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Nuno Ramos: ‘Meu percurso é de uma diversidade estilística gigantesca’

Nuno Ramos
Obra do artista visual paulistano Nuno Ramos, produzida em 2024, a ser exposta na Albuquerque Contemporânea (Belo Horizonte, MG) a partir de março
Obra do artista visual paulistano Nuno Ramos, produzida em 2024, a ser exposta na Albuquerque Contemporânea (Belo Horizonte, MG) a partir de março
Obra do artista visual paulistano Nuno Ramos, produzida em 2024, a ser exposta na Albuquerque Contemporânea (Belo Horizonte, MG) a partir de março

Nuno Ramos, o curioso, o intrépido, com uma energia latente que traduz em matéria, volta a Belo Horizonte (MG) em março, em exposição na galeria Albuquerque Contemporânea, com mais de 15 obras realizadas durante 2024. E algumas novidades.

Nuno sempre esteve em movimento. Interessou-lhe desde muito jovem a literatura.  Escreve, pinta, cria instalações e performances motivadas pelas circunstâncias adversas pelas quais o Brasil passa. Jorra sua carga pictórica em objetos, lançando mão de grandes camadas de tinta e explorando a cor, uma de suas marcas registradas.

A arte!brasileiros falou com Nuno acerca de seu trabalho, suas inquietudes, referências e de seus projetos para 2025. Leia a seguir:

ARTE!✱ – O que você estava pensando quando começou a fazer essa série de obras, em 2024?

Nuno Ramos – Ela vai completar um ano certinho: comecei em fevereiro, esvaziando o meu ateliê, que estava insuportavelmente cheio. Tinha começado esse processo um ano antes. Mandamos para duas empresas de depósito mais de 3000 itens: árvores, barco, avião, coisas assim. Era um absurdo de coisas. E então ele estava vazio, e eu comecei a encher de novo. Foi uma coisa bacana de ver, o meu ateliê, que tem 600 metros quadrados, vazio. Foi uma sensação incrível. Tinha coisas e tenho, mais do que o normal.

Meu percurso é de uma diversidade estilística gigantesca. Trabalho com pintura, com desenho, com escultura, com instalação. Eu escrevo. Fiz muita performance, teatro, alguns pequenos filmes até agora, uma coisa de dança. Uma chamava Os Desastres da Guerra, que era ali em cima das gravuras do Goya, onde  os atores liam uns textos das mães que perderam os filhos. Fizemos Marcha à Ré, em parceria com o Teatro da Vertigem, durante o governo anterior, realmente ali tentando falar de uma coisa que estava acontecendo. Agora fiz uma intervenção diferente, um concerto sinfônico inédito, criado a partir da trilha sonora do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, com a colaboração de Eduardo Climachauska. O canto de Maldoror: Terra em Transe em Transe. Laura Vinci na concepção cenográfica. Enfim, para dizer que a pintura talvez seja o leito mais constante e o único constante de tudo que eu fiz e de tudo o que eu faço. Eu comecei a fazer essas pinturas, com muita matéria, lá por volta de 1987, 1988. Os quadros pesam muito, e eu sempre que posso volto a eles.

A parte mais visual fica por conta dos desenhos. Desenhei muito, mas a pintura, ela tem um leito dela mesmo, algo que não sei definir. Claro que ela mudou muito. Por exemplo, ela começa, lá em 1980, como uma pintura de época, de pouco contraste tonal. Agora, ela está muito colorida. É isso que eu vi. É uma coisa que se faz histericamente colorida. E mudou muito. Mas de alguma forma eu estou dentro das regras pessoais básicas, que tecnicamente seria pintar no chão. Eu faço tudo no chão. E tem uma espécie de dripping (gotejamento) amalucado que vai recebendo o movimento. Eu sinto como se eu estivesse indo para o ateliê alimentar um bicho que está ali, deitado, esperando para eu trazer o alimento dele. E ele não tem dó. Obviamente não tem projeto, não tem nada parecido com isso. E eu acho que tem uma diferença com o resto do que eu faço. Acho que o horizonte do pessimismo, que atravessa muito do que eu faço, está um pouco ausente aqui. Não que seja otimismo, acho que é o contrário. Acho que existe um desespero pela alegria, pela felicidade, pela positividade, que não sinto tanto no resto de meus trabalhos. Esse contraste é forte. Há um contraste com as instalações mais sóbrias.

A pintura é uma coisa muito solta, chegando perto do exagerado, tem uma historieta da minha vida que eu sempre conto. Quando eu tinha 40 anos de idade, eu fiz uma retrospectiva. Veio me ver um curador inglês, não me lembro do nome, conversamos a tarde inteira. Na hora de ir embora, eu fui acompanha-lo até o táxi. Ele achou que as pinturas eram de outro artista. Eu nunca defini se isso é bom ou ruim: saber qual desses artistas é você, dentro, em cada momento.

ARTE!✱ – E o que você acha? Depende de seu estado de espírito?

Nuno Ramos – Todos nós temos períodos mais soturnos e períodos mais light. Mas eu faço tudo simultaneamente. Depende muito de minha agenda, do que proponho para mim, dos recursos que eu tenho, da própria pintura. Às vezes eu preciso que uma galeria ajude a pagar, porque elas são assim, caríssimas, de fazer. Não sei se é apenas um estado de espírito. Talvez seja alguma coisa mais pesada, mais trágica. Sei que a pintura reage com certo desespero apolíneo. Vamos falar assim.

Ao mesmo tempo sou muito calmo, mas o trabalho é muito, muito ansioso, muito identificado com muitas coisas o tempo todo, me pondo em situações de absurdo. Como agora, por exemplo, no concerto do Municipal. Só pra você fazer ideia, tinha um coro de 80 vozes. Era a orquestra inteira com 70 músicos. Então, você imagina, eu não sei nem ler música. Eu estou sempre em situações assim, meio limite. Rolou, e foi muito legal.

Mas na pintura eu sei quem é que procurou essa situação limite. Na pintura é como se fosse eu voltar para uma identidade, não pensada. Uma identidade sem roteiro. Não tem um script que domina.

Eu queria ser escritor antes de ser artista. Eu passei a adolescência querendo ser escritor. A pintura é sem palavra. Eu agora tenho dado título, mas a palavra não manda, enquanto que na escrita eu sinto que a palavra está o tempo todo operando.

ARTE!✱ – Frente à sua obra, lembro-me de Joseph Beuys, Anselm Kiefer…

Nuno Ramos – É, tem uma coisa de uma força que eu sinto como semelhante. No caso do Kiefer é diferente, porque ele está sempre trabalhando com uma perspectiva mais roteirizada, né? Ele tem toda uma teoria sobre aquilo , é um mundo espiritual etc., que está aí, sempre pairando. Tem uma coisa parecida. Ele foi um artista importante para mim no começo. A matéria dele tem a ver, sim, e os materiais que ele usa… uma espécie de lama. Porém mais simbolizada. Acho que se foi transformando numa espécie de teatralização do drama contemporâneo, de um ponto de vista que foi ficando cada vez mais conservador, na minha opinião, entendeu? Algo assim como se fosse um europeu culto, tomando um Petrus enquanto o mundo incendeia.

Há poucos anos, visitei o ateliê dele lá no sul da França, e achei um pouco isso. O que ele tem, que é muito impressionante: aquele chão, em perspectiva, rústico, feito de pintura e de paus queimados, e o próprio chão. O céu já não funciona tanto. Tem pontos de fuga, vai escapando.

Porém, acho que quando vi as banhas (graxas e gorduras animais que o artista utilizava nas suas obras) do Beuys, as pedras com azeite, isso tudo me pegou para sempre. Acho que é uma influência dessas que não sai, porque não é uma influência só de aparência, é uma influência poética mesmo. Incrível. Visceral. A primeira vez que eu vi as banhas foi uma coisa fortíssima que eu nunca me esqueci. Por outro lado, minhas pinturas são coloridas, tentando seduzir. Não sei a quem, tentando falar com não sei quem. São superloquazes, e eu sinto certo desespero. Essa coisa de hoje em dia. que é esse excesso de rede, de fala, de som, de ser, de sedução, de conexão.

ARTE!✱ – Em Beuys, a matéria que ele buscava ecoava um trauma. Como ecoa a sua, para você?

Nuno Ramos – Minhas pinturas não são austeras, nem recusam isso. Elas querem ecoar a si mesmas. Por outro lado, elas têm uma carga de matéria tal, que é extremamente penosa, é quase um corpo. Aquilo são toneladas de tinta que eu vou pondo, vou pondo.

Eu nunca usei de modo simbólico, muito menos biográfico, como o Beuys fazia. Eu, por exemplo, usei muita vaselina, não apenas de sabão e breu. Usei a areia. São só materiais que eu usei em quantidades assim de tonelada. Mas a vaselina foi um material que me pegou muito. Algo intermediário entre o sólido e o líquido, é uma espécie de indecisão entre dois reinados. Acho que pertenço um pouco a isso. Esse corpo acrescido dá uma espécie de ética para mim, como se eu não pudesse mentir muito.

Quer dizer, quando você tem que cuidar da própria matéria, de ela ficar de pé, não cair numa taça e escorregar, não derreter. De lidar com ela, com as características físicas dela, parece que o trabalho ganha uma verdade, só nisso, independente da imagem, né? Quer dizer, para mim, há uma distinção entre a imagem, que, aliás, é o que me incomoda em geral: haver uma imagem resultante, e a matéria que faz a imagem que eu gostaria que fosse viva. Não que eu consiga, mas que pudesse respirar, que pudesse ser feita de fungos que crescessem, que fossem coisas autônomas. Então a matéria para mim é esse espaço de alguma coisa que eu não controlo, de que eu preciso ficar amigo, pedir licença e ver se ela fala nos meus termos. Atribuir a ela sua própria verdade. Deixá-la pesar, deixá-la suar, deixá-la respirar. Isso tudo é o que me atraiu nesses materiais, todos os que usei a vida toda.

ARTE!✱ – Então, além da tinta…

Nuno Ramos – Há 30 anos tem muito tecido e muito metal. Tem latão, tem alumínio, não tem objetos. Isso é importante. Não é uma colagem no sentido de pegar uma coisa do mundo. Eu construo a tinta. O material. Porque ela é uma lava, sim, você mistura o óleo com a encáustica nela quente. Trabalho com a tinta quente, pelando, muitas vezes com luva, outras vezes ainda no limite da mão, mas é quente. E então aquilo vira um grude, um negocinho que parece um pouco uma lava mesmo, um negocinho que você joga, uma areia quente, alguma coisa assim, e então aí elas vão surgindo.

ARTE!✱ – O que teremos na exposição além das pinturas?

