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Colaboradores da edição #44

Jamyle Rkain estuda jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie. É pesquisadora nas áreas de Mídia, Literatura, Arte e Gênero. Em 2016 e 2017, ela se dedicou à revista CULTURA!Brasileiros, assim como à plataforma virtual. Desde o início deste ano, atua como repórter na plataforma impressa e digital ARTE!Brasileiros.



Leonor Amarante é jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, revista Veja, TV Cultura, Memorial da América Latina, colaborou com World Paper Boston e Rádio Rebelde de Cuba. Prêmio ABCA pela edição da revista ARTE!Brasileiros (2012), e Prêmio Ministério da Cultura de Cuba (2009), pela atuação cultural naquele país.

Maria Hirszman é jornalista e crítica de arte. Trabalhou na editoria de Variedades do Jornal da Tarde e no Caderno 2 d’O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Nesta edição, dentre outros, entrevistou o curador da Bienal de São Paulo sobre suas estratégias.



Marcos Grinspum Ferraz é jornalista. Formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), trabalhou entre 2009 e 2012 no jornal Folha de S.Paulo, no caderno Ilustrada, e entre 2012 e 2017 na Editora Brasileiros, escrevendo principalmente sobre artes plásticas, arquitetura, música, literatura e teatro. Agora, entrevistou o curador e historiador da arte colombiano Rodrigo Orrantia para o especial ARTE!Brasileiros FOTO.


Marcos Lopes (Coil) é desenvolvedor multimídia. Trabalha na ARTE!Brasileiros desde sua fundação, auxiliando nas produções de fotografias, vídeos, newsletters, etc. Nesta edição, fotografou Mônica Nador, artista responsável pela gestão do JAMAC, vencedor do Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage 2018.

Fotos: arquivo pessoal

Arte e Inteligência Artificial: antes de abraçar ou refutar, talvez devamos investir na educação visual

Desde a nossa entrada no século XXI acompanhamos os passos rápidos da tecnologia que domina nosso cotidiano. Entre os que só veem pontos negativos e outros que a aplaudem efusivamente existe um oceano para ser discutido. É fato que as imagens, em toda sua amplitude, se tornaram a linguagem mais eficiente. Entra em cena agora, como protagonista a IA (Inteligência Artificial), tão vista nos cinema, nos desenhos animados e na literatura de ficção. Hoje se torna realidade.

Processos de produção da imagem que até agora eram demorados se tornam processos imediatos.

Na última semana, uma imagem viralizou na Internet: a do fotógrafo alemão Boris Eldagsen, que, ao ganhar o prêmio Sony World Photography, recusou a honraria afirmando que aquela imagem havia sido produzida por IA e que – portanto – para ele não era fotografia. Criou ainda a polêmica afirmando que enviou de propósito a imagem para o concurso para “testar” os jurados: “Eu competi para provocar, para saber se as competições estão prontas para a chegada da IA. Não estão”, afirmou.

Muita água ainda há de rolar. Mas foi só esta celeuma aparecer para que as redes fossem invadidas de opiniões e certezas em relação à tecnologia. Apocalípticos e Integrados – parafraseando aqui o conhecido livro de Umberto Eco, têm gastado palavras para discorrer sobre os efeitos da IA na nossa vida. Aliás, no citado livro, publicado na década de 1960, o semiólogo italiano nos convidava a pensar sobre os efeitos da tecnologia na chamada – e já superada – cultura das massas. O cinema, a literatura e até os desenhos animados do século XX já anunciavam a vida e a influência deste sistema computacional que tenta imitar o poder de aprendizagem do ser humano e até de tomar decisões. Até aqui, nada de novo!

As imagens, por serem a linguagem da eficiência da contemporaneidade, tornam-se o foco destas discussões. Já vimos o Trump correndo pelas ruas perseguido pela polícia, o Papa Francisco estiloso num casaco de inverno e até o artista Jyo John Mulloor, que, de forma divertida, criou selfies inventados e “realizados” por pessoas históricas.

Estes debates, necessários e preciosos, levam-nos a voltar no tempo. Quando a fotografia foi anunciada em 1839, um pintor, Paul Delaroche, segundo a lenda saiu gritando: “A partir de hoje a pintura está morta””. A história mostrou que não foi bem assim. Os mesmos debates foram levantados quando surgiu a fotografia digital. Muitos fotógrafos se declararam absolutamente contra, anunciando que jamais deixariam o analógico. Mais uma vez, o tempo mostrou o contrário.

A questão a ser pensada é que quando a fotografia surgiu, como a linguagem da modernidade, ela foi vista e percebida como uma máquina de criar certezas. E esta crença continuou por muito tempo. A fotografia como prova, como espelho do real, como uma janela para o mundo e não como resultado de um pensar criativo do indivíduo.

É desta forma que a IA está se apresentando quando falamos de fotografia, como um sistema capaz de criar imagens sem a interferência humana. O neurocientista argentino Facundo Manes lembra, porém, que a IA “não é capaz de criar, não tem empatia, criatividade e nem emoções”. Pelo menos por enquanto, ela só reproduz aquilo para o que foi programada.

Em 2017, o pesquisador catalão Joan Fontcuberta, em seu livro La Furia de las Imágenes (ainda sem tradução para o português), afirmava: “As imagens mudaram. Não funcionam mais como estávamos habituados e se entranham em todos os domínios do social e do privado como nunca antes na história”. Ou seja, elas continuam impactando nosso cotidiano, mas se tornaram muitas, vestígios de presenças, difíceis de apreender.

Neste momento de espanto com as novas possibilidades e com o abalar das nossas certezas, talvez o mais importante seja repensar o papel da imagem dentro de um contexto sócio-histórico. Como ela impacta nossa vida tanto do ponto de vista ético como estético. Refletimos por meio das imagens, agimos por meio das imagens, elas nos ajudam a pensar. Se no final da década de 1970 e início de 1980, os filósofos tiraram a fotografia da sua aplicabilidade para inseri-la na área da cultura, agora devemos percebê-la de maneira mais contundente como um fenômeno comunicacional.

Antes de abraçar com simpatia a IA ou refutá-la com medo, talvez tenhamos que investir na educação visual. Cada vez mais se faz necessário aprender a decodificar imagens, interpretar seu simbolismo. O mais urgente agora é nos apropriarmos do sentido da produção de uma imagem. Sair da alienação imagética para entender que, como linguagem, ela necessita ser estudada e compreendida.

Afinal, com este oceano de imagens produzidas diariamente, parafraseando Fontcuberta, vivemos a era do Homo Photographicus.

 

A obscenidade do holocausto e da sociedade de consumo na contundente arte de Boris Lurie

Boris Lurie, "Untitled (On Stomach)", c. 1963. Cortesia: Boris Lurie Art Foundation
Boris Lurie, “Untitled (On Stomach)”, c. 1963. Cortesia: Boris Lurie Art Foundation

Ao adjetivo obsceno são atribuídas ao menos duas possibilidades de etimologia. No latim, a palavra classifica aquilo que se opõe ao pudor, é grosseiro ou vulgar. Na semântica grega, há uma ligação ao teatro, em que obsceno é o que deve ficar fora de cena, por ser inapropriado mostrar aos espectadores  — por exemplo, a encenação de sacrifícios. Em sua obra, o artista plástico russo Boris Lurie (1924-2008) parece sugerir a tradução visual e simbólica de um jogo etimológico em que ele usa a acepção do latim, como alegoria, e subverte a grega – ou seja, coloca “dentro de cena” — a obscenidade do Holocausto, do qual sobreviveu, e da sociedade de consumo, alvo constante de crítica em suas criações.

