata da vida e obra do ator brasileiro Grande Othelo.

Durante todo o filme, o único depoimento sobre o ator foi o do poeta Carlos Drumond de Andrade pois, para Othelo, o grande o que contou foram os vários depoimentos filmados do próprio artista, intercalados por fotos de épocas distintas e trechos icônicos de sua participação no teatro, cinema e na televisão. Creio que o tecido formado pela voz de Grande Othelo e suas imagens de tantas épocas constituiu a força do filme. Mais do que a obediência à cronologia, o propósito do documentário foi a coerência entre as falas do ator e as imagens sugeridas a partir delas.

Saí do filme com meus sentimentos revigorados em relação a Grande Othelo e satisfeito pela maneira respeitosa, carinhosa e esteticamente convincente com que ele e seu legado foram tratados.

Grande Othelo, além do talento peculiar que sempre manifestou (ou justamente por tal motivo), parece ter conseguido imprimir naqueles com quem cruzava uma impressão forte o bastante para romper qualquer dificuldade. E isso fica claro no documentário, por exemplo, quando somos levados a refletir sobre como ele, de alguma maneira, conseguiu ganhar o interesse de dois dos nomes mais importantes do cinema internacional do século passado: os diretores Orson Welles e Werner Herzog.

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Menotti Del Picchia (1892-1988). Foto de Menotti del Picchia, por M. Nogueira da Silva, em 1913.
Menotti Del Picchia (1892-1988). Foto de Menotti del Picchia, por M. Nogueira da Silva, em 1913.

O filme de Lucas H. Rossi dos Santos me fez recordar um texto intitulado Otelo [sic], publicado em 26 de outubro de 1926 pelo escritor paulistano Menotti Del Picchia, no Correio Paulistano, quando, em 2018, iniciei o levantamento e análise da produção jornalística do intelectual. Muito me impressionou a leitura daquele artigo porque nele, Menotti – então com 34 anos – relatava seu encontro com o então garoto de 11 anos – Grande Othelo – na época trabalhando como ator da Companhia Negra de Revista, do Rio de Janeiro, em turnê por São Paulo.

Como procurarei demonstrar aqui, Del Picchia parece impactado com a figura do cantor/ator-mirim, percebendo estar frente a um talento genuíno, uma visão que é imediatamente turvada por um olhar preconceituoso a respeito da negritude do garoto, o que, para o autor, parecia inviabilizar a manutenção de sua potência como artista. Contraditória, essa atitude de Menotti – acreditar no talento do garoto e, ao mesmo tempo, desacreditar na possibilidade do desenvolvimento de suas capacidades profissionais – trouxe-me duas questões para refletir: em primeiro lugar, ela nos permite inferir como a vocação e a espontaneidade de Grande Othelo, juntas, conseguiam cativar o interesse de quem podia observar seu talento; em segundo, dá-nos a dimensão do quanto o racismo borrava (e ainda borra) as possibilidades de real integração entre  brancos e pretos.

Quando Del Picchia escreveu sobre o jovem Grande Othelo, ele deixou explícito como o racismo estruturava o senso comum da maioria da população branca no Brasil, mesmo entre intelectuais bem-pensantes e supostamente a par do debate social e político local e internacional. Como será visto, parece que para Del Picchia não havia outra possibilidade de refletir sobre o talento de um jovem negro como Grande Othelo fora dos parâmetros que sustentavam sua visão de mundo.

Antes de adentrar propriamente nos comentários de Del Picchia sobre Otelo, considero importante trazer suas preocupações relativas à questão racial no Brasil.

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Naquele meio dos anos 1920, Del Picchia era um dos mais profícuos intelectuais com atuação em São Paulo: além da coluna que mantinha no jornal Correio Paulistano, intitulada “Crônica social”, colaborava com outros periódicos da cidade e do Rio de Janeiro, publicando igualmente coletâneas de textos, contos, poemas etc. Em “Crônica Social”, Menotti publicava artigos sobre o ambiente cultural de São Paulo, (sobre literatura, artes plásticas, música, cinema e uma série de outros assuntos).

Outro tema que lhe interessava era a questão racial e o quanto ela influíra e ainda poderia influir no futuro do Brasil. Filho de imigrantes italianos, chegados em São Paulo no final do século 19, Menotti, como vários outros intelectuais surgidos antes, durante e depois de sua atuação mais efetiva, acreditava que os brasileiros descendiam da assim chamada raça latina, de origem europeia – clássica e pagã – e que, naquele continente, se contrapunha à raça dita germânica – romântica e cristã. Para ele o ramo ibérico dos latinos teria imigrado para as Américas, com ampla presença portuguesa no Brasil, mais tarde ampliada por outros povos latinos europeus.

Por sua vez, os portugueses tiveram que se haver com os indígenas aqui presentes quando de sua chegada, e com os negros escravizados, vindos da África. Para Menotti, o primeiro grupo praticamente já não mais existia em território brasileiro, uma vez que teria sido dizimado ou misturado ao branco e ao negro, sendo que seus remanescentes haviam sido expulsos para os recônditos mais distantes. 

Em 1921, quando Menotti se posicionou contra “Peri” – o personagem de José de Alencar, principal mito indianista da literatura brasileira, – confundiu, propositadamente ou não, o personagem com o indígena real, negando a relevância de ambos para a cultura e para a sociedade brasileiras:

(…) Peri é um inimigo falso: nunca existiu. Nunca acreditei na real existência dos índios, de que os europeus julgam andar cheios nossas [sic] praças e avenidas. As notícias que deles tenho, em tratados etnográficos e em documentações de museus, fazem-me pensar neles como na vaga legenda dos primatas, dos antropotecos [sic], dos megatérios e outras coisas crepusculares. Às vezes chego a imaginar que Peri – emprestado a Chateaubriand, portanto francês legítimo – nunca passou de uma ficção literária de Alencar.

O que nos custou, porém, essa blague (…). Peri foi uma mancha nua e bronzeada a sujar a dignidade nacional. Essa mentira lírica, transformada em função social pela inacionada [sic] admiração fetichista dos zoilos, chegou a perturbar nossos etnólogos. Admitiu-se essa hipótese romântica como elemento formador da raça, atribuindo-se ao índio vadio, estúpido e inútil, uma função alta no caldeamento do nosso tipo nacional (…).

Nada mais falso! Nunca vi índios, mas o que li de sério – … – sobre a índole dessa gente de tez acapetada [sic], nariz chato, higiene discutível, foi apenas um depoimento psicológico que reverte em séria acusação contra a sua inferioridade étnica e absoluta inadaptabilidade social (…)

Transformados em abstração literária e, ao mesmo tempo, configurados como emanações do demônio (“tez acapetada”), os indígenas não eram problema para Menotti. Para ele, a questão era como lidar com a população de origem africana no Brasil, um entrave a ser levado em conta nos debates sobre os projetos para a nação.

Desde pelo menos 1917 – quando lançou seu primeiro grande sucesso editorial, o poema Juca mulato – Del Picchia oscilava entre perceber o afrodescendente como um ser que se sabia inferior ao branco (o personagem Juca mulato seria aqui o melhor exemplo), ao mesmo tempo em que comungava com o sentimento-padrão que grande parte dos católicos minimamente letrados pareciam então adotar  em relação à população afrodescendente: um sentimento que mesclava gratidão e culpa, matizado pela arrogância de crer-se superior. Ou seja: Menotti reconhecia a humanidade do negro e sua importância para a transformação do Brasil. Mas, por outro lado, como latino “legítimo” (não esquecer sua ascendência italiana), não abdicava de entender a população brasileira como fundamentalmente branca, eurodescendente.

