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Presa por vazar dados ao WikiLeaks, Chelsea Manning é solta nos EUA

Chelsea Manning
Chelsea Manning
  • Manuela

O Exército dos EUA confirmou que a militar Chelsea Manning foi solta da prisão de Fort Leavenworth, no Kansas, nesta quarta-feira, 17/5, após sete anos atrás das grades. Condenada originalmente a 35 anos de prisão por vazar dados ao WikiLeaks, Chelsea teve sua sentença comutada em janeiro de 2017 pelo ex-presidente Barack Obama em uma das suas últimas ações no cargo.

“Agradeço o apoio incrível que recebi de tantas pessoas ao redor do mundo nesses últimos anos”, afirmou Chelsea em um comunicado enviado para a rede ABC News.

Chelsea foi condenada por vazar informações diplomáticas e militares ao WikiLeaks em 2010, que incluem vídeos de ataques aéreos no Iraque e Afeganistão, junto com documentos classificados enviados ao U.S. State Department. Ela foi presa e começou a cumprir pena no mesmo ano.

Os dados oferecidos por Chelsea ajudaram a colocar o WikiLeaks no mapa como uma fonte secreta do governo, mas pediu rápida condenação de oficiais americanos.

Obama comutou a pena de Chelsea porque disse acreditar que ela assumiu responsabilidade e expressou remorso por seus crimes, de acordo com representantes da Casa Branca.

Espelho, espelho nosso

Há algum tempo os pacientes falam mais de séries do que de filmes. O ritual de ir ao cinema e depois discutir impressões no café foi gradualmente substituído pela cerimônia mais íntima e às vezes muito mais solitária de consagrar o fim de semana inteiro para zerar uma série. Traições e contendas surgem quando alguém adianta a ordem dos capítulos, vai direto para a última temporada ou faz spoiler, como o leitor terá logo abaixo sobre a série Black Mirror. Há anos minha casa tornou-se um ponto de encontro domingo à noite com amigos de meus filhos vibrando a morte e a vida de Jon Snow ou Ramsey, em Game of Thrones. Antes disso vieram as quintas-feiras com House e as noitadas de Law and Order.  No Brasil este fenômeno dá continuidade à arquetípica experiência familiar de assistir novelas juntos. Narrativas deste tipo são um poderoso alimento para a nossos laços sociais não apenas pelos exemplos que trazem, pelos conflitos que tratam, mas também pela lógica específica de reconhecimento que nos convidam a praticar.

Black Mirror (2011-2016) é a primeira série que toma para si, como tema e como forma, a própria degradação da experiência exigida por este novo formato digital. Lembremos que o espelho negro é uma técnica de bruxaria que envolve visualizar o futuro a partir da deformação artificial das imagens refletidas no presente. De fato a série trabalha sistematicamente com a exageração de tecnologias que se não estão disponíveis no momento, podemos intuir sua existência em um futuro próximo. Disso tiramos consequências éticas desagradáveis. Não se trata de uma ficção científica que nos faz olhar, de longe, os efeitos distópicos do que hoje valorizamos, mas de um reflexo do que já está em curso no momento. A série é uma espécie de mapa conceitual de novas formas de sofrimento, o que torna o experimento dotado de alto valor para clínicos e psicanalistas.

No fundo, a grande questão em Black Mirror são as experiências de falso reconhecimento. Elas estão na origem de nosso sentimento de inadequação, do ressentimento incurável gerado por uma cultura de promessas não cumpridas e de amores exagerados. O déficit crônico de reconhecimento, seja ele nomeado como depressão ou como baixa autoestima, aparece em um amplo espectro de sintomas que  vão da insatisfação insolúvel com o corpo próprio, com a carreira, com o país onde se vive, com a vida que se leva. Experiências massivas de falso reconhecimento são a causa social epidêmica para a indução de sofrimento neurótico na atualidade. Vidas sentidas como deficitárias, inautênticas e abaixo do que se espera são frequentemente vidas formadas à base de ideais de reconhecimento muito além do que se pode realizar, mas sobretudo vidas que não entenderam que é possível e desejável escolher os termos pelos quais se quer ser reconhecido. A lei do reconhecimento não tem conteúdo a priori, por isso a luta pelo reconhecimento não é apenas como uma batalha narcísica para ver quem tem mais e melhor imagem, mas um antagonismo estrutural para determinar qual lei simbólica governará nossas experiências de reconhecimento.

No episódio Nosedive a protagonista só pode ter o direito de comprar uma determinada casa se estiver em certo patamar social de pontuação. Para tanto ela deve ser aprovada por pessoas da classe superior à dela. Tudo isso ocorre em meio a um sistema de avaliação permanente das pessoas por qualquer gesto, ato ou encontro cotidiano, feito por meio do celular. O reconhecimento dos mais reconhecidos vale mais que o reconhecimento dos menos reconhecidos. Logo, vale a justiça bíblica de Mateus: “quem muito tem, mais lhe será dado, quem pouco tem, mesmo este pouco lhe será tirado”.  Todos os desastres acontecem no caminho para chegar ao casamento da amiga “popular”, onde ela espera ser devidamente pontuada. Isso mostra que a degradação do reconhecimento decorre da obsessão em progredir na sua corrida sem questionar seus termos ou sua conveniência. Ao aceitar esta lei geral de “uberização” das relações sociais, com métodos e médias de aprovação que subornam as pessoas, o episódio faz emergir, ironicamente, a lei obscena que tal métrica cria.

Em outro episódio, o primeiro ministro britânico deve manter relações sexuais com um porco, com transmissão ao vivo em todos os meios de comunicação, como forma de salvar uma princesa sequestrada. Ainda que ela tenha sido liberada antes da hora, ainda que o dedo enviado pelo sequestrador seja falso, ainda que tudo tenha sido uma farsa inventada por um artista performático, a verdade criada por esta estrutura de ficção impõe um registro de realidade autônomo, impulsionando a carreira do político. O heroísmo criado pelas circunstâncias volta-se contra a intenção inicial do artista de denunciar a servidão que temos diante de nossas imagens públicas. Ou seja, ao tentar simbolizar o funcionamento imaginário da política como espetáculo, o artista teve seu ato absorvido a este mesmo imaginário.

De quantas formas podemos fracassar, bloquear ou recusar reconhecer o outro e a nós mesmos? Freud [1] tem um pequeno artigo dedicado ao falso reconhecimento em que examina esta experiência de estranhamento na qual sentimos que já estivemos ali, ou que aquela situação já aconteceu, o déjà-vu(sentimento de já ter visto) e o déjà-raconté (sentimento de que já se falou aquilo). Uma forma mais branda deste fenômeno ocorre quando nos sentimos telepatas, pensando em uma pessoa que logo em seguida nos liga, ou quando somos tomados pela intuição de que sabemos que algo vai acontecer. Pitágoras argumentou que eram reminiscências de vidas passadas e a neurologia sugere tratar-se de uma espécie de descompasso na tramitação dos impulsos cerebrais entre os dois hemisférios. Para a psicanálise as duas hipóteses são verdadeiras, trata-se de uma vida passada, a vida infantil, e estamos mesmo diante de um descompasso entre a inscrição inconsciente e consciente, entre desejo e memória. Por isso recordamos algo sem saber exatamente o que estamos recordando, mais ou menos como no luto quando sabemos que perdemos alguém, mas não sabemos exatamente o que foi perdido junto com a pessoa. Esta é a questão perturbadora que nos leva, tantas vezes, a perguntarmos: quantos gramas de real existem em uma determinada articulação simbólico-imaginária?

É o caso do episódio San Jinupero, no qual pessoas em estado vegetativo vivem uma experiência de ilusão, no interior da qual certas escolhas podem ser feitas. Neste contexto, a protagonista tem que escolher entre o companheiro familiar, com o qual levou uma vida morna, e uma grande paixão de juventude por outra mulher. Ela escolhe, improvavelmente, a segunda. Ou seja, é uma denúncia de que vidas inteiras podem ser consumidas em estado de falsidade quando não se reconhece o próprio desejo. É também uma alusão ao fato de que certos atos possuem a propriedade de separar imaginário e simbólico, decidindo seu sentido e sua ordem.

Quando se trata do falso reconhecimento entre memória e desejo, Freud cita o caso do paciente que lembrava-se de ter ferido o dedo com uma navalha e que viveu muito tempo depois disso achando que tinha um dedo a menos. Falsas lembranças levam a falsos reconhecimentos. O falso reconhecimento envolve tanto a relação consigo e o próprio corpo (sentido então como impróprio) quanto a relação com o outro (sentido então como estranho). O correlato disso em Black Mirror é o episódio da mulher que perde seu marido e gradualmente o substitui por um robô com anatomia, memórias e disposições do falecido. O incômodo que sentimos com isso é que percebemos que ela está se enganando; mas o engano é tão eficaz que será que ele não vale a pena?  Neste caso parece ser o simbólico que reocupa e substitui este grama impossível de real: a morte e a finitude.

O falso reconhecimento pode decorrer também da dificuldade de separar nossa percepção de nossa alucinação. No episódio Men Against Fire, soldados são submetidos a um implante cerebral de tal forma que enxergam seres humanos estrangeiros e indesejáveis como baratas que devem ser exterminadas. Isso evita o sentimento de piedade que pode perturbar a eficácia da operação. Um determinado erro permite que o protagonista veja as coisas como elas realmente são. Também em Polar Bear uma assassina é condenada a reviver todos os dias, em uma espécie de Big Brother, as experiências terríveis que infligiu a sua vítima. Depois de um dia neste parque de horrores e perseguições ela é submetida a uma máquina de esquecimento para reviver e repetir seu martírio no dia seguinte, sendo punida, assim,infinitamente pelo seu crime (elatorturou e matou uma criança).  Nos dois casos, o sistema de ilusões comporta uma espécie de erro na máquina. Minha percepção é real, vejo seres humanos como baratas, vivo as perseguições como reais, mas elas são em verdade percepções alucinadas porque eu não consigo reconhecê-las como falhas de memória ou falhas de percepção.  Quando emerge a possibilidade de reconhecer o erro, quase sempre o sujeito escolhe o pior. Tendo percebido que as pessoas são vistas como baratas, o soldado é indagado se quer ser tratado como uma barata pelos outros ou se prefere ter suas memórias apagadas e começar de novo. O que há, portanto, de mais real é o erro e a falha, e o que há de mais trágico é este real emergir e não o reconhecermos, nada querendo saber ou lembrar dele.