Nuno Ramos – Inventei uma espécie de contramovimento. Ainda não temos imagens da obra que está sendo desenvolvida. Serão três pedras, e nós vamos fazer três quadros do Malevich. Três quadros do Malevich, de pó de mármore, não de pigmento colorido. Uma réplica de pó. Então o quadro tem, sei lá, oito cores. A gente usa oito. A gente faz uns modelos de papelão em computador. A gente separa as camadas, faz as camadas de papelão grosso e aí, com o pó, a gente refaz certinho, como uma mandala, uma mandala do Malevich. Então, se o quadro tem um metro e meio por um metro e vinte, a minha réplica de pó tem o mesmo tamanho. Colocamos em toda a extensão dele um rastelo, como uma vassoura mais dura, que vai andar três centímetros por dia.

Então, ao longo da exposição vou apagar o Malevich, digamos assim. Serão três apagamentos. Os meus quadros vão estar aí e o dele vai estar sendo meio que apagado. Vai ser um movimento meio de vida, de morte, de construção e desconstrução. Para fazer esse varrido, estou desenvolvendo um mecanismo lá em Minas. Num espaço onde Allen Roscoe trabalha, que faz muitos trabalhos para mim, um cara genial, um arquiteto incrível, um cara que fez muito, muitos trabalhos com Amilcar [de Castro].

ARTE!✱ – E por que escolher um quadro do Malevich

Nuno Ramos – Estou usando Malevich porque primeiro, ele está na raiz de toda a pintura do Século 20, cubismo, construtivismo ruso, dessas raízes a dele acho que foi a que mais entrou no nosso construtivismo, muito marcado pela influência russa, os contra-relevos do Helio Oiticica parecem retirados de um quadro dele. Os próprios bichos da Ligia Clark. Uma raíz mais solta, acho que está muito próxima de nós.

Então de um lado tem meus quadros quase que vomitando essa origem com 300k de tinta estertorando essa base e aquela origem sendo desfeita, apagada virando matéria de novo.

ARTE!✱ – Projetos? Depois de Belo Horizonte?

Nuno Ramos – Em junho eu inauguro exposições no MACRS (Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul). É um espaço novo que estão abrindo em Porto Alegre, assim como em Curitiba.

Vamos fazer duas exposições, mas, curiosamente, uma delas é para refazer um projeto, o Morte das Casas, que eu fiz com a Flavia Albuquerque, em que eu enterrei as casas. Três casas, que chamei de Três Lamas. O museu quer um trabalho à luz das enchentes. Mas eu fui lá, logo depois de começarem, desci em Floripa, peguei um ônibus, não tinha aeroporto ainda em Porto Alegre, e o desastre era tamanho, numa escala e de uma violência, que não dava para fazer nada. Aí eu achei interessante refazer esse trabalho com essas casas afogadas, refeitas de materiais. Mas isso deixamos para ver e conversar mais para frente.

Práticas para dar lugar a outras histórias

Forgive Us Our Trespasses / Vergib uns unsere Schuld – Von (un)wirklichen Grenzen, (Un)Moral und anderen Überschreitungen, Haus der Kulturen der Welt (HKW) Berlin, 14.9.–8.12.2024
Por Maykson Cardoso

“Ó, abre alas, que eu quero passar”
“Laroyê” — saudei Exu ao passar por um altar dedicado ao orixá já na entrada da Haus der Kulturen der Welt, a “Casa das Culturas do Mundo”, conhecida, entre os berlinenses, pela sigla HKW — leia-se: “rá-cá-vê”. Era noite de uma sexta-feira, 13, o último dia da Berlin Art Week, evento que faz parte do calendário anual da cidade há mais de uma década. Abria-se, assim, com direito a padê para Exu, a exposição Forgive Us Our Trespasses/Vergib uns unsere Schuld, título composto pelo verso do Pai Nosso em inglês e alemão, que traduzimos como “perdoai as nossas ofensas”. Ao caminhar pela exposição, via, ainda, altares para outros orixás: Iansã, Ibeji, Iemanjá, Obaluaiê, Ogum, Oxóssi, Oxum… todos, ali, invocados por Babá Murah, brasileiro e fundador do Ilê Obá Silekê, o primeiro terreiro de candomblé de Berlim.

No auditório Miriam Makeba, o grupo de hip-hop afro-alemão BSMG cantava o refrão do hit dedicado a Jesse Owens — atleta, negro, estadunidense, que ganhou quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, em plena Alemanha nazista. “Wir haben gewonnen, Jesse Owens”, “Nós vencemos, Jesse Owens” — bradava o auditório lotado quando “Bona” — como insiders da art scene berlinense chamam Bonaventure — vestido, comme d’habitude, como um “dandy afrofuturista”, veio abrindo caminho pelo corredor central, dançando, em direção ao palco, com o punho cerrado em riste. Enquanto isso, o BSMG seguia: “Schweigen jetzt nicht mehr, wir/sind Teil der Geschichte hier”, “Jesse o, Jesse, die Geschichte neu geschrieben” — “Agora, não nos silenciamos mais/somos parte da história, aqui”, “Jesse o, Jesse, a história foi reescrita”.*

Camaronês de Yaoundé, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung é dono de um currículo nada ortodoxo: chegou à Alemanha em 1997 para estudar Tecnologia de Alimentos na Universidade Técnica de Berlim, realizou doutorado em biotecnologia pela Universidade Heinrich-Heine de Düsseldorf, e um pós-doutorado em biofísica pela Universidade de Montpellier. E, nesse “meio tempo”, fundou o SAVVY Contemporary: The Laboratory of Form-Ideas, em 2009 — um dos espaços experimentais de arte mais pulsantes de Berlim, responsável por uma virada crítica decolonial que contribuiu para redefinir os rumos da cena artística da cidade.

Em reconhecimento pelo seu trabalho à frente do SAVVY, Bonaventure recebeu a Ordem do Mérito de Berlim, a mais alta condecoração outorgada pelo senado berlinense, em 2020. E, embora isso, de algum modo, já conferisse a ele e ao próprio SAVVY certo caráter “oficializante”, nada se compara à oficialidade da posição que assumiria em 2023, quando foi nomeado diretor da Haus der Kulturen der Welt (HKW), uma das instituições mais prestigiadas do país, ligada, diretamente, aos Ministérios da Cultura e de Relações Exteriores. Em termos, digamos, “geopolíticos”, esta foi uma “promoção” tão significativa quanto desafiadora.

SAVVY — de dentro, para fora
Se o SAVVY sempre ocupou espaços em bairros ligados historicamente à classe trabalhadora e a comunidades de imigrantes em Berlim — sua primeira sede foi em Neukölln, as outras duas, em Wedding: dois distritos conhecidos, desde a República de Weimar, como Berliner Arbeiterviertel, os “bairros operários” —, a HKW está localizada no nobre Tiergarten, “abraçada” pelos seus “vizinhos de quintal”: bem aos fundos da Chancelaria Alemã, abaixo do Bundestag, o parlamento alemão, não muito distante do Palácio Bellevue, a residência presidencial. Isto é: de diretor artístico de um espaço experimental orientado por pensamentos e práticas decoloniais, Bonaventure, agora, havia se tornado um “embaixador da cultura” — bem no centro do poder.

No SAVVY, as práticas curatoriais de Bonaventure não só foram orientadas para alcançar seus vizinhos imediatos, como se deixaram orientar por essa convivência. Em seu livro Pidginization as Curatorial Method (2023), ele escreve sobre sua insistência “[em uma] prática curatorial como uma prática da hospitalidade e da convivialidade”. Na primeira sede do SAVVY na Richardstraße, em Neukölln, costumavam convidar vizinhes para trazerem seus próprios vinis, que podia ouvir enquanto cozinhavam e comiam juntes. Como “prática” de um espaço de arte, esta situação não deixava de gerar estranhamento, uma vez que frustrava a expectativa de quem chegava só para ver “arte na parede”.

Esse estranhamento era efeito da “bagunça conceitual” que orienta o método curatorial que Bonaventure nomeia “pidginization”, baseando-se no fenômeno linguístico do pidgin, uma “língua de contato” que surge da necessidade de comunicação entre falantes de duas comunidades linguísticas diferentes. Isto é, o pidgin surge como uma língua de improviso que marca a abertura de uma comunidade para a outra sem que seja necessário renunciarem a si mesmas, resultando, assim, em uma terceira comunidade que se funda na e para a diferença.

A necessidade é, portanto, o motor da invenção. Bonaventure escreve, por exemplo, que foi também “uma combinação de necessidade e escassez que levou o SAVVY a realizar suas performances nas ruas de Neukölln”. Pequeno demais para comportar artistas de performance e o público, o jeito foi levar as performances de dentro para fora, tomando as calçadas do bairro. Como lembra Bonaventure, esta necessidade deu lugar a outro tipo de relação entre o SAVVY e a vizinhança, que agora podia trazer suas cadeiras de casa e pegar uma cerveja na esquina para acompanhar aquele que se tornou o evento das tardes de sábado na rua.

Do SAVVY à HKW: de fora, para dentro
Certo é que outros lugares exigem outros approaches. Bonaventure afirma que o método curatorial da pidginization é o que levou o SAVVY a se constituir como uma “instituição por vir”. E explica: “Com isto, quero dizer: o ato de colocar coisas no lugar, o ato de ser em fluxo, de ser dinâmico/não-estático, de cultivar a variação de formas-ideias como método”.
No entanto, criar uma instituição “do zero”, como o SAVVY, não se compara a assumir a direção de uma instituição como a HKW, fundada e consolidada há décadas, e ligada à dinossáurica maquinaria do estado alemão — com suas idiossincrasias históricas, culturais e econômicas tão complexas, sem contar seus dogmas e tabus.

De sorte que, se o dinamismo, a fluidez, a variabilidade constituía o motor do SAVVY como uma instituição em permanente construção — tal é a marca de seu modus operandi decolonial —, na HKW, pelo contrário, como instituição que representa um estado colonizador, seria necessário instituir a desconstrução como princípio.

Re/nomear para ressignificar
Neste sentido, pode-se atribuir certo esforço de desconstrução a um dos primeiros atos de Bonaventure ao abrir seus trabalhos como diretor da instituição, ao re/nomear seções do prédio histórico da HKW homenageando “mulheres que contribuíram para a melhoraria de mundos”. Sim, “mundos”, no plural, foi também um modo de inscrever a instituição na perspectiva da “pluriversalidade” em detrimento da suposta “universalidade” ocidental, referindo-se a ela, agora, como Casa das Culturas de Mundos. Entre as homenageadas que deram nome a espaços do prédio, encontram-se brasileiras como a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), a ativista, historiadora e poeta Beatriz Nascimento (1942-1995), e a ativista e vereadora Marielle Franco (1979-2018).