Railroad Collage (Railroad to America), colagem feita em 1963, não poderia ser mais emblemática desses dois vetores de sua prática, ao mostrar uma pin-up – uma típica modelo voluptuosa da publicidade dos anos 1960, uma objetificação mercantilizante do corpo feminino – em meio aos cadáveres anônimos de judeus assassinados pelo regime nazista.

A colagem e outros 43 de seus trabalhos — um conjunto que também inclui desenhos, pinturas e esculturas — estão em exibição na mostra Arte, Luto e Sobrevivência, em cartaz no Museu Judaico de São Paulo. E o jogo etimológico aqui sugerido não é a única chave de interpretação possível de sua obra, inédita no Brasil. Convidado em maio do ano passado pelo MUJ para ser o curador da exposição, Felipe Chaimovich iniciou a seleção das obras a serem exibidas por meio de catálogos da Boris Lurie Art Foundation e do site da própria instituição.

Mas Chaimovich afirma que passou a entender melhor as peculiaridades de sua produção após a leitura de dois livros de autoria do artista, ambos sem tradução para o português. O primeiro deles foi o diário In Riga — A memoir, que fala, por meio de memórias, mas também de elementos fictícios, de sua primeira viagem, em 1975, de volta à capital da Letônia, onde vivera infância e adolescência. O segundo, foi uma ficção, Casa de Anita, que se passa num apartamento em Nova York, com quatro dominatrices e escravos sexuais que vivem uma relação sadomasoquista consentida.

“É muito denso do ponto de vista dos relatos de cenas sexuais, de todos os jogos sadomasoquistas. E se vê que tudo isso é um elemento muito profundo do universo artístico dele, refletido em uma série de suas obras”, afirma Chaimovich. O curador diz que, a partir da leitura da obra literária de Lurie, começou a prestar “mais atenção nessa produção que fala do sadomasoquismo e a entender a proeminência da figura da mulher”.

“É algo que parte, na minha interpretação de seus escritos, da memória da própria mãe, que decidiu quem se separaria na família no momento em que o gueto de Riga, onde estavam, iria ser evacuado. Ela determina que as mulheres iriam para o campo de evacuação, enquanto Boris e o pai seguiriam para o campo de trabalhos forçados”, conta. “A mãe é esta mulher que decide o destino da família. Lurie vai elaborar a figura da mulher como sendo dominadora, que sentencia a vida e a morte.”

Nascido em 1924, em Leningrado, Rússia, Boris viveu até a adolescência em Riga. Em 1941, sua mãe, a avó materna, a irmã caçula e sua primeira namorada foram assassinadas num campo de evacuação. Lurie e seu pai, por sua vez, passaram pelos campos de trabalho forçado e de concentração, sobreviveram ao Holocausto e, libertos em 1945, emigraram para os EUA.

Em Nova York, Lurie iniciou a formação artística, em que elaborava “novas formas de lidar com a memória”, diz Chaimovich. Desse processo, nasce, em 1947, O Retrato de minha mãe antes do fuzilamento. Para o curador, a figura materna se torna obra-chave na equação artística que ele faz entre luto e criação. No fim dos anos 1940, conta Chaimovich, Lurie vai para a Art Students League, concebe “uma pintura figurativa gestual, bastante corrente nesse período”. Em 1951, viaja para Paris em 1951 e tem contato com artistas gestuais da época, uma produção bastante internacional, recorrente entre as duas cidades”, explica.

Boris Lurie, "O Retrato de minha mãe antes do fuzilamento", 1947. Cortesia: Boris Lurie Art Foundation
Boris Lurie, “O Retrato de minha mãe antes do fuzilamento”, 1947. Cortesia: Boris Lurie Art Foundation

Já no fim dos anos 1950, prossegue Chaimovich, Lurie começa a fazer as colagens com as pin-ups e com lixo, “algo bastante relacionado com o neo-dada da cena nova-iorquina de contracultura de que ele participa”. O curador ressalta que o uso de lixo, como uma crítica à sociedade de consumo, “que enxerga a sua outra ponta, a do descarte”, não é peculiar de sua produção, mas um ponto em comum entre seus contemporâneos. “E o lixo aparece em várias das colagens dele. Um elemento de agressão e evidenciação do que é o ciclo do consumo”. É em 1960 que Lurie funda o No!art, um movimento contra os valores dessa sociedade.

Na virada da década de 1960 para os anos 1970, o artista inicia as obras com imagens sadomasoquistas. Na década de 1970, tem também uma produção escultórica, muitas vezes usando cimento, conta o curador. E um dos temas que perpassam vários momentos de sua produção é a presença da Estrela de Davi amarela, que ele, como judeu, era obrigado a usar no gueto de Riga. “E ele continua a usá-la em suas roupas, mesmo quando vai para Nova York”, lembra Chaimovich.

A figura da mulher dominadora se torna tema recorrente de sua obra, em vários contextos — das pin-ups da sociedade de consumo às dominatrices do sadomasoquismo. Citando os dois livros de Lurie, Chaimovich destaca que as únicas duas vezes em que ele usa a palavra rainha, nos dois títulos, é para se referir à mãe e à Anita, a personagem fictícia, dominatrix”.

“Há também na obra de Lurie uma certa elaboração do que são as relações sexualizadas entre quem é prisioneiro e quem aprisiona, por sua vez um tema bastante recorrente da psicanálise. E isso é, sem dúvida, uma das dimensões da obra de Boris Lurie, também. O filme O porteiro da noite (1974), de Liliana Cavani, fala exatamente disso. É um assunto costumeiro na arte, que vai elaborar a experiência do Holocausto. E ele também estava tratando disso em sua produção”, pondera.

Não faltam exemplos em Arte, Luto e Sobrevivência. Na colagem American (c. 1970), exibida agora no MUJ, em meio a pin-ups, vê-se uma mulher sendo torturada por uma soldado nazista, ostentando a suástica em seu uniforme. Há um incômodo e proposital diálogo entre essa obra e outra de suas colagens, [Untitled (Deliberate Pinup)], c. 1972-1973, em que Lurie inclui uma relação sadomasoquista num aparente recorte de revista.

Boris Lurie, como já foi dito, não vendia suas obras. Era contra a entrada dos artistas no mercado de arte, que ele considerava uma ação consumista. Mas fez fortuna no mercado financeiro, durante sua vida nos EUA, e deixou esse capital para que, após a sua morte, fosse constituída a fundação que leva seu nome, a fim de cuidar de sua obra na posteridade. Faz parte também desse patrimônio um conjunto de três mil obras que ele produziu e deixou como legado.

“A fundação tem procurado museus relevantes para propor essas exposições e financiá-las, como é o caso do MUJ”, conta o curador. “É, portanto, um trabalho muito consistente para projetar sua obra internacionalmente. Porque ele circulava bem nos círculos de Nova York, Paris e Israel, mas, como não vendia seus trabalhos, nunca teve coleções que o projetassem para a história da arte dominante”.

Chaimovich conta ainda que, nas visitas guiadas que já fez no MUJ, percebeu bastante interesse por parte do público, pela descoberta de um artista que tem uma elaboração muito singular da experiência do Holocausto e, ao mesmo tempo, da sociedade de consumo.

“Essa ponte que ele faz é uma descoberta impactante porque é um artista que não varre nada para debaixo do tapete e, sobretudo, explicita todas as formas de humilhação, de preconceito, que ele viveu, e isso se torna tema de sua produção, como por exemplo o uso ostensivo da estrela amarela. É uma forma de impedir o esquecimento e confrontar o público com a memória de coisas extremamente violentas”, conclui.