O interessante da série é que ela quase sempre supera o primeiro nível no qual certa ilusão é denunciada submetendo o sujeito a uma segunda escolha. Ou seja, quando descobrimos a mentira de nossas ilusões, podemos escolher reforçar nossas ilusões. Continuar a agir como se não soubéssemos. Nem sempre o reconhecimento do falso reconhecimento leva a uma verdadeira transformação. Ele pode nos levar a uma espécie de dupla alienação, uma alienação dentro da alienação, como vemos no episódio do jovem garoto que passa a vida viajando, evitando atender o telefonema de sua mãe, e que acaba enlouquecendo ao se submeter como cobaia em um teste para a criação de um videogame de terror.

O falso reconhecimento também pode ser produzido por meio da exageração de afetos ou interesses, ao modo de um espelhismo de recordação. Por exemplo, em Hated in the Nation, um ex-funcionário vingativo desenvolve uma rede social onde podemos escolher pessoas que devem morrer (tanto criminosos contumazes quanto pessoas comuns que cometem erros morais). Uma vez condenado, abelhas mecânicas entram pelos ouvidos da vítima e devoram a área do cérebro responsável pela dor. Aqui a metáfora é literal, se tivéssemos os meios de nos desresponsabilizar agiríamos como uma colmeia assassina. Uma releitura atualizada da Experiência de Milgram, que na década de 1960 mostrou que sob ordens de um cientista a maior parte das pessoas faria mal a outra pessoa indefesa. Só que aqui o falso reconhecimento desloca-se da autoridade constituída da ciência para a autoridade do grupo anônimo de uma rede social. Isso capta um sentimento coletivo e ascendente de que todas as nossas instâncias de autoridade – científica, moral, religiosa ou política – são no fundo apenas expressões de um sistema de interesses obsceno. Black Mirror vai além disso ao mostrar que esta insatisfação com a impostura de nossas instituições simbólicas pode ser apenas um pretexto para dar curso aos nossos impulsos sádicos e violentos.

O mal-estar que Black Mirror cria é um espelho negro de nós mesmos. Mas ele não é apenas um indutor de angústia por que mostra nosso lado imoral, mesquinho e egoísta, mas porque denuncia e explica, de forma quase didática, como nossa forma de lidar com o reconhecimento, hoje e agora, está nos levando ao desencontro de nós mesmos e de nossos desejos. Ele mostra como nós estamos produzindo ativamente e exagerando nosso próprio vazio de experiência, tocando no ponto essencial da etiologia de sofrimento narcísico de nossa época, mais além do receituário tradicional sobre esta matéria.

 


[1] Freud, S. (1914) Acerca del fausse reconnaissance (déjà-raconté) en el curso del trabajo psiconanalítico. Sigmund Freud Obras Completas V-XIII. Buenos Aires: Amorrortu  págs. 207-212.

Diário de um pistoleiro zen

O ator Nelson Xavier interpreta Amador, 0 ex-matador de aluguel que protagoniza o filme de estreia de Erico Rassi. Foto- Divulgação : Rio Bravo Filmes
O ator Nelson Xavier interpreta Amador, 0 ex-matador de aluguel que protagoniza o filme de estreia de Erico Rassi. Foto- Divulgação : Rio Bravo Filmes

Em tratamento de um câncer de pulmão e, com a prática da meditação, reinventando sua relação mente/corpo, o ator Nelson Xavier rompe um hiato de três anos longe dos cinemas no papel de Amador, o matador de aluguel aposentado que protagoniza Comeback, longa-metragem de estreia do cineasta goiano Erico Rassi, que entra em circuito comercial no dia 25 deste mês.

Presente em grandes títulos da filmografia nacional, como Os Fuzis, de Ruy Guerra (1964), ABC do Amor, de Eduardo Coutinho (1967), Dois Perdidos Numa Noite Suja (1967), de Braz Chediak, Vai Trabalhar, Vagabundo, de Hugo Carvana (1973), e Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman (1981), Xavier repete a boa atuação de A Despedida, de Marcelo Galvão, seu trabalho mais recente na tela grande, em que fez par romântico com Juliana Paes e, assim como a atriz, conquistou o prêmio de melhor atuação no Festival de Gramado de 2014.

Aos 75 anos, com quase 60 de carreira profissional, a cancha do veterano redime problemas, como pequenas inconsistências do roteiro, e redimensiona qualidades de Comeback, como a tensão gradual das sequências, que dialoga com a monótona rotina de Amador. Experiência à parte, em entrevista à CULTURA!Brasileiros, Xavier enfatizou a importância de um elemento que, segundo ele, reinventou sua dinâmica de atuação. “Atribuo o sucesso que tive com o Amador ao fato de meditar regularmente há sete anos. A meditação aumentou minha sensibilidade e me permitiu lidar com a interpretação de uma maneira nova. Um dos significados de protagonizar esse filme foi confirmar que a meditação me enriqueceu. Não só como pessoa, mas também na capacidade de lidar com a matéria da interpretação. Em A Despedida e em Comeback, senti uma liberdade que nunca tinha experimentado em minha carreira”, diz.

Ambientado em Goiás, na periferia de Anápolis, cidade natal de Rassi, Comeback narra o dia a dia ordinário do ex-justiceiro, que abandona o antigo ofício, mas continua a atuar no submundo do crime, exercendo a tripla função de intermediário de locação, entregador e reparador de máquinas caça-níqueis em bares decadentes, como o da cena inicial do filme. Nesse primeiro plano-sequência, rodado em um desses botecos xexelentos, Amador é procurado pelo neto de Davi, um velho amigo seu, parceiro dos tempos de pistolagem. Propenso ao crime, o rapaz, que não tem o nome revelado na trama, voluntariamente acompanha o dia a dia do matador para aprender o ofício que outrora deu a ele fama e respeito no meio da bandidagem.

Desconfortável com a insignificância de sua nova ocupação e também com a falta de traquejo para lidar com seus clientes, encerrado o expediente, Amador passa horas a folhear um álbum com cerca de 50 páginas em que, por meio de colagens de recortes de jornais da imprensa policial dos anos 1980 e 1990 – “superstar do Notícias Populares”, parafraseando os Racionais MCs –, mantém viva a memória dos crimes que cometeu. Repleto de manchetes assombrosas, como “chacina deixa seis mortos”, “banho de sangue na madrugada” e “casal morto a tiros”, para aqueles que desconhecem o ímpeto violento de Amador, o álbum serve como atestado de que ele, de fato, foi um sujeito barra pesada.

“Gostei do personagem porque ele traz uma visão independente da realidade brasileira, nunca abordada em nosso cinema, apesar da diversidade de nossa produção. Lembro de Ozualdo Candeias ter feito um filme sobre o assunto (Manelão, o Caçador de Orelhas, de 1982), mas com uma abordagem completamente diferente. Gostei muito de fazer o filme também porque tive plena liberdade para fazer o que eu sentia e escolhia”, diz Xavier.

 

 

Exibido em primeira mão no Festival do Rio de 2016, Comeback (o título faz referência a um possível retorno de Amador ao antigo ofício) rendeu a Xavier o prêmio de Melhor Ator na mostra carioca e foi considerado por alguns críticos signatário da estética western. Rassi, no entanto, parece mais norteado pela cartilha “faroeste do Terceiro Mundo” de O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla. No bangue-bangue à brasileira do diretor goiano, a inspiração para o roteiro, também de sua autoria, veio de um personagem real, mitificado pelo escritor e jornalista João Antônio.

“O filme surgiu a partir de entrevistas que fiz com o jogador de sinuca chamado Carne Frita, que serviu de inspiração para o personagem do Amador. Os dois se assemelham, na medida em que se apegam a feitos do passado como uma maneira de se sentirem relevantes, e talvez escaparem do ostracismo. Acho que o filme possui alguns elementos de faroeste, o mais forte deles a ambientação em um local onde lei e ordem não estão plenamente constituídas. Há também alguns aspectos visuais da periferia, como as ruas empoeiradas e pouco movimentadas, que podem remeter a um cenário de faroeste, mas de forma mais incidental”, defende o diretor.

Parcialmente financiado por meio de crowdfunding, Comeback também contou com uma rede de colaboradores. “A escolha de Anápolis se deu tanto por aspectos estéticos quanto por viabilidade de produção. Primeiro, a gente queria um cenário de periferia que trouxesse algum ineditismo, fugindo de uma requentada periferia paulistana ou favela carioca. E a possibilidade de filmar em Anápolis, com todo o apoio que nos foi oferecido – de parentes, amigos e moradores locais, certamente por lá ser nossa cidade natal –, acabou unindo as duas coisas”, conclui Rassi.

Entrevista realizada no dia 3 de maio, uma semana antes da morte de Nelson Xavier 

MAIS
Veja o trailer oficial de Comeback, de Erico Rassi.

 

Justiça Escolar

Foto: EBC

A greve de 28 de abril, contra as reformas ora em curso no Brasil, envolveu boa parte da população em diversos estados do Brasil, com participação popular semelhante à que verificamos nas manifestações que culminaram no afastamento de Dilma Rousseff. Se isso foi necessário para o afastamento de uma, porque não seria para o afastamento de outro? Escândalos de corrupção envolvendo ministros de Temer, impopularidade no mesmo patamar, idêntica insatisfação social com os rumos do País e como gerente geral os resultados econômicos são de mesmo quilate. Ademais se poderia dizer que uma foi eleita, o outro não. Contra isso uma mente mais imparcial diria: “é, mas ela foi uma condição crônica e dolorosa, ao passo que ele ainda é um golpe agudo e pungente”. No frigir dos ovos, empate.

Aqui levanta-se um sentimento perigoso para ambos os lados: injustiça. Por que pessoas em situação semelhante, examinadas sob mesmos critérios são tratadas de forma distinta? Uma é julgada e afastada, outro faz suas propostas avançarem no congresso. Ambos dependem dos mesmos parlamentares. Mas parece que pau que bate em Pedro não bate em João, ou, como diria Maria Rita Kehl, dois pesos duas medidas.

Não deveríamos estar todos juntos, apoiando em movimento dialético o reinício radical, em uma dupla negação determinada, de Fora Dilma-Temer? Eleições gerais, constituinte ou o que valha. Em vez disso vemos o sentimento de injustiça se capilarizar em tensão social e ressentimento cada vez mais microscópico.