É, portanto, com esse posicionamento em relação aos negros brasileiros que Menotti conhece o jovem Grande Othelo, quando o ator visita a redação do jornal Correio Paulistano, para divulgar as apresentações em São Paulo da Companhia da qual fazia parte.

                                                                ***

De início, Menotti faz questão de afirmar que o Othelo ao qual se refere não era o personagem da peça de Shakespeare, Othelo, o mouro de Veneza, do começo do século 17, transformada em ópera dois séculos depois por Verdi. Assim afirmou ele:

Este [Othelo] não ringe os dentes, não salta como um símio de ébano, não amordaça com suas mãos uxorcidas [sic] a alva Desdêmona (…). Não veste o veludo plateal [sic] e mirabolante dos cantores de ribalta, nem pinta a cara com fumaça de fundo de panela. É preto mesmo. Tem pouco mais de meio metro. Azougado como um saci…

Nota-se Menotti impressionado com aquele jovem Othelo que, ao contrário dos atores que interpretavam o personagem de Shakespeare, não usava do artifício da black-face. O jovem Othelo que descrevia era um ator negro, tão negro que, para ele, lembraria o saci. Enfim, “um negrinho inteligente, encontrado por almas piedosas nos bancos do jardim público de Uberabinha”.

É importante reparar que, para Menotti, Grande Othelo não era uma criança inteligentíssima, mas sim um “negrinho inteligentíssimo”. Como era de se esperar, a racialização da criança foi imediata porque, para o intelectual, o fato de Grande Othelo ser uma criança talentosíssima ganha outro componente – um componente que traz um grau de surpresa à sua escrita – quando é sublinhada que ele era “um negrinho”. “Um negrinho” que, se não fossem as almas caridosas (e brancas) que o acolheram, “teria sido um vagabundo ou gavroche. Teria furtado rapadura e dado nós nas caudas dos cavalos amarrados nos mourões junto das vendas da cidadezinha pequena”. O que significa que, para Menotti, o jovem Grande Othelo não teria seguido seu destino – ou seja, seu destino como qualquer “negrinho”, como um saci – porque contou com a bondade e a boa vontade da gente que o “acolheu” e o levou para o Rio de Janeiro.

É após essa apresentação, que o intelectual informa o leitor que o jovem cantor/ator teria ido até à redação do jornal divulgar o trabalho da Companhia que integrava. Após descrever a elegância das vestimentas do garoto, Menotti arremata: “Uns olhos móveis, vivos sagazes, um narizinho esborrachado, uma cabeça de pepinos, eriçada de pixaim. Mas que vivacidade! Que inteligência!”

O autor parecia impressionado com aquela criança que, segundo ele, a despeito de ser negra, era vivaz e inteligente. A realidade se impunha ao preconceito de Menotti sobre a criança. O intelectual não mede elogios para se referir à apresentação de Grande Othelo, elogios surgidos no meio de uma estrutura de pensamento eivado de elementos racistas:

[Othelo] ontem à noite […] nos deu uns instantes de alegria. Aquele meio metro de cútis negra, com dois olhos prematuramente velhacos, com sua beiçorra tátil e aberta em tudo [sic] de gramofone, canta o “Ciondolo d´oro” com a emotividade que o faria um grande artista. Isso em italiano. Depois, mostrou que sabia espanhol. E disse a mágoa sonora de um tango […] depois recitou versos de Campoamor. Depois um monólogo…

Emotividade “que o faria um grande artista”. Interessante o uso de “faria”, e não de “fará”. É como se Menotti, mesmo reconhecendo o talento de Grande Othelo, não confiasse na possibilidade daquela criança vir a ser um grande astro. A razão o intelectual não explica. Porém, quando descreve a saída do palco do jovem artista, é como se Grande Othelo voltasse para o anonimato e para a marginalidade de onde viera:

Demônio de pretinho! Todos ficamos gostando dele. Saiu como um salta-martim, aos pulinhos, consciente do seu êxito, sentindo-se um “astro” que por certo há de acabar fazendo virar a cabeça à mais bela e mais preta estrela da Companhia Negra, que anda fazendo diabrururas por aí…

Para Menotti, Grande Othelo não passava de uma curiosidade sem importância real para a arte e para a cultura do Brasil. Era um fenômeno circunstancial. Impossível qualquer tipo de investimento nele, uma vez que sua condição de “demônio” lhe retirava qualquer possibilidade de angariar um futuro. O mesmo, com certeza, pensava Menotti sobre a Companhia Negra de Revista que, segundo suas palavras, ao invés de fazer arte, fazia “diabruras por aí…”. 

                                                         ***

Como mencionado, a maioria das opiniões emitidas por Menotti Del Picchia não era original. Pelo contrário, dava prosseguimento (e ampliava) ideias preconcebidas que há muito habitavam o imaginário da maioria dos brasileiros brancos, de classe média, intelectual ou não. Como supostos herdeiros e continuadores, nas Américas, do legado racial e cultural latino, não devia haver cabimento reconhecer como legítima, e/ou acolher qualquer tentativa de partilhar com os afrodescendentes o palco da cultura, mesmo em uma produção ligada não propriamente à erudição, mas à cultura de massa que então se fortalecia (afinal, a Companhia Negra era uma companhia de teatro de revista).

Ao negro poderia caber manifestar-se por meio da música e da dança de origem africana, desde que devidamente afastadas de qualquer insinuação de práticas fora da ordem branca burguesa, e cristalizada como manifestação pretensamente pura e sem contradições.

Assim, o jovem e talentoso Grande Othelo não passava – e não podia e não devia passar – de uma curiosidade cativante, mais um elemento exótico daquele grupo de pessoas que ficava e devia permanecer do outro lado da “verdadeira” sociedade brasileira: branca e herdeira da tradição europeia.

                                                                 ***

Aqui se encontra a importância do filme Othelo, o grande: nele, o ator é revelado e definido por si mesmo, sem intermediários, sem ninguém que o enquadre em qualquer tipo de rótulo. Em seus depoimentos percebemos um indivíduo que se jogou inteiramente na vida e na vida profissional, e enfrentou as adversidades que apareceram em seu caminho como homem e como ator.

Não encontramos no filme o “grande ator negro”. O roteiro e a direção do documentário nos levam a nos deparar, isso sim, com um profissional (e um indivíduo) que reflete sobre a própria vida e carreira no teatro, no cinema e na televisão, sem, em nenhum momento, ser atropelado por visadas sobre a pretensa excepcionalidade de ser um artista, que “mesmo sendo negro”, conseguiu furar a bolha branca. Othelo, o grande não traz essa armadilha da excepcionalidade. O filme parece lidar com a consciência de que, se assim procedesse, estaria reafirmando a marginalidade da população negra no país, em que apenas um ou outro sujeito conseguiria escapar da sina de viver sob a exclusão.

                                                            ***

Finalizando, registro que, a meu ver, os posicionamentos preconceituosos de Menotti e de outros intelectuais locais não deveriam servir para o cancelamento de todos eles. Se assim agirmos, corremos o risco de que, no final, restem poucos, pouquíssimos nomes sobre os quais possamos constituir uma compreensão menos rasa da sociedade brasileira, deixando de lado um debate que dê conta de toda as nuanças que o racismo assumiu e continua assumindo em nossa coletividade. O caso da recepção do talento de Grande Othelo por um intelectual brasileiro branco como Menotti Del Picchia, é apenas um dos inúmeros exemplos da rejeição efetiva que, por trás, sustentava a benevolente (e falsa) comiseração branca em relação aos negros.

E esta questão precisa ser mais explorada por brancos e negros, porque diz respeito a todos nós brasileiros.

***

Agradeço às leituras atentas do texto realizadas pelo amigo Fabio D´Almeida e da amiga Eliane Pinheiro.