SERVIÇO
Boris Lurie – Arte, Luto e Sobrevivência
Até 9 de julho
Curadoria: Felipe Chaimovich
Museu Judaico de São Paulo (MUJ) – Rua Martinho Prado, 128 – São Paulo (SP)
Visitação: terça a domingo, das 10h às 19h (última entrada às 18 h)
Entrada: R$ 20 (inteira); R$10 (meia)

 

 

 

 

Uma ponte entre os mundos do visível e do invisível

Vista da exposição. Foto: Daniel Cabrel

Como os cantos que contam a história do mundo viram imagem? Como as visões de uma cerimônia com ayahuasca se transpõem para a tela? Como os mundos do visível e do invisível se conectam? As perguntas talvez ecoem em MAHKU: Mirações, nova individual do coletivo indígena. Em cartaz no MASP até junho de 2023, a mostra tem curadoria de Adriano Pedrosa e Guilherme Giufrida, diretor artístico e curador assistente da instituição, e de Ibã Huni Kuin, curador convidado e um dos fundadores do Movimento dos Artistas Huni Kuin.

Quem visita o museu paulista encontra trabalhos de um colorido intenso e densamente carregados de elementos. Pinturas, desenhos, esculturas, instalações e mural que buscam traduzir e registrar os cantos tradicionais originários e as mirações — experiências visuais geradas pela ingestão de ayahuasca no nixi pae, ritual central das comunidades huni kuin.

A produção artística do MAHKU é, assim, extremamente sinestésica: os componentes retratados na tela não apenas transpõem as letras das histórias cantadas, mas agregam ritmo à arte visual por meio de suas composições. Já os tons, vibrantes e saturados, remetem ao universo psicodélico vivenciado durante os rituais com a bebida sagrada. “Essa é a linguagem de miração. É o espírito do mundo que temos ali e que estamos transmitindo nessas pinturas e nessas músicas. Músicas de encanto que existem antes de nós surgirmos. Por elas dá pra sentir, dá pra refletir”, explica Ibã à arte!brasileiros.

Por trazerem em si os mitos e histórias de fundação do mundo pertencentes à cosmologia huni kuin, os cantos são hoje forma fundamental de transmissão do conhecimento. Para Ibã, ouvir as músicas, vivenciar as mirações e ver as obras de arte permite sentir aquilo que não se pode compreender por completo. “Nesse momento pode sentir, pode relembrar esse conhecimento tradicional que estamos perdendo.” Para ele, as pinturas possibilitam que quem não é huni kuin se aproxime e se encante com essa cultura, “fazendo uma coisa boa de cura para não acabar com essa linguagem do meu povo”.

 

A ESCADA-RAMPA É UMA PONTE

Essa comunhão entre diferentes culturas é fundante aos huni kuin, remonta o início do mundo. Conta a história tradicional que depois de uma longa caminhada, os humanos chegaram a um ponto onde precisavam atravessar o mar para seguir a viagem. Um jacaré-ponte ofereceu-se como caminho. A criatura mítica pediu alimento em troca, com apenas uma condição: que o povo não matasse nenhum de seus filhotes e que não lhe desse um deles para comer. No entanto, com opções cada vez mais escassas, os humanos caçaram jacarés pequenos, traindo a confiança do grande, que submergiu, rompendo a ponte e separando os povos, fazendo com que se fundassem diferentes culturas e idiomas no mundo. Hoje, a população huni kuin constrói novas pontes, que conectam esses povos e que permitem transitar entre seus mundos e os mundos do encantado e do visível.

A exposição do MASP referencia a história ao transformar sua icônica rampa vermelha em ponte. A peça arquitetônica é o caminho mais rotineiro para que os visitantes do museu cheguem à MAHKU: Mirações e, ao virar obra, sendo base para mural temporário feito pelo Movimento dos Artistas Huni Kuin, introduz a ligação entre diferentes mundos: o ocidental, da Av. Paulista e das exposições do cânone europeu, à cosmologia huni kuin; o do visível da arte e o invisível das mirações.

Como explica Guilherme Giufrida, curador do MASP, “pensei que essa escada poderia ser esse ponto de contato, que está muito ali no mito do jacaré-ponte. Essa pulsão huni kuin por se comunicar com o outro lado e produzir essa relação. Mesmo com uma série de riscos, dificuldades e assimetrias, parece que eles estão sempre insistindo nessa comunicação, nessa transmissão de conhecimento”.

Ao caminhar pela mostra, somos aos poucos guiados a essa comunicação. Em contraponto a esses conhecimentos transmitidos pelo canto e pelos rituais, a escolha dos curadores foi por desvelar essa história no MASP pelo texto. Ao longo da expografia nos deparamos com escritos de parede que ao invés de organizar a mostra em núcleos, parecem transcrever a cultura huni kuin de forma didática e etnográfica, que buscam explicar que nesse caso você não está apenas “entrando numa exposição de mais um artista que, por acaso é indígena. Você realmente está entrando num outro universo visual e em outra cosmologia”, explica Giufrida, que foi responsável pela elaboração desse material e do livro da mostra após uma imersão na aldeia. O curador complementa: “Acho que o texto pode ser um ‘aperitivo’, que desperte nas pessoas o interesse por desbravar mais dessa cultura”.

A ambientação também se dá pela expografia, mas de forma mais sutil. Os tripés de madeira que dão suporte aos trabalhos e dividem o espaço, trazem um visual simples e minimalista — tão diferentes das obras com suas cores e ritmos intensos — e buscam criar um espaço fluido para quem caminha na exposição. “Não tem uma regra linear e cronológica ou mesmo sucessiva de acontecimentos. Você consegue ver a exposição entrando por qualquer um dos lados, não tem começo, meio e nem fim”, explica Giufrida.

TRADIÇÃO MOVENTE

Assim, apresenta MAHKU: Mirações apresenta os dez anos da formalização do grupo artístico sem prendê-lo ao passado. Como explica Giufrida, não se trata aqui de retratar o universo indígena e sua arte de forma estática, a imagem clichê de um povo preso ao passado, mas sim a pluralidade e as transformações que acompanham a tradição na história do Movimento dos Artistas Huni Kuin.

“Quando pensamos em um artista branco, da tradição e do cânone ocidental, muito tranquilamente se assume que a produção se transforma no tempo, porque tem as necessidades de superação, transformação e inovação, típicas do mundo burguês moderno. Enquanto que no mundo indígena, a princípio temos uma pressuposição de que a arte estaria ligada à uma ideia de tradição mais estável”, explica Giufrida. Ao reunir produções de diferentes períodos, suportes, temáticas e que explicitam parcerias feitas ao longo dos anos, MAHKU: Mirações, busca caminhar na contramão, e mostra a pluralidade na produção do coletivo: “Quando você olha a produção de grupo em cerca de dez anos, você vê a imensa transformação que esse grupo foi produzindo em cima das suas práticas”.

Assim, nos apresenta o MAHKU. Coletivo que teve início informal em 2009, no contato entre o antropólogo e educador paulista Amilton Mattos e os artistas Bane e Ibã Huni Kuin; que consolidou sua pesquisa artística quando Ibã se tornou orientando de Amilton no curso da Universidade Federal do Acre, desenvolvendo estratégias de registro de saberes e práticas orais na forma de imagens figurativas (dami), a fim de manter suas memórias; e consolidou-se em 2013. Movimento artístico que hoje ocupa grandes museus e cria pontes entre mundos.