É isso que acontece quando as razões são suspensas e o lado que ganha imputa ao que perdeu mera irracionalidade e desrazão. Repete-se aqui um déficit histórico mais profundo, que consiste na incapacidade renitente de reconhecer alguma razão aos perdedores. Nesta situação perder não é uma oportunidade para melhorar, renovar-se ou fazer a crítica, mas apenas humilhação. Ao perdedor o silêncio. Do outro lado, ganhar é nada mais do que confirmar que o poder é propriedade de alguém e não um efeito do revezamento necessário para que a justiça aconteça como experiência coletiva, mutuamente partilhada. Ao vencedor as batatas.

Este processo evoluiu com a entrada em cena de um personagem até então relativamente opaco: as escolas particulares. Os professores de 227 escolas paulistas, encarregados de cuidar dos futuros mandantes do país, peça fundamental deste pomo da discórdia chamado classe média, em uma atitude sem precedentes, aderiram a greve. Isso foi percebido como violação de contrato, como se nossas crianças estivessem ameaçadas pelo demônio da política.

A “criança” é uma figura fundamental da fantasia de Brasil. Em nome dela tudo se justifica. Sua pureza e inocência representam o futuro que nunca chega. A promessa em forma de berço esplêndido, conforme esta passagem inesquecível de Memórias Póstumas de Braz Cubas:

“Fustigava-o [o escravo Prudêncio], dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou quando muito um ´ái nhônhô´ – ao que eu retorquia – ´Cala a boca, besta!´ – Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar o rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também  expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista da gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.”[1]

Se os condomínios brasileiros da década de 1970 foram um empreendimento de “profissionalização” dos empregados domésticos, que deixavam de fazer parte da família, e passavam a usar uniforme e entrar pela porta de serviço, agora temos uma nova onda de “profissionalização domesticadora” que toca as escolas, cujo primeiro sintoma foi a Escola sem Partido e o segundo capítulo foi a barbárie com a qual a greve do professorado foi tratada. Escolas escalando estagiários para cobrir a função dos professores grevistas, pais indignados pela politização da educação, diretores de escolas gabando-se do controle que exerciam sobre seu professorado, gente descobrindo abismada que seus filhos estavam em uma “escola de esquerda”. Escolas trabalhando como depósitos de crianças apenas para “inglês ver”. Estabelecimentos interpelados pelos próprios alunos, ainda que não todos, sobre porque permitiam que seus funcionários interrompessem o trabalho pedagógico (como se a oposição fosse a qualquer projeto de reforma previdenciária e não a este projeto específico). Pais vociferando que estavam pagando pelo serviço e exigindo que os diretores sacassem a chibata … contra o escravo Prudêncio.

É parte elementar da formação política entender que o tratamento de qualquer conflito começa por reconhecer que o ponto de vista do outro possui dignidade e relevância, ainda que não concordemos com ele. A atitude daquele que quando contrariado quer levar a bola para casa é a atitude anti-política por excelência. A presunção de que a diversidade de opiniões é apenas um problema de má compreensão ou falta de caráter perpetua o complexo de Brás Cubas. Para ele os professores são extensões dos pais, que eles contratam para repetir seus próprios preconceitos. Nenhuma separação entre a vida privada das famílias e a experiência pública da escola. Serão os mesmos pais que depois reclamarão do apossamento corrupto do Estado pelos interesses privados. Os mesmos que regam as festas juvenis a álcool e orgulham-se de seu amor feito de exceções à lei. O menino é pai do homem.

Mas tanto os pais consumidores quanto os diretores acuados também têm suas razões e representam um ponto de vista interessante, preocupados que estão em entender como é possível que a educação se misture com a política, e o conhecimento com a ideologia. Querem, com bons motivos, proteger seus filhos da doutrinação, das más influências e do descaminho, que, como bem sabem, começam em casa. Querem um Brasil que volte ao trabalho, purifique-se do excesso de política, e pare de discutir as regras do jogo. Não estão contentes com Temer, como já não estavam com Dilma. Contudo, quando dois brigam é muito difícil admitir que se um estava errado o outro, ainda assim, pode não estar certo.

O que nos falta é um pouco mais de humildade para dar o terceiro passo. O passo que suspende nossa certeza sobre a justiça, tornando-a um horizonte comum de busca não apenas instrumento de opressão sobre outro ou de exercício de poder. O passo que nos leva ao terreno pantanoso no qual o direito não se identifica mais com a justiça. Para tanto devíamos lembrar do apólogo proposto pelo pensador liberal Amarthya Sen[2]:

Três crianças estão brigando para saber com quem deve ficar uma flauta. Parece óbvio que a flauta deve ir para a primeira criança, pois ela é a única que sabe tocar flauta. O argumento parece imbatível para quem se encerra em seu próprio ponto de vista, afinal do que serviria um flauta para quem não sabe como usá-la? Seria um desperdício e ademais ouvindo o som do instrumento, as duas outras crianças poderiam compartilhar este bem simbólico que é a música. O instrumento pertence a quem sabe usá-lo, e justamente por isso pode fazer a música algo que pertence a todos. Nada mais harmônico.

Se não ouvíssemos a segunda criança provavelmente concluiríamos assim.  Contudo, a justiça muda de figura quando ficamos sabendo que a segunda criança é muito pobre e não tem nenhum brinquedo. O valor que este objeto teria para ela seria muito superior ao dado pela primeira, que, agora, olhando melhor, tem muitas outras coisas com as quais brincar. Assim dando a flauta para a mais pobre isso poderia produzir um efeito transformador que é fazer esta segunda criança, que não sabe tocar flauta, aprender a tocar o instrumento.  Ficamos assim constrangidos com nossa própria estreiteza de pensamento, que nos levou a empregar um conceito de justiça tão pobre que se limita ao exame da situação presente, sem levar em conta que nossas decisões hoje podem transformar o futuro. Dar a chance para que a segunda criança seja capaz de aprender a tocar o instrumento, depois disso ela poderá ensinar tantas outras pessoas a arte da flauta. Assim o saber musical torna-se socialmente compartilhado.

As duas posições poderiam brigar indefinidamente. Ambas são justas, imparciais e não arbitrárias. Ambas seguem seus próprios termos e em acordo com suas próprias posições. Não bastasse isso a terceira menina levanta um detalhe esquecido até então. Foi ela quem fez a flauta, com suas próprias mãos, durante meses a fio, e, ao final, teve o fruto de seu trabalho tomado pelas outras. Ou seja, sedentos pela tensão entre o presente e o futuro esquecemos que os processos possuem também um passado e uma história, e esta também é fonte de justiça. Olhando desta perspectiva parece óbvio e indiscutível que quem fez a flauta é o dono dela. O resto é roubo.

O terceiro passo nos tira da lógica dualista na qual o acerto de um é o erro do outro. Mas ele nos leva a um problema maior que é perguntar: qual justiça para qual direito?

Poderíamos dizer que os igualitaristas econômicos tendem a ficar com a segunda menina, o fato de que ela é pobre determina a justiça a ser feita. Os libertários e pragmáticos ficariam com a terceira menina. Já os hedonistas e pragmáticos vão aderir à justiça de quem pode melhor usufruir dela. As coisas se complicam quando pensamos que a direita libertária e a esquerda marxista poderiam formar uma aliança em torno da tese de que a justiça emana da propriedade e do trabalho, ou seja, da terceira flautista.

É neste ponto que costumamos apelar para a suspensão das razões e recorrer a uma espécie de autoridade superior. Ocorre que no Supremo Tribunal Federal das Flautas Litigantes encontramos dois ministros que sabem tocar flauta, outros dois que são pobres e os dois últimos são egressos das fábricas de construção de flautas. Ou seja, não adianta fetichizar os tribunais e minorizar nossa razão e a dos outros, pois a situação não se resolverá por si só.

Ora, as escolas, sejam elas liberais, marxistas, pragmáticas ou hedonistas são o lugar no qual o debate das flautas deve ocorrer. Esperamos que elas formem nossas crianças na disciplina da diversidade que as habilitará ao tratamento do conflito. Caso contrário estaremos lhes prometendo um mundo com fornecimento vitalício de flautas, como fazia o pai de Brás Cubas.

[1] Assis, Machado (1881) Memórias Póstumas de Braz Cubas. São Paulo: Ateliê, pág. 87-88.

[2] Sen, Amarthya (2009) A Ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Boca Maldita, o reduto da livre manifestação em Curitiba

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Multidão ocupou a Boca Maldita em 12 de janeiro de 1984 (Foto: Reprodução)

Ninguém sabe ao certo quantos se levantaram contra a ditadura naquele dia. Os relatos variam de 30 mil a 80 mil manifestantes. O fato é que, na quinta-feira 12 de janeiro de 1984, uma multidão ocupou um espaço conhecido como Boca Maldita, em Curitiba, para pedir eleições diretas para presidente. Foi o primeiro grande comício pelas Diretas Já.

A ditadura estrebuchava. Os principais líderes da oposição se revezaram no palanque, a começar pelo deputado Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, um partido que à época fazia oposição aos militares. Foi também o comício de estreia do locutor Osmar Santos, cuja voz logo seria identificada como símbolo da campanha.

A Boca Maldita, epicentro do comício, corresponde ao entorno da rua XV de Novembro com a Praça Osório, no centro da cidade. O lugar é conhecido como espaço de livre opinião desde 13 de dezembro de 1956, quando frequentadores dos cafés e restaurantes da região fundaram a confraria dos Cavaleiros da Boca Maldita de Curitiba.

O lema da confraria é “nada vejo, nada ouço, nada falo”. Na prática, tudo veem, tudo ouven, tudo falam.  Desde 1956, nenhuma manifestação política em Curitiba passou ao largo da Boca Maldita. Não poderia ser diferente no momento em que a cidade se prepara para o embate entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o juiz Sergio Moro.

O espaço do levante histórico contra a ditadura foi destinado pelas forças de segurança aos apoiadores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A sombra do juiz Sergio Moro e do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, também se faz presente no local. Em 2015, ambos foram sagrados cavaleiros da confraria em jantar que acontece todos os dias 13 de dezembro desde 1956. Detalhe: até hoje mulher não entra na festa. A sorte é que a Boca Maldita das ruas é um espaço público.