²Grande Othelo, nascido Sebastião Bernardes de Souza Prata em Uberabinha (atual Uberlândia, MG) descendia de escravizados. Com dotes de ator, foi levado para o Rio de Janeiro onde começou a trabalhar no teatro ainda criança. Transformou-se num dos principais atores brasileiros. Faleceu em Paris em 1993.

³Filho de um casal de imigrantes italianos nascido em S. Paulo em 1892, Paulo Menotti Del Picchia se notabilizou como poeta e romancista. Foi crítico e publicista. Participou da Semana de Arte Moderna de S. Paulo, em 1922, e foi um dos protagonistas da ala mais conservadora/reacionária do movimento modernista de S. Paulo. Formado em advocacia, foi deputado por São Paulo. Morreu em sua cidade natal em 1988.

⁴Com tal estudo, informalmente dava prosseguimento ao trabalho realizado pela pesquisadora Yoshie S. Barreirinhas que, em 1983 publicou um livro (nomeado em seguida) contendo significativa amostra dos textos publicados por Del Picchia, entre os anos 1917 e 1922. Meu levantamento busca ampliar o período abarcado pela colega incluindo a produção do autor, entre 1922 e 1932. BARREIRINHAS, Yoshie Sakiyama (org.). Menotti Del Picchia. O Gedeão do Modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

⁵No texto, Menotti Del Picchia afirma que Grande Othelo, em 1926 estava com 7 anos, o que não é correto. O artista contava com 11 anos quando veio para São Paulo.

⁶Em seu livro de memórias, Del Picchia assim se pronuncia sobre seus pais, nascidos na região da Toscana, Itália: “[Minha mãe] nascera (…) perto de Pisa (…). Era de estirpe rural (…) Era uma aguda inteligência inculta, servida por uma severa energia que lhe dava dignidade (…)
Pouco sei dos meus antecedentes paternos. Papai sempre foi displicente e discreto para as coisas tradicionais do mundo. Socialista que era (…) escolheu o Brasil que adotou como sua nova pátria.
Pintor, arquiteto, jornalista, poeta satírico, a multiplicidade das suas aptidões e o amor que tinha por todas elas não o deixaram optar profissionalmente por determinada arte. Era um eclético lançando mão de todas como líder de artistas tão diversos que ele capitaneava mais como companheiro que como empreiteiro e que reunia em casa como amigos”. DEL PICCHIA, Menotti. A longa viagem. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1970, vol. 1, p. 26.
Por tais informações fica-se sabendo que os pais de Del Picchia formavam um casal que, a princípio, fugia dos padrões dos imigrantes de origem agrária. Embora sua mãe tivesse nascido em uma aldeia, dedicando-se ao trabalho doméstico, seu pai, além de exercer uma atividade notadamente urbana – era empreiteiro –, era ligado também às artes e à cultura em geral.

Na antevéspera do início da Semana de Arte Moderna, Menotti, para justificar porque o movimento modernista de 1922 começava em São Paulo, publica um artigo em que compara o paulista ao “nortista”, atentando para o seguinte fato: foi para São Paulo que veio uma nova leva de europeus que, ao transplantarem novamente a cultura latina, rejuvenescida, para cá, transformaram a cidade e o estado no mais pujante e inovador do Brasil: “O sentido do termo [futurista] – que necessita ser bem compreendido – exprime a modalidade própria, […] do povo paulista, antípoda completo dos cismarentos patrícios do norte, os quais ainda descansam, pacíficos, nas velhas normas ancestrais, sem as perturbações criadoras da concorrência, do industrialismo insone, da batalha financeira americana.
Com tal origem, o paulista devia sentir, em todas as manifestações de sua atividade, o reflexo da ambiência em que se agita. Irrequieto, bandeirante, trabalhador, libertou-se do fatalismo. À obra maravilhosa e histórica da fixação da nacionalidade […] seguiu-se o natural desnervamento [sic] que alquebrou a raça formadora do primeiro extrato étnico da nação brasileira. As novas levas latinas, vindas de outras bandas do mar a tonificar esse enervamento, encontraram bem adubada a terra bendita […].
Confluindo para S. Paulo esse rebojo de sangue novo, S. Paulo criou, antes de qualquer outra unidade de federação, um pujante surto de vida atualizada nos seus limites, uma civilização integral, incorporada dia a dia pelos últimos paquetes, como se um pedaço do mundo se deslocasse, geograficamente, para a América brasileira” DEL PICCHIA, Menotti. “Semana de Arte Moderna”. Correio Paulistano. São Paulo, n. 21.052, 11 de fevereiro de 1922, p. 5. Republicado em BARREIRINHAS, Yoshie, op. cit. p. 317.

⁸Logo em seguida, a partir dos protestos surgidos contra virulência do artigo – dentre esses, aquele de Mário de Andrade –, Menotti irá recuar de seu posicionamento tão radicalmente preconceituoso, tentando separar o personagem de Alencar, do indígena real. DEL PICCHIA, Menotti. “Matemos Peri!”. São Paulo: Jornal do Commercio, n.83, 23 de janeiro, 1921, p.3. Republicado em BARREIRINHAS, Yoshie, op. cit. p. 194. Além deste, outros artigos sobre o assunto foram publicados na coletânea.

Em agosto de 1922, em artigo sobre a suposta tristeza do brasileiro, o crítico propõe uma curiosa definição das três “raças” que teriam formado o Brasil. Ignorando os indígenas, ele os substitui pelos imigrantes europeus que então chegavam. Assim, os portugueses e os demais imigrantes vindos da Europa formariam a maioria da “raça” brasileira. Nessa definição é reconhecido o papel da população de origem africana, embora como um elemento minoritário e de pouca força. No texto, o autor assim se refere ao povo vindo escravizado da África: “O negro, arrancado como uma árvore, abruptamente, ao solo do seu berço, vinha estiolar-se aqui, doente de banzo, enchendo o ar com as nênias que avozeava no samba…”. Ou seja, uma população triste, fraca e saudosa, sem o vigor dos imigrantes que vinham do continente europeus. DEL PICCHIA, Menotti. “Rir! Rir! É preciso rir!”. Correio Paulistano. São Paulo n. 21.232, 16 de agosto, 1922, p. 3 Republicado em BARREIRINHAS, Yoshie, op. cit. p. 357

Incongruências curatoriais na Bienal de Veneza

por Maykson Cardoso
Pesquisador de arte baseado em Berlim
Doutorando em Artes Visuais na Escola de Belas Artes da UFRJ

Fabio Cypriano é um dos últimos bastiões da crítica de arte corajosa no Brasil. Li sua crítica à atual edição da Bienal de Veneza, “Stranieri Ovunque”, curada por Adriano Pedrosa, e me sinto contemplado por ver, ali, como foram abordados alguns dos problemas curatoriais. Escrevo este texto em diálogo com esta crítica de Cypriano, abrindo outras questões a partir de um dos pontos que ele sublinha: um certo esforço curatorial para enquadrar acriticamente a produção de artistas do sul-global em uma categoria que parte de e converge com uma visão da história da arte ocidental/colonial.

Desde o anúncio do time de artistas brasileires que integrariam a mostra, já se podia antecipar algumas incongruências curatoriais. Não pela qualidade individual desses artistas, mas porque, pelo conjunto, já se podia ver que a ala [“ítalo-”]brasileira não colocaria em questão, desde perguntas atuais e urgentes, os clichês e problemas da nossa complexa “identidade nacional”, tal como parecia sugerir o título da mostra “Estrangeiros em todo lugar”. O que, de antemão, já nos colocava diante de dois furos curatoriais: primeiro, porque uma curadoria coletiva se faz valer pelo conjunto de suas obras; segundo, pelo quanto este conjunto de algum modo ressoa o conceito-geral a partir da singularidade destas.