A mostra MAHKU: Mirações integra o ano da programação do MASP dedicado ao ciclo Histórias indígenas, que inclui exposições de Carmézia Emiliano, Paul Gauguin (1848-1903), Sheroanawe Hakihiiwe, Comodato MASP Landmann de cerâmicas e metais pré-colombianos e Melissa Cody, além da grande exposição coletiva homônima ao ciclo. “Acho que tudo o que aconteceu no sentido macropolítico, com a redução das demarcações, o total descaso com as causas indígenas no último governo e essa retomada agora com o Ministério dos Povos Indígenas e com uma série de retomadas de políticas públicas voltadas a essa população, esse ano tornou-se um marco muito forte [dessa discussão]”, diz Giufrida.

Para ele, a programação do MASP se insere numa retomada específica: “É a grande retomada da população que está aqui antes de qualquer movimento de invasão europeia, de todo o feito complexo, contraditório e de violência que essa colonização provocou em nosso país. Então, estamos retomando algo que é muito fundamental e que torna a narrativa da arte brasileira muito mais complexa, plural e radical”.

Nilda Neves pinta memórias, história e tradição oral em individual na Central Galeria, em São Paulo

Lagoa dos patos
Nilda Neves, “Lagoa dos patos”, 2010. Foto: Ana Pigosso

No início dos anos 1960, o fazendeiro Osvaldo Neves alimentava o sonho de que sua filha, Nilda, que trabalhava na roça e pegava na enxada a seu lado, viesse a se tornar uma professora, um feito, à época comparável, a ter um filho astronauta, conta a própria Nilda. De sua fazenda em Patos, Botuporã, na Bahia, Osvaldo viajava para vender gado em cidades maiores do estado e nelas comprava livros para a filha.

Eram títulos de Monteiro Lobato, Machado de Assis, Guimarães Rosa, entre outros, cujas narrativas passaram a povoar a mente já naturalmente fantasiosa e fértil da menina. A essas ficções, Nilda foi somando outras, vindas da tradição oral do interior baiano, e ainda fatos históricos e as memórias das paisagens em que viveu, cenários e figuras, reais ou não, que somente há pouco mais de duas décadas vieram a germinar e florescer na forma de pinturas.

Quase 20 delas, feitas de 2010 até hoje, estão em cartaz até 6/5 na exposição Visagens e assombros do sertão, em cartaz na Central Galeria, em São Paulo, onde Nilda Neves já havia participado de duas coletivas, em 2020 (Tudo o que você me der é seu, com curadoria de Renan Quevedo) e 2022 (Alegria, um invenção, com curadoria de Patricia Wagner). Foi nessa última que Rivane Neuenschwander, que divide com Lisette Lagnado a curadoria da individual, teve seu primeiro contato com a obra da artista baiana.

Diante das criações de Nilda, Rivane afirma que não pensa “honestamente, especificamente em arte contemporânea brasileira”. Antes, vê ali refletida “uma miríade de outros artistas, da literatura, passando pela música, como Cicero Dias, Itamar Vieira Junior, Elomar, Raduan Nassar, Horace Pippin, e claro, o Lorenzato”, diz.

Feita a quatro mãos, com Lisette, a curadoria envolveu também um intenso diálogo com a própria Nilda, a quem ambas visitaram em Camanducaia, no interior de Minas Gerais, para onde a artista se mudou em 2020 e lá comprou uma casa de oito cômodos, um ateliê-morada, em que o quintal é seu principal espaço de trabalho. Ali, Nilda pinta sobre seu próprio colo ou sobre uma mesa, quando faz telas de grandes dimensões, como Vencendo a Guerra de Canudos a badoque (2023), agora em exposição. No lugar, tomou mais apreço pela madeira como suporte – antes, chegara a pintar até mesmo sobre portas -, seja de demolições ou de troncos recolhidos à beira de rios, e que adicionou com mais constância à sua produção, a exemplo do quadro Arrancando um dente, de 2021.

 

Ainda em seu texto curatorial, Lisette Lagnado indaga o impacto da leitura na produção artística de Nilda Neves, questionando: Qual a participação da tradição oral na constituição de cada tela? Como a poesia e a literatura contribuem nessas composições? Lisette também destaca o caráter memorialista de sua obra:

Nilda Neves pinta de memória histórias vividas, outras que apenas ouviu. Da emoção da escuta jorram imagens que são transpostas diretamente sobre a tela, sem um desenho prévio. Estabelece uma diferença entre “visagens” e “aparições” quando procura explicar as fontes que animam suas formas. Linhas retorcidas, tensionando a fronteira de um eventual surrealismo tropical, mesclam fatos ilustres com profecias populares e ficções científicas.

TRAJETÓRIA

Nilda Neves nasceu em 1961, primogênita dos cinco filhos de Osvaldo e Ana Rita. Como já dito, trabalhava na roça, na Botopurã natal, até mudar-se, já casada, para Brumado, também na Bahia. Formada em contabilidade em 1982, em Brumado mesmo, foi em 1999 para São Paulo. Na capital paulista, abriu em 2000 uma lanchonete que servia comidas nordestinas em Taipas, subdistrito de Pirituba. No ano seguinte, em seu estabelecimento, recebeu de um mal pagante um áudio-livro de auto-ajuda, em formato de CD, em troca de algumas cervejas. Ouviu o tal CD e, de um sonho tido logo depois, veio o impulso de escrever um livro.

Primeiramente, Nilda ensaiou escrever poemas, entremeados por desenhos, mas não chegou a lançá-los. Já em 2010, ela partiu para a ficção, escreveu e publicou o livro de contos Belo sertão. No ano seguinte, veio o romance O lavrador do sertão, sobre o qual Lisette Lagnado discorre em seu texto curatorial: “Sua prosa é um convite à viagem pela geografia humana de um Brasil deslumbrante, alimentado por conflitos sociais, religiosos, amorosos, poemas épicos de um tempo heróico.”

Quando Belo sertão e O lavrador do sertão haviam ficado prontos, Nilda recusou-se a ter que pagar a alguém para criar as capas. Surgia, então, suas primeiras experiências artísticas: Nilda fez desenhos, sobre papel de caderno, com tintas acrílicas. Ambos foram posteriormente vendidos por até R$ 5 mil – sendo que cada livro havia custado R$ 30.

Capa do livro "O lavrador do sertão", de Nilda Neves
Capa do livro “O lavrador do sertão”, de Nilda Neves

A partir daí, Nilda foi aprendendo a pintar como autodidata. Ia às lojas, escolhia e comprava seus pincéis e suas tintas. Produzia, sem, no entanto, abandonar a lanchonete. Em 2005, desistiu do estabelecimento e foi trabalhar como cabeleireira e manicure no salão Dallas, da Rua Cardeal Arcoverde, em Pinheiros. Ao mesmo tempo, já pintava suas primeiras telas. Lembra que um corte de cabelo custava R$ 15, mas vendia seus trabalhos por R$ 1.500, por exemplo.

Dez anos depois, Nilda decidiu ter seu próprio salão, num espaço alugado próximo à Rua Cunha Gago, em Pinheiros. Tendo prostíbulos como vizinhos, seu negócio não progrediu. Passou a vender acarajés na porta do salão. Continuava a pintar e, em 2015, o galerista Renato De Cara a convidou para apresentar seus trabalhos na Mezanino, numa de suas primeiras coletivas.