Sangue, sexo e poder

No decorrer dos três séculos que separam os dois adolescentes franzinos, os Románov produziram 20 czares. Foto- Divulgação
No decorrer dos três séculos que separam os dois adolescentes franzinos, os Románov produziram 20 czares. Foto- Divulgação

A saga da dinastia Románov está intimamente associada à turbulência e ao excesso. Começou em 1613, com um rapaz franzino de 17 anos elevado a contragosto a soberano da antiga Moscóvia e terminou 305 anos depois, com a morte brutal de outro herdeiro adolescente. Aos 13 anos, fragilizado pela hemofilia, Alexei Románov foi fuzilado junto com os pais e as quatro irmãs no porão da mansão Ipátiev, em Iekaterinburgo, nos Urais. Os disparos demoraram a atingir o corpo das garotas, conhecidas pelo acrônimo OTMA, de Olga, Tatiana, Maria e Anastássia. Naquela madrugada, 17 de julho de 1918, as balas ricochetearam nas joias que as grã-duquesas tinham costurado no interior das roupas. Prisioneiras dos bolcheviques, elas ainda tinham esperança de fugir com a família de uma Rússia dilacerada pela guerra civil.

No decorrer dos três séculos que separam os dois adolescentes franzinos, os Románov produziram 20 czares, entre eles dois com fama de gênios políticos: Pedro I e Catarina II, os Grandes. Construíram também um império, que cresceu uma média de 140 quilômetros quadrados por dia e correspondia a um sexto da superfície do planeta em 1917, quando o czar Nicolau II, pai de Alexei, caiu, na sequência da revolução que levou ao poder o Partido Bolchevique, de Vladimir Lênin. São por esses três séculos que o historiador britânico Simon Sebag Montefiore empreende um excepcional estudo do poder, da brutalidade e do sexo em Os Románov 1613-1918. Autor de best-sellers como Jerusalém, Montefiore é especialista em história russa e escreveu dois livros sobre o líder soviético Josef Stálin, além de uma biografia do primeiro-ministro Grigory Potemkin, amante de Catarina, a Grande.

Em linguagem fluida e cativante, Montefiore apresenta o mundo dos Románov alternando detalhes da vida íntima de seus integrantes com assuntos de governo. O próprio autor esclarece o motivo: “É impossível entender Pedro, o Grande, sem analisar seus anões nus e papas falsos ostentando brinquedos sexuais tanto quanto suas reformas de governo e sua política externa. Ainda que excêntrico, o sistema funcionava, e os mais talentosos ascendiam a altas posições”. Dessa forma, amantes imperiais acabaram se revelando ministros de primeira linha, como foi o caso do poderoso Potemkin, durante o governo de Catarina, a Grande. Era também um mundo permeado pela traição. Seis czares foram assassinados, “dois por asfixia, um com uma adaga, um com dinamite, dois à bala”.

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Os Románov 1613-1918, Simon Sebag Montefiore. Tradução de Claudio Carina, Denise Bottmann, Donaldson M. Garschagen, Renata Guerra e Rogério W. Galindo. Companhia das Letras, 906 páginas

Diante da profusão de personagens na obra de 900 páginas, Montefiore tentou facilitar a vida do leitor adotando grafias distintas para nomes similares e usando apelidos. Diante de cada capítulo, ele também apresenta uma relação dos personagens que virão a seguir. O fio condutor da narrativa é a autocracia e seus efeitos – tanto no destino de um povo quanto na distorção de personalidades. Publicada no centenário da Revolução Russa, Os Románov apresenta uma sucessão de bizarrices, como desfile de noivas para a escolha de consortes, anões saltando pelados de bolos, gigantes vestidos como bebês, pais torturando filhos até a morte, crianças assadas e comidas enquanto suas mães são estupradas. Tudo isso em um contexto de conspirações e golpes, de brigas intestinas pelo poder.

Nesse universo, Pedro, o Grande, é lembrado pela engenhosidade geopolítica, mas também pela “resistência férrea” para festas que exauriam os súditos e por protagonizar episódios grotescos. Um deles ocorreu em março de 1719. Ao final de uma investigação que trouxe à tona a promiscuidade da corte, Pedro I condenou à morte uma antiga amante, Mary Hamilton, descendente da realeza escocesa e dama de honra de sua mulher. Mary subiu ao cadafalso crente que receberia um perdão de última hora, mas o czar sinalizou para o carrasco descer a espada. Na sequência, “Pedro levantou aquela linda cabeça e começou a falar sobre anatomia para a multidão, mostrando a vértebra cortada, a traqueia aberta e as artérias gotejantes, antes de beijar os lábios ensanguentados de Mary e largar a cabeça. Em seguida, persignou-se e foi embora”. Depois de embalsamada, a cabeça de Mary foi levada para o Gabinete de Curiosidades, o espaço no qual o czar guardava sua coleção de objetos exóticos.

A pesquisa que permitiu a Montefiore entrar em tantas minúcias foi facilitada, em grande medida, pelo colapso da União Soviética e subsequente abertura de arquivos, que lhe deram acesso, inclusive, a diários íntimos dos Románov. Com isso, até mesmo suas notas de rodapé podem revelar detalhes preciosos. Um deles: depois da carnificina que culminou na morte dos últimos Románov, Órtino, o buldogue de Tatiana, desceu correndo as escadas e foi morto pela baioneta de um dos soldados. Destino similar teve Jemmy, outro cão da família. Em contrapartida, Joy, o cãozinho king charles spaniel de Alexei, conseguiu fugir durante a fuzilaria. Quando voltou, foi adotado por um guarda e mais tarde por um integrante das forças de intervenção dos Aliados. Levado para a Inglaterra, Joy viveu o resto da vida em Berkshire, perto do Castelo de Windsor.

Força da natureza

Senti um frio na barriga por estar fazendo algo que nunca tinha feito, e não por estar criando algo diferente do que é feito por aí”, conta Luiza. Foto- Bruno Moya Fenart:Divulgação
Senti um frio na barriga por estar fazendo algo que nunca tinha feito, e não por estar criando algo diferente do que é feito por aí”, conta Luiza. Foto- Bruno Moya Fenart:Divulgação

Dois anos depois de lançar seu álbum de estreia homônimo, a cantora e compositora paulistana Luiza Lian traz à luz um novo projeto. Desta vez, suas canções vêm em formato inusitado: ao mesmo tempo que fecham o conceito de álbum, são embaladas como trilha sonora de um média-metragem, de 24 minutos, dirigido por Camila Maluhy e Octávio Tavares. Intitulado Oyá Tempo, o trabalho é, no conceito do trio, um “álbum visual”.

Em conversa com a reportagem de CULTURA!Brasileiros, Luiza explica que o cruzamento de linguagens de Oyá Tempo não foi algo premeditado. Segundo ela, a ideia surgiu em meio a um outro projeto, uma performance baseada em poemas de sua autoria, mas as proposições, no entanto, confluíram organicamente para que tudo tomasse um novo formato à medida que Luiza foi mostrando suas ideias para amigos e parceiros de trabalho. Naturalmente ela acatou algumas sugestões e chegou ao consenso de que deveria apostar nesse formato incomum. Além de reunir poemas que compõem a performance, o álbum, que contém oito faixas, é formado de composições inspiradas em pontos de umbanda – daí o título, uma referência à divindade da mitologia Yorubá, também conhecida como Iansã, que controla ventos, raios e tempestades – e traz influências nítidas de funk carioca e trip-hop.

Nos registros de estúdio as composições de Luiza foram revestidas de uma teia instrumental criada por Charlie Tixier (Charlie e os Marretas /Holger) e Gui Jesus Toledo, também responsável pela mixagem e masterização do trabalho. “Me colocar nessa nova posição foi uma maneira de me orientar”, diz Luiza.

A celebração a Oyá está presente de forma subjetiva em sequências do filme, e também em elementos sonoros das canções, repletas de efeitos lisérgicos e distorções, que remetem às intempéries climáticas. A atmosfera do média-metragem, em alguns momentos, é pesada e lúgubre, e sua narrativa se dá de forma fragmentada. “Queria mostrar a ideia do tempo como destino. Um tempo que não é linear”, explica Luiza.

Camila Maluhy, que toca a quatro mãos com Octávio Tavares a produtora audiovisual Filmes da Diaba, já havia demonstrado interesse em produzir um videoclipe da compositora. Oyá Tempo estava previsto para ser lançado no final de 2016, mas, como o trabalho ganhou esses novos contornos, só agora o álbum visual chegou ao mercado. A produção também marca a primeira parceria entre o selo fonográfico de Luiza, o RISCO, e o Filmes da Diaba.

A despeito das experimentações que culminaram na obra, Luiza pondera e diz que não teve a pretensão de trazer à tona algo inovador. “Senti um frio na barriga por estar fazendo algo que nunca tinha feito, e não por estar criando algo diferente do que é feito por aí”, defende.

O elenco do filme conta com a participação da cantora Nina Oliveira, que Luiza conheceu durante a gravação de um videoclipe da amiga Camila Garófalo, e do rapper MC Diggão. A identificação com Nina, segundo ela, foi imediata: “Nos conectamos e decidi apresentá-la para Camila e Octávio, porque achei que ela se encaixava muito bem no que procurávamos”. Já o MC foi descoberto casualmente pelos diretores quando eles perambulavam por Ubatuba e pediram a ele informações para construir o roteiro, que teve a praia do litoral norte de São Paulo como uma das locações.

Oyá Tempo também culminou na produção de um novo site para a cantora (luizalian.com.br), com projeto gráfico desenvolvido por Rafael Trabasso, conhecido como Dedos, com quem Luiza fez graduação em Artes Visuais. Inusitada como o álbum visual, a página virtual tem conteúdo de rolagem exclusivamente vertical e iconografia que remete à estética do longa-metragem.

No palco, com a proposta pouco usual deste trabalho, Luiza receava que o público recebesse os estímulos com certo estranhamento, mas ela conta que as reações têm sido muito positivas: “Algumas pessoas saem chocadas, emocionadas, se perguntando ‘o que foi aquilo?!’”, comenta feliz.

Oyá Tempo foi lançado virtualmente no final de março e pode ser assistido, ouvido e baixado no site da cantora ou apenas visto diretamente em seu canal do YouTube. O projeto foi apresentado recentemente na Matilha Cultural e na programação de uma ocupação na Casa do Mancha, espaços alternativos sediados em São Paulo. A apresentação na ocupação também contou com a performance que foi o ponto de partida para o trabalho.