Neste sentido, Cypriano aponta, por exemplo, que

“Os selecionados em todas essas seções não estariam criando alternativas à chamada história oficial, mas suas inserções em gêneros e movimentos definidos pelos padrões ocidentais, acabam se tornando apenas uma lista de pinturas com vontade de participar do clube oficial. É caso dos brasileiros Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Candido Portinari e Di Cavalcanti, para citar apenas quatro. As obras escolhidas, respectivamente Estudo (1923), Figura Decomposta (1927), Cabeça de Mulato (1934) e Três Mulatas (1922) trazem pouca fricção à narrativa corrente”.

É a partir desta incongruência que Cypriano conclui — e nisto reside o grande mérito de seu texto — que o discurso curatorial quer encaixar a produção de artistas do sul-global “na narrativa modernista, como se a inserção nesta história fosse de fato uma conquista significativa”. Quanto a isto, vale acompanhar as discussões de Rafael Cardoso, que em sua pesquisa mais recente mostra as origens populares do modernismo brasileiro, colocando em xeque a narrativa oficial vigente que atribui o modernismo apenas aos figurões da elite paulistana.

Sem dúvida, esta premissa curatorial é o primeiro ponto [propositadamente?] cego da proposta de Pedrosa… Ao olhar para os modernismos periféricos, especialmente no caso brasileiro, sua simpatia, para falar com Walter Benjamin, é imediatamente com os vencedores! Na contramão da exigência [est]ética de nosso tempo, de ler a história COLONIAL da arte a contrapelo, o que Pedrosa faz é assentar os pelos eriçados pelo que há de melhor na nossa produção artística contemporânea, finalizando o penteado com um bocado de emplastro para garantir que não voltem a se eriçar outra vez.

Mas a ineficácia de seu discurso curatorial não para neste primeiro ponto… Já no título generalista da mostra, “Estrangeiros em todo lugar”, parece haver certa “disposição” para um debate político. No entanto, examinado criticamente, o que se vê e o que aí se expressa é justamente o contrário: se somos todos estrangeiros, NINGUÉM é estrangeiro. E assim caímos, mais uma vez, no inferno do sempre-igual: se todos somos estrangeiros, são tão estrangeiros, como nós, que temos o privilégio de portar um passaporte, os refugiados de guerra ou do clima? Se todos somos estrangeiros, são tão estrangeiros, como nós, os que fogem da miséria? Os que buscam asilo devido à perseguição política em seus próprios países?

Uma afirmação desta ordem faz lembrar a reflexão de Susan Buck-Morss em “Hegel e o Haiti”, sobretudo quando a autora se refere ao lema da revolução francesa “liberdade, igualdade, fraternidade”. Ao fazer uso do mesmo lema que servira aos propósitos da revolução na França, os haitianos receberam as tropas de Napoleão para dar termo à sua revolta. Para o revolucionário Napoleão, o lema que se pretendia “universal”, só servia à França, não se estendia aos haitianos que lutavam contra a sua própria escravidão. Isto é: um título que diz “somos todos estrangeiros” se arroga um princípio semelhante de universalidade, quando nós, os periféricos do sul-global, sabemos bem quem são os vencedores de sempre.

Adriano Pedrosa não falha, portanto, pela qualidade de artistas que apresenta ao público, mas pelo discurso curatorial sem qualquer profundidade e, portanto, sem eficácia, sem força para levar o público a se interrogar sobre a injustiça embutida na própria ideia de fronteira. Seu título é um slogan, ou seja — para apontar, como Cypriano o faz —: não passa de uma estratégia de marketing. Um modus operandi cujo resultado não é outro senão o de arrefecer as contradições, os conflitos. Não nos tira, minimamente, da comodidade e do inferno do sempre-igual. Há ali, para lembrar um termo cunhado, certa vez, por Miwon Kwon, apenas a “performance de uma criticalidade”.

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E, para não dizerem que não falei das flores, em termos de montagem, tomada em comparação com a edição anterior, “O Leite dos Sonhos”, curada por Cecilia Almani, Pedrosa traz a Veneza um bom traço da nossa arquitetura modernista brasileira: consegue criar espaços de respiração diante de um excesso barroco, sem, contudo, aplacar o que, esteticamente, deve se apresentar como esse “excesso”.

E por falar em barroco, La Chola, para mim, é o maior destaque da mostra. Como poucas, a artista consegue criar um diálogo que atualiza — ela sim, criticamente! — o discurso da história da arte Latino-Americana. La Chola se apropria da estética do barroco andino, criando alegorias complexas (e extremamente bem executadas!) que denunciam a violência da norma colonial fundante de nossa ideia de  nação, ao mesmo tempo em que a subverte, tomando para si os elementos da estética colonial para celebrar a força e a resistência daqueles que se insurgem contra a sua vigência em nossos dias — como, aliás, se pode ver no discurso curatorial de Pedrosa.

Bienal de Veneza - Estrangeiros em Todo Lugar. Obra de La Chola Poblete
La Chola Poblete

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Tudo isto nos mostra que é chegado o tempo de diferenciar curadores comprometidos não só com a causa, mas com o próprio campo da arte, da história da arte, do pensamento, em detrimento daqueles que atuam como meros produtores de conteúdo raso para redes sociais ou CEOs de grandes instituições. Precisamos, merecemos mais, muito mais do que isso!

Ana Magalhães faz balanço da gestão no MAC USP, um museu entre a universidade e a sociedade

Quando Ana Gonçalves Magalhães e Marta Bogéa assumiram a direção do Museu da Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), em julho de 2020, o mundo vivia uma crise humanitária sem precedentes com a pandemia de Covid-19. A vacina ainda estava longe de se tornar uma realidade, assim como era impossível prever quando voltaríamos a sair do isolamento social. 

Para o museu, a solução encontrada naquele momento foram as atividades virtuais, através das quais o MAC USP seguiu ativo e, mais do que isso, se destacou. Chamaram atenção, por exemplo, uma intervenção criativa do artista Gustavo Von Há no Instagram da instituição, que chegou a levantar dúvidas se o perfil havia sido hackeado, além de webinários e ciclos de debate realizados em parceria com museus como a Pinacoteca de São Paulo e o Instituto Moreira Salles. Estas, inclusive, já faziam jus à proposta da gestão de aproximar o MAC USP de outras instituições culturais da cidade.

Com a volta das atividades presenciais e a relativa normalização da vida, as diretoras puderam desenvolver de modo mais efetivo as diretrizes de seu plano inicial: criar um “museu-laboratório”, fomentando a produção educativa e acadêmica – “somos um museu da universidade, muita gente esquece disso” – e ativar o vasto acervo de mais de 10 mil obras modernas e contemporâneas a partir de variadas narrativas, com um olhar mais atento às questões raciais e migratórias, por exemplo. Com este trabalho, o MAC USP ganhou, em 2023, o prêmio da ABCA dedicado à Coleção/Acervo/Conservação/Documentação histórica.

A ex-diretora, que é professora-titular do MAC USP e segue no conselho da instituição, acaba de passar o bastão para José Lira (diretor) e Esther Hamburguer (vice-diretora), que assumiram em julho o museu localizado no Ibirapuera, em prédio de Oscar Niemeyer, e que possui 73 funcionários ao todo. A arte!brasileiros publica em outubro uma entrevista com os novos diretores para falar de seus planos para uma gestão que, como destacam, não pretende romper com o trabalho que estava sendo feito.

Sobre os destaques do período em que comandou o MAC USP, Magalhães aponta a ampliação das atividades de docência e extensão; o fortalecimento do trabalho coletivo, não só nas parcerias entre instituições, mas também nos processos internos do museu (como na mostra de longa duração Tempos Fraturados, que teve seis curadores); o foco multidisciplinar nas atividades; o diálogo com os artistas contemporâneos e as novas doações para o acervo. Ressalta ainda que o museu conseguiu não só retomar o número de visitação anterior à pandemia, de 370 mil em 2019, mas superá-lo, com aproximadamente 410 mil visitantes em 2023.

