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Uma conversa com Antonio Obá

Revoada
Detalhe da instalação Revoada, de Antonio Obá, 2023

Escutar Antonio Obá, numa conversa demorada, pausada, reflexiva, falando de sua infância, da construção de sua carreira, de seus encontros traz, primeiramente, muita calma e, ao final, a certeza de o quanto suas memórias se refletem diretamente na sua obra.

Em Revoada, a exposição aberta em junho deste ano, na recém-inaugurada Pinacoteca Contemporânea, em São Paulo, Antonio Obá desenvolveu um trabalho em diálogo com o edifício e a história do novo museu, que foi uma instituição de ensino construída nos anos 1950 e atribuída a Ramos de Azevedo, engenheiro e arquiteto responsável pelos projetos, entre outros, do Teatro Municipal e da própria Pinacoteca do Estado.

Na instalação, mãos suspensas, moldadas com silicone nos corpos de crianças e jovens que frequentaram as oficinas na Ocupação 9 de Julho do MSTC e no ateliê da Pinacoteca Contemporânea, entre março e abril de 2023, e depois forjadas em gesso branco, evocam, segundo ele, “mãos livres em pleno voo; mãos – o próprio ideal de sustento e liberdade presentes no ofício ao qual se dedicam. Mãos antes acorrentadas, hoje quase sem peso ou pesar, mas cientes de todos os traumas, como um ex-voto. [1]

Não é por acaso que Obá transcende a pintura, a escultura e as instalações em imagens de corpos ou crianças suspensas e, às vezes, fantasmagóricas. Ele se lembra que aos 8 anos se deparou com um salão de ex-votos na histórica igreja de Trindade, inaugurada em 1912, como o primeiro Santuário do Divino Pai Eterno, popularmente denominado Santuário Velho ou Igreja Matriz, em Goiás. Um cenário de que se recorda fotograficamente e que lhe trouxe uma enorme sensação de abismo, em que ficou “parado, suspenso”, entre “fascinado e seduzido por um mistério”.

Wade in the water
Wade in the water (after Adriana Varejão), 2019

A mesma impressão, comentará mais tarde, voltou a ter quase 20 anos depois quando se defrontou com obras do artista inglês Francis Bacon, uma de suas referências na pintura e cuja potência e visualidade o capturaram, como se ele estivesse diante de um “buraco”, algo que estava ausente e o fascinava também.

O educador

Obá nasceu em 1983, em Ceilândia, no Distrito Federal, onde mora e trabalha até hoje. Desde sempre desenhou e pintou, mas cresceu como educador.

Trabalhou como professor no Centro Educacional 15 de Ceilândia, lecionou sobre arte e processos criativos, como professor do ensino médio, no Centro de Desenvolvimento de Potencial Criativo (CRIAR), para crianças e adultos em Taguatinga, cidade satélite de Brasília. Sempre lhe interessou o lugar que a arte e a comunicação ocupam como motivadores da autonomia, da curiosidade e do conhecimento. Como um lugar de disrupção na aprendizagem. Para ele, o campo das artes visuais “passa pela contribuição para o desenvolvimento socioeducativo humano”.

Uma das características do começo de seu percurso é ter estado muito à margem do circuito tradicional de arte, mesmo durante o período em que participou de uma coletiva no Centro Cultural Renato Russo, em 2013, em Brasília.

Um momento determinante na sua carreira foi quando decidiu trancar sua matrícula na faculdade de publicidade e optou por estudar artes visuais na UNB. Ao mesmo tempo, frequentou o Centro Cultural Elefante, uma casa de artistas criada em 2013 pela gestora paulistana Flavia Gimenes e o artista plástico carioca Matias Mesquita que, recém-chegados a Brasília, construíram na Asa Norte da capital federal um espaço de experimentação de desenho, escultura, gravura e modelagem. É aí quando começou a ter contato com a produção de artistas nacionais e internacionais. Viajou para Inhotim, conheceu o trabalho de Adriana Varejão, que lhe serviu de inspiração para a sua obra Wade in the water (After Adriana Varejão), de 2019.

A pesquisa de Obá

Alguns significantes perpassam a obra de Obá: crianças, suspensão, ambiguidade. Suas crianças têm rostos marcados, quase adultos. “Elas figuram como agentes do tempo que parecem ter a consciência que lhes é própria, mas sem nenhuma inocência. São crianças que sabem, crianças que lembram”, dizem Yuri Quevedo e Ana Maria Maia, no texto especialmente escrito para o catálogo da exposição Revoada.

Para Obá, “são como ibejis”, referindo-se às figuras simbólicas da cultura iorubá que, de forma geral, dentro dos contextos culturais do continente africano, chama de Ibeji a um orixá-criança que nomeia duas entidades infantis gêmeas. Por serem gêmeos, são associados a um princípio da dualidade humana: sorte e azar. Por serem crianças, são ligados a tudo que se inicia e brota: à nascente de um rio, ao nascimento dos seres humanos, ao germinar das plantas etc. Elas possuem um quê de leveza que lhes permite flutuar. “Mas têm que ser cuidadosos porque, caso contrário, podem atrapalhar o trabalho. […] São a criança que há dentro de nós”, diz Obá.

Suas obras trazem histórias de segregação da raça negra, de episódios de injustiças cometidas em diferentes épocas, em lugares distintos do mundo, contra negros ou negras. Em Os Banhistas n. 3 – Espreita, 2020, cujo detalhe ilustra nossa capa, Obá faz referência a uma história ocorrida em 1964, num estabelecimento ainda à época reservado a brancos, em Saint Augustine, na Flórida (EUA).

Naquela ocasião, no hotel Motor Lodge, o líder do movimento antissegracionista Martin Luther King Jr. haveria tentado almoçar e foi impedido. Ao insistir, foi preso. Dias depois, um grupo de manifestantes mergulhou na piscina em sinal de protesto, e o gerente do hotel chegou a despejar um galão de ácido muriático na água. Na obra, crianças nadam tranquilas, mas na espreita, junto de um crocodilo que alude à época em que crianças escravizadas eram usadas como iscas.

Na trilogia Strange Fruit (fruto estranho), Obá evoca a canção homônima de Billie Holiday e do poeta Abel Meeropol, que escreveram sobre o linchamento de dois homens negros em 1930 no estado norte-americano de Indiana. O horror do caso foi retratado pelo fotógrafo Lawrence Beitler: os corpos, pendendo de árvores, eram observados pela multidão branca.

A ideia de corpos suspensos está sempre presente, também nas crianças pintadas sobre linhos brancos. Em Chandelier – Crianças suspensas, elas também são elevadas, como santificadas. 

O reconhecimento do público

“Cresci vendo meus dois pais trabalhando e criando relações afetivas, isso foi formador […] Sempre foi importante produzir com um tempo ao meu sabor […], sem presa, […] mas passei dez anos sem tirar férias”, diz, acerca da pressão que envolve um artista, quando passa a ser mais reconhecido e solicitado por compromissos ligados a exposições individuais e mostras coletivas.

Para Obá, o trabalho e os encontros são fundamentais durante a carreira. Um deles foi com Flavia Gimenez, no Elefante, e outro, em 2015, com Renato Silva, da galeria Mendes Wood DM, onde realizou em 2016 a sua primeira exposição, Antonio Obá. A partir daí realizou várias mostras com a galeria, dentre elas Pele de Dentro (Mendes Wood DM, Nova York, EUA, 2018) e Outros Ofícios (Mendes Wood DM, Bruxelas, Bélgica, 
2021).

Antonio Obá participou de várias coletivas nacionais e internacionais, com destaque para o 36º Panorama da Arte Brasileira, MAM, São Paulo, Brasil
 (2018), a Enciclopédia Negra, Pinacoteca, São Paulo (2021), Tuymans / Cahn / Oba (Bourse de Commerce (2021/2022) e a 12ª Bienal de Liverpool, Inglaterra, Reino Unido (2023), entre outras.

Suas obras estão presentes em várias coleções de relevo, a exemplo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do Museu de Arte do Rio, da
 Pinacoteca do Estado de São Paulo, da Pinault Collection, do 
Pérez Art Museum Miami 
e do 
Jumex Museo, do México, para citar apenas alguns.