Inquieta, Luiza já prepara o sucessor de Oyá Tempo. Recentemente se trancafiou com seus músicos no estúdio Canoa, no bairro do Sumaré, na zona oeste da capital, para gravar o novo disco, previsto para ser lançado pelo selo RISCO em setembro próximo. Até lá continuará a fazer apresentações regulares, que poderão alternar o repertório de seu álbum de estreia e o de Oyá Tempo. No dia 29 deste mês, no Audio Club, em São Paulo, Luiza fará o show de abertura do cantor e compositor escocês Paolo Nutini.

Até crianças cruzaram os braços na greve geral de 1917

Grevistas em frente à Crespi, a primeira fábrica a parar em 1917 (Foto: reprodução)
Grevistas em frente à Crespi, a primeira fábrica a parar em 1917 (Foto: reprodução)

As oficinas eram insalubres. A jornada de trabalho girava em torno de 14 horas. Não havia descanso remunerado. Era ruim para todo mundo, mas mulheres e crianças sofriam ainda mais. Trabalhavam o mesmo tanto e recebiam menos que os homens. Junte-se a isso uma guerra na Europa, escassez nas prateleiras e carestia galopante.

A primeira fábrica a parar foi a Crespi, como era conhecido o Cotonifício Rodolfo Crespi, uma das maiores indústrias têxteis de São Paulo. Inaugurada em 1897, ficava perto da Hospedaria dos Imigrantes, primeira parada dos estrangeiros que chegavam à cidade em busca de uma vida melhor. Cerca de 75% dos trabalhadores da Crespi eram de origem italiana.

Em junho de 1917, os operários da tecelagem pediram 20% de aumento e melhores condições de trabalho. Não levaram. Foi o estopim para a primeira greve geral de São Paulo. Poucos dias depois, a Antártica parou. Na sequência, a greve se generalizou, inspirada no socialismo e anarquismo difundidos por militantes como o jornalista Edgard Leuenroth.

Apontado pela polícia como autor “psíquico-intelectual” da greve, Leuenroth registrou o momento: “Paralisava-se a vida laboriosa de São Paulo que não pode parar, para dar lugar a uma convulsão popular sem precedentes na vida paulistana. A polícia entrou em ação. Começaram os choques com as multidões. Dos encontros resultaram vítimas de ambos os lados”.

Uma das vítimas foi o sapateiro Jose Martinez, militante anarquista espanhol de 21 anos, morto durante manifestação em frente à tecelagem Mariângela, no Brás. Calcula-se que mais de dez mil pessoas acompanharam seu enterro pelas ruas de São Paulo, até o cemitério do Araxá, onde oradores inflamados se revezaram à beira do túmulo.

Durante mais de um mês, as fábricas e o comércio permaneceram parados. Saques começaram a acontecer depois que uma carroça de pão foi assaltada na rua Rangel Pestana, também no Brás. Demorou, mas o então recém-formado Comitê de Defesa Proletária, com a intermediação de um grupo de jornalistas, conseguiu negociar o fim da greve.

Eles conquistaram um aumento geral de 20%, o direito à associação e a não demissão dos grevistas, mas, na prática, a greve de 1917 não passou do início de lutas mais amplas. Quanto ao trabalho infantil, o governo se comprometeu apenas a interceder “para que sejam estudadas e votadas medidas que protejam os trabalhadores menores e as mulheres no trabalho noturno”.

 

“Escrever é minha cachaça”

luiz vilela
Na redação do Jornal da Tarde. São Paulo, 1968. Foto: Arquivo Pessoal

Luiz Vilela é o mineiro arquetípico: escreve quieto, mas o que escreve fala alto. E diz muito, ainda que sempre em poucas palavras. A depuração é uma marca evidente. Antonio Candido chegou a falar na “absoluta pureza de sua linguagem”. Por isso, seu estilo é enganosamente simples. Além do rigor formal, trai nas entrelinhas a formação em filosofia. Há uma aura existencialista nos personagens, sejam eles homens do povo, sejam intelectuais. O banal em suas histórias tem um vago sabor metafísico. Já a solidão é uma presença constante e a morte surge como motivo de angústia, descaso ou riso. Por outro lado, a falta de assunto pode ser matéria de diálogo, assim como o excesso dele parece levar ao silêncio ensimesmado – ou à conversa com um cachorro abandonado. Diálogo, aliás, é, por unanimidade, o ponto forte de Vilela. Suas conversas soam reais a ponto de colocarem o leitor em cena, como ouvinte.

Nascido em Ituiutaba, no último dia de 1942, Vilela começou a escrever aos 13 anos, depois de ver um meteoro atravessar o céu. A casa sempre cheia de livros também foi um grande estímulo. Aos 14 já era publicado no jornal da cidade. Foi morar em Belo Horizonte e depois mudou-se para São Paulo, onde trabalhou como redator e repórter no Jornal da TardeTremor de Terra foi publicado em 1967, à sua custa, depois de  Vilela ser recusado por várias editoras. O escritor tinha 24 anos. Graficamente modesto, mas literariamente ambicioso, o livro começou ganhando o maior concurso literário brasileiro da época, o Prêmio Nacional de Ficção, desbancando nomes consagrados como Osman Lins e Mário Palmério, o que provocou controvérsia e o tornou conhecido. Tremor foi sempre elogiado, de Stanislaw Ponte Preta a Clarice Lispector, assim como praticamente todos os demais livros do autor, que incluem romances, contos e novelas. Há inúmeras dissertações e teses sobre sua obra, que tem várias traduções no exterior. O Fim de Tudo, quarta de suas antologias de narrativas curtas, ganhou o Jabuti em 1974. A Cabeça, de 2002, foi finalista do Portugal Telecom e aparece em pelo menos duas listas de melhores livros brasileiros na imprensa especializada. O romance Perdição venceu o Pen Clube do Brasil em 2012 e Você Verá, outra seleção de contos, foi agraciada pela Academia Brasileira de Letras, dois anos depois. Algumas de suas histórias foram adaptadas para cinema e também TV, na Rede Minas, Cultura e Globo.

Na conversa a seguir, realizada por e-mail, Vilela se dispôs a responder a  50 questões, para rimar com os 50 anos de Tremor, que agora ganha nova edição, assim como boa parte de sua obra, que vem sendo relançada pela Record. Generoso e bem-humorado, ele fala de quando tropeçou em García Márquez, aborda os temas principais de seus livros, cita trechos elucidadores, conta causos, fala de sua rotina em Ituiutaba, para onde voltou depois de um período nos EUA e na Europa, tenta explicar a arte do diálogo, lembra da amizade com Murilo Rubião e João Antonio e comenta o momento atual da literatura.

CULTURA!Brasileiros – No dia 20 deste mês seu livro de estreia,Tremor de Terra, completa 50 anos. O que isso significa para você?
Luiz Vilela –
 Significa muito, é claro. Sou naturalmente suspeito para falar, mas acho que o Tremor chega aos 50 anos sem uma ruga, sem um fio de cabelo branco. Ou seja, acho que ele não envelheceu nada, que ele conserva o mesmo frescor e o mesmo vigor de quando foi publicado.

E como foi a carreira do livro, que chega agora à décima edição?
Não posso me queixar. Muita coisa boa aconteceu com ele ao longo desse tempo: reedições, contos traduzidos, participação em antologias, inclusão em livros didáticos e listas de vestibular, tema de dissertações de mestrado e de teses de doutorado, adaptações para o cinema e o teatro, quadrinhos, etc. Ultimamente ele foi descoberto por jovens na Internet. Um deles, uma moça, leu-o por indicação de um escritor e fez no seu blog uma resenha a que deu o título de “Tremor de Terrade Luiz Vilela deveria sacudir o País”. Não ambiciono a tanto, mas me daria por satisfeito se ele, como fez até hoje, continuasse a sacudir alguns corações e algumas mentes…

Você escreve com prazer ou escrever é para você um processo penoso?
Escrever é muito difícil, sempre foi e continua sendo, mas é o que eu mais gosto de fazer na vida. Comecei a escrever aos 13 anos e estou com 74. Já são, portanto, mais de 60 anos escrevendo, sem falhar um ano. E não tenho nenhuma intenção de parar. Às vezes conhecidos meus me perguntam na rua se eu continuo escrevendo. Eu respondo que sim e acrescento: “Escrever é a minha cachaça…”

luiz vilela
Em Iowa City, Iowa, EUA, em 1969. Foto: Arquivo Pessoal

Como você chegou a esse estilo enxuto?
À custa de muito trabalho, de escrever e reescrever o texto infinitas vezes. Eu não tenho pressa. Não se pode ter pressa. A pressa, diz o provérbio, é inimiga da perfeição, e perfeição é o que eu busco nos meus escritos.

E esse ouvido apurado para o diálogo?
“Qual é a receita para se escrever um bom diálogo?”, me perguntou uma moça com pretensões a escritora. “Olha”, eu respondi, “eu, que sou mineiro, não sei nem a receita para se fazer um bom pão de queijo, quanto mais a receita para se escrever um bom diálogo.” “Não, mas diga pelo menos alguma coisa”, ela insistiu. “Bem”, eu então disse:“Para se escrever um bom diálogo é preciso, antes de mais nada, entrar na alma dos personagens; sem isso, não é possível escrever um bom diálogo”. “E como eu faço para entrar na alma dos personagens?”, ela perguntou. Eu pensei um pouco, olhei para ela e disse: “Sabe? Eu estou achando que é melhor você procurar a receita do pão de queijo…” Ela riu e mudou de assunto.

Você já tentou a poesia?
Na adolescência, e depois também, eu escrevi alguns poemas, mas nunca pensei em me dedicar à poesia. Num dos poemas, dos 15 anos, eu, que havia passado por alguns problemas de saúde, pergunto à morte: “Até quando serei a caça perseguida, / e nunca pega, / e nunca abandonada?” Em outro poema, da mesma época, quando eu ainda tinha fé religiosa, eu me dirijo a Jesus: “Essas mãos, que todos os dias prego na cruz, / são as mesmas que todos os dias me abençoam.”