Quilombo > “quilombismo” > “quilombar”
“Exu | tu que és o senhor dos | caminhos da libertação do teu povo | sabes daqueles que | empunharam | teus ferros em brasa | contra a injustiça e a opressão | Zumbi Luiza Mahin | Luiz Gama Cosme Isidoro João Cândido | sabes que em cada coração negro | há um quilombo pulsando” — escreve Abdias do Nascimento em seu Padê de Exu Libertador. De algum modo, o poema de Nascimento fala da mesma força de nomeação que Bonaventure reivindicou a fim de ressignificar os espaços do prédio da HKW; lá, como cá, honra-se a história daqueles que lutaram “contra a injustiça e a opressão”, daqueles que lutaram contra a ordem colonial, em nome da liberdade e da emancipação de seu povo.

O quilombo, que pulsa em cada coração negro, constitui o modelo de sociedade que Abdias do Nascimento reivindicava para os africanos e afro-americanos que ainda sofrem as consequências do projeto colonial: “os quilombos”, escreve Nascimento, “resultam [da] exigência vital dos africanos escravizados, no esforço de resgatar sua liberdade e dignidade através da fuga ao cativeiro e da organização de uma sociedade livre”. É esta “práxis afro-brasileira” — que funda uma unidade de “afirmação humana, étnica e cultural”, integrando “uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história” —, que ele denominava “quilombismo”.

Performance de Steven Cohen, em Paris, 2013.

O Quilombismo é também o título que Bonaventure escolheu para a primeira grande exposição como diretor da HKW, em meados de 2023. Na ocasião, celebrava-se a reabertura sob sua direção e após os conturbados anos da pandemia de covid-19. Em seu statement curatorial, ele apresentava o conceito de Nascimento e o significado de “quilombo” para um público que desconhecia o termo. Central, em seu texto, era a ideia de uma democracia igualitária, tal como a que se viu em Palmares sob Zumbi, o Rei dos Quilombos, “que concebeu um espírito de radical emancipação cultural”. A exposição O Quilombismo se dava, em suas palavras, como convite “para quilombar — como um verbo”.
O Quilombismo, como primeira grande exposição, assim como o primeiro ato de renomear para ressignificar, “refundava” a HKW a partir do ponto de vista e das práticas decoloniais que já tinham lugar no SAVVY. A exposição demarcava a instituição como espaço de encontro entre mundos, como espaço onde a confusão das línguas não é só esperada, mas praticada como método para criação de outras formas de viver juntos, e na diferença.

Longe dos vizinhos dos bairros proletários e cheios de imigrantes — como já disse: bem no centro do poder estatal alemão —, Bonaventure colocava em marcha um lento e necessário projeto de desconstrução.

Não, a HKW não se tornou, nem se tornará, um “quilombo”, mas é agora um lugar para uma série de desconstruções simbólicas que abrem caminhos para ensaiar outras “formas-ideias”, tomando os quilombos como seu paradigma [est]ético, o “quilombismo” como episteme, o “quilombar” como método. Mais do que um fim em si, a arte é, assim, tomada como meio para integrar, criar e celebrar comunidades e subjetividades dissidentes, periféricas, contra-hegemônicas; isto é, um meio de desestabilizar, de dentro, a ordem ocidental/colonial que sempre se utilizou da violência para manter essas comunidades e subjetividades de fora, a fim de garantir a manutenção de sua supremacia no mundo — sim, aqui, o “mundo”, no singular!

Abdias do Nascimento se fazia presente não só nos termos conceituais sobre os quais se assentava a exposição O Quilombismo; sua obra pictórica — que se alimentou de, e hoje alimenta uma tradição visual afro-brasileira —, podia ser contemplada em diferentes espaços expositivos. Difícil saber ao certo quais fatores determinaram a paleta de cores da expografia, mas, de algum modo, estas se relacionavam com a própria paleta de cores de sua pintura. Entre os quadros expostos, encontrava-se Quilombismo (Exu e Ogum) — uma tela de 1974 que sobrepõe os “pontos cruzados” (símbolos) de Exu e Ogum: Exu, “senhor dos caminhos”, do movimento e da comunicação; Ogum, orixá da guerra, do trabalho, da transformação.

Bienal de São Paulo
Bonaventure foi apontado como curador geral da 36ª Bienal de São Paulo em abril de 2024. Sua atuação como diretor do SAVVY e da HKW dão mostras de seu interesse pela produção cultural do Brasil. Em outubro, divulgou-se o título: Nem todo viandante anda estradas: da humanidade como prática. A primeira parte do título é um verso da escritora mineira Conceição Evaristo — referência incontornável da literatura brasileira contemporânea; a segunda, “da humanidade como prática”, soa, a esta altura, um tanto “antropocêntrica”, justamente nesses tempos de falência decretada da nossa espécie.
Nos últimos dias, lembrava, porém, da justificativa de Israel para o massacre que tem promovido em Gaza — classificado, recentemente, como “genocídio” pela Anistia Internacional. Há cerca de um ano, vimos, na ONU, o enviado de Israel se referir a palestinos como “animais inumanos”… Uma estratégia de “guerra discursiva” que, como a história de tantos genocídios nos mostra, tem como objetivo desumanizar povos inteiros para justificar seu extermínio. A insistência nessa “humanidade”, portanto, talvez queira responder à exigência de fazer valer, na prática!, os Direitos Humanos que, no papel, se pretendem universais.

A ênfase na poesia, por outro lado, é uma estratégia que Bonaventure utiliza para evitar confrontos diretos. Em uma entrevista concedida a Lisette Lagnado para a Revista ZUM sobre sua atuação como curador na 12ª edição dos Encontros de Bamako, no Mali, Lisette lhe pergunta sobre sua estratégia para contornar a censura e a homofobia naquele contexto. Ao que ele responde: “Mali é um país islâmico e há certas coisas que não podemos exibir”. […] “Os tempos da provocação já foram. Não precisamos de frontalidade nem de cenas explícitas. Precisamos de poesia! […] Você pode decidir se quer mostrar o caráter queer de modo superficial, ter a exposição fechada, e não realizar nada”.

Essas palavras ressoam aquelas que disse ao divulgar a proposta curatorial da 36ª Bienal de São Paulo: “Esta Bienal nos oferece um convite para colocar a alegria, a beleza e suas poéticas no centro das forças gravitacionais que mantêm nossos mundos em seus eixos… pois a alegria e a beleza são políticas”. Embora sua concepção de poesia, aí, seja, por muitas razões, questionável, talvez esta tenha a ver com a estratégia adotada por artistas brasileiros que se utilizaram da metáfora e outros recursos poéticos para contornar a censura nos anos da ditadura militar. Resta-nos, por ora, esperar para ver de que modo a poesia será colocada em “prática” por Bonaventure, nesta que é a bienal mais importante do sul global, bem longe dos “abalos sísmicos” que questões geopolíticas têm provocado nas “plagas teutônicas” e no norte global nos últimos anos. ✱

Benítez faz poesia na extensão do Beaubourg

Estudos preliminares da sede do Pompidou em Foz do Iguaçu. Fotos: Divulgação/Escritório Solano Benítez

Nada é mais ancestral do que o barro, matéria-prima que tinge de vermelho o solo paranaense e que será o alicerce de um marco cultural inédito: a extensão do Centro Georges Pompidou (Beaubourg). Esse museu brasileiro será erguido em Foz do Iguaçu, no coração da Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, com inauguração prevista para 2026. A iniciativa é da Secretaria de Cultura do Estado do Paraná, tendo à frente o governador Carlos Massa Ratinho Junior e a secretária da cultura Luciana Casagrande Pereira.

O projeto, assinado pelo renomado arquiteto paraguaio Solano Benítez, detentor de prêmios internacionais como o Leão de Ouro, da Bienal de Arquitetura de Veneza em 2016, rompe paradigmas ao valorizar o uso do barro, um material simples e primal, pouco associado a museus de prestígio. Em um cenário onde o concreto, o vidro e outros materiais sofisticados e caros predominam na arquitetura de grandes instituições culturais, a escolha do barro não apenas resgata a conexão com a terra e a identidade local, mas também propõe uma reflexão sobre sustentabilidade e acessibilidade na construção. Em entrevista à ARTE!Brasileiros, Benítez compartilha os conceitos que fundamentam este empreendimento desafiador, mostrando como a tradição pode se aliar à inovação para criar algo verdadeiramente único.

Inicio minha conversa com o arquiteto indagando como está o andamento do projeto. “Eu tenho uma fachada que ainda está em criação, portanto eu gostaria de falar sobre o contexto em que esse museu irá surgir de uma forma inédita.” Depois de um tempo de construções sofisticadas de museus de arte em todo o mundo, cada um mais arrojado do que o outro, parece que se está, agora, em momento de revisão. Benítez comenta que este empreendimento representa mais do que um simples edifício. Ele explora todas as possibilidades que sempre estiveram à nossa disposição para construir uma sociedade melhor. “Diferentemente de projetos que priorizam apenas rapidez e técnica, aqui há uma preocupação em revisar caminhos, questionar a direção que a arquitetura está tomando e, sobretudo, refletir sobre o papel do ser humano dentro dessas criações”, diz ele.

Arquiteto Solano Benítez trabalha com equipe na implantação do Museu de Arte em Foz de Iguaçú.
Fotos: Kraw Penas/SEEC

Benítez fala que o legado deste projeto transcende o desenho arquitetônico. “Ele abarca os materiais, os elementos e as histórias que compõem o museu, propondo uma experiência rica em significado.” Na verdade, ele está fazendo um convite para repensar o legado que será deixado para o futuro, tanto como profissionais quanto como sociedade. O arquiteto discorre sobre o privilégio dessa matéria-prima que tanto tem a nos dizer. “É fascinante perceber como o tijolo, talvez o material mais universal do mundo, tenha atravessado o tempo e todas as geografias. Pense no primeiro tijolo registrado, criado no Oriente Médio pelos babilônicos, quando começaram a imaginar os terraços-jardins.” Desde então, o tijolo percorreu o mundo inteiro.

Benítez lembra a resiliência e as adversidades vividas pelo material. “Mesmo em condições extremas, como no Polo Norte, o ser humano encontrou uma forma de adaptar esse conceito. Lá, o tijolo foi reinventado com água congelada, transformado em blocos de gelo para construir iglus e proteger-se das adversidades climáticas.” Essa capacidade de adaptação do material demonstra sua relevância histórica e cultural, conectando diferentes povos e períodos. Benítez lembra que, desde a construção do Panteão até os dias de hoje, a dimensão do tijolo permanece inalterada. “Ele segue um padrão universal, pensado para caber na palma da mão, mantendo sua praticidade e funcionalidade ao longo dos séculos.”
Benítez é um estudioso da história. “Uma coisa interessante é que a vida humana inicia na África sua grande aventura. É a primeira onda, a primeira volta que dá, eles vão pela África, sobem para o Norte, se dividem para o Oriente Médio, vão à Índia”, comenta. “E na Índia acontece uma coisa maravilhosa, tudo se mescla. E parte deles retorna e vai para a Europa, parte deles vai para a China.”