Nos anos seguintes, seguiram várias individuais – como Sertão em devaneios, Centro Cultural Santo Amaro (São Paulo, 2019) e Narrativas do sertão, Face Gabinete de Arte (São Paulo, 2018) – e coletivas, entre elas O Sagrado na Arte Moderna Brasileira, Museu de Arte Sacra (São Paulo, 2019), Modernismo desde aqui, Paço das Artes (São Paulo, 2022).

Hoje, seus trabalhos estão presentes nas coleções do MAR (Rio de Janeiro), MAC-USP (São Paulo) e MACS (Sorocaba). Em 2020, Nilda recebeu Menção Especial na 15ª Bienal Naïfs do Brasil — Sesc Piracicaba. Uma trajetória que culmina agora com a nova individual, sobre a qual Rivane acrescenta:

“Tenho admiração pelo vocabulário e pela liberdade da Nilda em sua produção. A mim também me interessa o caráter de resistência, do sertão, que emana das pinturas”, conclui a artista e curadora.

SERVIÇO
Visagens e assombros do sertão, de Nilda Neves
Curadoria: Lisette Lagnado e Rivane Neuenschwander
Até 6 de maio
Central Galeria – Rua Bento Freitas, 306, subsolo, Vila Buarque – São Paulo (SP)
Visitação: de segunda a sexta-feira, das 11h às 19h; sábados, das 11h às 17h

Elisa Bracher cria diálogo com espaço expositivo, marca de sua obra, por meio de três instalações

Instalação de Elisa Bracher, com varais de ferro dos quais pendem seus desenhos. Foto: Eduardo Simões
Instalação de Elisa Bracher, com varais de ferro dos quais pendem seus desenhos. Foto: Eduardo Simões

Vinte e cinco anos após realizar sua primeira individual na Pinacoteca de São Paulo, Elisa Bracher cria um diálogo com o espaço expositivo, marca de sua obra, por meio de três instalações, de madeira, papel e chumbo, que constituem a mostra Formas vivas, em cartaz na Pina Estação. Com curadoria de Pollyana Quintella, Elisa retoma outros aspectos caros à sua produção, nomeadamente as questões de peso, equilíbrio e composição.

Em seu texto curatorial, Pollyanna destaca “a capacidade [de Elisa] de se engajar intimamente com os materiais e suas qualidades. Depois, seu modo de lidar com o próprio corpo da instituição como matéria de trabalho. Para Bracher, não há obra antes do espaço, só há obra a partir do espaço, em resposta a ele”, escreve. A artista corrobora a visão da curadora: “Toda exposição que eu faço é muito moldada e determinada pelo espaço. Fico trabalhando no ateliê, mas preciso, na finalização, me relacionar com o ambiente, criar diálogos possíveis”, afirma, em entrevista à arte!brasileiros.

Alguns dos trabalhos em exibição, feitos especialmente para Formas vivas, vieram, por sua vez, de investigações artísticas que Elisa já fizera em seu ateliê, na Vila Leopoldina, em São Paulo. Novo corpo, uma instalação com madeira e pedra, por exemplo, partiu de uma experiência exibida no ano passado na Galeria Estação, na mostra Terra de ninguém. O  trabalho inédito, no entanto, tem dimensões expressivamente maiores. E a elas foram acrescentadas fotografias em preto e branco, superposições da densa vegetação da Serra da Mantiqueira, feitas por Elisa em São Bento do Sapucaí, no interior do estado.

“As fotografias criam um contraponto com a instalação, remetem a um antes e um depois, à madeira e à questão de onde ela vem e o que ela vira”, comenta Elisa, lembrando que mostrara fotografias de sua autoria somente uma vez em sua carreira, quando lançou em 2008 o livro e exposição A cidade e suas margens, no Museu da Casa Brasileira.

Na instalação, Elisa usa madeiras de demolição, compradas ou recolhidas em fazendas antigas do interior de São Paulo, misturadas a pedaços de antigos trabalhos, num processo de acumulação iniciado desde o começo de sua trajetória. As pedras são também sobras de obras anteriores e haviam sido compradas em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. Nesse longo processo de acumulação, os materiais ficam no ateliê de Elisa, até que surjam conexões como as que vemos agora na Pina Estação. Para a artista, ainda que remeta a um processo destruidor e violento, Novo corpo “mostra que há composições possíveis, é um trabalho otimista, eu diria”.

Noutra sala, Elisa exibe um varal de barras de ferro – a estrutura foi levada do ateliê para o espaço expositivo – de onde pendem, para secagem, desenhos que nunca haviam sido mostrados daquele jeito, formando um “corpo escultural”, como descreve comunicado de imprensa da Pina. Nos desenhos, há uma mescla bastante orgânica de contornos e áreas preenchidas, em tons vermelhos, amarelos e negros. Como contraponto, a artista apresenta dois vídeos que aludem aos desenhos, e em que se observa um fluxo de líquidos dentro de uma tripa, encapsulada por um vidro.

“O filme nasceu há cerca de oito anos, dos desenhos, numa tentativa de materializá-los, como se a materialidade própria deles já não fosse suficiente para mim”, conta Elisa. O vidro, explica ela, havia sido descartado de outra série de trabalhos. Por sua vez, as tripas, de boi, foram compradas há cerca de 20 anos, no Mercado de Pinheiros. “Juntei, repentinamente, as ideias. Chamei um amigo para filmar, para termos enfim um produto, e não somente uma prática de ateliê”, explica. A própria Elisa impulsionou no recipiente uma mistura de pigmento e óleo dentro da tripa, e, fora dela, uma combinação com óleo, novamente, e ainda uma tinta branca e água, “para criar esses elementos que não conversam entre si”.

Na terceira sala expositiva da Pina Estação, Elisa explorou a maleabilidade de folhas de chumbo, sustentadas por cabos de aço. Primeiramente, ela abriu os rolos e foi batendo com um martelo de borracha. Depois, as folhas foram novamente novamente enroladas para poderem ser levadas aos andaimes.

 

“Mudamos diversas vezes a composição, até chegar ao resultado agora apresentado”, conta a artista. “Vieram à tona questões como a espessura das folhas, se elas seriam penduradas ou não, como deformá-las, enfim, um diálogo que eu adoro fazer, porque gosto de trabalhar com a indústria. Na concepção da expografia, estamos, em uma conversa, a sala de exposição, a indústria e eu, discutindo até chegar a uma solução satisfatória desse trabalho que é coletivo”.

 

SERVIÇO
Formas vivas, de Elisa Bracher
Curadoria: Pollyana Quintella
Até 17/09
Pina Estação – Largo General Osório, 66, São Paulo – SP
Visitação: de quarta a segunda-feira, das 10h às 18h
Entrada gratuita

 

Regina Parra mescla artes plásticas e cênicas em mostra que alude a Clarice Lispector e mitologia

Regina Parra, "Deserto-pano de cena" (2022-2023), obra da exposição "Pagã", na Pina Estacão. Foto: Christina Ruffato
Regina Parra, "Deserto-pano de cena" (2022-2023), obra da exposição "Pagã", na Pina Estacão. Foto: Christina Ruffato

Em cartaz no segundo andar da Pina Estação, a mostra Pagã, de Regina Parra, é multirreferencial como a própria artista, que, de 2000 a 2003, foi assistente de direção de Antunes Filho (1929-2019), uma das figuras mais importantes na história da dramaturgia brasileira, antes de iniciar sua trajetória nas artes visuais. Para materializar em pintura, escultura, neon, vídeo e performances a ideia da jornada de autodescoberta de uma mulher, ela partiu de um lastro literário – A paixão segundo G.H., romance de 1964 de Clarice Lispector – e de outro, imagético, nomeadamente a Vila dos Mistérios, soterrada pelas cinzas do vulcão Vesúvio, em Pompeia, no século 2 a. C. Na exposição, Regina Parra mescla artes plásticas e cênicas.