Leia abaixo a íntegra da entrevista, na qual Magalhães faz um balanço da gestão:

Ana Magalhães
Ana Magalhães. Foto: Martin Brausewetter
arte!brasileiros – Podemos começar em 2020, quando você e a Marta assumem a diretoria, ainda durante a pandemia. Dos quatro anos em que estiveram à frente do MAC USP, aproximadamente a metade decorreu em período de isolamento social. Pode falar um pouco de como foi esse desafio inicial e quais as estratégias de trabalho que vocês adotaram?

De fato, naquele momento imaginávamos que passaríamos seis meses em casa e que depois tudo estaria resolvido. Mas não foi assim. Então foi bem difícil lidar com essa situação. Mas eu acho também que em certo aspecto o museu ganhou, no sentido de pensar em outras estratégias de comunicação com o público. Nós fizemos uma programação e um conjunto de ações para testar estratégias como, por exemplo, uma série de conversas online sobre as exposições que deveriam ter entrado em cartaz – e entraram mais para a frente –, reunindo os curadores e artistas envolvidos e já adiantando algo para o público, mostrando que o museu continuava a trabalhar. Nós fizemos também um primeiro webinário de processos curatoriais que a gente chamou de Rede São Paulo, no qual conversamos com colegas de várias instituições dentro e fora da USP ao longo de quase dois meses de programação. 

E aí eu chamaria a atenção para duas ações que foram bem destacadas para o museu nesse período. Uma foi ter convidado o artista Gustavo von Ha para fazer uma intervenção no Instagram do MAC USP, o que já era parte dos processos da proposta dele para exposição Lugar Comum, que depois entrou em cartaz. Isso resultou na doação da primeira obra NFT para o museu, o que traz uma discussão bem importante justamente sobre a paralisação dessa bitcoin, da inserção dessa criptomoeda dentro do acervo de um museu. E o Gustavo é, do nosso ponto de vista, um artista que soube muito bem lidar com as questões das redes sociais. Ele levou as experiências que fazia com perfil dele no Instagram para o perfil do MAC USP, o que foi um ganho para o museu. Da noite para o dia nós explodimos e tivemos um alcance para pessoas que jamais teriam começado a nos seguir não fosse isso. Para o público foi uma surpresa, mas foi uma coisa muito alinhada com a instituição e com a comunicação do museu. 

E eu acho que a outra coisa que deu uma certa projeção para o MAC USP foi o fato de termos nos unido à Pinacoteca e ao IMS e organizado, ao longo de todo o ano de 2021, um ciclo de encontros virtuais sobre 1922 e a semana de arte moderna, o que resultou em 1922: Modernismos em Debate, que hoje está disponível na plataforma do YouTube das três instituições. É um material precioso, que foi bastante acessado, que foi importante para nós pela possibilidade de reavaliar 1922. E trazer, assim, um conjunto importante de conversas e temas que tinham atravessamentos bem interessantes. No fim, o ciclo foi premiado pela revista Select em 2022, o que foi super bacana.

Aos poucos a vida foi normalizada, digamos assim, com a volta das exposições, das atividades presenciais, das aulas na USP. Então pensando em um balanço mais geral da gestão, quais foram os principais eixos de atuação e os principais avanços que você considera que foram alcançados?

Acho que a primeiríssima coisa é a gente se reconhecer como um museu universitário, de fato. Nós somos uma interface importante da USP para fora dos muros da universidade, mas desde o começo tínhamos bastante consciência de que a função acadêmica do museu é aquela que norteia, digamos, todas as atividades do museu e todo o seu programa curatorial. O museu tem que produzir um documento como unidade de ensino, pesquisa e extensão da Universidade de São Paulo, que chamamos de projeto acadêmico. Inclusive ele agora está sendo reformulado, acabamos de submeter o novo projeto acadêmico com uma série de diretrizes para os próximos quatro anos, que entendemos ser um desdobramento do que já fizemos até agora. E eu acho que a principal informação, o principal aspecto que para nós era muito importante, era de marcar esse lugar do MAC USP, que é um lugar excepcional na cidade de São Paulo, de entender que nós somos um museu-escola, um museu-laboratório, um espaço de formação em todos os níveis. Pensando não só a mediação dos públicos gerais, dos públicos que não são necessariamente especializados, mas a formação de profissionais e a formação de pesquisadores que atuam no museu, justamente fazendo essa mediação com os públicos do MAC USP. Quer dizer, nós somos um museu da Universidade de São Paulo. Muita gente esquece isso…

Talvez por ele não estar dentro da cidade universitária?

Sim, mas o Museu do Ipiranga também não está, por exemplo. Eu acho que tem a ver com o fato dele ser um museu de arte. E que nasce da transferência de uma coleção que veio de fora da universidade para dentro dela. Bom, a partir dessa ideia de que somos esse museu-escola, laboratório, o MAC USP ampliou muito a participação de alunos de graduação em várias atividades. Nós já tínhamos um contingente razoável de bolsistas que atuavam no educativo e em projetos de pesquisa, mas isso se ampliou consideravelmente nos últimos anos. Neste último ano nós tínhamos 56 bolsistas estagiários trabalhando em vários setores que eram as atividades-fim do museu. Ligados à curadoria, à produção de exposições, à comunicação, à educação, à pesquisa, junto ao acervo do museu, ao laboratório de conservação, à seção de catalogação. E tentamos dar mais visibilidade para isso. 

Outro aspecto importante, que também se agrega ao ímpeto e à atitude que nós tivemos em relação à crise humanitária que estávamos vivendo – aliás, nós estamos vivendo ainda –, foi justamente o trabalho em colaboração com outras instituições. Isso nós fizemos com o ciclo 1922: Modernismos em Debate, como eu disse; em relação à nossa participação na mostra da Regina Silveira junto à 34ª Bienal de São Paulo; e com iniciativas que tivemos com o MAM-SP, que nós já tínhamos tido uma colaboração em 2018, quando o MAM comemorou 70 anos. Tivemos um desdobramento nisso na exposição Zona da Mata, que acontecia nos dois espaços e, agora, não é à toa que receberemos o 38º Panorama da Arte Brasileira (a partir de 5/10). Tudo isso vem desse raciocínio, desse trabalho colaborativo, e isso nos ajuda também a reavaliar a nossa relação com essas instituições irmãs, que são mesmo uma família de instituições.

Então é fundamental explicitar que o programa curatorial, sobretudo o trabalho de curadoria do museu, é um trabalho coletivo. Acho que essa foi outra marca bem importante da gestão. E não só por essas iniciativas de parcerias com outras instituições, mas também pensando, por exemplo, que a nova exposição de longa duração do museu – que é onde a cada cinco anos revemos a apresentação das nossas coleções para o grande público – foi feita em um processo ainda mais coletivo do que já era antes. Dessa vez atuaram seis curadores com um comitê consultivo curatorial e com suas especialidades para nos ajudar a reavaliar o acervo. E esse modo de trabalhar termina, por exemplo, com as equipes do museu, sobretudo de produção, conservação, documentação, educação e comunicação, atuando sob a coordenação da Marta na exposição Acervo Aberto, que abriu logo após o final da nossa gestão, mas que foi toda pensada ao longo do último período dela.