Depois, lembra ele, finalmente cruzam por Bering e começam a descer por toda a América. Sempre usando as bordas para ter relações de onde eles estão. Aquela relação com o mar, etc. “Então, finalmente, todo mundo cruza por aquele ponto na Colômbia, entre Colômbia e Panamá. E parte vai para o Atlântico, parte continua para o Pacífico. A parte que vai para o Pacífico vai até o final, o Chile. Aqueles que vão para o Atlântico chegam um pouquinho depois da Amazônia, continuam a viagem e alguns cruzam em diagonal e chegam até o meio do Continente.” Então, Benítez conclui que o meio do Continente e toda essa viagem foi feita compreendendo e buscando quais eram os recursos disponíveis, para transformá-los e melhorar a vida das pessoas. “Agora, essa viagem acaba em nós, os mais novos do mundo, aqueles que chegam por último naquela viagem maravilhosa, porque todo mundo fica na borda e alguém ingressa e descobre, na Tríplice Fronteira, o último lugar experiencial.”

O barro utilizado no museu será extraído da terra vermelha que caracteriza a região que une Brasil, Argentina e Paraguai. É um material intimamente ligado à identidade local. Sua escolha é emblemática, pois essa técnica milenar, que remonta a mais de 3.000 anos, carrega consigo um legado de sabedoria e tradição. “Embora a técnica de construção com tijolos seja amplamente conhecida e dominada, o grande desafio está em aplicá-la de maneira inovadora, gerando novos significados e consequências.” A terra da região foi considerada pelos jesuítas como uma das mais produtivas do mundo, graças à qualidade única. A riqueza natural sustenta a exuberante vegetação que cerca a Tríplice Fronteira, com a imponente reserva florestal de Iguaçu no Brasil, as Missões na Argentina, e os Saltos del Monday, no Paraguai. “Este conjunto de biomas reflete a vitalidade da Mata Atlântica, que se estende até o interior do continente, sendo capaz de enfrentar e superar os mais diversos desafios naturais.”

Benítez destaca que estamos presenciando uma crescente conscientização sobre a importância de se preservar o ecossistema. “Não se trata apenas de explorar os recursos do território para melhorar nossas vidas, mas reconstruir e devolver à Terra os elementos essenciais como fonte de vida para todo o planeta.” Ele propõe, ainda, abandonarmos a visão do território como mero repositório de recursos a serem extraídos. “Nós, seres humanos, somos também um recurso, uma parte indissociável da natureza”, conclui.
O nome de Benítez circula há anos entre os arquitetos do Brasil, especialmente devido à sua amizade com Paulo Mendes da Rocha, que o convidou para proferir uma palestra na FAU/USP em 2012. Hoje, ele expressa grande honra pelo convite dos brasileiros para assumir o projeto da extensão do Pompidou. “Foi um gesto de generosidade incrível, um convite ousado que será comentado por gerações. Isso demonstra, de maneira admirável, que o Brasil busca a união de nosso continente, dentro de uma mesma cultura”, afirma Benítez.

Durante o tempo em que trabalhou com Paulo Mendes da Rocha, Benítez costumava falar em guarani e pedia que Paulo o traduzisse. “E ele traduzia, inventando tudo. Era muito engraçado ver como conseguíamos nos comunicar”, conta Benítez, rindo da situação. Ele se diz contente em fazer parte da comunidade de arquitetos brasileiros. “Imagine estar na companhia de Lina, Reidy, Paulo e Oscar. Meu Deus! Eu ainda não consigo acreditar que tive a oportunidade de conversar com o Paulo sobre a necessidade de reconstruir e manter a Escola Experimental Paraguai, projetada por Eduardo Reidy, que foi uma prévia do que ele faria no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro.”

A conversa se alonga e pergunto quando estará pronta a próxima fase do projeto. “Neste momento, a situação é a seguinte: a primeira parte foi entregue, e tenho até junho para concluir o processo. Estamos atualmente nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril e maio. Ou seja, teremos mais de cinco ou seis meses de trabalho”, conclui Benítez. Considerando que o projeto foi contratado com o critério de inextinguibilidade, ele não pode ser descontinuado, o que impede a manutenção de uma parceria associada. Benítez assegura que tudo será desenvolvido com a mais alta qualidade técnica, em colaboração com o engenheiro Rui Furtado, professor da USP. “Pretendo apresentar um anteprojeto que possa ser utilizado em uma concorrência pública, para que a construção tenha início em 2025 e seja inaugurada antes do final de 2026.”

A área total do complexo na Foz do Iguaçu será de 25 mil metros quadrados, dos quais 10 mil metros serão destinados ao museu, com outros 5 mil reservados para logística, estacionamento e área de carga. “A proposta é que o museu funcione, inclusive, como uma espécie de sala de espera para os visitantes do aeroporto. A ideia é que os turistas, ao visitarem as Cataratas pela manhã ou à tarde, sigam para Itaipu e, ao retornar, encontrem um novo destino na região, prolongando sua estadia por mais um dia.” Benítez ressalta que o Museu na Foz tem como objetivo se tornar um verdadeiro centro cultural, não apenas um espaço de apreciação artística, mas também um catalisador de diversas formas culturais. O museu buscará enriquecer o conhecimento sobre a arte e, simultaneamente, promover a diversidade cultural, incluindo aspectos como gastronomia, vestimenta e outras manifestações culturais.

Quanto à fachada vazada, que cria a impressão de que o vento pode adentrar o museu, Benítez observa: “Devemos aprender a respeitar e entender nossa proximidade com a natureza, que não é idílica como os jardins de Luxemburgo imaginados para Maria Antonieta. Na Foz, a realidade é bem distinta, com a possibilidade de encontrarmos cobras, aranhas e diversos outros elementos naturais com os quais precisamos aprender a conviver, desenvolvendo estratégias para isso.”

Benítez também ressalta que há grande preocupação com o projeto paisagístico. “Até o momento, minha abordagem tem sido seguir o exemplo de Deus: não interferir, permitir que a natureza encontre seu próprio caminho.” Este conceito se alinha com a visão do urbanista e paisagista Roberto Burle Marx, que defendia a integração harmoniosa entre o ambiente construído e a natureza.

Ao fim de nossa conversa, Benítez prometeu me enviar uma palestra que ele proferiu em Boston, nos Estados Unidos. “Quem me apresentou naquele dia foi Hashim Sarkis, membro do júri do Prêmio Pritzker. Vou te enviar o texto para que você entenda como o mundo começa a odiar o que eu faço”, concluiu Benítez, com seu característico humor. ✱

Kentridge expõe processo criativo em obra-prima

episódio 1 da série documental Autorretrato como uma cafeteira (Self-Portrait as a Coffee Pot), com William Kentridge, em cartaz na plataforma MUBI Foto: Graded

Há décadas, o artista sul-africano Willian Kentridge retrata em suas produções seu processo criativo e seu trabalho no ateliê, tanto que foi o tema de sua mostra Fortuna, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2013. Mas ele chega agora a um formato quase épico com os noves episódios disponíveis no MUBI de Autorretrato como uma cafeteira (Self-Portrait as a Coffee Pot).

Lançados paralelamente à abertura da 60ª Bienal de Veneza, em abril passado, em um pequeno espaço que mimetizou seu estúdio e teve curadoria de Carolyn Christov-Bakargiev, os nove episódios estão disponíveis no MUBI desde outubro. São simplesmente maravilhosos, e olha que sempre evito adjetivos em meus textos, mas é incontornável.
“Estas obras são um hino à liberdade artística, revelando a falta de liberdade ameaçadora típica dos nossos espaços fechados na era digital. São exercícios para expandir e melhorar a inteligência humana na nossa era, em que a Inteligência Artifical (IA) e o uso crescente das redes sociais acabam por atrofiar as nossas capacidades cognitivas e emocionais”, escreveu Carolyn por conta da exposição em Veneza.

De fato, existe um processo um tanto analógico em seu processo criativo, afinal, no estúdio ele desenha, faz colagens, e os filmes são como animações em stop motion. Nada disso é mediado pelas telas do computador, e muito está relacionado ao princípio do cinema, com técnicas um tanto simples, mas bastante eficazes. Muitas vezes é mesmo mágico, como eram os filmes de George Meliès (1861-1938).

Diálogo interior
Entre estas técnicas está a possibilidade de uma mesma pessoa aparecer duas vezes no quadro, e Kentridge explora isso de maneira impressionante ao longo da série.
Esse princípio ocorre em parte porque o processo de produção teve início em 2020, durante os momentos de lockdown da pandemia, e o artista se retratava isolado em seu ateliê, conversando assim consigo mesmo, divagando e delirando sobre várias questões existenciais, como muitos de nós ficamos naquele período.

Pois Kentridge fez desse confinamento um das obras que melhor retrata o momento – há muitas referências, ao longo dos episódios, sobre a quantidade de contaminados na África do Sul, de mortes, de vacinados – sem, contudo, levar-se pela depressão que a Covid-19 provocava em todos os lugares.

Autorretrato é mesmo divertido, especialmente por conta dos embates entre o dois personagens assumidos por Kentridge, um mais ranzinza, outro otimista. Às vezes um terceiro surge para pacificar a situação. Mas não se trata de diletantismo, boa parte das questões giram em torno do contexto do artista, filho de um advogado militante dos direitos humanos engajado na luta contra o regime do apartheid.

Nesse contexto, o debate sobre colonialismo é um tema sempre presente, e a história de Joanesburgo é revista especialmente no episódio três, quando Kentridge conta como o museu de arte da cidade foi construído a partir de doações das famílias que exploravam o país, e, em uma animação, destrói o espaço que surgiu em um gesto imperialista, como se associando ao movimento que prega a destruição dos monumentos de figuras colonialistas.
Para o próprio Kentridge, em um sintético depoimento sobre a série, disponível no YouTube, a exposição de seu duplo é uma maneira de falar sobre a confusão que existe dentro de cada um, sobre a permanente existência de dúvidas que nos movem. Dessa forma, ele evita posicionamentos categóricos, em geral tão arrogantes, para expor a dúvida como processo, como potência.

Cafeteira
O título da série também é sugestivo no sentido de banalizar a própria noção de autorretrato, um dos gêneros mais recorrentes na história da arte. Ao se comparar a uma cafeteira, Kentridge se iguala a um objeto cotidiano e banal, ao mesmo tempo em que aponta como o processo no estúdio é que pode defini-lo.