Na Vila dos Mistérios, fonte de inspiração constante de Regina no universo da mitologia greco-romana, há uma série de afrescos que “contam a história de uma jovem que ultrapassa o portal dos sátiros e se oferece a Dionísio, deus do teatro, do vinho, da fertilidade, da natureza”, segundo descrição da curadora Ana Maria Maia, no catálogo da mostra. “O caminho dessa jovem envolve descer ao nível animal, literalmente cair ao chão […], deseducando-se do repertório até então adquirido. Só depois disso ela estará apta a voltar à forma humana e renascer como bacante”, escreve a curadora.

Partindo do arquétipo dessa jovem, Regina, cuja obra The sinful (2022) foi capa da edição 61 da arte!brasileiros, criou a personagem Pagã, que dá nome à exposição. E o resultado de sua inquietante investigação artística é uma síntese de teatro e artes plásticas, dividida em nove cenas, que não necessariamente obedecem a um percurso expositivo engessado, propondo, antes, uma circulação labiríntica, numa alusão também ao mito de Ariadne, a princesa de Creta que ajuda o herói ateniense Teseu a escapar do Minotauro, uma criatura parte homem, parte touro que habita uma construção de caminhos intrincados, para a proteção da população.

A GÊNESE DO PROJETO

Pagã não nasceu de uma proposta da própria Pinacoteca de São Paulo a Regina Parra. Sua gênese se deu ao longo de alguns anos. A artista conta que, logo após a morte de Antunes, em 2019, ela fez um “exercício de olhar para trás”, pensando no “grande mestre” que ele havia sido para ela, e percebeu que muito de seus processos criativos vinham dessa experiência no teatro. Algo que, no entanto, ela não “abraçava ou assumia” para si mesma.

Em 2018, Regina havia iniciado sequência de residências, todas em Nova York: naquele ano, com um prêmio da SP-Arte, fizera a Residency Unlimited, no Brooklyn; depois, no Annex_b, em 2019; e, por fim, no The Watermill Center Residency Program, Watermill, em 2020. Em tempo: essa última residência acontece num laboratório interdisciplinar fundado em 1992 pelo diretor norte-americano Robert Wilson, nome de relevo no teatro experimental mundial.

“Fui para essa terceira residência com o objetivo de resgatar esse lado teatral que estava debaixo do tapete e de integrar mais tudo o que eu fazia”, conta Regina. “Após a morte de Antunes, em 2019, fiz um exercício de olhar para trás, pensando no grande mestre que ele havia sido, e percebi que muito de meus processos criativos vinham dessa experiência. Algo que, no entanto, eu não abraçava, não assumia”.

Em 2021, terminada a sua passagem por Watermill, Regina emendou outra residência, dessa vez na Monira Foundation, em Nova Jersey. À época, Regina fez algumas das primeiras pinturas que vemos agora em sua mostra: as dos sátiros e o tríptico da Pagã. Também já estava esboçando uma maneira de levar aquelas criações para um espaço, deslocando-as de paredes. Fez maquetes e experiências com cerâmica, “tentando entender o que seria aquele projeto”. Naquele período, leu também A paixão segundo G.H.

De início, fez breves anotações, mas, ao avançar na leitura, o livro passou a “repercutir com muita força” junto às suas ideias. Ao terminar o romance, Regina decidiu que o projeto também deveria ser estruturado a partir do livro, mas não como uma representação do texto em forma de exposição, e sim a narrativa da jornada de uma mulher, como Clarice fizera em seu texto, uma personagem que mergulha “na vida e na sua materialidade a partir do contato com uma barata”, diz.

De volta ao Brasil no começo de 2022, Regina apresentou seu projeto de uma “peça de teatro desmembrada” a Ana Maria Maia, sua ex-colega de mestrado, e a Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca. Ambos abraçaram as propostas, materializadas agora na mostra, cuja expografia é também um elemento-chave em sua concepção.

“No meu ateliê, as coisas acontecem justamente de maneira integrada. Nunca houve separação entre as referências”, conta. “Mas, no momento de se levar os resultados a uma exposição, acontecia algo de que não gosto: a pintura se limitava a um quadro pendurado na parede, num clima de reverência que me incomodava. Entendi que queria mudar tudo isso em termos do ambiente que abriga as obras, daí a ideia de peça desmembrada”.

Pagã traz trechos de A paixão segundo G.H. que não “aparecem como literatura, mas um pouco como as falas de um personagem”, explica Regina. A exposição é então dividida em cenas: em Prelúdio, uma primeira passagem do romance de Clarice: “Era uma mulher que vivia bem”; em seguida, no Chamado, a personagem, “abandonando sua vida”, põe-se “calmamente de quatro”, e inicia sua jornada, protegida pelos sátiros, “por uma sabedoria da carne”, como indica o subtítulo da mostra.

Seguem-se, então, outras oito cenas: Horas de perdição; Segredo; Minotaura; O canto da cabra; Deserto; Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão; Mistério e O gosto do vivo ou a visão de uma carne infinita. As cenas apresentadas por meio de instalações sonoras, neons, manequins, pinturas, vídeos. Para ressaltar o caráter teatral, Regina criou peças de cerâmica, intituladas Adereços-próteses-vestíveis, a serem vestidos pelos visitantes.

“A ideia é que o público possa usá-los enquanto visitam a exposição”, explica Regina. “Um deles é uma espécie de chifre, que se veste pelo pescoço; tem ainda um colete, um rabo, e uma pata, para ser colocada sobre o pé. São peças pesadas de propósito, e não encaixam muito bem no corpo, para não serem meros enfeites. Elas trazem a ideia de que, no teatro, você tem a oportunidade de se livrar de si mesmo e ser uma coisa coisa ou pessoa. O adereço muda seu modo de andar e sua postura, muda a nossa maneira de estar no mundo”.

TRAJETÓRIA

Nascida em 1984, em São Paulo, Regina Parra iniciou sua trajetória profissional nas artes cênicas, no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), tornando-se posteriormente assistente de direção de Antunes Filho. Em seguida, formou-se em Belas Artes, na Faap, e fez um mestrado em História da Arte, na Faculdade Santa Marcelina (FASM), tendo como orientadora a curadora e crítica Lisette Lagnado.

Desde o início de sua carreira em artes visuais, Regina atuou de modo interdisciplinar, trabalhando com suportes diversos: fotografia, vídeo, performances, pintura e instalação. Imigração e feminilidade são alguns dos temas sobre os quais se debruça. Assim como em Pagã, o corpo feminino é recorrente em suas criações, a exemplo das séries Libidinosa (2018) e A Perigosa (2019), parte da exposição Bacante (2019), apresentada na Galeria Millan, em São Paulo.

Fez suas primeiras exposições individuais ainda nos anos 2000, mas acelerou sua produção na década seguinte, com uma sequência prolífica de mostras, entre elas Eu me levanto, na Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA). Fora do Brasil, participou de coletivas na Argentina, Espanha, Itália, Suíça, em Portugal e nos Estados Unidos. No ano passado, estreou no circuito de feiras internacionais, com a galeria Jaqueline Martins, na Paris Internationale. Suas obras estão presentes em acervos nacionais relevantes, de instituições como o Masp, a Fundação Joaquim Nabuco, a Associação Cultural Videobrasil e a própria Pinacoteca de São Paulo, entre outras.