Por fim, penso que outro projeto que teve muita visibilidade foi o que curamos para o espaço da Clareira, que conseguimos organizar sempre nos segundos semestres, entre 2021 e 2023, e que envolvia a ocupação daquele vão mais alto, de pé direito duplo, no térreo do museu. Primeiro com uma instalação de artes visuais, com a exposição dos trabalhos do Angelo Venosa, que foi a última individual que ele fez antes de falecer. E com um conjunto de ações que aconteciam toda semana ao longo do semestre e que convidava escritores, dramaturgos, cineastas, bailarinos, performers e atores para apresentar alguma coisa naquele contexto. Isso foi bem interessante porque já havia um desejo muito grande do museu de ter espaço para outras formas de manifestação artística e isso só tinha acontecido muito timidamente, com um programa de música para o museu. E isso naquele lugar da Clareira – o que é devido integralmente ao raciocínio de arquiteta da Marta –, nessa porosidade do espaço, no térreo, na entrada, no espaço de acolhimento do museu, em que todas essas formas de manifestação artística se encontrassem. Enfim, foi um desafio para nós, porque isso era novo no museu, mas foi muito bem sucedido, no sentido de trazer essas outras vozes para o MAC USP e também de nos ajudar a reavaliar o programa curatorial do museu, a rever a coleção e entender também a relação do museu com o chão da cidade, a relação dele com o parque.

No ano passado o MAC USP recebeu da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) o Prêmio Emanuel Araújo, destinado ao reconhecimento de coleção, acervo, conservação e documentação histórica. O prêmio ressalta o tamanho e importância do acervo do museu e o trabalho que é feito com ele. A partir disso, gostaria que você falasse um pouco sobre esse trabalho constante de salvaguarda e ativação de um dos mais importantes acervos de arte moderna e contemporânea do Brasil. Como foi esse trabalho na gestão de vocês? 

Em nome do MAC USP, nós ficamos de fato muito sensibilizados com o prêmio. Porque é lógico que o acervo já é conhecido como um grande acervo brasileiro, mas a premiação reconhece, mais do que isso, o trabalho feito pelas equipes do museu com este acervo. Porque os acervos não falam sozinhos. Eles precisam de gente, de projetos de pesquisa, de colaborações, de pesquisadores, de cabeças pensantes para ativá-los. Então eu acho que existe aí um reconhecimento da produção acadêmica do museu na difusão do seu acervo. 

E isso se dá por ferramentas como, por exemplo, as duas grandes parcerias internacionais que fizemos. Uma com a Getty Foundation (EUA), em um projeto chamado Connecting Art Histories, que em 2021 resultou em um webinário de pesquisa com estudantes de pós-graduação, do qual saiu uma primeira revisão do acervo do MAC USP. No contexto daquele seminário convidamos três curadores – o Igor Simões, a Diane Lima e o Claudinei Roberto – para visitar o acervo do museu e reavaliá-lo, digamos assim. Eles foram puxando listas de leituras possíveis, por exemplo, dentro de um contexto de questões afro-diaspóricas, de racialidade, que a gente até então não tinha propriamente uma especialidade para ver. E, para além disso, a colaboração do Igor e do Claudinei foi longeva com o museu. 

E o outro projeto internacional importante, que são na verdade dois projetos combinados, foi o com a Terra Foundation for American Art, com quem nós já tínhamos tido uma parceria para a realização de uma exposição em 2019. Dessa vez foi uma parceria de apoio a uma disciplina de pós-graduação em Estética e História da Arte, em que questões da diáspora africana, da arte indígena e das migrações são tratadas num estudo comparativo entre Brasil e Estados Unidos – mas que se amplia para o mundo, pois estamos falando das Américas em relação ao Atlântico, à África e à Europa. E trouxemos colegas do mundo inteiro para dar aulas – só no último semestre tivemos 11 convidados internacionais. E há outro projeto com a Terra que é o do Collection-in-Residence, que é a coleção da Terra em residência no MAC USP. E a seleção nasce justamente das trocas com esses pesquisadores, dentro da coleção da Terra, que vai ficar dois anos em cartaz no museu, sendo mobilizada através de cursos de extensão, disciplinas de graduação e de pós-graduação. E que, ao mesmo tempo, nos leva a pensar em ter outras coleções residentes no museu. 

Pensando ainda no acervo, há uma nova exposição abrindo agora, Experimentações Gráficas, que é feita a partir da doação de uma nova coleção para o museu. Isso acontece com regularidade? Como tem funcionado esse aspecto das doações, aquisições, ou seja, da incorporação de novas obras ao acervo do MAC USP?

Historicamente, o MAC USP é um museu que foi feito de grandes doações, sendo os artistas os principais atores nessa história. Porque eu acho que o MAC USP tem essa reputação de ser um museu dos artistas e um museu da memória dos artistas. A mostra Experimentações Gráficas nasce da doação de um conjunto de 82 objetos, que são publicações, livros, revistas ilustradas, que foram selecionadas a partir do trabalho de uma pós-doutoranda minha, a Renata Rocco, que é uma das curadoras da mostra, que fez essa seleção dentro da coleção Ivani e Jorge Yunes. E a coleção doou essas obras para o museu no ano passado. Isso é fruto de um trabalho que não nasceu ontem, porque a Renata fazia parte de um grupo de pesquisa no qual, desde 2018, com a presença de outra pós-doutoranda, a Patrícia Freitas, nos dedicamos a entender a arte nesse campo expandido das artes aplicadas.

Nessa chave organizamos três mostras. A primeira foi Projetos para um cotidiano moderno no Brasil, 1920-1960, que era só acervo do MAC USP com alguns empréstimos pontuais para iluminá-lo. E dessa exposição nasce nossa retomada de conversa e negociação com o casal Leirner para a doação da coleção de art déco, que aconteceu em 2020 e resultou em uma importante exposição em 2022/2023. E isso para o museu foi uma coisa inédita, quer dizer, receber o mobiliário da Casa Modernista do Warchavchik, ter as poucas peças têxteis da Regina Gomide Graz que estão em acervo público no Brasil… acho que só nós temos peças fundamentais. Por exemplo, Mulher com Galgo, que é, como diz minha colega Ana Paula Simioni, uma das grandes obras do modernismo brasileiro dos anos 20. Então, isso é superimportante. E Experimentações Gráficas também vem nessa chave. 

Então eu diria que uma preocupação do museu foi de tentar, primeiro, entender outras perspectivas de colecionismo. Então, todo o debate em torno das diásporas africanas, que veio desde o projeto do Getty, em 2021, resultou também em doações importantes de artistas negros brasileiros para a coleção, como o Sidney Amaral e o Sérgio Adriano. Houve também a doação que aconteceu em 2023 de uma obra do Denilson Baniwa. E nós entendemos também que a chegada da Fernanda Pitta como professora do museu, em 2022, vai trazer outras possibilidades de doação nessa chave.

É interessante falarmos destes artistas mais contemporâneos porque, por vezes, quando se pensa em acervo de museus se imagina uma coisa de obras antigas. Então eu gostaria de te perguntar como foi esse diálogo, seja em exposições, editais ou aquisições, com os artistas mais jovens, ou enfim, que surgiram mais recentemente na cena artística. Houve também essa preocupação durante estes anos?

Eu acho que sim. Isso estava explícito no programa da Clareira; era muito claro também nos processos da mostra Lugar comum; e isso está agora no programa de exposições temporárias que o museu recebe, que são propostas externas que o MAC USP seleciona para exibir. E é também muito evidente em um edital para jovens artistas que nós temos desde 2020, e que está agora na terceira edição. Com ele selecionamos exposições, três propostas de artistas que não tiveram a oportunidade de fazer, nos últimos anos, nenhuma exposição individual em um museu de São Paulo. 

Para finalizar, queria saber como foi a transição da gestão, agora com o José Lira e a Esther Hamburger. É um projeto de continuidade, não de rompimento. Pode falar um pouco desta transição e de quais você acha que são os principais desafios que ficam para eles nesse momento?