Atualmente, prepara uma próxima exposição, a ser aberta no fim de 2023 na sede paulista da galeria. Desde 2016 vem ganhando amplíssimo reconhecimento institucional, nacional e internacional. Ao final da conversa, outra certeza: a de que o Ibeji, em Obá, vem aflorando num crescendo, na ambiguidade da leveza e da contundência, atento e forte, como é preciso. ✱


 

[1] Texto de Antonio Obá, presente no catálogo da exposição Revoada

Síntese cosmológica

Sheroanawe Hakihiiwe
Sheroanawe Hakihiiwe, Tudo isso somos nós. Foto: Isabella Matheus

Na década de 1990, Juan Bosco Hakihiiwe, ianomâmi da Amazônia venezuelana, desenvolveu, junto à artista mexicana Laura Anderson Barbata, técnicas de produção de papel com fibras vegetais – de cana-de-açúcar, banana, milho, amoreira etc. – que passou a usar como suporte para seus desenhos. Neles, buscava traduzir, por meio de elementos mínimos e repetidos, não somente a paisagem, como o imaginário de sua comunidade.

Cerca de 30 anos depois, o Masp apresenta a exposição Sheroanawe Hakihiiwe: tudo isso somos nós, individual que reúne mais de uma centena de desenhos, monotipos e pinturas do artista, que passou a assinar com o nome derivado de Sheroana, a comunidade onde nasceu no município de Alto Orinoco. O conjunto – vindo de sua galeria, a ABRA, em Caracas, e de colecionadores brasileiros – cobre cerca de duas décadas de sua produção – de 2015 a 2022 – e permite ao público observar, entre outros aspectos, a recente ampliação do leque de cores de que Sheroanawe lança mão.

Sheroanawe Hakihiiwe, Hema ahu
Sheroanawe Hakihiiwe, Hema ahu [Teia de aranha com orvalho pela manhã] [Spider Web with Dew in the Morning], 2021. Acrílica sobre papel de algodão, 51.2 x 69.2 cm, Coleção Galería ABRA, Caracas, Venezuela. Foto: Cortesia Galería ABRA/María Teresa Hamon
“Muito da produção inicial do Sheroanawe tinha, não vou dizer um limite da cor, mas sempre a referência ao preto e ao vermelho. Que é justamente uma conexão que o artista faz com as pinturas corporais e faciais da sua comunidade e de seu entorno. A gente encontra, por exemplo, sempre o preto, vermelho e branco fazendo referência à cobra coral”, conta André Mesquita, curador da exposição.

“Mas Sheroanawe expandiu a sua paleta de uns três anos para cá. Ele tem utilizado azul e amarelo, por exemplo, além de ter pintado também em tecido. Embora esses procedimentos, de alguma forma, tenham se modificado ao longo do tempo, claro que os temas de que ele tem tratado permanecem. É quase a criação de uma catalogação ou de um arquivo mesmo. Uma memória daquilo que ele encontra nos aspectos ritualísticos de sua comunidade, no fazer cotidiano, nos utensílios, bem como um registro da fauna e da flora que cerca a vida na floresta”.

David Ribeiro, assistente curatorial da mostra, destaca que a produção de Sheroanawe está muito “relacionada aos períodos em que ele fica na floresta, com as pessoas do seu povo”. Momentos em que ele recolhe referências diversas da “cosmo ecologia” de sua comunidade, “uma relação com o ambiente, com o cosmos, mais profunda e complexa”. Segundo Ribeiro, Sheroanawe observa os padrões que são utilizados na pintura facial, na pintura corporal ou na produção da cestaria, detalhes de animai, plantas, pedras.

“E é um olhar bastante minucioso que ele lança sobre o entorno, sobre as pessoas, sobre o ambiente onde ele vive. E do qual ele vai extraindo sínteses”, diz. “Numa floresta, nessa confusão de elementos, Sheroanawe busca as unidades mínimas dessa grandiosidade, pequenos símbolos, que ele transpõe para o papel, que são representações dessa complexidade. Como a Laura Barbata afirma, o trabalho dele é mais do que abstração simples ou minimalismo, é um mapa bastante complexo de uma infinidade de significados que ele apreende a partir de sua observação”.

Mesquita comenta que, inicialmente, ao observar a produção de Sheroanawe, uma relação com o minimalismo veio à sua cabeça, um pouco por causa da sua formação “como pesquisador, muito interessado, já há muitos anos, nas práticas da arte conceitual”. Em algum momento, afirma o curador, aparecem na prática de Sheroanawe “processos como a serialização a repetição”, que já vimos em diversos trabalhos de artistas norte-americanos, europeus ou brasileiros.

“Mas a gente não faz essa leitura da obra do Sheroanawe e nem tenta canonizá-lo, no sentido de trazer sua produção para uma leitura ocidental”, pondera o curador. “O que eu acho, muitas vezes, é que o trabalho dele se encontra com todos esses trabalhos tidos como conceituais, minimalistas, mas ele tem uma natureza diferente. De alguma maneira, a presença dele subverte um pouco esse cânone, aquilo com que a gente está tão acostumado. O trabalho dele traz essas fricções, essas tensões”.

Para Mesquita, a escolha de Sheroanawe pela repetição, serialização ou minimalismo se dá “em referência às pinturas corporais da comunidade, numa busca por preencher todos os espaços possíveis, numa folha de papel, com um mesmo símbolo, que é um pouco dessa prática que a comunidade tem da pintura corporal de preencher todo o corpo com o mesmo desenho”, conclui.

Por fim, Ribeiro ressalta também como Sheroanawe tem um olhar muito sensível para a floresta e atribui uma grandiosidade para coisas às quais a gente mal dá importância, a exemplo de uma gota de orvalho numa teia de aranha pela manhã. Ele salienta, ainda, que o artista coloca tudo em pé de igualdade, seja a pintura facial, uma pata de animal, uma folha, tentando nos dizer que tudo isso é a mesma coisa.

“E não à toa esse foi o título que ele sugeriu para a exposição, tudo isso somos nós. Tudo aquilo constitui o povo ianomâmi. Não existe diferença entre o que é humano, o que é animal, o que é vegetal e o que é mineral. Tudo isso precisa ser conservado em conjunto, cuidado em conjunto. É um conceito de meio ambiente de uma sofisticação muito grande”. ✱

Colaboradores da edição #63

EDUARDO SIMÕES é jornalista de cultura, com passagens por O Globo e Folha de S.Paulo, na cobertura de cinema e literatura. Foi editor da arte!brasileiros, em 2015, e de diversos títulos de lifestyle. Ele assina os textos sobre Sheronawe Hakihiiwe, a 17ª edição da Verbo e uma entrevista com o antropólogo Néstor Canclini.

FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, entrevista a curadora Carolyn Christov-Bakargiev e escreve sobre o projeto Art of the Treasure Hunt, na Toscana, Itália.

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, Maria se debruça sobre a individual Fotografia Habitada, de Helena Almeida, em cartaz no IMS Paulista.

NICOLAS SOARES é artista, pesquisador, curador e gestor cultural formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, em Salvador, e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em Vitória. Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo, assina um artigo sobre a revisão histórica impulsionada a partir do Sul Global.

PAULO HERKENHOFF é curador e crítico de arte. Autor de diversos livros, Herkenhoff também dirigiu diversas instituições de arte. Foi, entre outros, curador-chefe do MAM Rio e curador geral da 24ª Bienal de São Paulo. Herkenhoff escreve sobre O tempo espelhado, mostra de Marcos Zacariades, “uma obra épica”, em suas palavras.

Fotos: arquivo pessoal

Colaboradores da edição #62

BITU CASSUNDÉ foi curador do Museu de Arte Contemporânea do Ceará e coordenou o Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes. Integrou a equipe curatorial do projeto À Nordeste, no Sesc 24 de Maio (SP). Vive e trabalha no Crato (CE), no Centro Cultural do Cariri. Nesta edição, escreve sobre o pintor Chico da Silva.


JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, editor-assistente da Veja SP, editor na TV Gazeta e Carta Capital. Faz um raio X das mudanças no MinC, além de entrevistas com os novos presidentes do Iphan (Leandro Grass) e Ibram (Fernanda Castro).