Regina acabou de lançar seu livro de artista Eis-me aqui, pela Familia Editions, vai apresentar uma nova sessão de performances ligadas a Pagã na Pina Estação, no dia 3 de junho e, no mês seguinte, parte para mais uma residência, de dois meses, no Maine, Estados Unidos. Prolífica, ela está também começando uma pesquisa para um projeto em parceria com a artista Ana Mazzei, chamado Histórias exemplares da carne. “Ainda estamos numa fase bem inicial do projeto, e a residência vai ser um momento para experimentar as primeiras ideias”, conclui.

Capa do livro de artista de Regina Parra, "Eis-me aqui" (Familia Editions, 2022)
Capa do livro de artista de Regina Parra, “Eis-me aqui” (Familia Editions, 2022)
SERVIÇO
Pagã, de Regina Parra
Curadoria: Ana Maria Maia
Até 13/08
Pina Estação – Largo General Osório, 66, São Paulo – SP
Visitação: de quarta a segunda-feira, das 10h às 18h
Entrada gratuita

 

 

 

 

Os orixás estão vivos

Terceiro Ato: Sortilégio | Abdias Nascimento
Vista da exposição "Terceiro Ato: Sortilégio" em Inhotim, com obras de Abdias Nascimento. Foto: Tiago Nunes

A relação de Abdias Nascimento com a pintura, forma de expressão que adota de maneira mais intensa a partir de 1968 e durante os 13 anos em que viveu no exílio, constitui o núcleo central do terceiro ato do ciclo organizado por Inhotim em torno dele no biênio 2021-2023. Com mais de 180 obras e documentos, a mostra, inaugurada no último dia 18 de março, traz a público a potência da expressão plástica de Abdias, explicita conexões pessoais e poéticas com diferentes interlocutores no Brasil, Estados Unidos e África e reafirma sua permanente valorização da cultura negra como forma de luta. Essa teia que amarra militância e expressão se apropria de uma ampla gama de referências associadas a crenças, símbolos e ideogramas de matriz africana, com especial interesse pelos orixás, tema frequente de suas telas. 

“Sortilégio”, título escolhido para a exposição, deriva de uma peça homônima escrita por Nascimento em 1951 e retida pela censura até 1957, cuja trama trata de racismo e apropriação cultural, elaborando uma série de discussões em torno do Candomblé. O texto indica o processo por meio do qual Abdias inverte a visão preconceituosa em relação à crença, passando a usar esses elementos de grande potência identitária não mais como forma de exclusão, mas como arma de reafirmação cultural e de crítica ao mito da igualdade racial que grassava no Brasil. Para ele é como se os orixás estivessem vivos. São ao mesmo tempo cosmologia, psicologia, teologia, como afirma em texto de 1975 para uma exposição que realiza na Philadelphia (EUA). Representa-os em telas de intenso colorido e plenas de elementos iconográficos diversos – que vão das vestes e atributos associados a entidades a elementos do cotidiano como carros e a bandeira norte-americana. São como “os heróis e mártires da luta contra o racismo”, lembra Douglas de Freitas, curador de Inhotim e responsável pela realização desse grande mergulho no legado de Nascimento, em parceria com a equipe do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), organização criada em 1981, quando retorna do exílio, e que preserva seu acervo e missão. 

Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias e presidente do Ipeafro, relembra que as artes visuais não eram um campo novo na trajetória do ativista. Ele só começa a pintar na segunda metade da década de 1950, incentivado por Sebastião Januário, também presente com obras na exposição. Ainda em 1950 funda o Museu de Arte Negra, na esteira do trabalho que já vinha desenvolvendo no Teatro Experimental do Negro, e em 1960 lança o polêmico concurso em busca de uma representação de um Cristo negro. “Ele não considera jamais a arte pela arte. Não é só o cubo branco que ele desafia, ao buscar um conceito de arte que extrapola a condição museal”, alerta ela. E nesse contexto a teogonia afro-brasileira desempenha um papel fundamental.

“Um exu, filho de Oxum”, assim resume Douglas de Freitas para falar dessa intensa relação dele com os orixás e suas potências simbólicas, transformadoras e afirmativas. Como Exu, Abdias abre caminhos. Serve de guia para as ações antirracistas que ganharam grande reverberação nos últimos anos. Mas o faz sob o signo de Oxum, orixá do amor e da prosperidade, representado em uma das telas mais conhecidas de sua autoria. Para iluminar essa relação o próprio espaço expositivo é trabalhado para enfatizar essas referências, cromáticas e arquitetônicas, como a grande parede de intenso amarelo ao fundo.

“Sortilégio” reverbera no tempo e no espaço. Apresenta uma solução de continuidade em relação às outras exposições do ciclo: a primeira destacando sua relação com Tunga, artista de grande presença em Inhotim e cujo pai era grande amigo de Abdias; a segunda, mais documental, abordando as experiências do Teatro Experimental e do Museu do Negro; e a quarta, a ser aberta no próximo semestre, que realizará um apanhado da trajetória do político, ativista e pensador panafricanista. Mas também se espraia em outras iniciativas implementadas pela instituição mineira, reverberando diretamente em iniciativas como as mostras “O Mundo é o Teatro do Homem” e “Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro”, em cartaz até julho. 

Uma luz sobre o universo indígena

Culturas indígenas
Culturas indígenas, Harald Schultz, Endandae ctemodit ium volenem rem quid ulparup tatur, quiamusam simus reperum

O fotógrafo Harald Schultz surgiu em um tempo em que o universo indígena não era totalmente revelado. Quase todo o saber sobre a cultura dos povos originários era transmitido por etnólogos, antropólogos e sertanistas “credenciados”. Schultz tinha profissão dupla, era etnólogo e fotógrafo, o que facilitou bastante o seu ir e vir entre a Universidade de São Paulo (USP) e o trabalho de campo nas aldeias. Hoje, o processo decolonial mudou o panorama, e indígenas de várias tribos brasileiras frequentam universidades, fazem filmes, vídeos, escrevem livros, e qualquer um deles tem também seu lugar de fala. Em resumo, eles são os porta-vozes deles mesmos.

Dentro do contexto de divulgar trabalhos e pesquisas essenciais, o Sesc Ipiranga lança o livro Culturas Indígenas no Brasil e a coleção Harald Schultz, organizado pela conservadora Ana Carolina Delgado Vieira e pela museóloga Marília Xavier Cury, que mantiveram conversa com os indígenas Gerolino José Cezar (terena) e Dirce Jorge (kaingang).
O livro chega em meio às discussões sobre a preservação da cultura indígena pelos museus não dirigidos por eles e ainda em confronto com a dúvida se coleções de fotografias sobre indígenas têm que ter a curadoria de um deles. A publicação reúne vários textos de Harald Schultz em seu campo ampliado de pesquisa, dando visibilidade a um universo expandido. As imagens trazem traços das imagens-pensamento, resultado da formação dele e de suas aulas de fotografia ministradas na USP.