E teatro?
Nos meus começos, eu escrevi de tudo. O teatro não poderia faltar, como de fato não faltou. Aos 14 anos escrevi uma peça de duas páginas datilografadas, intitulada Diálogos, com dois personagens, Plácido e Simplício, nomes, penso eu hoje, remanescentes de alguma coisa que li sobre a comédia latina. Plácido é candidato a prefeito e explica a Simplício: “Basta fazer um pouco de marmelada, inventar umas mentiras, conseguir alguns capangas e já se está no poder.” Três meses depois publiquei num  jornal da cidade um pequeno artigo intitulado “Reformar e revigorar a nossa política”. Nele eu dizia: “Suja (a política) porque os políticos, na maioria indivíduos corruptos e corruptores, desvirtuam-na, fazendo dela um palco onde se representam as mais torpes canalhices.” Alguma semelhança, por acaso, com os dias atuais?…

E as crônicas que, aos 15 anos, você mandava semanalmente de Belo Horizonte para o jornal de sua cidade?
Eu gostava muito de escrevê-las e, é claro, de vê-las publicadas. Eram crônicas com qualidade literária, como qualquer um poderá comprovar. Eu lera na época, em jornais, revistas e livros, todos os nossos grandes cronistas: Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Drummond, Bandeira, Rachel de Queiroz… Fora o prazer da leitura, aprendi muito com eles.

Além da extensão, quais as diferenças entre conto, novela e romance? Você tem preferência por algum deles?
Existem, sim, diferenças entre os três gêneros, mas explicá-las aqui seria demorado e tedioso. Quanto à preferência, eu não tenho. Gosto igualmente dos três e sempre escrevi os três. Para ficar só nos últimos tempos, em 2011 publiquei o romance Perdição, em 2013 a coletânea de contos Você Verá e em 2016 a novela O Filho de Machado de Assis. E a quem interessar possa, informo que o meu próximo livro, já escrito, é um romance.

Eu soube que em sua casa, na infância, havia sempre muitos livros…
É. Todos em casa, meus pais e meus cinco irmãos, gostavam muito de ler, e, assim, havia, como costumo dizer, livros por toda parte. Havia livros até no galinheiro, como já contei uma vez, e não era brincadeira, pois havia mesmo lá, na casinha das galinhas, um velho armário de madeira onde estavam alguns livros. Como foram parar lá, eu não sei, nem, como também já disse, se as galinhas os liam…

luiz vilela
Luiz autografa exemplares de Tremor de Terra no lançamento, em Belo Horizonte, em 1967. Foto: Arquivo Pessoal

Seus pais escreviam?
Não. Eles não tinham pretensões literárias. Mas tinham, isto sim, a preocupação de escrever bem, e escreviam. Os dois tiveram muito boa formação escolar. Meu pai estudou com os padres salesianos em Cachoeiro do Campo e Lorena, formando-se em Agronomia, em Niterói, pela Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária. Minha mãe estudou com as freiras dominicanas em Uberaba, no Colégio Nossa Senhora das Dores, formando-se no curso Normal.

E o curso de Filosofia, como foi?
Eu aprendi muito pouco no curso de Filosofia, e o que aprendi poderia ter aprendido sem fazer o curso, apenas com a leitura dos livros, já que a maior parte dos professores se limitava a repetir o que estava neles. O que mais aprendi de filosofia foi o que eu, desde a adolescência, li por conta própria. Alguns dos filósofos e pensadores que eu então e depois li, como Kierkegaard, Nietzsche e Unamuno, tiveram profunda influência em minha vida e em minha obra.

Como foi o tempo da revista Estória?
Os anos 1960 foram, em Belo Horizonte, um tempo de grande efervescência literária. Além da Estória, que em 2015 completou 50 anos de criação e mereceu uma edição especial do Suplemento Literário de Minas Gerais, que, aliás, surgiu um ano depois da revista, houve também o Texto, outra publicação que eu também criei, com mais dois companheiros, e que no ano passado completou também 50 anos de criação. Texto teve muita repercussão. Na Revista Civilização Brasileira, então a melhor revista de cultura do País e politicamente a mais corajosa, o historiador e crítico Nelson Werneck Sodré dedicou a ele um longo e elogioso comentário.

E o período que você passou nos Estados Unidos?
Eu fui para os Estados Unidos convidado a participar do International Writing Program, um programa que reunia em Iowa City, Iowa, por nove meses, escritores de várias partes do mundo. Eu estava com 25 anos. O programa foi ótimo. Além de conhecer um país estrangeiro e de conviver com escritores de várias nacionalidades, eu dispunha lá de todo o tempo, e pude, assim, terminar o meu primeiro romance, Os Novos, que eu havia começado três anos antes em Belo Horizonte e interrompido quando fui para São Paulo trabalhar no Jornal da Tarde.

Dos Estados Unidos você foi para Dublin, por causa de James Joyce…
Joyce era, e continua a ser, uma de minhas grandes admirações na literatura. No Brasil eu já havia lido quase toda a obra dele, e então, nos Estados Unidos, com o fim do Programa e alguns dólares no bolso,  resolvi conhecer a Europa, e o primeiro lugar que me veio à mente foi Dublin.

Você passou, depois, uma temporada em Barcelona.
Sim, e foi uma temporada muito agradável. Em Barcelona eu comi muita paella a la valenciana, vi o Museu Picasso, as obras do Gaudí e uma corrida de toros com o Antonio Ordóñez. E num fim de tarde em que eu ia passando pelo centro, vi, na porta de uma livraria, um sujeito muito parecido com o García Márquez, que eu sabia estar residindo na cidade. Parei, aproximei-me dele e perguntei: “Éres García Márquez?”. “Sí”, ele respondeu. Aí me apresentei como um escritor brasileiro e batemos um bom papo.

Seus contos, e mesmo as novelas e os romances, parecem às vezes não ter propriamente um final, mas apenas uma interrupção, como se você quisesse eliminar da trama qualquer resquício de artificialidade.
É isso mesmo. Eu fujo do artificial, na literatura e na vida.

Aliás, a trama parece ter menos importância do que os diálogos e as divagações.
Não, a trama não tem menos importância. Trama, diálogos, divagações, tudo tem a mesma importância.

Nas suas histórias o banal ganha dimensões metafísicas.
Dimensões metafísicas talvez seja um pouco exagerado, mas o banal está de fato presente em algumas de minhas histórias. No Perdição, o narrador, a certa altura, diz: “Mas o que não é banal? Tudo é banal: as coisas, as pessoas, a vida… Tudo é banal…”

Há também a dificuldade de comunicação entre os personagens, por mais que eles conversem.
Há, há isso. Sobretudo nos meus três primeiros livros, de contos, o Tremor de Terra, o No Bar e o Tarde da Noite. No conto No Bar, que dá título ao livro, o personagem diz a outro: “Você sabia que a gente só ouve a própria voz? E que eu já chorei por causa disso? E que eu também já ri por causa disso?”

A solidão também é um tema recorrente.
Sim. “Há solidão até nas coisas”, diz Nicolau, o personagem de minha novela O Choro no Travesseiro. Não sem motivo, é Edward Hopper um de meus pintores preferidos. Antes de conhecer as pinturas dele, eu, quando jovem, gostava muito do nosso Pancetti. Gostava e continuo gostando.

A morte…
Com a palavra, mais uma vez, um personagem meu, agora o Walter, do conto Os Mortos que Não Morreram, do Tarde da Noite: “A morte? A morte não interessa. A morte não tem importância. A morte é apenas o fim.”

E os bichos?
Ah, os bichos… Que triste seria a vida sem os bichos, eu disse uma vez e digo novamente aqui. Eu sempre os tive em casa, desde menino: cães, gatos, passarinhos. Mais tarde, quando adquiri um sítio, passei a ter vacas, porcos e cavalos. Eu não poderia, pois, ficar sem escrever sobre os bichos, e lá estão, nas páginas de meus livros, os cachorros Corisco, Bebé e Chicão, o galo Filomeno, o cágado Adalberto, o morcego Jonathan, o urubu Valdivino, a lagartixa Zoiuda… A fauna é variada… E vem mais bicho por aí, no meu próximo livro…

E a religião? No Perdição e em outros livros seus há uma crítica às religiões.Você atualmente tem alguma religião?
Não, não tenho. Meus pais eram católicos e eu fui educado no catolicismo. Fiz a primeira comunhão, estudei em colégio de padres e tudo o mais. No começo da juventude, eu perdi a fé, como então se dizia. Hoje não tenho mais religião nenhuma. Nem religião, nem qualquer espécie de crença em alguma divindade ou na sobrevivência de algo depois da morte.

Por último, o humor…
“Rir é o melhor remédio”, diziam, no título, as páginas de anedotas dos velhos almanaques de farmácia. Ou então Rabelais: “Rions, rions, que le rire est propre de l’homme”.

Seu primeiro romance, Os Novos, foi lançado em 1971 por uma pequena editora, porque outros editores temiam represálias da ditadura. Foi também um livro que dividiu opiniões, já que muita gente de sua geração se viu retratada e não gostou. O que você sentiu quando foi atacado por Os Novos?
Senti o que qualquer autor sentiria quando atacado por um livro seu. Eu não gostei, evidentemente. Mas o que na ocasião me deixou mais chateado foi que os ataques partiram sobretudo das pessoas de quem eu mais esperava compreensão, ou seja, os meus companheiros de turma literária. Anos mais tarde, Wilson Martins, numa de suas colunas de crítica no Jornal doBrasil, lembrou, com razão, que o livro, “segundo se diz, deixou de mau humor não poucos de seus modelos, se não todos.”

E em relação a O Inferno É Aqui Mesmo, que foi taxado de “vingança pessoal” por um colega do Jornal da Tarde?
Eu já disse, e aqui repito pela enésima vez, que meu romance não é uma vingança contra ninguém nem contra nada e que eu guardo de meus tempos no Jornal da Tarde as melhores lembranças. Em 1993, em um número especial sobre escritores e jornalistas mineiros, lançado por ocasião de um evento em Belo Horizonte, a revista IstoÉ, falando a meu respeito, disse que o Inferno “até hoje costuma atormentar seus companheiros da época”. Isso quando já haviam se passado quase 15 anos da publicação do livro. E agora, que já se passaram quase 40, será que há ainda alguém atormentado com ele? Espero que não…

Como você vê a crítica em geral?
A crítica é necessária. Ela faz parte do jogo. Dela já recebi, ao longo de minha trajetória, confetes e pedradas. Mais confetes do que pedradas, mas já recebi os dois e acho que nenhum escritor até hoje recebeu somente um deles.

E os trabalhos acadêmicos sobre a sua obra?
Dos que eu consegui ler até o fim, alguns são razoáveis. Poucos, bem poucos eu chamaria de bons. O que neles particularmente me irrita, quando não me faz rir, é o excesso de interpretações. Eu até já criei uma palavra para isso: interpretose. Interpretam tudo, cada detalhe do texto, e aí, é claro, acabam vendo chifre na cabeça de cavalo. A menos que seja um unicórnio, né?