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, Maria escreve sobre a recém-inaugurada Pinacoteca Contemporânea, de São Paulo.



TADEU CHIARELLI é curador, crítico de arte e professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP. Também já atuou como curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Para esta edição, assina um artigo sobre o 8 de janeiro de 2023.


THEO MONTEIRO é bacharel em História e mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. Atuou, de 2016 a 2020, como curador assistente no Instituto Tomie Ohtake e hoje trabalha na equipe curatorial da Galeria Nara Roesler. É de sua autoria o texto sobre o pintor José Antônio da Silva.

Fotos: arquivo pessoal

Processo de discussão pública do Plano Diretor foi uma ‘espécie de encenação’, diz Raquel Rolnik

Avenida Rebouças, eixo de transporte em São Paulo que vem passando por intensa verticalização. Crédito: Reprodução/Google Earth
Avenida Rebouças, eixo de transporte em São Paulo que vem passando por intensa verticalização. Crédito: Reprodução/Google Earth

A segunda votação da revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE), que estava marcada para acontecer nesta sexta-feira (23/6), na Câmara Municipal, foi novamente adiada, para 26/6. Se passar pelo Legislativo municipal, o texto substitutivo – que tem recebido duras críticas de urbanistas e entidades de classe, por ser considerado altamente desequilibrado em favor das forças do mercado imobiliário – seguirá para aprovação do prefeito Ricardo Nunes, que tem poder de veto. A arte!brasileiros conversou a respeito do assunto com Raquel Rolnik, arquiteta, urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik. Cortesia do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da FAU USP
A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik. Cortesia do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da FAU USP

ARTE!✱ – Uma das principais críticas feitas em relação ao texto substitutivo do PDE é o completo descarte das diversas sugestões apresentadas à Câmara durante o processo de audiências públicas que antecederam a primeira votação do documento.

Raquel Rolnik – A aprovação desse substitutivo em primeira votação, por uma ampla maioria de vereadores, surpreendeu a todos porque boa parte do seu conteúdo não havia aparecido em textos anteriores. Depois descobriu-se que na verdade 70% do conteúdo do substitutivo vinha de uma proposta da ABRAINC, a Associação Brasileira de Incorporadores, ou seja, do setor imobiliário, que encaminhou formalmente as suas propostas para a Comissão de Política Urbana na Câmara. É totalmente legítimo um segmento econômico da cidade encaminhar suas propostas. Entretanto, é muito preocupante o fato de que, depois de um processo em que houve inúmeras manifestações em várias audiências, colocando necessidades de revisão do Plano Diretor aprovado em 2014, isso simplesmente não aparece, nesse substitutivo. O que mostra que todo esse processo de discussão pública é uma espécie de encenação, de performance.

O processo real decisório sobre o destino da cidade está sendo debatido num outro âmbito, que não é o da esfera pública. Acho que isso é um dos elementos que caracteriza a crise da nossa democracia. E eu posso assegurar que tem uma quantidade muito grande de vereadores que sequer leu o projeto do substitutivo, até porque ele é longuíssimo, complexo, dificílimo de entender. O que está definindo o destino da cidade sequer é uma opção consciente sobre o conteúdo desse projeto.

ARTE!✱ – Muitos urbanistas reclamam que a versão do PDE que chega agora à segunda votação nada traz sobre eventuais impactos ambientais e sociais, por exemplo. Estamos navegando no escuro?

Rolnik – O Plano Diretor em vigor desde 2014 foi sendo aplicado, e vários estudos já fizeram análises dos seus impactos. Foi a partir deles que várias propostas de mudança e revisão foram feitas. Ele, por exemplo, apostou muito numa estratégia de concentrar a população, por meio da construção de prédios mais altos, com mais gente morando em volta de estações de metrô e corredores de ônibus. A ideia era de que ali iriam viver as pessoas que usam transporte coletivo e que hoje tem menos acesso a boas localizações na cidade. Essa era a tese. Só que na aplicação concreta desses mecanismos, o que acabou acontecendo em boa parte desses chamados eixos foi uma distorção desta estratégia. Ali apareceram o metro quadrado mais caro da cidade de São Paulo, com a criação de micro-apartamentos de 20 a 25 metros quadrados, que nada têm a ver com moradia de interesse social. E também usaram todos os mecanismos, todas as formas de filigranas de interpretações do PDE, para não dizer fraudes, de modo a viabilizar apartamentos maiores e com mais vagas de garagem, portanto, para uma classe média e alta, o que não era a intenção do plano.

Além disso, o modelo de ocupação foi muito homogêneo, com prédios altos, e esse tipo de morfologia homogênea foi caindo em lugares muito diferentes da cidade, com características ambientais e culturais, por exemplo, distintas. As pessoas foram percebendo que seu local de morada estava absolutamente sendo destruído, descaracterizado, e elas estavam se sentindo expulsas. Isso precisa ser corrigido, de modo que em cada bairro possa se fazer uma avaliação do impacto de vizinhança, uma mudança na morfologia, para que ela não seja homogênea em diferentes bairros. O substitutivo, em vez de incorporar essas propostas que surgiram tão fortemente no debate a partir de estudos, vai ampliar de 600 metros para mil quilômetros a área liberada para construção. E no projeto original tinha uma limitação maior de verticalização nos chamados miolos de bairro. A nova versão também libera total essas áreas. É uma coisa que não só despreza a avaliação de impacto que foi feito, como também contraria completamente o resultado dessas avaliações.

ARTE!✱ – O objetivo do Plano Diretor aprovado em 2014 era aumentar a verticalização, mas com maior adensamento populacional nesses eixos de transporte, por exemplo. Isso, no entanto, acabou não acontecendo. Essa distorção parece ser ainda mais ensejada no substitutivo, não?

Rolnik – O que está sendo posto é uma verticalização generalizada, com um modelo único de produto imobiliário, que é aquilo que o mercado gosta e quer fazer na cidade, sem levar minimamente em consideração para quem, nem onde, quem está sendo incluído, quem está sendo expulso e qual é o impacto disso na conformação e na configuração da cidade.

ARTE!✱ – Para essa nova versão, havia de início uma proposta de não se incentivar a criação de mais vagas de garagem, mas isso também foi descartado, correto? 

Rolnik – Tem uma novela em relação a essa vaga de garagem: a proposta original, lá atrás, quando foi lançado o plano, era que esses essas novas unidades residenciais, junto aos eixos de transporte, não teriam garagem. No processo público isso absolutamente não se viabilizou e acabaram ficando com uma vaga de garagem. O setor imobiliário conseguiu inserir no plano que poderia haver até duas vagas de garagem durante três anos. Agora, no debate público, a prefeitura mandou para a câmara uma proposta de revisão que mudava o cálculo de quantas garagens e ampliava a possibilidade de fazer mais garagens. O substitutivo que o vereador Rodrigo Goulart apresentou, esse de que estamos falando, ele piora ainda mais porque ele defin. uma garagem para cada 60 metros quadrados de área construída. Ao fazer isso, ele estimula que se construa muito mais garagens do que hoje é permitido.

ARTE!✱ – Há uma proposta também de mudança nos mecanismos de contrapartida financeira do mercado imobiliário, a chamada outorga onerosa, paga quando uma incorporadora pretende construir acima do permitido em determinado lugar. Os recursos iriam para o recursos para o Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB), para realizar investimentos em prol de objetivos, diretrizes, planos, programas e projetos urbanísticos e ambientais integrantes ou decorrentes do Plano Diretor. Isso também mudaria com a nova versão do PDE, correto?

Rolnik – Hoje, para você construir acima do coeficiente básico na cidade, que varia de um até quatro vezes a área do terreno, paga-se a outorga onerosa e os recursos são aplicados pelo FUNDURB, na produção de habitação de interesse social, no restauro e na preservação de patrimônio histórico, em áreas verdes e na mobilidade ativa. Nesse substitutivo do plano diretor existe a possibilidade dos incorporadores, em vez de pagarem esses recursos da outorga para esse fundo, fazerem eles mesmos as obras. Mas que obras? Onde? Isso não é definido. Está completamente vago, completamente na mão das próprias incorporadoras, tirando a dimensão pública, o interesse público desse processo.