Na entrevista sobre a série, ele comenta: “Pode-se dizer que os trabalhos que você desenha ao longo de sua vida tornam-se outra forma de se descrever, e neste caso, não interessa muito o que você está desenhando, tanto faz se é uma árvore, um rosto, uma casa ou uma cafeteira, que no fim o que se revela é quem você é. Então, Autorretrato como uma Cafeteira poderia ser Autorretrato como um Rinoceronte, que dá no mesmo.” Coincidentemente, mas nem tanto, cafeteiras são retratadas de forma constante ao longo da série, assim como também são os rinocerontes.

É fato, contudo, que Kentridge é um ótimo ator, o que ele revela ter sido um de seus objetivos no início de sua carreira, há 40 anos, quando ele chegou a ir estudar dramaturgia em Paris, mas acabou desistindo da profissão e se dedicando às artes visuais. No entanto, seu trabalho é de fato performático, e muito da série é sobre o embate do corpo do artista em seu ateliê, sobre o gestual para desenhar, sobre maneiras de interpretar.

Conforme a série avança, e o confinamento reflui, mais pessoas participam dos episódios. Se a música sempre teve papel importante em sua obra, em Autorretrato ela faz parte de sua construção, assim como tema em alguns momentos. No episódio quatro, por exemplo, ele apresenta uma criação de 2019, para o Teatro de Ópera de Roma, chamada Waiting for the Sibyl, e aqui alguns artistas da montagem também aparecem em seu estúdio cantando. A ópera tinha várias projeções suas no palco, entre elas uma espécie de flip-book – novamente aqui um ação analógica – muito semelhante ao que ele fez com o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, quando esteve no Brasil.

Boa parte dos desenhos feitos pelo artista em seu estúdio são com carvão, o que também revela outra faceta sobre suas questões em relação à própria história da arte. Enquanto as pinturas a óleo possuem uma história recente e quase concomitante ao imperialismo europeu (são cerca de 500 anos), o carvão, ou seja, a madeira queimada, muito mais simples de produzir, tem uma história de cerca de 40 mil anos, portanto muito mais ampla, e não conectada diretamente ao colonialismo.

Detalhes assim atestam como a política para Kentridge surge não apenas no conteúdo, mas especialmente na forma. A técnica brechtiana de seus trabalhos, ou seja, de deixar claro que ele está produzindo linguagem, e, portanto, não precisa enganar ou iludir o espectador, revela outro lado desta faceta.

Contudo, o resultado é sempre fascinante. Autorretrato como uma Cafeteira é dessas obras-primas que apontam como é possível falar de tempos difíceis, atravessando até mesmo uma pandemia, de forma altamente poética. Eu diria ainda que sua obra é uma arte potencial, já que faz uma “rejeição do aparato conceitual do imperialismo como um todo”, na definição de Ariela Aïsha Azoulay. Como os filmes no MUBI não costumam estar disponíveis muito tempo, corra para assistir porque são imperdíveis. ✱

‘O estilo é a alegria do mercado, mas a morte do artista’

Cildo Meireles
Trabalho da série Inserções em circuitos ideológicos, Projeto Coca-Cola (1970).

O arremate por US$ 6,2 milhões, num leilão da Sotheby’s, de Comedian (2019) – a banana afixada à parede com uma fita adesiva concebida pelo italiano Maurizio Cattelan –, não causou estranheza ao artista multimídia Cildo Meireles (1948). Ainda que o caráter provocador seja denominador comum da arte conceitual de Cattelan e Meireles, criador de obras como as garrafas de Coca-Cola com frase subversivas da série Inserções em circuitos ideológicos (1970), há uma diferença crucial entre os dois gestos artísticos.

Para Cildo, “o escândalo maior” do episódio não parece ter a ver “com a fita, uma silver tape, que é um produto industrial, nem uma banana, que é um fruto da natureza, mas o valor, o dinheiro envolvido”, diz. O artista cita uma entrevista que leu há muito tempo, ainda na adolescência, com o estilista Pierre Cardin.

“A certa altura, o jornalista perguntava para ele, ‘vem cá, o senhor não acha absurdo vender um vestido a 20 mil dólares?’ Ele respondeu ‘ não, eu acho absurdo alguém comprar por 20 mil dólares um vestido’”, relembra. “O Catellan sempre foi um artista provocador, com esse aspecto da arte conceitual. Acho essa cadeia de fatos interessante para a história da arte conceitual em geral, porque vem enfatizar seu caráter polêmico e libertário dela. O caráter extremamente democrático, que te permite fazer não importa o quê. É um exercício altamente positivo para a história da arte”.

Cildo ressalta que a obra de Cattelan, no entanto, tampouco se trata de algo completamente inédito. “Já havia acontecido na década de 1910, com os ready-made em geral, mas sobretudo com Marcel Duchamp [1887-1968], com a A fonte [1917], que não passava de um urinol”, afirma. Em relação às suas garrafas de Coca-Cola, ele prossegue, há a diferença óbvia da mercantilização da obra de arte conceitual.

“Desde o início, eu decidi que nunca lucraria financeiramente com esse trabalho. Nunca vendi uma Inserção. Já dei para alguns amigos, e, quando algum museu me pede, às vezes eu faço uma doação, mas nunca coloquei à venda. Nem as notas”, salienta. “De vez em quando, aparece no mercado uma ou outra, mas eu não tenho nada a ver com isso. Foram feitas, vamos chamar educadamente, por uns pilantras, que tentaram industrializar a produção disso, no começo dos anos 2000”.

Após um hiato de cinco anos, São Paulo recebeu, entre outubro e novembro, duas exposições simultâneas de Cildo Meireles. Uma e algumas cadeiras/Camuflagens, montada na Galeria Luisa Strina, apresentou algumas obras inéditas, o que acontecera pela última vez em 2019, na panorâmica Entrevendo, levada ao Sesc Pompeia. A mostra destacou trabalhos envolvendo questões espaciais, elementos caros à sua prática artística. Caso das épuras – na geometria, representações de figuras tridimensionais em um plano –, com que o artista retratou cadeiras.

Simultaneamente, a Galatea apresentou a mostra Cildo Meireles: desenhos, 1964-1977, que destacou uma prática do artista considerada menos conhecida. No texto crítico feito para ambas exposições, o curador Diego Matos ressaltava que a seleção de desenhos tornava “visível e acessível a prática mais onipresente em sua trajetória de mais de 60 anos. Prática, aliás, indissociável de sua produção tridimensional.” O conjunto trazia experimentações abstratas, entre campos de cor e formas orgânicas, assim como desenhos figurativos, com cenas domésticas, mobiliários, críticas ao regime militar e exercícios que lidam com espacialidade, escala e arquitetura.

Para Luisa Strina, Cildo Meireles é “o artista brasileiro vivo mais importante”. Ela ressalta que, quando sua galeria começou a representá-lo, em 1981, o carioca era pouco conhecido no Brasil, mas já famoso no circuito internacional. Em 1970, o multiartista havia participado da coletiva Information, no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, ao lado de outros grandes nomes da arte conceitual como ele, a exemplo de John Baldessari, Joseph Kosuth, Helio Oiticica e Daniel Buren, entre outros.

No MoMA, Cildo havia apresentado justamente a série Inserções em circuitos ideológicos, com inscrições de cunho político em cédulas de cruzeiro. No ano anterior, o artista tinha participado da coletiva Salão da Bússola, uma panorâmica da produção de arte conceitual brasileira, montada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A mostra lhe rendeu como prêmio uma viagem para Nova York, onde morou até 1973. À época, conta Cildo, ele estava desiludido com as artes plásticas, que considerava “um jogo de cartas marcadas”. Incomodova-lhe também, ele diz, uma excessiva “verbalização” da cena.

“Para qualquer trabalho ou exposição, sobretudo de arte conceitual, você passava muito tempo lendo texto, texto de qualidade duvidosa, às vezes, da própria crítica, o que deriva, por exemplo, de uma frustração da poesia, da literatura”, pondera. “Eu fui tomando um ranço dessa verborragia. Assim como eu sempre tive uma espécie de ojeriza da chamada arte panfletária”.

Vale lembrar que a política sempre atravessou a produção de Cildo Meireles. Cinco anos depois de exibir suas Inserções no MoMA, ele estamparia numa nota de Cr$1 a pergunta Quem matou Herzog?, em referência ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog pelo regime militar no Brasil. Em 2018, Meireles carimbou o rosto da vereadora Marielle Franco, também vítima de crime político, em notas de real. E uma de suas primeiras instalações, Desvio para o vermelho (1967-1984), exibido em caráter permanente desde 2006 no Instituto Inhotim, é frequentemente associada à violência do período militar. Mas o artista argumenta:

“Você pode até tratar de temas políticos. Mas, para mim, é interessante quando tem uma questão de linguagem, uma questão estrutural, uma questão formal envolvida, e que não fique só na superficialidade do discurso imediato”, reflete. “O importante é não se limitar a um único aspecto que normalmente é externo, epidérmico quase. Quando, na verdade, você está sempre esperando que haja com o público um diálogo, uma comunicação mais profunda do que simplesmente esse contato, vamos dizer, de pele”.
Cildo destaca que, na série Inserções, ele se posicionava sempre como “o indivíduo se dirigindo a uma macroestrutura: industrial, no caso da Coca-Cola, ou institucional, no caso do dinheiro”. Em seguida, ele explica, viriam “peças em grande escala e instalações, coisas fisicamente muito grandes’, como Desvio para o vermelho, Eureka (1975), Através (1983-1989) e Fontes (1992-2008), entre outras. São trabalhos em que o artista provoca e até desafia os sentidos dos espectadores, por meio de estímulos sonoros, táteis etc.

A mudança de rumo em sua prática também era consequência de seu desencanto, “não apenas com a arte conceitual, mas as artes visuais como um todo”. Aos 20 e poucos anos, ele conta que poderia ter escolhido um caminho mais imediato para “fazer dinheiro”.
“Mas seu sempre me propus, é claro que você não consegue o tempo todo, fazer de cada trabalho uma experiência nova. O artista morre quando vira uma linha de produção de si mesmo, o que antigamente era chamado de coerência ou domínio”, pondera. “Mas eu sempre achei que o estilo é a alegria do mercado, mas a morte do artista”. ✱

Contra a BANANAlização

Vivemos anos de extrema banalização de valores, na economia como na cultura e na sociedade. Ao não ter conseguido uma mínima estabilidade na democracia para amplas camadas das populações, no lugar de encontrarmos soluções de equilíbrio entre as classes sociais, o acirramento é cada vez maior, criando um modelo próximo das décadas anteriores à Segunda Guerra Mundial. A extrema direita renasceu e se criou um campo social, uma espécie de vale tudo: não aprendemos nada, a impunidade avança, um policial joga uma pessoa de uma ponte, outro dá uma joelhada numa idosa. Psicopatas são eleitos, e seis meses depois ninguém entende como isso foi possível.