Uma de suas contribuições para a fotografia no Brasil nasce das reflexões sobre os estudos das linguagens fotográficas e seus aspectos técnicos. Nessa perspectiva de inovação, ele acompanhou de perto as transformações singulares da fotografia dos anos 1960 e as transmitia aos alunos com o objetivo de formar uma nova geração de profissionais.
Seu trabalho relevante foi desenvolvido em aldeias com o objetivo de contribuir para a preservação das culturas de matrizes indígenas. Em alguns locais, Schultz chegou a coletar cerca de sete mil artefatos de vários usos, além de filmes e fotografias que captam o cotidiano das aldeias, que hoje fazem parte do arquivo de campo do MAE-USP (Museu de Arqueologia da USP). A coleção de Schultz, sob a guarda do museu, soma mais de mil diapositivos (slides) entre os anos de 1942 e 1965. Ele sempre explorou os elementos presentes naquele universo, indistintamente das afinidades adquiridas nas constantes visitas.

A exposição do acervo do fotógrafo abre capítulos sobre museus e preservação de coleções indígenas. Considerado um fotógrafo importante na época, algumas de suas fotos são provas das técnicas inovadoras, cuja experiência perceptiva define-se na sobreposição de imagens e no uso de filtros e lentes especiais, um recurso novo naquele tempo.

Culturas Indígenas no Brasil e a coleção Harald Schultz, além de divulgar e fortalecer sua obra, também provoca reflexões sobre vários aspectos que envolvem os objetos coletados. Dividida em quatro partes, a primeira foca a trajetória do fotógrafo-etnólogo com alguns dados biográficos mais relevantes. Já a segunda coloca luz nas questões museológicas e reflete como introduzir políticas que respeitem os direitos de inclusão dos povos originários.

A terceira toca no tema dos estudos relacionados a coleções depositadas em museus, enquanto a última aborda a iconografia de 12 etnias contactadas por Schultz, além de uma coleção singular de fotografias dos objetos encontrados. O livro traz forte contribuição para o resgate do trabalho desenvolvido por Harald Schultz, tanto como fotógrafo quanto como etnólogo, além de abrir portas para outros estudos complementares. ✱

O caipira moderno

José Antonio da Silva
José Antonio da Silva Sem título, 1979. Óleo sobre tela
José Antonio da Silva
José Antonio da Silva Sem título, 1979. Óleo sobre tela
Por Theo Monteiro

Objeto da exposição Duas poéticas, na Galeria Estação, em que sua produção foi colocada em diálogo com a da pintora contemporânea Cristina Canale, José Antônio da Silva, em que pesem rótulos como “primitivo”, “naïf” e “ingênuo”, produziu obra de grande complexidade e que pode oferecer importantes chaves de leitura para que se compreenda um grande momento de virada na história do Brasil, tanto em termos socioambientais, quanto em termos artísticos e formais.

Para compreender melhor a obra desse singular pintor, é importante entender sua origem na cultura caipira. Nascido em 1909, em Sales de Oliveira, noroeste paulista, pertencia a uma família de trabalhadores rurais. Sem posses, os mesmos viviam se mudando de fazenda em fazenda, oferecendo sua força de trabalho para os latifundiários da região. Essa era a realidade de muitas famílias caipiras desse período. Conforme mostrou Antonio Candido em Parceiros do Rio Bonito, amplo estudo que realizou sobre a cultura caipira, a mesma foi formada ao longo do período colonial por sertanistas errantes que se estabeleceram em regiões remotas do sertão paulista. Vivendo em pequenos povoados ou ranchos, baseavam-se na agricultura de subsistência e caça/coleta. Com a expansão do latifúndio ao longo dos séculos 19 e 20, os mesmos foram gradualmente perdendo seu modo de vida e sendo subjugados ao trabalho nessas grandes propriedades. Assim, sua cultura foi progressivamente desaparecendo. Não apenas isso. A paisagem, antes marcada pela presença de florestas, cerrados e agriculturas de pequena escala, foi cedendo espaço para a monocultura e os rebanhos de gado.

José Antonio da Silva
José Antonio da Silva, Sem título, 1966. Óleo sobre tela.

A obra de José Antônio da Silva mostra exatamente essa mudança social e paisagística do interior do estado. A começar que suas pinturas nunca retratam uma natureza selvagem ou intocada. Por mais que a figura humana esteja por vezes ausente, sempre existe algum indicativo de ação antrópica: estradas, plantações, animais de criação etc. Em suas paisagens de monoculturas (algodoais, milharais, pastagens) estão representados sinais de devastação, como árvores mortas, caídas ou tocos de madeira. A presença de boiadas passando, pessoas se locomovendo ou trabalhando indica que nada ali está parado: tudo se move e se transforma o tempo todo, inclusive a vegetação, que foi recentemente alterada e teve sua configuração original destruída. Urubus são igualmente frequentes nas pinturas do artista, como se representassem a morte, que espreita a tudo e a todos. O artista nos narra, portanto, a transformação do campo brasileiro e a desagregação de um tipo de cultura nele existente.

A contribuição de Silva, contudo, não se restringe a um retrato social. Na história da arte brasileira, sua aparição e carreira se dão justamente em meio a um momento de profunda transformação. “Descoberto” pela crítica em 1946, presencia um momento em que o sistema da arte brasileiro começa a se institucionalizar: surgem os primeiros museus de arte moderna em São Paulo e no Rio de Janeiro, é criada a Bienal Internacional de São Paulo e se desenvolve um crescente mercado voltado para a arte moderna. Junto a essas transformações, desenvolvem-se no país as tendências de arte abstrata, que terminam por entrar em rota de colisão com a arte figurativa até então vigente, de viés expressionista e com temática voltada para o social.

Silva estabeleceu interessantes diálogos com esse debate estético vigente na arte brasileira desse período. Em um momento no qual o mundo vivia uma espécie de “ressaca” do pós-guerra, a temática socialmente engajada ganhou muito terreno no campo das artes e da cultura, influenciada por certo expressionismo, e que teve em artistas como Portinari e Goeldi importantes representantes. Grande defensor desse tipo de estética era o crítico Lourival Gomes Machado, que, não por acaso, tinha relação muito próxima com nosso Silva. Ainda que de maneira muito singular, o tom de denúncia social aparece com certa frequência na obra do pintor em questão. Cenas de trabalho, cotidiano e mesmo momentos de sofrimento e tragédia são recorrentes em suas pinturas, em geral com grande expressividade. A própria destruição da natureza pela monocultura é criticada nesses trabalhos, antecipando o debate ambiental em algumas décadas. Como forma de obter a expressividade e dramaticidade necessárias para suas composições, recorre a modelos da arte sacra, possivelmente oriundos de um determinado catolicismo popular. Algumas posições e estruturas compositivas são muito semelhantes, por exemplo, a pinturas de ex-votos. A própria arte sacra era tema também de nosso artista, e ele conta em depoimento que só teria começado a pintar depois de perceber que as imagens que via nas igrejas “eram feitas por mãos de pessoas”.

José Antonio da Silva
José Antonio da Silva, Sem título, 1955. Óleo sobre tela

Num segundo momento, o tema não perde a importância, mas Silva vai reduzindo os elementos pictóricos a pontos, pinceladas ou manchas serializadas, de modo a criar composições extremamente dinâmicas. Tal procedimento guarda muita semelhança com momentos da abstração geométrica (embora o mesmo jamais tenha abandonado por completo a figuração) e chegou a receber elogios de um dos principais representantes do concretismo, Waldemar Cordeiro. Essas escolhas pictóricas levaram ao rompimento de Silva com Gomes Machado, mas coincidem com sua aproximação com o crítico Theon Spanudis, defensor de uma arte construtiva bastante particular.

Ainda que lido como um ingênuo fora de seu tempo, Silva compreendeu perfeitamente não apenas sua época e as tendências nela discutidas, como trouxe uma contribuição absolutamente original para a mesma. ✱