ARTE!✱ – Em que medida o substitutivo se distancia das boas práticas de planejamento urbano em curso mundo afora? 

Rolnik – Hoje nós temos uma discussão super importante que tem a ver com a mudança climática, com a questão ambiental. Ela exige que a gente repense esse modelo de organização do espaço urbano no sentido da renaturalização, de maior respeito às águas e à forma como elas se comportam na cidade, por exemplo. Isso exige uma reflexão sobre as formas de ocupação predominantes que foram concebidas, digamos, no século passado, esse modelo de verticalização. E exige também a questão social: como a gente enfrenta um modelo absolutamente excludente de cidade, que faz com que o destino da cidade seja definido pelas possibilidades de rentabilidade do solo urbano para os investidores e não pelas necessidades da população? Sou professora de planejamento urbano há décadas, e uma das primeiras coisas que eu ensino a meus alunos é que um bom plano parte das necessidades de quem está no território. estamos fazendo um caminho muito perigoso no nosso urbanismo, cada vez mais voltado para as oportunidades e rentabilidade dos investidores e menos para as necessidades da população.

ARTE!✱ – Quem trafega hoje em São Paulo por vias como a Avenida Rebouças já se surpreende com a quantidade de torres que vêm sendo erguidas, numa área já quase colapsada em termos de trânsito…

Rolnik – A destruição que nós estamos vendo na cidade hoje é o plano de 2014. Era um modelo de edifício sem garagem, para quem ia usar o transporte coletivo exclusivamente, mas isso não foi respeitado. O atual modelo do PDE permitiu esse monte de distorções. Uma coisa seria a Avenida Rebouças com usuários de transporte coletivo, que estão lá para usar o metrô e o corredor de ônibus. E outra coisa é cada uma daquelas unidades residenciais terem dois ou três automóveis. Isso precisa ser corrigido.

ARTE!✱ – Ao mesmo tempo em que vemos esse grande número de novos empreendimentos, sabemos que a classe média brasileira está empobrecida, algo que se acentuou com a pandemia. A quem, afinal, destina-se esse imenso volume de novas unidades? Estamos diante de uma especulação imobiliária exacerbada?

Rolnik – Essa é a pergunta que não quer calar. Na verdade, uma parte importante desses imóveis foram adquiridos por investidores ou fundos de investimento, que têm uma enorme quantidade de capital excedente financeiro e encontram no imobiliário, no tijolo, uma possibilidade de rentabilidade muito grande, com uma aposta de médio e longo prazo, não imediata. Por isso, uma parte daquilo que foi comprado para investir, sequer entrou no mercado nesse momento, seja para a venda, seja para aluguel. Uma outra parte vai para todo um setor, um novo setor financeiro estruturado em torno do aluguel, inclusive do aluguel de curta permanência. Para os chamados nômades urbanos ou mesmo turistas, e  que captura uma parte do mercado, é capaz de pagar muito mais por metro quadrado do que os moradores permanentes do bairro. Isso tem provocado na cidade um enorme aumento de valores de aluguel. Eu diria que boa parte, uma parte importante do que foi produzido está vazia e permanecerá vazia porque funciona como um ativo, na mão de grandes gestores de investimentos que incluem ativos imobiliários.

ARTE!✱ – Há dez anos, quando discutíamos o PDE aprovado em 2014, três aspectos do planejamento urbano da cidade vieram à tona com força: ocupação do espaço público, mobilidade e construções de uso misto. Como ficaram essas questões?

Rolnik – A aposta do plano de 2014 foi em transporte coletivo de massa e mobilidade ativa, que inclui andar a pé e bicicleta. Então, a ideia do uso misto, a ideia de você ter bairros que misturam residência e serviços, tinha o objetivo fomentar uma mobilidade de proximidade, portanto uma mobilidade a pé. Você poderia resolver o seu consumo no cotidiano, inclusive consumo cultural, sem ter que se deslocar, podendo fazer isso nas proximidades. Entretanto, aconteceram essas distorções da aplicação do plano, que acabaram reiterando o modelo do automóvel, através das garagens, e a gente vê como isso é forte. A pressão foi enorme em favor do carro e voltou agora nesse substitutivo também. Por exemplo, para que uma das áreas de investimento do FUNDURB seja o recapeamento de vias para o automóvel. Essa mudança deve ser profundamente rejeitada. Vamos pensar na transição climática, nos veículos a combustão, que são derivados de petróleo, assim como o asfalto é derivado de petróleo. Não há perspectiva desse modelo de cidade continuar no futuro. É absolutamente necessário fazer essa transição.

 

Fundação Getulio Vargas lança o I Seminário Acadêmico de Economia do Mercado da Arte

Em 2016, Paulo Tenani, há 20 anos professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, criou um grupo de estudos sobre a Economia do Mercado da Arte dentro do FGV Invest, centro de estudos da instituição. Dois anos depois, juntou-se a ele e ao grupo sua ex-colega de graduação na Universidade de São Paulo, Katya Hochleitner, cuja carreira acadêmica enveredou, após o bacharelado em Ciências Econômicas, para um mestrado em Estética e História da Arte e um doutorado em Estética e História da Arte, ambos na USP. Ao longo de sete anos, o grupo cresceu, abrigando hoje mais de 60 membros. Com a pandemia, expandiu suas fronteiras para fora, por meio dos encontros por videoconferência, atraindo participantes do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e dos EUA. Consolidado, o grupo realiza em 21 de setembro o I Seminário Acadêmico de Economia do Mercado da Arte, evento que até o dia 30/6 está aberto para propostas de trabalhos.

Segundo comunicado da FGV, o objetivo do evento é “gerar um espaço de discussão para acadêmicos, pesquisadores e profissionais do mercado da arte, promovendo e divulgando pesquisas científicas e aplicadas relacionadas à economia do mercado da arte”. Para Tenani, o seminário é um desenvolvimento natural do grupo de estudos, que buscou cobrir toda a literatura existente acerca do tema. “Até 2020 tentamos descobrir quem eram os profissionais, onde estavam e quais as publicações já existentes. A partir daí surgiram as primeiras teses. Vieram também vários cursos ligados ao tema na escola, primeiro na graduação, em que o estudante acrescenta a cultura aos seus estudos de mercado. E, em seguida, veio um MBA na área. O momento agora é de expandir as fronteiras do conhecimento por meio do seminário”, diz o professor. Já Hochleitner destaca que o evento “é uma celebração de nosso grupo de estudos, que se abre para o mundo, com o objetivo de reduzir a falta de transparência do mercado”.

A falta de transparência, ressalta Hochleitner, é um dos obstáculos para o crescimento do mercado de arte no Brasil. Segundo ela, a chamada assimetria informacional, ou seja, a desigualdade no nível de informação entre diferentes agentes do mercado – galerias de arte, marchands, casas de leilão etc. –, pode ocasionar preços altos artificiais e favorecer, por exemplo, a comercialização de obras falsificadas, aspectos de ordem econômica que impedem a expansão do mercado.

Tenani compara o mercado de arte brasileiro ao financeiro, nos anos 1980, “quando ele vivia sob o domínio de Naji Nahas”, empresário libanês radicado no país, que atuou como especulador e em 1989 foi acusado como responsável pela quebra da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. “As pessoas tinham medo de entrar. O mercado financeiro criou instituições para superar isso. O mercado da arte também tem tentado e, se um dia conseguir superar, talvez ele possa crescer como o financeiro cresceu. Ver outros casos para entender melhor o que se passa na arte é fundamental”, afirma Tenani. O economista argumenta que, ainda que a comparação não seja bem-vinda para muitas pessoas do segmento, o mercado de luxo pode dar lições ao da arte. “Ambos têm o mesmo tipo de consumidor, entre outras características em comum”.