O mercado (chamam de farialimers, mas estão também em outras avenidas) dita as regras aos governos de turno, cria ameaças e um clima de terrorismo, manipulando números através do capital financeiro que conta com uma mídia que os apoia, mesmo que representam uma parcela ínfima da população, sobretudo no caso do Brasil.

À educação falta dinheiro. Aos museus falta dinheiro. Os governos deixaram de cumprir com suas obrigações, e os espaços públicos culturais, apesar da Lei Rouanet, dependem da roda da fortuna. Suas lideranças são profissionais do mercado, salvo raras exceções, com o intuito de poder captar dinheiro.

E isto está fora de controle. Estatutos são mudados de acordo com as necessidades de captação. Artistas são expostos em feiras e por galerias sem saber que estão sendo representados, como foi documentado em extenso artigo da revista Piauí, O Homenageado Oculto, do jornalista Henrique Skujis. No mercado secundário, obras de importantes artistas, que vieram à tona nos últimos dez anos, agora são disputadas a tapas entre galeristas. Não há regras, nem de ética nem de convivência.

Até o mundo capitalista teve que criar normas para sobreviver. O CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica – criado em 1965, primeiro como órgão do Ministério de Justiça, e hoje uma autarquia federal, atua para garantir a livre concorrência. Investigar e decidir, atuar em casos de fusão ou aquisição de empresas, vigiar casos de abuso econômico.

Por que não temos um CADE no mundo da cultura? Um CADE no mercado de arte. E não só, um órgão que represente todos os interesses de diferentes áreas envolvidas para defender, como, por exemplo, leis específicas para as artes visuais que ficarão de fora de uma tributação mais justa. (Sobre isso, importante ler As artes visuais vão ao front, por Jotabé Medeiros).

Dentro deste caos, há vários espaços nacionais que vêm se mostrando exemplos de ponta. No Ceará, uma combinação de público e privado (Governo estadual + a OS Instituto Mirante de Cultura e Arte) garante investimentos de primeira qualidade para todos, descentralizando os esforços ao largo de todo o estado. Com excelentes montagens de exposições, com suporte de equipamentos tecnológicos de última geração para restauro e preservação de obras, reformas de prédios tombados etc. Nesta edição, uma longa entrevista do Marcos Grinspum Ferraz com o fotógrafo e gestor Tiago Santana, nascido no Carirí, diretor do Instituto Mirante, mostra as dificuldades e o caminho das pedras.
Outro grande circuito cultural fora-do-eixo que tem se sobressaído foi o Paraná, com a aguerrida Secretária de Cultura Luciana Casagrande à frente, que sustenta uma política de investimentos públicos junto a patrocínios privados que deram enormes resultados, apesar dos cortes do bolsonarismo e da pandemia. Leia também nesta edição a entrevista de Leonor Amarante sobre a revitalização da sede do MAC-PR.

Trata-se de vontade política e convicção de que a educação e a cultura podem nos ajudar a sobreviver à barbárie. Sem lugar para a dúvida, parte desta histeria e descontrole acaba respingando na própria produção dos artistas e na confusão de colecionadores, pouquíssimo conhecedores ou desavisados.

Em 2019, o artista italiano Maurizio Cattelan, conhecido por sua obra contemporânea provocativa, vendeu na feira de Art Basel Miami Beach, a obra Comedian, uma banana grudada com silvertape na parede, por US$ 120 mil. Esse valor já foi considerado exorbitante naquele momento, mas, para surpresa de todos, a banana ressurgiu num leilão da Sothesby e foi arrematada por US$ 6,2 milhões, em criptomoedas, pelo seu dono. Obviamente, nem um centavo foi para o artista. A turba aplaudiu, produziu mil imagens, milhares de likes.

Isto não é valorização de uma obra, é pura especulação. A obra deixou de ser uma obra para transformar-se num simples commodity, um produto lançado na bolsa de valores da impunidade. Não vamos dar aqui aula de história da arte ou sobre a importância do movimento da arte conceitual a partir dos anos 1960. Em contrapartida, contra a BANANAlização da arte, resolvemos falar nesta edição de alguns dois artistas conceituais que prezamos. William Kentdrige e Renata Lucas, em textos de Fabio Cypriano, e Cildo Meireles, em matéria de Eduardo Simões. Artistas que fizeram, das suas obras, não apenas uma provocação, e sim uma reflexão intrínseca e poderosa que os levou a um encontro fundamental com seus públicos.

Aproveitem esta edição e tenhamos um excelente 2025! ✱

O surreal como contraponto ao neoliberal

Obra da exposição Domingo no Parque, de Renata Lucas, na Estação Pinacoteca. Foto: Isabella Matheus

A canção Domingo no Parque, de Gilberto Gil é perfeita para se pensar a obra de Renata Lucas. De fato, ela é inspiração e dá nome à exposição em cartaz na Estação Pinacoteca, até 6 de abril de 2025. Domingo do parque, a música de 1967, faz uma reversão de expectativas um tanto inusual, afinal José, o rei da brincadeira, é quem mata João, o rei da confusão. O que se espera seria o contrário. Pois costuma ser assim também na obra de Renata Lucas, em geral subvertendo o que se considera normal.

É assim com Cabeça e cauda de cavalo (2010), criado para o Kunst-Werke, um dos mais importantes espaços de arte contemporânea em Berlim. Lá, Lucas trazia o chão externo do instituto por meio de uma plataforma giratória que se move se os visitantes forçarem a roda com os pés.

O inesperado, neste caso, é trazer o ambiente externo para dentro do museu, uma ação política e crítica muito enraizada na tradição da arte contemporânea brasileira, que sempre defendeu a quebra do tradicional cubo branco e a conexão da prática artística com o entorno, com a vida. “O museu é o mundo”, defendeu Hélio Oiticica (1937 – 1980).

Outra conexão importante com essa tradição é que tanto Cabeça e cauda como várias outras obras na mostra dependem de uma participação ativa do espectador, de um esforço efetivo. Contudo, ao contrário do que se defendia nos anos 1970, quando se propunha a arte como um espaço de cura ou de conexão social, nas obras de Renata Lucas, há uma espécie de inversão dessa proposta, já que o esforço do visitante é quase como o mito de Sísifo, castigado a rolar um pedregulho colina acima, sem nunca alcançar o ponto mais alto.

Nas obras da artista, o esforço do visitante tampouco consegue um resultado, ele sempre estará rodando o piso, trazendo o externo para dentro, e levando o interno para fora, não há uma meta final, é um eterno alternar de posições. Em [ ] (2014), painéis expositivos foram transformados em dispositivos móveis e quando o visitante os manipula, acaba acionando discos embutidos no chão, que reproduzem alguns trechos de Domingo no Parque. A depender do ritmo, a velocidade da reprodução se altera, o que faz o esforço do público ser ainda mais colocado em cheque.

A participação também ocorre com Falha (2003), composta por chapas de compensado unidas por dobradiças, que recobrem todo o piso de uma das salas da Estação Pinacoteca, e que, por meio de puxadores, são movimentadas pelos visitantes, reconfigurando o espaço. Novamente aqui, há um esforço empreendido, mas não há resultado a ser alcançado efetivamente, além do próprio trabalho contínuo que permite inúmeros possibilidades de combinações. Em um momento de extrema precarização do trabalho, quando motoboys e motoristas estão sempre repetindo uma mesma ação, a obra de Lucas parece mimetizar dentro do museu a uberização da sociedade contemporânea. Assim, ao contrário de uma participação que se pretendia como um gatilho para a sensibilização do corpo, nas propostas dos anos 1970, o que se exercita agora é conscientização de repetições forçadas. Ao mesmo tempo, é a percepção de um mundo sem saída e sem esperança: é possível tentar colocar o contexto dentro do museu, como em Cabeça e cauda, mas o museu sempre expulsa o mundo, em uma alternância sem fim.

Outro exemplo dessa proposta está em O Perde, composta por uma mesa de sinuca modificada, já que suas caçapas foram substituídas por encanamentos que levam as bolas do jogo para canaletas embutidas no solo, até desaparecem. No térreo do museu, as bolas reaparecem, expelidas de tempos em tempos por buracos na parede.

Se na proposição Apropriação (Mesa de bilhar , d’après “O café noturno de Van Gogh”) (1966), vista na Pinacoteca em 2019, Hélio Oiticica criava uma ambiente de sociabilidade, inspirado na pintura de Van Gogh sobre o jogo, agora Renata Lucas subverte as regras, já que as bolas vão parar em outros espaços do museu.

Há aí um componente um tanto surrealista, ao se alterar as funções e normas do jogo, fazendo com que a sinuca não se restrinja apenas a quem está em torno da mesa, mas criando no museu novas dinâmicas possíveis, provocando surpresas.
Com isso, se a mostra aponta para o caráter neoliberal do trabalho atual, ela também aponta escapes possíveis, transformando de maneira radical a paisagem interna ou externa do museu.

Obra da exposição Domingo no Parque, de Renata Lucas, na Estação Pinacoteca.
Foto: Isabella Matheus

É isso que Renata Lucas faz no Largo General Osório, bem em frente ao edifício da Estação Pinacoteca, quando corta um círculo de 6,4 metros de raio na praça torcendo parte do espaço em sentido anti-horário, entrelaçando calçada e jardim. A obra é ainda uma reinterpretação da roda-gigante que Gil menciona na canção Domingo no Parque.

Esse tipo de intervenção radical no espaço público remete a outra característica essencial na obra da artista, a necessidade de negociação. No caso da praça, precisa ser feita com órgãos governamentais e de gestão, o que muitas vezes é um processo longo e que demanda concessões. A proposta original era que a roda recortada na praça também giraria a partir de dispositivos a serem ativados pelo público, o que acabou não ocorrendo.

Mas negociar faz parte do processo para artistas com intervenções radicais, como é o caso de Lucas. A mostra na Estação Pinacoteca, que tem curadoria de Pollyana Quintella, por ser realizada em um prédio tombado, portanto que não pode sofrer grandes interferências arquitetônicas, precisou que todo o andar da exposição fosse forrado com um piso de compensado.

Essas mostras de caráter panorâmico, com artistas de carreiras maduras, vêm sendo uma grande contribuição da Pinacoteca. Elas permitem perceber a poética dos artistas de forma contextualizada, ampla e imersiva, além de contar com catálogos bem realizados. Domingo no Parque é um dos grandes destaques desta sequência de uma artista que vem se destacando muito no cenário internacional, como na Bienal de Veneza, em 2009, ou na Documenta de Kassel, em 2012, mas com pouca visibilidade de seus trabalhos mais radicais por aqui. Não mais, finalmente.