Quando eles apresentaram o programa, eles mesmos o fizeram como uma carta de intenções respeitando o projeto acadêmico do museu. O que é muito importante para nós porque, como unidade de ensino, pesquisa e extensão da USP, nós somos um instituto como qualquer outra unidade da universidade. Então nós temos que ter uma vida, enfim, em continuidade. Nós recebemos alunos, temos programas de pós e assim por diante. E acho que a chegada do José Lira e da Esther Hamburger vem só a somar com as questões que o museu vem colocando. Na carta de intenções, que apresentaram na candidatura, falam de um colégio das artes. Eu imagino que o professor José Lira vai discorrer melhor sobre isso com você.

E na nossa leitura isso tem uma ressonância com uma intenção do museu de ser esse espaço de um debate interdisciplinar sobre várias questões. Então, por exemplo, uma das coisas que eles vão certamente nos apoiar muito é num grande projeto que nós temos em vigor agora, um projeto grande que nós ganhamos da FAPESP no ano passado, que é para a instalação de um laboratório de ciência do patrimônio. Para isso, estamos com Márcia Rizzutto, uma colega da física nuclear, que contribui conosco há mais de 15 anos em projetos de pesquisa, como professora em vinculação com o museu para montagem desse laboratório e isso nos coloca em rede com outras sete unidades da USP (como Poli FAU, FFLCH e os museus Paulista e de Arqueologia e Etnologia) para debater questões da conservação em uma perspectiva interdisciplinar. Montar esse laboratório que, quando estiver estruturado, vai poder prestar serviços a outros museus de São Paulo, e isso é uma estrutura única, não existe um outro laboratório assim no Brasil.

E a ideia do Colégio da Artes, que virá com a gestão do Lira e da Esther, é justamente de trazer para perto diferentes departamentos da USP e até projetos de fora dela, ou seja, está diretamente ligada a este foco no trabalho interdisciplinar… 

Sim, o Colégio das Artes pode realizar ainda mais uma coisa que para nós era bem importante, que era dar visibilidade a estas conexões, estas relações que o museu tem com o campo da pesquisa em várias áreas de conhecimento. Isso atravessa, por exemplo, seminários e projetos que tivemos e temos com profissionais de várias áreas, inclusive com botânicos, físicos ou matemáticos.  

Jornal do Mundo

A galeria Martins&Montero, situada na rua Jamaica 50, reuniu, entre 10 de agosto e 14 de setembro, 28 obras de Trompaz, um artista/ativista das questões sociais que dá voz a traços carregados de gestualidade. Nascido no Capão Redondo, bairro do extremo sul da capital paulista, ele cruza a cidade seguidamente a pé ou de skate. Sua obra acumula desde gestos de matrizes africanas a signos próprios das grandes metrópoles desenvolvidos, em sua maioria, com pigmento em pó e verniz acrílico sobre papel ou com guache e nanquim. Criar é um ato cotidiano e contínuo que se desdobra em grafismos aparentemente desconectados, mas unidos por uma gramática enigmática e pessoal. “Essas obras abordam um tema que venho explorando há muito tempo, o SSGE – Segregação Social Geograficamente Escancarada. A exposição, que tem a curadoria de André Pitol, leva o nome Jornal do Mundo devido à apropriação que fiz de um livro, que comprei em um sebo, e que tinha esse título”. Trompaz sentiu uma forte conexão entre o conceito da publicação e a proposta do seu trabalho, que busca abordar questões sociais”. 

Com montagem impecável, o conjunto de obras destaca duas pinturas de grandes dimensões que se desdobram em grafismos que deslizam sobre persianas, geralmente usadas em janelas. Esse recurso dialoga diretamente com a ideia do que enxergamos através da janela, remetendo-se às questões sociais. “As persianas têm um papel simbólico importante nesse contexto, representando o que se revela – ou se oculta – no dia a dia das casas”. As pinturas em papel kraft seguem a mesma linha técnica, apresentando um aspecto de negativo. “Esse negativo tem um propósito claro: através da técnica de lavagem, revelo o que estava encoberto, aquilo que se esconde debaixo do tapete”.

Trompaz se movimenta pela cidade, com alguns papeis ou obras dentro da mochila que leva nas costas.  “Essa forma de me soltar por São Paulo me acompanha desde sempre. Todas as minhas pinturas contêm diversos símbolos e elementos que falam da relação que desenvolvi com a cidade, onde vivo por 35 anos”. Ele entende a metrópole como a mais rica do Brasil e, ao mesmo tempo, a mais desigual, onde convivem bairros extremamente ricos e outros em condições de extrema pobreza. “Esse contraste é o que busco transmitir em todos meus trabalhos, mesmo que, para o espectador, o resultado seja abstrato. Minha intenção é a de lutar contra as desigualdades sociais”.

Trompaz e a Trienal de Tijuana (México)

Para o artista, participar da segunda edição da Trienal de Tijuana, que vai até fevereiro de 2025, tem sido uma experiência transformadora. “Estar lá com artistas de 14 países é algo que ainda estou vivenciando, e tem sido verdadeiramente mágico.” Esta foi a sua primeira viagem de avião e, também, a primeira viagem internacional com o propósito de levar sua obra para fora. “Me sinto feliz por conhecer não apenas a expressão artística dos mexicanos, mas também a de todos os participantes da Trienal, muitos dos quais compartilham a mesma temática de isolamento social que permeia meu trabalho.” O fato de viver no Capão Redondo, área que sofre com fronteiras sociais evidentes entre o bairro e o restante da cidade, Trompaz diz que se identificou com várias propostas expostas na Trienal. “Tijuana reforçou a relevância do tema e a universalidade dessas questões que, infelizmente, ultrapassam fronteiras geográficas”.

Leonor Amarante é a curadora – geral da Trienal de Tijuana: 2. Internacional Pictórica

Com aumento de visitação, chega ao fim a segunda edição do Programa Público do Museu Paranaense

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Entre as diversas ações implementadas pelo Museu Paranaense a partir da entrada de sua nova equipe de gestão, em 2019, o seu Programa Público é uma das iniciativas que melhor sintetizam as suas propostas: um projeto bienal, gratuito, com o objetivo de convidar a comunidade a se aproximar, refletir e se envolver com um assunto, de forma estendida e interdisciplinar. Não à toa, entre a primeira edição, realizada em 2022, e a segunda, que aconteceu entre maio e agosto, a visitação teve um aumento de quase 30%, com o público pulando de 20.088 para 27.520 pessoas.

O encerramento do Programa Público deste ano, intitulado Corpos ― Indícios, Matrizes ― Espécies, aconteceu entre os dias 23/8 e 24/8, respectivamente com uma oficina e uma apresentação do Grupo MEXA, de São Paulo. Criado em 2015, o MEXA explora e debate as distâncias e proximidades entre a rua e o museu, a vida e a arte, política e estética, por meio de improviso, teatro documental e criação coletiva, entre outros. Em Curitiba, o grupo apresentou a performance Poperópera Transatlântica, um espetáculo que combina elementos de ópera e da cultura noturna dos anos 1990 para narrar histórias inspiradas na Odisseia de Homero.

Diretora do MUPA, Gabriela Bettega ressalta que, entre os projetos de caráter continuativo da instituição, o Programa Público é o que melhor traduz “essa nossa vontade de fazer do museu um espaço de relações, onde se pode negociar as diferenças, onde se pode expor pontos de vista distintos sobre diversos assuntos, sem quaisquer amarras”, argumenta.

Para Gabriela, a diversidade do público que comparece ao Programa acaba por criar uma interconexão com temporalidades diferentes, um processo muito rico. “Você está discorrendo sobre um tema específico, refletindo sobre o passado, questionando ou indagando sobre o presente e tentando achar caminhos para um futuro possível. Nesse sentido, é um projeto muito especial”, pondera.