Hochleitner lamenta a falta de estudos periódicos sobre o mercado, como o The Art Market, realizado anualmente pela Art Basel e pelo banco UBS, e em que o Brasil aparece apenas no contexto regional da América Latina. Até 2018, a Associação Brasileira de Arte Contemporânea divulgava uma pesquisa setorial, mas o trabalho foi pausado. “Foi o melhor que a gente teve no Brasil, até aquele ano. Mas esse relatório da Abact se limitava somente às galerias associadas e não tinha um enfoque quantitativo de vendas tão detalhado”, diz a professora.

Acerca do estado do mercado de arte no Brasil, Hochleitner argumenta que sua economia está diretamente ligada à do país. Quando a economia brasileira esteve bem, o mercado de arte seguiu a tendência, com as feiras nacionais recebendo diversas galerias estrangeiras de peso, como White Cube e Gagosian, entre outras. “Em 2013, o Brasil era a bola da vez, segundo o The Art Market, que hoje em dia aponta seu foco para a China, a África e já destacou também o mercado russo. Naquele início dos anos 2010, o Brasil aparecia na capa da revista britânica The Economist como país em ascensão, com o Cristo Redentor subindo como um foguete. A partir do momento em que a China explodiu e se internacionalizou, nosso mercado se voltou para dentro, mesmo. E quem compra arte, no Brasil, são os poucos colecionadores de sempre”, conclui.

MAM Rio celebra 75 anos com exposição que mergulha em suas cinco áreas de atuação

Anna Bella Geiger, "Sobre a arte/Diga conosco: bu-ro-cra-cia", 1978. Crédito: Coleção Gilberto Chateaubriand/MAM Rio. Foto: Divulgação
Anna Bella Geiger, "Sobre a arte/Diga conosco: bu-ro-cra-cia", 1978. Crédito: Coleção Gilberto Chateaubriand/MAM Rio. Foto: Divulgação

Em cartaz até dezembro, a exposição Museu-escola-cidade: o MAM Rio em cinco perspectivas propõe bem mais do que uma viagem nostálgica ao longo dos 75 anos da instituição, mas um mergulho nos bastidores das ações realizadas pelo museu carioca em cinco áreas: educação, design, experimentação, cinemateca e movimentos artísticos. “Queríamos mostrar coisas que o público eventualmente já tivesse visto, como capas de catálogo ou folhetos de mostras do passado, mas também os processos por trás das ações do museu”, ressalta Pablo Lafuente, diretor artístico do MAM Rio.

Aproximadamente 250 obras (de um acervo de 16 mil) e 250 documentos compõem o conjunto em exibição no Salão Monumental, que recupera seu projeto expositivo original, desenhado por Karl Heinz Bergmiller. Entre os trabalhos apresentados estão criações de 93 artistas brasileiros e estrangeiros, como Abraham Palatnik, Alberto Giacometti,  Anita Malfatti, Fayga Ostrower, Ivan Serpa, Max Bill, Nelson Leirner, Rubens Gerchman, Tunga e Willys de Castro. No fim de julho, o MAM abrirá outra mostra, documental, que vai se debruçar sobre o projeto do museu, não só arquitetônico – assinado por Affonso Eduardo Reidy – mas relativo à sua concepção.

Fazer o recorte do que seria mostrado não foi tarefa fácil, e Lafuente conta que cada núcleo apresentou dificuldades distintas para a seleção de itens. “Em design, por exemplo, havia mais documentos, entre projetos e fotos, do que peças para exibição”. A coleção de design do MAM é bem pequena, segundo o diretor, limitada a apenas “algumas dezenas” de produtos, que não refletiriam três décadas de trabalhos realizados pelo museu naquela área.

Já a Cinemateca trouxe outro tipo de impasse: de um arquivo gigantesco, decidiu-se dar uma pequena amostra de apenas quatro filmes, de época distintas, com curta duração, porque não era desejo da equipe exibir produções de longa-metragem no espaço expositivo. “Foram escolhas que simplesmente mapeiam uma longa trajetória. E apresentamos também 16 cartazes de uma coleção imensa, simplesmente para mostrar a ponta do iceberg”, diz. Na área de educação, conta Lafuente, a equipe “sofreu muito também”, porque existem muitos documentos, entre planos de aula, listas de estudantes, avaliações, programações de cursos, fotos, um material que renderia “um livro de 500 páginas”.

Para o núcleo de artistas e movimentos, havia um sem número de catálogos e folhetos de épocas diferentes, o que dificultou bastante a seleção. Tinha-se que decidir entre mostrar a capa de uma publicação ou “um ensaio inteiro, por exemplo, de Tomás Santa Rosa, para a segunda exposição feita pelo MAM. Não dava para mostrar apenas o primeiro parágrafo. O processo de escolha exigia não somente que se compreendesse a relevância de um documento, mas como seria sua leitura, numa parede, em pé”, explica.

Havia também escolhas incontornáveis, como os registros dos Domingos de Criação, projeto artístico e educativo criado em 1971 pelo crítico e curador Frederico Morais, então coordenador de cursos do MAM Rio. Foi decidido que a exposição mostraria ao menos uma foto de cada domingo. Ou ainda as fotos do incêndio de 1978, feitas por Walter Carvalho, das quais apenas duas são exibidas. “Poderiam ser 50, num projeto maravilhoso. Somente este ensaio fotográfico, do prédio após o incêndio, poderia ser transformado em uma exposição separada”, afirma.

Em meados do ano passado, a equipe do museu começou a pensar o que seria “apropriado fazer”, por meio de uma exposição, para celebrar os 75 anos da instituição, segundo Lafuente. A curadoria é assinada por toda equipe do MAM. “Não seria justo, nem um reflexo da realidade, que somente a Bia [Beatriz Lemos, curadora do museu] e eu assinássemos, porque foi um trabalho que envolveu um total de 60 pessoas, inclusive dos times de pesquisa e de educação, por exemplo”, pondera.

“Ao mesmo em que nos dedicávamos às exposições programadas para 2022, passamos a fazer um levantamento de documentos sobre a origem do museu, arquivos que revelavam planos institucionais, e também fizemos leituras de teses acadêmicas, livros, artigos, tanto do acervo ou da biblioteca do MAM como de outras fontes”, conta. “Também começamos a conversar com pessoas que tinham passado pelo museu, tanto artistas como profissionais de áreas diversas”.

De início, essas conversas foram informais, em busca de curiosidades, lembranças de dinâmicas institucionais e momentos importantes da trajetória do museu, entre outros assuntos que deveriam ser trazidos para a reflexão histórica a ser proposta na exposição. Em seguida, a equipe começou a anotar questões que vinham à tona e consideravam relevantes. Alguns dos entrevistados também fizeram sugestões de ações futuras para o MAM, devidamente registradas.

Lafuente conta que muito em breve vão retomar alguns desses diálogos – com nomes como Anna Bella Geiger, Carlos Vergara, Cildo Meireles, Waltercio Caldas, Luiz Camillo Osorio, além de pessoas que trabalharam nos bastidores da instituição – e fazer registros dessa história oral para o arquivo do MAM e uma futura disponibilização para pesquisadores e o público em geral.

Outra ideia surgida a partir das conversas é a realização de uma série de bate-papos – de quatro a cinco encontros por ano – sobre os aspectos diversos da história do museu, possivelmente restritos a uma média de 40 convidados. “Acreditamos também que estas conversas vão nos ajudar a criar uma base para um plano museológico, algo que atualmente o MAM não possui”, explica o diretor artístico.

Há dois anos e meio no cargo de diretor artístico do MAM Rio, Lafuente ressalta que os documentos detalhando exposições, com as visões de cada época sobre práticas curatoriais e educativas, foram uma descoberta surpreendente. “A gente imagina que vai encontrar fotos das montagens ou das mostras já prontas. Mas acaba encontrando registros do planejamento, de cursos a exposições. Esses achados são fascinantes porque são difíceis de se encontrar, se você não mergulha em um arquivo, e porque dão acesso a um projeto de pensamento”.

Outro aspecto que Lafuente salienta é a atuação do MAM Rio na área de design. “Revisitar esse material, que trazia diferentes tipos de aproximação entre o design internacional e o nacional, por exemplo, foi muito interessante, porque ao longo do tempo a prática das artes visuais se separou um pouco da design. Normalmente, os museus de arte não mostram design, e vice-versa. No MAM, durante duas a três décadas, entendiam-se essas práticas como conjuntas, paralelas ou com interseções. Encontrar isso, como um compromisso institucional do museu, foi muito interessante. Faz refletir por que houve essa divisão e questionar se não podemos retomar as práticas em conjunto”, argumenta.