Polinizações cruzadas

Bonaventure Ndikung
Invocação em Guadalupe, Intodução de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung. Fotos: Philippe Hurgon | Fundação Bienal de São Paulo

A 36ª edição da Bienal de São Paulo, que será aberta para o público em setembro do ano que vem, começa a ganhar contornos mais definidos. Depois da definição do título da mostra – Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática, derivado de um poema de Conceição Evaristo –, a equipe curatorial deu início a um ciclo intenso de atividades em diferentes partes do mundo. Com o nome de Invocações, esses encontros promovem trocas com uma ampla comunidade de artistas e pensadores que devem desaguar na mostra paulistana a partir de quatro pontos bastante distantes: Marrakech, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio. Em entrevista à ARTE!Brasileiros, o curador Bonaventure Soh Bejeng Ndikung falou sobre o conceito geral de seu projeto, baseado em um conjunto de metáforas de forte poder simbólico como a aproximação com o estuário (zonas intermediárias de grande fertilidade) e o desejo de criar um campo expandido de criação, que reinvente caminhos, coloque mais questões do que antecipe respostas.

arte!✱ – Qual o papel das Invocações? A primeira delas, realizada em novembro passado, em Marrakech, rendeu os frutos esperados?
Bonaventure Ndikung – Foi muito comovente, muito importante, um primeiro movimento muito bom. Aconteceu em Marrakesh e teve como título Souffles: Sobre escuta profunda e recepção ativa, e o ponto de partida foi pensar na respiração nas culturas sufis. Lemos o poema de Birago Diop, poeta muito importante do Senegal, intitulado Verdade. É um poema muito, muito poderoso que fala sobre a possibilidade de ouvirmos seres vivos e não-vivos. Convidamos diferentes estudiosos, poetas, músicos, artistas performáticos, muitas pessoas que trabalham com a música Gnawa, musicalmente muito importante, mas também um espaço em que os saberes são guardados e desenvolvidos. A invocação terminou com uma performance ritual muito poderosa de Hadra, que é um grupo de mulheres que se reúnem e cantam as canções rituais sufis, em que as pessoas caem em transe. Fizemos também conexões com uma revista literária fundada no Marrocos em 1966 também chamada Souffle. Um dos fundadores foi o poeta Abdellatif Laâbi, que é muito importante para nós.

arte!✱ – Aproximar diferentes linguagens, como a poesia, a dança ou a música é algo fundamental desse projeto para a 36ª Bienal. Há o desejo de criar um ambiente onde diferentes vozes e perspectivas possam coexistir e se enriquecer mutuamente, desafiando as estruturas tradicionais?
Precisamos aprender a trabalhar de forma mais interdisciplinar, a sair de nossas zonas de conforto, a criar pontos e momentos de encontro. Acho que temos muitos problemas no mundo porque realmente não nos encontramos. Por isso a metáfora do “estuário”, presente no nosso conceito, é tão importante. A água salgada é diferente da água doce, mas com a dissolução, com a mistura, algo bonito acontece. Por isso os estuários são um lugar tão rico. Então, basicamente, o que estamos tentando fazer é criar esses estuários ao redor do mundo. Assim, cada invocação é uma espécie de momento em que o quente encontra o frio, o doce, o salgado e o amargo, diferentes temperamentos, diferentes disciplinas, diferentes motivações. O mais importante é como esses pontos de encontro dão origem a uma nova noção de humanidade. Então, basicamente, não estamos interessados em apagar contradições. Estamos interessados em criar espaços onde as polinizações cruzadas possam acontecer. uma espécie de polinização cruzada de ideias e formas de estar no mundo.

arte!✱ – Como promover essa mistura entre as palavras e a visualidade?
Eu acho que é realmente uma questão de expressão, de tornar as coisas manifestas. Acho que é uma questão de articulação mais do que qualquer outra coisa. Portanto, uma pintura, uma fotografia, uma escultura, um poema são articulações. Pode-se dizer que as palavras estão embutidas em todas essas práticas, a fala de diferentes tipos, a fala em termos de performance, a linguagem corporal, mas também a fala em termos de escrita. Ontem estava lendo algo muito interessante em um texto que Amadou Hampaté Bâ escreveu sobre seu mentor e professor Tierno Bouka. Ele disse que o discurso é como uma fruta. O lado de fora da fruta é a tagarelice, o topo da fruta é a eloquência e o núcleo da fruta é o bom senso, e isso é extremamente poderoso. Acho que basicamente o que estamos tentando fazer é criar essas diferentes formas e momentos de expressividade, ou articulação, sem hierarquias. Tendemos a enfatizar demais o sentido visual. Por isso que no conceito da mostra começamos dizendo que, pensando com Jacques Attali, que disse que, por 25 mil anos, o ocidente tentou ver o mundo. Mas o mundo não é visível. Ele é audível. Por 25 mil anos tentaram ler o mundo, mas ele não é legível. É audível. O que dizemos é que é preciso acercar-se dos diferentes sentidos, precisamos ativar o mundo de maneiras diferentes.

arte!✱ – As pessoas estão acostumadas a pensar a arte como uma coisa visual. Será, imagino, um choque entre as expectativas tradicionais e o que vocês estão propondo?
Não vamos remover o visual. Vamos adicionar outras coisas a ele. Portanto, enriquecerá a bienal, e os visitantes poderão vivenciá-la de outras maneiras. Entendemos as expectativas, mas acho que precisamos também desafiar o que sabemos. O trabalho de um curador não é apenas fazer o que se espera deles, mas realmente repensar o contexto e os conceitos. Então, basicamente, o que também estamos fazendo é nos desafiar, mas também desafiar nosso público de uma maneira bonita.

arte!✱ – Você já disse que a Bienal de São Paulo é uma espécie de sismógrafo. Ainda pensa assim? É um grande desafio?
Exato. Sim, é um grande desafio fazer uma exposição como essa porque você tem basicamente um ano e alguns meses para fazer algo tão significativo acontecer. E porque também estamos tentando repensar o público, estamos tentando repensar o formato da bienal. Mas também estamos muito gratos por termos colaboradores muito bons no terreno, que nos ajudam neste processo. É desafiador, mas se não fosse desafiador, eu não o faria.

arte!✱ – Podemos esperar uma grande mudança do pavilhão e da forma como a Bienal será apresentada ao público?
Sim. Estamos trabalhando com duas arquitetas fantásticas, cenógrafas que vão repensar o espaço. Não vamos lutar contra a estrutura, mas vamos encontrar maneiras de dançar com o prédio.

arte!✱ – Não temos ainda a lista de artistas que estarão presentes nessa bienal. Apenas um esboço de mapa criado a partir sobretudo de metáforas e poemas inspiradores, como a do estuário que você mencionou. Você poderia falar por que, dentre tantas metáforas, escolheu como título esta frase de um poema de Conceição Evaristo?
Por uma razão muito prática. Quando recebi o convite estava estudando Conceição Evaristo, de um ponto de vista muito particular. Eu também penso que esse ponto preciso diz tudo sobre o que precisamos dizer. Quando eu desacelero, por favor, não me force. Deixe-me ficar em inércia. Nem todos os viajantes andam pelas estradas. Existem mundos submersos que só o silêncio da poesia pode penetrar. É tão lindo. Nesse poema, ela nos diz muito sobre agência. Mas ela também nos diz muito sobre o tipo de estradas falsas em que o projeto colonial nos colocou. Então, se não estou andando por essa rota, por favor, não me obrigue a andar por esse caminho do empreendimento colonial. Porque existem caminhos alternativos. Existem outros espaços e ela nos dá uma chave para entrar neles. Ela diz que, se você quiser entrar nesses mundos subalternos, precisa ser capaz de entender o silêncio da poesia. É extremamente poderoso, então acho que é por isso que o escolhi. Mas também porque Conceição é muito importante e ela não é tão reconhecida quanto muitos outros poetas americanos – alguns poetas brancos, muitos poetas homens. Ela pode não ser tão reconhecida quanto eles, mas se você olhar para a coleção de sua obra é impressionante. Me lembro que um dos primeiros poemas dela que li foi escrito por ocasião da morte do Abdias do Nascimento. Era muito poderoso, invocava Abdias, invocava Zumbi, e assim por diante. Era uma genealogia. Para mim também é uma possibilidade para que muitas pessoas em todo o mundo da arte falem de Conceição Evaristo. É uma coisa grandiosa que podemos fazer, levando as pessoas a ler, a citar seu trabalho apenas porque usamos essa frase do seu poema.

arte!✱ – Ela usa uma palavra que não é usual para um brasileiro. O estranhamento causado por “viandante” se perde em inglês, mas aqui soa estranho.
Todo mundo me perguntou: há um erro nisso? Você está seguro de que é a palavra certa? Eu disse: está tudo bem. É exatamente por essa razão que eu gosto dele. Esse é o propósito. Não podemos traduzir exatamente em inglês, mas tudo bem. É a beleza da poesia, um poeta é um escultor de palavras. Então, basicamente, ela esculpiu uma nova palavra para nós e estamos lutando para entendê-la. É exatamente por isso que é tão especial.

arte!✱ – E podemos fazer um paralelo entre esse estranhamento poético e a maneira como você se veste? É uma outra chave de leitura do seu pensamento?
Eu não sei (risos). Não é exatamente sobre mim. Eu acho que nós nos expressamos de inúmeras maneiras. Se pensarmos que o corpo é uma forma de discurso, sempre que nos apresentamos em algum lugar, estamos também discursando, sabe? E se a metáfora tem grande significado para mim, também vejo a minha própria apresentação como parte dessa criação de metáforas. Portanto, nunca é algo a respeito da superfície, é sempre acerca do que está por baixo.

arte!✱ – Voltando a Abdias, você já realizou uma série de curadorias em torno dele, desenvolvendo exposições em torno do conceito de “quilombismo”, por exemplo. Ele será uma das forças do evento?
Não há como eu fazer esta bienal sem ter Abdias do Nascimento, é claro. Ele é onipresente. Há também Beatriz Nascimento, que também escreveu sobre os quilombos e também é uma grande poeta. Ela também estará presente. Direta ou indiretamente suas presenças serão sentidas na Bienal. Venho ao Brasil há vários anos fazer pesquisas no arquivo de Abdias. Muito do que sei sobre o Brasil é através dos olhos e através de seus escritos. Então, obviamente, estará presente lá.

arte!✱ – A edição deste ano terá um núcleo histórico?
Sim, haverá uma parte histórica muito forte. Alguns de nós estão agora em Paris para ver algumas das obras históricas que traremos para o Brasil. Também traremos artistas de diferentes partes do mundo, do Líbano, da Ásia, e assim por diante.