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Vilela em seu sítio, 1984. Foto: Arquivo Pessoal

Por que os brasileiros, e especialmente os mineiros, são tão bons no gênero conto?
Bem, falando apenas dos mineiros, o que  eu posso dizer é que o mineiro gosta muito de contar histórias. Eu até já escrevi sobre isso para um guia de viagens, o Guia Brasil. Meu texto se intitula exatamente “Contar histórias”. Nele eu menciono uma palestra que fiz em São Paulo, na qual eu disse que, se o mineiro não contar histórias, ele fica doente, e lembro que depois, na Flip de 2004, da qual participei, entrevistado por um repórter da revista de domingo do Financial  Times, fui mais incisivo e disse que, se o mineiro não contar histórias, ele fica doido. Lá está, na revista: “’Mineiros who don’t recount casos go crazy’, he says. ‘Telling stories is our way of exorcising madness.’”

Ainda sobre conto, no ano passado foi comemorado o centenário de nascimento de Murilo Rubião… 
Sim. Embora com uma diferença de idade de mais de 20 anos entre nós, Murilo e eu fomos muito amigos. Por causa do Suplemento Literário, de que foi ele o criador, nos encontramos muitas vezes em Belo Horizonte, quando eu ainda estava lá ou quando eu, depois, lá ia. Sempre atencioso, Murilo foi praticamente a todos os meus lançamentos. Tenho várias fotos em que estamos juntos e algumas cartas dele. De vez em quando ele me mandava também algum bilhete, como este, de 1968, num cartãozinho, cobrando um conto que eu havia prometido para o jornal: “Vilela, velho de guerra, os leitores não podem esperar muito. Muito menos este seu amigo e colega. Fogo na canjica e apareça logo. Abraços. Murilo.” Em 1979, numa edição especial da Manchete, dedicada a Minas, Joel Silveira, escrevendo sobre as “novas gerações culturais” do estado, disse: “Quando, por exemplo, um Roberto Drummond, um Wander Piroli ou um Luiz  Vilela chama Rubião de mestre, o qualificativo é expresso com bom humor, jamais com ironia. Pois mestre Rubião é.”

E os escritores, também mineiros, Roberto Drummond, Oswaldo França Júnior e Wander Piroli? O que você teria a dizer sobre eles?
Principalmente que foram três grandes amigos meus, três grandes amigos que eu perdi e dos quais sinto muito a falta. Os três tinham personalidades bem diferentes, mas eu me dava bem com todos. Temo que, como tantos outros escritores dessa geração que também já morreram, eles hoje quase não sejam mais lidos. É triste, o escritor morre e vem logo o esquecimento…

Outra data lembrada no ano passado foi a dos 20 anos da morte de João Antônio. Vocês se conheceram?
Sim, nos conhecemos e fomos amigos. Nos encontramos a primeira vez em 1968, em São Paulo, quando eu trabalhava no Jornal da Tarde. Depois disso, tivemos vários outros encontros: em São Paulo de novo, no Rio, em Belo Horizonte e até em Ituiutaba, quando, por indicação minha, ele foi convidado para uma feira de livros. Ele veio, almoçou um dia lá em casa (“louvor e gratidão ao tutu e à linguiça de dona Aurora”, disse depois, gentilmente, numa carta) e, como não podia deixar de ser, passamos um fim de tarde jogando sinuca, esporte de que éramos fãs incondicionais e que entrou para os nossos livros. Voltando à tal carta, no final ele escreveu: “Eu continuo na minha romançaria braba e sem jeito. Pretendo morrer assim, companheiro. Depois, naturalmente, de viver uma velhice irresponsável”.  Ele não chegou à velhice, morrendo poucos meses antes de completar 60 anos. “Abraços os mais anarquistas”, terminava a carta, bem ao seu estilo.

E os autores de hoje, você acompanha?
Acompanho as notícias, mas ler os livros é quase impossível. Se eu fosse ler só os que os autores me enviam, já não sobraria tempo para eu fazer mais nada.

Qual é a sua opinião sobre as oficinas de criação literária?
Em resumo, uma oficina não faz um escritor, mas pode, sim, ajudar um escritor a se fazer.

Você já deu muitas palestras ao longo de sua carreira…
Sim, mas palestras no sentido genérico em que se usa hoje essa palavra no meio literário. Só uma vez levei por escrito um texto meu, que li para a plateia. Foi em 1978, no XII Encontro Nacional de Escritores, em Brasília. O texto, “Por que escrevo ficção”, foi mais tarde publicado no Suplemento Literário do Minas Gerais. Meu mediador na palestra foi o Paulo Rónai. Paulo Rónai, veja só, Paulo Rónai, em cujo livro didático de francês, dele e de Pierre Hawelka, Mon Second Livre, eu, aos 12 anos, na segunda série do curso ginasial, em minha cidade, estudara. E agora ali estava ele ao meu lado, em carne e osso, mediando uma palestra minha… Quanto aos debatedores, um de cada lado da mesa, foram o Antonio Carlos Villaça e o Cyro dos Anjos. O encontro foi gravado e eu conservo em meus arquivos essa preciosa fita. Iniciando sua fala, Villaça, em tom descontraído, diz: “Na última fila, estão lá, conversando baixinho, Murilo Rubião e Samuel Rawet, dois grandes criadores, dois grandes ficcionistas”.  Ouvindo isso hoje, é como se eu estivesse vendo de novo os dois escritores, lá no fundo do auditório. Pois é… Murilo, Rawet, Villaça, Cyro, Rónai, todos já se foram…

Qual é o seu livro preferido?
Não gosto muito desse tipo de pergunta. Mas vá lá… Meu livro preferido é a Bíblia. Isso daria até manchete, hem? “Escritor ateu declara que seu livro preferido é a Bíblia”… Por causa de minha educação católica, eu tive desde muito cedo contato com a Bíblia.  Aos 13 anos, na ânsia de tudo conhecer, eu não só a quis ler, como também ter uma. Juntei então meu dinheirinho e fui ao salão paroquial. Um padre, que já me conhecia do ginásio, me atendeu. Eu disse que queria comprar uma Bíblia. “É para quem?”, ele perguntou. “Para mim”, eu respondi. Ele arregalou os olhos e ficou ali parado, sem saber o que fazer. Então, sem dizer mais nada, foi lá dentro e buscou uma Bíblia. Eu paguei e fui embora, levando comigo a Bíblia, que até hoje tenho.

Você disse numa entrevista que pretendia ler os Sermões Completos do Padre Antonio Vieira. 
Pretendia e pretendo ainda, mas, a essa altura do campeonato, não sei se conseguirei realizar tal intento. Vieira é uma de minhas maiores admirações literárias. Eu o li a primeira vez no ginásio, numa antologia de português. Foi o célebre trecho sobre Santo Inácio de Loyola.  Depois li no Diário, jornal de Belo Horizonte, que meu pai assinava, o sermão do “Bom Ladrão”. Gostei muito e até anotei num caderno algumas frases. Nessa época a Editora das Américas lançou, em vários volumes, a coleção completa dos Sermões. No entusiasmo dos meus 14 anos, pedi a papai que a comprasse.  Ele, sempre comedido nos gastos, e com razão, pois não era rico e tinha seis filhos por educar, não titubeou e, para a minha grande alegria, comprou a coleção. É a coleção que eu tenho e da qual já li alguns volumes.

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Aos 13 anos, na fazenda de seu pai. Foto: Arquivo Pessoal

Antonio Candido disse que a sua força está no diálogo e também na “absoluta pureza de sua linguagem”. Como vai a nossa linguagem escrita?
Mal, muito mal. É um massacre diário. Nos jornais, nas revistas, na publicidade, nos comunicados, nos contratos, nos anúncios, nos avisos, na Internet, em tudo. Um massacre. São erros de concordância, de regência, de vocabulário, fora os cacófatos, os pleonasmos e tudo o mais. Um massacre.

Você ficou incomodado com alguma das várias adaptações feitas de seus contos para o cinema e a televisão? Por outro lado, gostou em particular de alguma?
As adaptações já somam, a essa altura, mais de uma dúzia. As autorizadas, pois há as não autorizadas, que circulam pela Internet. Destas, só de um conto, o Fazendo a Barba, eu já vi três. Quanto às adaptações autorizadas, eu gosto especialmente de duas: Françoise, com a Débora Falabella, e A Cabeça, com a Giulia Gam. Uma adaptação com bons momentos, e as ótimas interpretações de Daniel Dantas, Lília Cabral e Maitê Proença, é Tarde da Noite, dirigida pelo Roberto Farias e levada ao ar pela Globo na série “Brava Gente”.

E adaptações para o teatro?
Houve também algumas. Ainda no ano passado, um grupo de teatro do Rio, o Tábula Rasa, apresentou lá o espetáculo Chuva, uma montagem de cinco contos meus.

O que você achou do Prêmio Nobel de Literatura dado a Bob Dylan?
Eu nunca pensei em ganhar o Prêmio Nobel, mas, depois de vê-lo concedido ao Dylan, fiquei mais animado e já estou até pensando em contratar um professor para me ensinar a tocar guitarra. O que vocês acham?

Outra notícia que ocupou a mídia no fim do ano passado foi a morte de Fidel Castro. Em 1991 você esteve em Cuba como jurado do Premio Casa de las Américas. Você conheceu lá o Fidel?
Sim, conheci. Ao término de nossos trabalhos com o prêmio, fomos convidados para um jantar no Palácio de la Revolución. Fidel, em seu habitual traje militar, nos recebeu na entrada, apertando a mão de cada um, a quem era apresentado por um escritor cubano. Ele não participou do jantar, mas no final, vindo de dentro e acompanhado de guarda-costas, apareceu de novo. De pé, cercado pelas pessoas, ficou mais de uma hora no salão respondendo a todo tipo de pergunta. Então se despediu e voltou, com os guardas-costas, para os seus aposentos. Nós, os escritores e demais convidados, continuamos ainda por algum tempo no salão, batendo papo, bebendo vinho e fumando charuto…

Depois de viver em Belo Horizonte, São Paulo, Iowa City e Barcelona, por que você decidiu voltar para Ituiutaba?
Há sobre isso várias versões: que eu vim no encalço de uma bela mulher, que eu vim por desilusão com o mundo lá fora, que eu vim para me tornar fazendeiro… Antes de me decidir por alguma delas, eu gostaria de ouvir a versão da Bissa, a minha personagem de O Filho de Machado de Assis, para quem o escritor teve uma filha e esta se chamava Carolina…

Como é hoje a sua cidade?
Carros. Carros e mais carros. E motos. Motos e mais motos. Assim é hoje a minha cidade.