Ao longo da trajetória de 75 anos do MAM Rio, Lafuente considera que o incêndio de 1978 foi definitivamente um ponto de inflexão, um momento que apontava para uma crise estrutural, uma decadência e falhas de manutenção e gestão de risco, não somente do MAM, mas de outras instituições também. “Ao mesmo tempo foi um símbolo da relevância do museu, evidenciado pela demanda da sociedade que se engajou num processo de reconstrução participativa, com uma grande vontade e uma diversidade de propostas. É um modelo de atitude que se deve ter em relação a qualquer museu, como profissionais ou não da instituição”, conclui.

SERVIÇO
Museu-escola-cidade: o MAM Rio em cinco perspectivas
Até 3 de dezembro
MAM Rio – Av. Infante Dom Henrique, 85 – Aterro do Flamengo – Rio de Janeiro (RJ)
Visitação: de quarta a domingo (incluindo feriados), das 10h às 18h; aos domingos, das 10h às 11h, visitação exclusiva para pessoas com deficiência intelectual
Entrada: contribuição com opção de acesso gratuito. Valores sugeridos: adultos: R$ 20, crianças, estudantes e +60: R$ 10
 

Casa de Vidro recebe projeto artístico ‘The Square’

Nuno Ramos, "Waiting for my wings", 2022, no projeto "The Square", realizado na Casa de Vidro. Crédito: Cortesia/Fortes D'Aloia & Gabriel
Nuno Ramos, “Waiting for my wings”, 2022, no projeto “The Square”, realizado na Casa de Vidro. Crédito: Cortesia/Fortes D’Aloia & Gabriel

Até este sábado (3/6), a Casa de Vidro recebe a terceira edição do The Square, projeto artístico da marca italiana Bottega Veneta, que passou por Dubai e Tóquio. A iniciativa – cujo objetivo é fazer uma ativação cultural em cada destino, com artistas locais – é comandada por Matthieu Blazy, diretor criativo da marca, e teve curadoria de Mari Stockler. Vale ressaltar que, em São Paulo, o The Square ganhou uma singularidade: ao invés de ser montado numa estrutura cenográfica, como nas edições anteriores, a antiga morada de Lina Bo Bardi (1914-1992), no Morumbi, foi escolhida pelo próprio Blazy, conhecedor e admirador do trabalho arquiteta, para abrigar o projeto, que tem trabalhos de quase 50 artistas.

O convite a Mari Stockler para assumir a curadoria foi feito em fevereiro deste ano. O primeiro desafio, conta Mari, foi entender como seria montar a exposição num espaço de grandes dimensões como a Casa de Vidro. A curadora decidiu, então, criar quatro percursos nas áreas interna e externa da morada, levantando questões sobre tempo, geometria e espiritualidade, raízes tropicais (com alusões ao movimento neoconcreto, à importância de Salvador na trajetória de Lina e às origens da Tropicália), e, por fim, um percurso sobre o surgimento da Bossa Nova.

A divisão em percursos tinha um propósito bem prático: Mari queria evitar que cada ambiente tivesse um acúmulo de visitantes, o que eventualmente prejudicaria o entendimento de sua proposta curatorial e a observação das obras. As visitas também são agendadas, de modo que não haja um excedente de público num mesmo momento.

Para a seleção de artistas, a curadora achou importante mesclar nomes consagrados com artistas em início de carreira, autodidatas ou com experiência acadêmica, num elenco que também refletia a diversidade da produção de diferentes lugares do Brasil, não apenas do eixo Rio-São Paulo. Entre os convidados estão Ibã Sales, Vivian Caccuri, Luiz Zerbini, Carlito Carvalhosa, Rosana Paulino, Cristiano Lenhardt e Leda Catunda. A mostra tem também criações de Lygia Clark, Hélio Oiticica, Augusto de Campos, Mestre Guarany e Surubim Feliciano da Paixão, entre outros.

“A Lina era decolonial muito antes da museologia e dos curadores chegarem a esse lugar de reflexão. Ela via inteligência em objetos populares e, naquele espaço, colocava, ao lado de um móvel do século 18, uma jarra de metal feita de lata de óleo”, diz Mari à arte!brasileiros, ressaltando que seu olhar foi formado a partir da produção e do pensamento de Lina Bo Bardi, revelados em mostras da arquiteta dos anos 1980, como Caipiras, Capiaus: Pau-a-pique, montada no Sesc Pompeia, um de seus projetos arquitetônicos mais emblemáticos.

No dia da inauguração, em uma referência aos saraus que Lina abrigava em sua morada, o projeto teve bate-papos com alguns dos artistas convidados, como Lenora de Barros e Arnaldo Antunes, e mediadores, como Keyna Eleison, uma das curadoras da primeira Bienal das Amazônias, além de um breve show de Alaíde Costa, acompanhada do violonista João Camarero. Os encontros foram gravados e, em breve, estarão disponíveis online, num hotsite do projeto.

Para preparar-se para The Square, a curadora conta que leu livros diversos acerca da casa e de Lina, evitando biografias, “um partido que tomei porque elas desmistificam muito” os personagens abordados. Leu, ao invés, títulos como Lina Bo Bardi – Obra construída, de autoria de Olivia de Oliveira e com foco nos projetos da arquiteta que foram executados; um livro sobre a Casa de Vidro produzido pelo próprio Instituto Bardi, diversas teses acadêmicas e ainda artigos de Ecléa Bosi, Marcelo Ferraz e Frederico Morais, entre outros.

Outro aspecto ímpar da edição brasileira de The Square foi a publicação de uma caixa com quatro livros que detalham o projeto. A edição foi feita em apenas três semanas, segundo a curadora. “Eu não queria que o projeto tivesse cara de exposição, com plaquinhas identificando cada obra e respectivo artista. Queria que houvesse fluidez entre o que já era da casa e o que eu iria trazer para dentro dela”, conta. A ideia inicial era criar apenas uma brochura para nomear as obras e seus criadores. Mas a marca acabou abraçando a ideia de uma publicação mais ambiciosa, que também reúne fotos das obras em exibição, mapas dos percursos, artigos e, claro, conta a história de Lina e de sua Casa de Vidro.

SERVIÇO
The Square São Paulo
Até este sábado, 3/6
Curadoria: Mari Stockler – R. Gen. Almério de Moura, 200 – Morumbi, São Paulo (SP)
Visitação: nesta sexta (2/6) e amanhã, das 10h às 16h
Entrada gratuita; agendamento neste site

 

Mostra aborda as possibilidades da palavra em obras de artistas de Argentina, do Brasil e Chile

Gisella Scotta, "Encarnacion", 2022. Foto: Natalia Marcantoni

A exposição Qué cosa, la poesía visual?, em cartaz até 1º de outubro, no Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, a apresenta um conjunto de obras históricas e contemporâneas, de artistas da Argentina, Brasil e Chile, que se debruçam sobre as possibilidades da linguagem e da palavra. Na seleção de trabalhos estão presentes textos visuais e sonoros, além de um importante arquivo da poesia visual argentina. A curadoria ficou a cargo de Guillermo Daghero, e a expografia, de Anna Ferrari.

A exposição presta uma homenagem a Edgardo Vigo (1928-1997), poeta, performer e artista plástico argentino. Jorge Santiago Perednik (1952-2011) – poeta, tradutor e ensaísta do país – também é homenageado por Qué cosa, la poesía visual? A mostra reúne mais de 30 artistas que abordam a poesia visual, entre eles outros expoentes argentinos das décadas de 1960 e 1970, como León Ferrari, Mirtha Dermisache e Juan Carlos Romero. Entre os brasileiros, destaque para Augusto de Campos – que apresenta um vídeo feito em colaboração com o cantor e compositor Caetano Veloso – e Lenora de Barros.