arte!✱ – Você espera aproximar o Brasil e a África?
Acho que minha presença já é uma conexão muito forte com a África, então a resposta é sim. Eu penso não apenas de uma forma representativa, de pessoas, mas também de ideias. Se você notar, a maioria das referências que uso são profundamente africanas. Não me refiro ao continente africano, mas ao mundo africano, porque para mim Amadou Hampaté Bâ, do Mali, faz parte do mundo africano, e Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo e Beatriz Nascimento também fazem parte do mundo africano.

arte!✱ – Temas fundamentais da atualidade, como as guerras e a crise ambiental terão espaço na Bienal? A arte é uma forma de agir contra a queima desenfreada do planeta?
Convidamos artistas que estão pensando nesses problemas, mas não de uma forma literal ou muito direta, porque também queremos a ferramenta da poesia aí. Eu concordo com James Baldwin quando ele diz que o papel do artista é fazer questões sobre as respostas que já estão por aí. O papel do artista é fazer perguntas para obter respostas que já existem lá fora. Então, basicamente, estamos convidando artistas a fazer perguntas. Acho que muitos dos problemas que encontramos por aí, sejam ambientais, sejam as guerras, nos deixam ansiosos por respostas, respostas que estão criando hierarquias: classismo, racismo, generismo e assim por diante. Só queremos extrair, porque essa é a resposta quando você precisa de mais petróleo. Mas a verdadeira questão é “por quê”? O artista tem a possibilidade de fazer essas perguntas de maneiras muito sensíveis. Não queremos fazer uma bienal que dê respostas a perguntas, mas sim uma bienal que coloque as questões corretas.

arte!✱ – Certa vez você disse que a “fratura ecológica é a manifestação da fratura colonial”. É preciso pensar essas questões em conjunto?
Totalmente. Temos que pensar essas coisas juntas para poder acabar com o extrativismo e a destruição ecológica. Precisamos ser capazes de enfrentar as questões coloniais, as violências coloniais. Eles andam de mãos dadas. Estou na França agora, e há aqui no momento muitas histórias sobre feminicídio. Estava lendo um belo livro de uma autora nigeriana, iorubá, Oyèrónk Oyěwùmí, sobre colonialismo e gênero. Ela escreve sobre como a violência no binarismo de gênero está muito ligada ao projeto colonial. E para ser capaz de entender essas violências, especialmente aquelas que as estruturas patriarcais impõem ao mundo, precisamos compreender as estruturas coloniais também. Você não pode desmantelar uma sem desmantelar a outra. Estamos vendo todas essas guerras acontecendo e temos que entender por que eles estão acontecendo e como elas estão ligadas aos projetos coloniais, que ainda continuam até hoje. ✱

Colaboradores da edição #69

Fabio Cypriano é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP. Nesta edição, Cypriano assina as matérias sobre um documentário de William Kentridge e a exposição de Renata Lucas na Estação Pinacoteca.

Maykson Cardoso Mineiro de Divinópolis, vive desde 2018 em Berlim. É crítico de arte e também realiza projetos curatoriais. Suas pesquisas mais recentes se concentram na obra de Walter Benjamin. Nesta edição, assina texto sobre o pensamento de Bonaventure Ndikung, curador da 36ª Bienal de São Paulo.

Marcos Grinspum Ferraz Jornalista, formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou na Folha de S.Paulo, nas revistas Brasileiros e arte!brasileiros, entre outras. Nesta edição, entrevista o fotógrafo e gestor Tiago Santana, diretor do Instituto Mirante.

Leonor Amarante jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Nesta edição, são de Leonor as entrevistas com Luciana Casagrande Pereira, secretária de cultura do Paraná, e o arquiteto paraguaio Solano Benítez.

Maria Hirszman é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Neste número, Maria entrevista Bonaventure Ndikung, curador da 36ª Bienal de São Paulo.

Fotos: arquivo pessoal

Na Rússia, Videobrasil explora intersecções entre vídeo e performance

GES-2 House of Culture. Foto: Anya Todich
GES-2 House of Culture. Foto: Anya Todich

Apesar dos milhares de quilômetros que distanciam Brasil e Rússia e dos traços culturais tão distintos entre os países, não é preciso nenhum tipo de “tradução” para que as obras artísticas de um canto do mundo sejam compreendidas, ou ao menos fruídas, no outro lado do planeta. É esta a ideia básica que norteia a exposição Videobrasil. Needs No Translation: Four decades of video and performance, que leva a Moscou trabalhos do Acervo Videobrasil representativos de quatro décadas da produção do Sul Global.

Com abertura neste dia 12 de dezembro, a mostra tem curadoria de Solange Oliveira Farkas, fundadora e diretora do Videobrasil, e Alessandra Bergamaschi, que selecionaram trabalhos majoritariamente de artistas brasileiros, mas também de outros países sul-americanos e africanos, para apresentar na GES-2 House of Culture, na capital russa. A eles se soma um “núcleo russo”, com curadoria de Andrei Vasilenko e Dmitry Belkin, e uma instalação inédita do artista mineiro Eder Santos, colaborador do Videobrasil desde seus primórdios, nos anos 1980.

Se a noção de que uma obra não precisa ser explicada para ser fruída pode servir para qualquer produção artística, de modo mais amplo, há particularidades na mostra que enfatizam esta ideia e justificam a escolha do título – “não necessita tradução”, em transposição livre. Ao priorizar os meios expressivos do vídeo e da performance, nos quais imagem e corpo são protagonistas e prescindem da linguagem falada ou escrita, destaca-se “um formato híbrido universal que existe para além das fronteiras dos Estados e das línguas nativas e, portanto, não requer tradução”, como explica o texto de apresentação da mostra.

“O hibridismo é parte fundamental da nossa história, mas quisemos reforçar uma particularidade deste hibridismo que é marcado pela forte presença da performance ao longo de quatro décadas de vídeo no Brasil, tão bem representada em nosso acervo”, completa Solange sobre este assunto. O acervo da associação, formado majoritariamente por obras apresentadas ao longo das 22 edições do festival/bienal Videobrasil, realizado desde 1983, é uma das mais ricas coleções de videoarte do Sul Global.

A segunda particularidade acolhida no conceito curatorial se refere às conexões e aos paralelos possíveis de se traçar entre as produções de regiões tão distantes como América Latina e Rússia, por mais improváveis que possam parecer. Segundo Belkin, “um diálogo único entre a arte de duas regiões raramente comparadas mostrará como a mudança cultural notavelmente semelhante ocorreu em duas partes opostas do globo. A videoarte captou todas as reviravoltas históricas: desde a mudança social global em meados da década de 1980, passando pela esperança e pela paz global nas décadas de 1990 e 2000, até a análise de seu passado na década de 2010”.

A divisão da mostra por décadas, comentada pelo curador russo, foi uma escolha de Solange e Alessandra para que o visitante possa percorrer e compreender alguns momentos centrais da história do vídeo e da performance no Sul Global, especialmente no Brasil: partindo das primeiras experimentações possibilitadas pelo desenvolvimento da tecnologia do vídeo, passando pelas linguagens do videoclipe e da TV e chegando no uso generalizado de computação gráfica e da realidade virtual.

Estão na mostra, neste trajeto, desde trabalhos icônicos das duas últimas décadas do século 20, como VT Preparado AC/JC (1986), de Walter Silveira e Pedro Vieira, Parabolic People (1991), de Sandra Kogut, e Sopro (2000), de Rivane Neuenschwander e Cao Guimaraes; até a produção que marca o novo milênio, em obras como Filme dourado (2010), de Luiz Roque, L’Arbre d’Oublier (2013), de Paulo Nazareth, e BUGs (2022), animação digital apresentada por Vitória Cribb na mais recente Bienal Sesc_Videobrasil, no ano passado.

Sandra Kogut, Parabolic people [still], 1991. ©Videobrasil Collection, Acervo Videobrasil
Sandra Kogut, Parabolic people [still], 1991. ©Videobrasil Collection, Acervo Videobrasil
Também na intersecção entre vídeo e performance, obras de nomes estrangeiros como Ar Detroy (Argentina), Bakary Diallo (Mali), Calderón & Piñeros (Colômbia), Ezra Wube (Etiópia) e Guillermo Casanova (Uruguai) se somam aos trabalhos de artistas brasileiros, criando um panorama mais amplo da produção de países marcados por um passado colonial em comum, onde questões como a desigualdade social, os conflitos políticos e as questões raciais se mostram latentes, de diferentes modos, até os dias de hoje.

Considerando o conceito de Sul Global como uma noção geopolítica – não geográfica – e também mutável ao longo do tempo, Solange relembra que desde que se abriu para a participação internacional, nos anos 1990, o Videobrasil recebeu um grande número de inscrições de obras de artistas russos. Um exemplo é o vídeo Biographies of objects, de Natalia Skobeeva, obra que foi incluída na exposição e que questiona nacionalismos, tradições enrijecidas e a crise do mundo contemporâneo.

Para além do trabalho de Skobeeva, parte do Acervo Videobrasil, uma série de outros vídeos do país que sedia a exposição – o “núcleo russo” – complementam a mostra, ressoando o que é apresentado em cada um dos eixos temporais. “A exposição nos permitirá ver obras de videoarte de todo o planeta que nunca foram exibidas na Rússia antes, bem como obras russas conhecidas em um contexto completamente novo”, afirma Belkin.

Natalia Skobeeva, Biographies of objects [still], 2018. © Videobrasil Collection - Acervo Videobrasil
Natalia Skobeeva, Biographies of objects [still], 2018. ©Videobrasil Collection – Acervo Videobrasil
Por fim, a obra inédita Screen², de Eder Santos, surge como um trabalho central na exposição, tanto por seu formato – um “documentário expandido instalado no espaço”, com trilha sonora original de Paulo Santos – quanto por colocar em diálogo várias das mais icônicas vídeo-performances do Acervo Videobrasil, de nomes como Ana Pi, Ayrson Heráclito, Lenora de Barros, Letícia Ramos, Melati Suryodarmo, Otávio Donasci e Rosana Paulino. “Nesse átrio suspenso, figuras, gestos e paisagens se desvanecem e se espelham uns nos outros — como memórias em movimento de um arquivo vivo”, descrevem as curadoras.

 

SERVIÇO

Videobrasil. Needs No Translation: Four Decades of Video and Performance
Quando: 12 de dezembro de 2024 a 9 de fevereiro de 2025
Onde: GES-2 House of Culture | 15 Bolotnaya Embankment, Moscou – Russia
A entrada na Casa da Cultura é gratuita, mediante registro prévio ges-2.org