Para conceber cada edição do Programa Público, o MUPA reúne todos os coordenadores dos departamentos científicos da instituição para inicialmente discutir o tema do projeto e, depois, determinar como será a grade de programação, buscando um equilíbrio entre mesas de conversa, performances, apresentações teatrais e pequenas exposições. Em 2022, foram realizados entre 40 e 50 eventos; neste ano, 60.

Algumas das atividades provocaram surpresas no público que frequentou o MUPA. Um exemplo foi a participação da brasileira radicada na Alemanha Stefanie Egedy, que em julho apresentou a instalação sonora BODIES AND SUBWOOFES (B.A.S.). Segundo Gabriela, Stefanie criou uma composição que virou uma instalação com ondas sonoras de baixa frequência que a cada hora, por 10 minutos, “balançava o museu inteiro” com sons bastante graves, diz.

“Houve então uma preocupação enorme com o acervo, não se sabia ao certo como essa  vibração iria impactar até as instalações, a infraestrutura. A gente chamou alguém para fazer uma análise, e se conclui que a instalação não estava interferindo no estado de conservação”, lembra. “Então superamos este possível obstáculo e o público adorou a experiência”.

O Programa Público deixa também um importante legado para o MUPA: todos os encontros, as performances, as apresentações são registradas e são incorporados ao acervo documental, ao banco de dados do museu. Estão disponíveis nas redes sociais e no YouTube.

Gabriela salienta que foram quatro meses de muitos encontros, com pessoas provenientes de lugares diferentes do Brasil, para além das fronteiras do MUPA. “Motivados pelo tema do corpo, nesses encontros emocionantes que o Programa Público fomentou, tratamos da arte ao esporte, de saberes ancestrais à ciência”, pontua.

“A importância desse projeto reside na possibilidade de proporcionar ao visitante do Museu Paranaense uma programação múltipla em formato e dialógica nos diferentes campos do saber. É um projeto que prioriza exposições com foco em cultura imaterial e no papel do museu como espaço de relações”.

Vale ressaltar que as atividades do Programa Público são marcadas pela interdisciplinaridade e uma variação expressiva de tipos de evento. Alguns deles mobilizam a comunidade por ocorrerem no exterior do museu, a exemplo da performance ADAPTAT, que aconteceu nesta edição; e da performance de Uýra, apresentada em 2022. Ambos ocorreram na Praça João Cândido, em frente ao MUPA. Também é importante salientar que o MUPA realiza dezenas de ações educativas para crianças e adolescentes, desenvolvidas em conexão com o Programa Público.

Há também ações que aproximam detentores de saberes tradicionais com pesquisadores da universidade, questionando a própria concepção de ciência, caso da mesa Plantas, paisagens e conservação da vida promovidas pelos povos indígenas, realizada em 2022, com o arqueólogo Eduardo Góes Neves, a bióloga Ariane Oliveira e a pesquisadora indígena Sirlei Kaingang. Neste ano, um exemplo foi a mesa Culturas corporais das masculinidades, com os antropólogos Osmundo Pinho e Waldemir Rosa, o historiador Fernando Botton, e o dançarino e coreógrafo Khalifa IDD, que fez uma demonstração da dança Passinho.

Numa chave mais prática, o Programa Público convida o público a lidar com os assuntos de cada edição por meio, por exemplo, de oficinas. Em 2022, por exemplo, o MUPA abrigou oficina de taipa de pilão, em que os participantes construíram uma parede com terra, que foi incorporada ao jardim do museu. Neste ano, houve a oficina Corpo-máquina: um paralelo entre a robótica e a anatomia humana, em que os participantes foram introduzidos à robótica.

O Programa Público também abriga espetáculos de dança, que por sua vez pautam os assuntos escolhidos para cada edição, mas tocam as sensibilidades do público de outras formas, caso de Jardim Noturno, do Laboratório Siameses, apresentada na primeira edição; e de Hagoromo – o manto de plumas, com a dançarina de butoh Emilie Sugai, montada em 2024.

A PRIMEIRA EDIÇÃO 

A edição de 2022 teve como título Se enfiasse os pés na terra: relações entre humanos e plantas. Ao longo de 115 dias, o Programa se debruçou sobre práticas tradicionais, artísticas e de pesquisa acerca das plantas e humanidades. Alguns verbos ajudaram a nortear a programação: cuidar, habitar, transformar, saber, nutrir, regenerar e compartilhar. Tendo-os em mente, a equipe do MUPA buscou elencar quais atividades entre seres vegetais e humanos gostaria de ressaltar.

Daí resultaram, por exemplo, as participações do povo Huni Kuin, cujos cantos xamânicos embalaram a noite de pintura e performance do coletivo MAHKU; e a pintura de grafismos Mebegokre-Kayapó feitos por Kokodjy Kayapó, Moxare Kayapó e Bekwynhtokti Kayapó com jenipapo. A edição inaugural do Programa Público teve ainda uma mesa redonda sobre investigações científicas e artísticas sobre plantas com a antropóloga Karen Shiratori, os artistas Santídio Pereira e Alex Červený, e da curadora da Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, Marie Perennès, por meio de vídeo.

Em agosto, foi lançado o catálogo da edição inaugural do Programa Público, uma publicação de mais de 400 páginas, que compila as ações realizadas: há transcrições de falas de artistas e pesquisadores, receitas, listas de plantas, relatos e ensaios e demais textos inéditos de participantes e equipe, além de um amplo conjunto de fotografias. Além da versão física, já está disponível a versão online no site do MUPA.

OUTROS DESTAQUES DE 2024

Na segunda edição de seu Programa Público, o MUPA também recebeu a apresentação da obra audiovisual O Peixe, de Jonathas de Andrade, que participou ainda de uma mesa redonda. Em entrevista à arte!brasileiros, Andrade afirma que O Peixe fala sobretudo das relações interespécies, e de como nos como nós, seres dominantes neste planeta, fazemos uso da natureza de forma irresponsável e despudorada.

“Como se não houvesse amanhã. Esse xeque-mate vem se intensificando mais e mais nos últimos anos, em tantos e tantos sinais como as chuvas torrenciais, o aquecimento global etc. Esses desastres tem relação direta com as politicas que afrouxam a proteção às florestas e a seus povos, e liberam o desmatamento e criação de pastos sem fim”, diz.

Andrade ressalta que eventos como estes do MUPA são oportunidades fundamentais de cultivar conversas em torno da arte, promover encontros entre artistas e com o público. “Eu não vinha a Curitiba há muitos anos e acho que esse tipo de intercâmbio fora do eixo SP e Rio é crucial para que tenhamos uma rede nacional mais diversificada e descentralizada”, afirma. “Aprendo muito com trocas como essa, com os comentários e perguntas da plateia. Sem dúvida me levam a maturar meus próximos passos e projetos.”

Outro destaque do projeto nesta segunda edição foi a exposição Lenora de Barros: Fogo no Olho. No dia da inauguração, houve também uma mesa redonda com Lenora, Pollyana Quintella (online) e mediação de Bruna Grinsztejn. Em entrevista à arte!brasileiros, Lenora afirma que foi “uma surpresa maravilhosa”, que ficou “encantada” com o MUPA e o trabalho que a instituição vem realizando por meio do diálogo entre o acervo do museu e a arte contemporânea.

“Pena que foram só dias, tenho planos de voltar logo”, afirma. “Fiquei surpresa, no melhor dos sentidos, com a participação das pessoas, muito interessadas, fazendo perguntas estimulantes. Também me chamou a atenção o grande número de atividades e as publicações muito bonitas. Enfim, tudo impecável”.