A exposição também destaca a produção de poesia experimental feita após a retomada da democracia na Argentina, entre os anos 1980 e 1990, por nomes como Perednik e Carlos Estévez. Também daquele final do século 20, o Archivo Vórtice, dirigido por Fernando García Delgado, surge como um caso paradigmático da consolidação da poesia visual à época, com um reservatório excepcional de poesia visual e arte postal da Argentina e do mundo.

As possibilidades visuais e sonoras da palavra também são vistas por meio de obras produzidas no Chile, por Carlos Soto-Román, ou na Espanha, por Belén Gache, que por sua vez dialogam com artistas atuando em Córdoba, como Lucas Di Pascuale, Rosana Fernández, Huenú Peña ou Gisella Scotta; com os que produzem em Santa Fe, como Hernán Camoletto e Claudia del Río; ou ainda com criadores portenhos, como Ezequiel Alemian, Geraldina Blas, María Gamarra, Magdalena Jitrik, Jorge Macchi, Emiliano Miliyo, Leticia Obeid, Hugo Vidal e Ivana Vollaro.

Segundo Anna Ferrari, seu projeto de expografia propõe uma arquitetura neutra e um percurso fluido, “como se fosse uma poesia visual gigante, em que a gente conectou as diferentes obras, com harmonia. Um caminho em que você vai lendo a mostra ao percorrê-lo”. Quase todo o espaço tem paredes brancas. Anna conta à arte!brasileiros que somente algumas delas foram pintadas de preto porque era algo que dialogaria com trabalhos específicos presentes na seleção. A arquiteta também buscou ter uma quantidade mínima de mobiliários e paredes entre as salas, para que o espaço expositivo ficasse bem integrado.

Para reforçar a abrangência insinuada pela pergunta que intitula a mostra, o comunicado de imprensa do CCK salienta que a poesia visual é “próxima dos termos poesia abstrata, poesia concreta, poesia de invenção, poesia experimental, tipografia, poesia minimalista, poesia semiótica, poesia espacial, entre tantos outros nomes, para designar algo que cabe na palavra poesia, na sua natureza, nos seus caprichos e na sua dispersão”. Também assinala que a poesia pode ser vista, ouvida e sentida “em seus fragmentos, gestos, signos, sons e signos”, e, no caso de Qué cosa, la poesía visual?, como “algo em exibição”.

Leia, a seguir, a entrevista de Guillermo Daghero à arte!brasileiros:

arte!✱ Uma vez que não há efemérides em torno de Edgardo Vigo, por que o artista é o ponto de partida desta exposição?

Guillermo Daghero – Inicialmente, trata-se de um convite curatorial do Centro Cultural Kirchner que pretende dar visibilidade ao espaço da poesia cruzando a área da literatura do CCK com a área das artes visuais, e é justamente isso que dá origem a uma das muitas ideias sobre o tema da poesia visual: uma prática intermediária entre a poesia e as artes visuais. A obra de Edgardo Antonio Vigo é uma referência indiscutível nesta exposição porque, em meados dos anos 1950, ele começou com essas práticas poéticas não convencionais, gerando diferentes ações que marcaram a arte argentina. Uma das referências do passado para a realização desta exposição é a Expo/Internacional de Novísima Poesía/69, que Vigo organizou em março de 1969 no Centro de Artes Visuais do Instituto Torcuato Di Tella (CAV) de Buenos Aires. É oportuno acrescentar o gesto de Haroldo de Campos, que em 1967 sugeriu em carta escrita a Jorge Romero Brest, diretor do CAV, a organização desta exposição, já que Vigo naqueles anos publicava Diagonal Cero, uma revista de vanguarda em que convidou e mostrou o que havia de atual em termos de poesia visual no resto do mundo. Vigo e a sua obra são um ponto de partida, assim como Jorge Santiago Perednik, importante estímulo com as edições da revista Xul nos anos 1980 e 1990, em que difundiu, como dizia na sua capa, a outra poesia, e é também o Vórtice de Poesía Arquivo visual com a ideia e direção de Fernando García Delgado em que, no início de 2000, lançou os encontros de Poesia Visual, Sonora e Experimental juntamente com outras publicações e convocatórias. Contextualizar, citar brevemente e nomear essas referências nada mais é do que destacar e saudar aquele passado quando não havia lugar ou lugares onde o experimental em poesia acontecia, e Vigo foi, sem dúvida, sinônimo desse ponto de partida.

arte!✱ – De um ponto de vista retrospectivo, Qué cosa, la poesía visual? é uma das exposições mais completas sobre essas experimentações com a linguagem na cena artística argentina nos últimos anos? Ou sua principal característica são os diálogos que propõe com o Brasil e o Chile?

Guillermo Daghero – A exposição é apresentada em quatro salas muito amplas, separadas umas das outras. A parte central reúne algumas das referências argentinas que utilizaram essa linguagem visual, mas é uma síntese que mostra um panorama muito limitado e ajustado do passado. De alguma forma, toda curadoria implica em um corte, e é meu costume mostrar pouco ou o suficiente para se ter uma ideia do que foi, do que é e também do que falta. Eu responderia dizendo que a exposição está incompleta em termos de poesia visual, dizendo também que ela preserva e contém o que Mallarmé disse, pensar, isso: de outra forma. Mais do que oferecer um panorama completo carregado de obras que dão conta do passado na poesia visual, a ideia de recorte e seleção curatorial atravessa a questão de por onde passa o visual na poesia. Expor nas quatro salas e, indistintamente, o passado com o presente sob a questão Qué cosa, la poesía visual? deixa em aberto a possibilidade de ver na poesia uma coisa pensante, e não algo estabelecido. Foi dada ênfase e atenção à espacialidade entre as obras nas salas, e este foi um trabalho conjunto com Anna Ferrari, em que cuidamos, acima de tudo, da forma e do conteúdo da obra de cada convidado ou no coletivo da mostra. A exibição de textos exige uma leitura extra por parte do espectador em que o silêncio ou, neste caso, os espaços em branco, também significam. São formatos e técnicas diferentes, o que torna o espetáculo eclético e com significados diversos. Embora haja uma seleção por salas, não há limites precisos entre as obras, há uma espécie de linguagem universal em que tudo se mistura por meio do olhar e da leitura que cada um pode fazer no conjunto daquilo que é exposto.

arte!✱  A propósito, quão próximas e quão distantes estão as produções de poesia visual desses três países?

Guillermo Daghero – Esse é um tema que também surge na exposição? Talvez seja a minha própria proximidade, precoce e deslumbrante, quando encontrei a poesia concreta do Brasil numa revista da Unesco chamada El Correo, e que chegou na casa da minha avó quando eu era adolescente. Neste número especial do Brasil, vejo sob o nome de poemas alguns desenhos textuais despojados, atravessados ​​por signos e sinais que obedeciam a variações gráficas e geométricas de Décio Pignatari e, em outra página, um diagrama tipográfico de Pedro Xisto, e eu disse a mim mesmo, atônito na descoberta, ”o que é isso?”. Mais tarde, no início de 2000, entrei em contato com a poesia chilena e descobri diferentes práticas poéticas ligadas a um certo experimentalismo em relação ao modo de publicar e fazer poesia (estou falando de Huidobro, Parra, Deisler, Zeller, Martínez, Millán, Vicuña e outros), e é nessa época que me aproximo e começo com algumas trocas de idéias e conversas em relação à poesia de Andrés Ajens, Martín Gubbins, Felipe Cussen, Anamaría Briede, Martín Bakero e ultimamente Carlos Soto Román, poeta e performer, a quem convido a participar com a edição de Chile Project (2013), em versão impressa, e o vídeo Borradura (2021). Esses dois episódios significativos fizeram com que eu não perdesse nenhuma relação com essa forma de materialidade poética que os concretistas chamavam de poesia de invenção, termo que adotei para continuar essa prática e essa busca e associá-la a experiências de pares na Argentina e em outros países.

arte!✱ – Há um diálogo entre gerações na exposição? Em caso afirmativo, o que esses diálogos revelam?

Guillermo Daghero – Lenora de Barros, Ivana Vollaro e Augusto de Campos convivem no mesmo espaço, são três gerações diferentes e contemporâneas entre si. A obra de Ivana, Alfaboca (2004), é um vídeo que contém cinco clipes poéticos em que participam Lenora de Barros e Arnaldo Antunes. Numa das extremidades da parede e na mesma sala, vê-se exposta a obra Poema (1989) de Lenora; e na sala seguinte, O Pulsar (1975) de Augusto, em versão vídeo. O Pulsar pertence à série Stelegramas (1975-1978) e é um poema musicado por Caetano Veloso para o livro Caixa Preta (1975) de Augusto de Campos e Júlio Plaza, posteriormente incluído em Viva vaia (poesia 1949-1979 ). A versão em exibição corresponde a uma produção audiovisual de Gonzalo Aguilar (2014).

arte!✱ No caso de León Ferrari, há peculiaridades, distinções, entre a poesia visual por ele concebida entre os anos que em viveu na Argentina e os passados no Brasil?

Guillermo Daghero A obra de León Ferrari é extensa e tem suas épocas e formatos. Foi utilizado material da Fundação Augusto e León Ferrari e feita uma seleção de obras gráficas com Andrea Wain. Algumas Cartas foram incluídas em cópias xerox e um livro de artista, Poemas. Ambas as produções correspondem aos anos de sua residência no Brasil. Acrescentam-se outros textos no estilo de escrita ilegível, que são tintas e aquarelas de 1997, anos em que León participou ativamente dos encontros de poesia experimental organizados pela Vórtice em Buenos Aires. A escrita em si e o desenho como escrita ocupam na obra de León um lugar importante em sua forma de fazer arte, é aí que as grafias se misturam em um componente totalmente visual entre letra e imagem.

arte!✱ Você poderia citar alguns artistas ou obras presentes na exposição que representam as experiências mais ousadas?

Guillermo Daghero – As obras de Roxana Fernández, Huenú Peña e María Gamarra com Geraldine Blas têm uma particularidade que não sei definir nem explicar o porquê, mas há nelas algo que atrai. Associo esta percepção aos seus componentes ópticos e sonoros no caso de Roxana, mas eles geram sensações que não podem ser definidas com precisão, excedem aquela informação e mensagem, então traduzo aquele olhar como poesia ou precisamente como uma coisa… coisas complexas e simples… são obras difíceis de interpretar, que seduzem e causam efeito.

arte!✱ Linguagem, poética e política têm o mesmo peso na produção desses artistas selecionados? Ou um desses aspectos se manifesta mais agudamente em alguns do que em outros?

Guillermo Daghero – Há obras, discursos e trajetórias artísticas mais compromissadas que outras entre o poético e o político. As obras de Romero, Vidal, di Pascuale, Jitrik, Macchi, Soto Román e Scotta, como um todo, são obras de conteúdo gráfico e literário em que aparecem a memória histórica e as denúncias sociais.

SERVIÇO
Qué cosa, la poesía visual?
Até 1/10
Curadoria: Guillermo Daghero
Centro Cultural Kirchner – Sarmiento, 151 – Buenos Aires, Argentina
Visitação: de quarta a domingo, das 14h às 20h
Entrada gratuita

 

Os papéis rebeldes de Miguel Ángel Lens

Miguel Ángel Lens, obra presente na exposição "La poesía está en la calle". Cortesia: Muntref
Miguel Ángel Lens, obra presente na exposição "La poesía está en la calle". Cortesia: Muntref

La Poesía está em la calle (a poesia está na rua), mostra de Miguel Ángel Lens (Buenos Aires, 1951-2011) com curadoria de Francisco Lemus e Mariano López Seoane no MUNTREF, é algo como o coroamento de uma operação de resgate reveladora, dedicada e coletiva. Lens foi poeta, artista visual e ativista. Ele fez parte do grupo San Telmo Gay na década de 1980 e fundou o grupo Poesía Gay de Buenos Aires em 1994. Durante sua vida, publicou livros de poesia e editou a compilação Poesía Gay de Buenos Aires. E embora seus desenhos e colagens chegassem às mãos de muita gente por meio de panfletos, nunca expôs sua obra visual em instituições ou galerias de arte. Após sua morte, e graças aos esforços de Juan Queiroz, o irmão de Lens (José Luis) e seus amigos Néstor Latrónico, Horacio Menú, Alberto Retamar e Marta Muriago doaram as obras e documentos que estão na base da exposição ao arquivo do IIAC (Instituto de Investigaciones en Arte y Cultura).

A mostra reúne versões datilografadas de poemas, desenhos, colagens, panfletos, cartas e fotografias. Algumas (principalmente aquelas em que Lens retrata seres fantásticos e propõe capas para livros imaginários) estão penduradas em duas das paredes da sala; o restante (principalmente o material com maior predominância do que está escrito) em armários e gavetas. E o cardápio se completa com uma instalação sonora em que o poeta Mariano Blatt lê Lens, numa interpretação que a faz soar contemporânea e urgente.

A obra que os curadores escolheram para colocar em primeiro lugar no passeio pelas paredes, Dibujopoema, funciona como um prólogo e sintetiza alguns dos gestos exibidos no resto da exposição. Nela, uma palmeira composta de palavras e linhas desenhadas tem um tronco ziguezagueante que afirma: “As árvores mais feias são as mais bonitas”. E então fica claro que, para Lens, o visual e o poético têm uma origem comum: que a beleza deve ser buscada além das margens; e, sobretudo, que tudo — incluindo El instante de la revolución, como é intitulada outra das peças — cabe numa folha de papel de 30 x 20 cm. Todo o material de La poesía está en la calle (A poesia está na rua) é composto por papéis que a qualquer momento podem ser empilhados novamente em uma pasta para serem facilmente movidos e reapresentados em outro lugar. Ou fotocopiados para multiplicar e atingir ainda mais olhos e mãos.

O que emana de todos eles é a necessidade de sair, de vaguear e de se encontrar com o
outro — e em particular com um outro desconhecido. Como soa em Arolá, um dos poemas cantados por Mariano Blatt: “Estou farto / de mim mesmo / do meu egocentrismo”, sublinhando um axioma fundamental para a lógica de Lens, que se cobra de maior eloquência num presente em que a segmentação cultural e a programação algorítmica atendem pessoas com conexões cada vez mais precisas com preferências pré-estabelecidas.

Lens é capaz de encontrar o fio condutor entre as mais díspares sensibilidades: entre
a simplicidade de Sandro Penna e o sigilo iluminado de Rimbaud; entre o niilismo radical de Artaud e os camafeus de poetas como Juan Gelman e Haroldo Conti, associados à esquerda mais tradicional (que, por sua vez, excluía a dissidência sexual). Sua rebeldia exala uma maldição não isenta de ternura, uma raiva mais associativa do que exclusiva, menos interessada na afirmação de uma identidade com contornos precisos do que na abertura aos outros.

Em suas andanças urbanas, algo do existencialismo torturado e sádico de Carlos Correas, dos anos 1950, parece coexistir com a espontaneidade, os corações e os diminutivos de uma figura dos anos 1990, como Fernanda Laguna. E é tanto o operário cafuçu ou lúmpen (como aquele que enlouquece o narrador de Correas em A narração da história) quanto a pena baudelairiana com que Lens compõe um poema-desenho (Hoje na rua Callao encontrei uma pena de pomba, e com ela escrevi este poema) estão, segundo o título da exposição, na rua.

Esse fio condutor é, por que não, um impulso utópico, o desejo de um futuro radicalmente
diferente, que a recuperação democrática de 1983 não trouxe (Lens é um crítico insistente
dos limites da primavera alfonsinista), e que ressoa naquilo que José Muñoz escreveria em
seu livro Utopia Queer. Uma das peças expostas oferece uma imagem desse futuro. Chama-se La mano que se se viene, uma reviravolta na popular pergunta “como surge a mão?”, e não poderia ser mais misterioso: parece de outro mundo.

SERVIÇO
Miguel Ángel Lens: La Poesía está em la calle
Até 4/6
Curadoria: Francisco Lemus e Mariano López Seoane
Centro de Arte Contemporáneo – Universidad Nacional Tres de Febrero: Av. Antártida Argentina 1335 – Buenos Aires (Argentina)
Visitação: de terça a domingo, das 11h às 18h
Entrada gratuita