E como é o seu cotidiano?
Eu moro atualmente sozinho e passo a maior parte do tempo em casa, escrevendo, lendo, ou cuidando de alguma coisa.

Você participa das redes sociais?
Não, não participo, nem tenho nenhuma intenção de participar. Estar o tempo todo conectado? Que horror…

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Luiz Vilela hoje. Aos 74 anos, está há mais de seis décadas escrevendo. Foto: Arquivo Pessoal

Ituiutaba o prestigia como escritor?
Digamos, mineiramente, que, de um modo geral, mais ou menos, e até certo ponto sim…

Nas informações biográficas de seus livros há uma menção a um meteoro que em 1956 cruzou os céus de sua cidade…
Na verdade foi um meteorito, como vim a saber há pouco tempo, e não um meteoro. Ele foi batizado de Migomaspa, por ter atravessado, num percurso de 800 quilômetros, quatro estados: Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e São Paulo. Num diário meu, dos 13 anos, em 3 de junho de 1956, às 18h25, eu anotei: “Estava penteando o cabelo para ir ao Cine Capitólio, quando minha mãe disse: ‘Luiz, muitas pessoas estão olhando para o céu, que será?’ Saímos eu e ela para vermos o que havia acontecido. Olhamos para o céu e vimos um rolo de fumaça que se ia alongando e afinando, até perder-se de vista. Perguntamos a algumas pessoas que estavam na calçada o que viram. Disseram-nos que tinham visto uma bola de fogo e logo depois o rolo de fumaça. Segundo a opinião do povo e de professores, o fenômeno não passava de um meteoro.”

Qual é o lugar da literatura no século XXI, numa sociedade dominada pela cultura de massa, pelas novas mídias e pela economia de mercado?
Não sei qual é o lugar, mas qualquer que ele seja, grande ou pequeno, ou até mesmo lugar nenhum, eu acho que enquanto existir o homem existirá a literatura. Bem, eu talvez não ache tanto assim, mas não custa, em tempos tão sombrios como os nossos, terminar a entrevista com uma nota de otimismo, não é?

A obra da cineasta Eliza Capai, uma viajante solitária

Eliza com grupo de mulheres no Vale do Rio Omo, no sul da Etiópia, em 2010. Foto: Arquivo pessoal
Eliza com grupo de mulheres no Vale do Rio Omo, no sul da Etiópia, em 2010. Foto: Arquivo pessoal

Eliza Capai é uma andarilha. Com o equipamento dentro de uma mochila, a cineasta costuma partir sozinha para lugares distantes, como os desertos do Mali ou o interior da Etiópia. Nesses trajetos, ela sai em busca de realidades distintas da sua. Porém, essas diferenças culturais não se traduzem em estranhamento ou oposição ao outro. Como uma exploradora às avessas, Eliza vai até longe para pensar o seu próprio entorno. “O que me move é esse processo de me compreender, não só a mim Eliza, mas a nós, a essa cultura brasileira, sul-americana que nos corta”, afirma a diretora.

Com dois longas-metragens, 15 curtas, reportagens e séries na bagagem, a diretora, de 37 anos, transita entre os campos do jornalismo e do cinema. Suas obras, boa parte delas diponível na internet, tratam de temas distintos, como a hidrelétrica de Belo Monte, o multiculturalismo e o programa Bolsa Família. Em comum, prevalece o tom politizado. “Eu entendo o mundo de forma engajada, não sei ser diferente”, comenta.

Nascida em 1979 no Rio de Janeiro, a cineasta mudou-se ainda criança para Vitória (ES), onde viveu até os 18 anos. Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, Eliza con­ta que sempre se sentiu um “peixe fora d´água” na cidade capixaba. Após terminar a escola, ingressou no curso de Jornalismo da USP. A vinda para São Paulo foi uma ruptura: “Fiquei totalmente deslumbrada com o anonimato da metrópole. Foi ali que me dei conta de que Vitória era a capital do feminicídio. O nível de violência que havia contra a mulher era assustador. Em São Paulo, percebi que podia fazer muito mais coisas do que imaginava”.

Inicialmente, Eliza almejava trabalhar na mídia impressa. Porém, ao longo da faculdade, ela se afastou do texto: “Eu gostava mesmo de contar histórias, mas tinha sempre a questão do lead, de ter de me ater aos fatos. Isso me tolheu um pouco. E de repente, quando começaram as aulas de vídeo, eu pirei, me apaixonei mesmo. Também tive a sorte de que, no meu último ano da faculdade, chegaram a PD 150, uma câmera pequena, e a ilha digital. Com essas mudanças, ficou muito mais fácil para produzir sozinha”.

Desde então, a câmera se tornou um instrumento inseparável de Eliza em suas itinerâncias. Dias depois de se formar, a cineasta partiu para a Bolívia, iniciando uma série de viagens pela América Latina, onde produzia materiais que negociava na volta. Em 2008, vendeu uma série sobre imigração feminina na América Central para a Revista Fórum.

Esta viagem é considerada um divisor de águas pela artista. Durante nove meses, ela percorreu a distância do Panamá até Nova York. Nesse projeto, ela tratava da perspectiva feminina, tema que se tornou recorrente em sua obra, principalmente no filme Tão Longe é Aqui, que produziu um ano depois na África.

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Foto tirada em Cabo Verde, em 2010. Foto: Arquivo pessoal

Uma branca

O outro lado do Atlântico sempre atraiu Eliza, que queria entender um pouco mais sobre as raízes do Brasil. Aproveitando a Copa do Mundo da África do Sul, a diretora escreveu vários projetos de viagens ao continente. Um deles foi comprado pelo canal GNT. Mais uma vez a cineasta embarcava numa viagem longa sozinha: “Em janeiro de 2010, fui para a África com um projeto pautado pela diversidade. O quadro que fui fazer para a TV chamava Africana. O nome era uma piada porque as mulheres que apareciam não eram nenhum pouco parecidas. Eu escolhi países que têm línguas, religiões e costumes totalmente diferentes. Comecei no Marrocos, depois segui para Cabo Verde, Mali, Etiópia e terminei a viagem na África do Sul”.

O trajeto, que poderia ter durado oito semanas, se prolongou por sete meses. “O meu desejo era vivenciar aquela experiência intensamente, sem ter um objetivo. Desde o princípio, sabia que queria fazer algo mais autoral do que o quadro de TV, então fui registrando o meu cotidiano.” Foram essas gravações que originaram Tão Longe é Aqui, o primeiro longa-metragem de Eliza, lançado em 2013.

O filme mostra o encontro da cineasta com essas mulheres africanas de culturas distintas. Eliza filma o dia a dia dessas personagens enquanto reflete sobre as complexidades de ser mulher no mundo. Nesses diálogos, a cineasta tenta não usar as lentes do julgamento. Em suas falas, as próprias entrevistadas também quebram os estereótipos que a sociedade ocidental lhes impõe.

A jovem marroquina Assia, por exemplo, conta que se divorciou do marido, com quem havia se casado em uma união arranjada pelos pais. “Já faz três anos que me separei. Desde então, nunca tive nenhum namorado porque foi algo que me deixou marcada. Meu casamento foi como um estupro”, afirma a moça, numa das tantas cenas impactantes do longa-metragem.

Em outra sequência forte, a socióloga malinesa Awa Meite reflete sobre a poligamia e a mutilação genital das mulheres, hábitos presentes em algumas tribos africanas. “É apropriado que cada sociedade faça a sua própria análise. As situações são diferentes e eu acho que chegou o tempo em que as mulheres devem falar por si mesmas. A gente não pode emancipar as mulheres por elas. Assim como a gente não pode querer o desenvolvimento da África sem a participação dos africanos”, afirma a entrevistada.

Apenas essas falas já seriam suficientes para revelar a potência do filme. Porém, Eliza acrescenta mais uma camada de significado: a autocrítica. A cineasta conta que, durante as filmagens, fez várias descobertas “muito cruéis” sobre si mesma. “Para todos que se identificam com um pensamento de esquerda, é muito difícil se reconhecer como colonizador. É duro entender que os nossos antepassados foram escravocratas e que, de alguma forma, foram responsáveis pelas cenas mais horrorosas da história do País”.

A cineasta interage com crianças no norte da Etiópia, durante as filmagens do seu primeiro longa-metragem, Tão Longe é Aqui, lançado em 2013
A cineasta interage com crianças no norte da Etiópia, durante as filmagens do seu primeiro longa-metragem, Tão Longe é Aqui, lançado em 2013. Foto: Mathieu Verge

Eliza conta que, em alguns momentos da viagem, essa identificação com o colonizador ficou evidente. “Quando eu visitava alguns vilarejos, onde não havia luz elétrica, rádios ou mesmo viajantes, as pessoas que me viam achavam que eu era de países europeus, como França e Itália. E eu dizia: ‘Não, sou brasileira, venho de um país colonizado como o de vocês’. E as pessoas olhavam para a minha cara, riam e falavam que nós não éramos iguais.”

Em uma das cenas mais fortes do filme, Eliza pergunta para uma mulher de uma tribo de Dogon, no Mali: “Qual é a diferença entre nós?”. Com um sorriso irônico, a moça responde: “A diferença é que eu sou negra e você é branca”. A resposta, simples e não por isso menos arrasadora, persegue Eliza ao longo do filme. “Eu via um abismo ali, aquela mulher em específico levava horas para pegar a água e encontrar os alimentos que cozinharia. Eu vou ao supermercado, compro algo feito, esquento no meu forno e tenho água encanada.”Até então, Eliza nunca tinha permanecido por tanto tempo em locais tão pobres. Ela afirma que, nesses momentos, é muito fácil sentir raiva: “A revolta que eu tinha da pobreza, da submissão daquelas mulheres a sistemas supermachistas, eu muitas vezes endereçava a elas mesmas. Naquele momento, me deu uma crise muito grande, eu me vi racista, me vi preconceituosa, o inverso do que eu gostaria de ser. Eu me deparei com aquilo, era impossível não me deparar”, conta.

A cineasta queria expor esse sentimento, mostrando as suas fragilidades. Para conseguir isso, ela optou por uma narrativa em primeira pessoa, que mantivesse um tom intimista. O filme é endereçado a uma filha fictícia da diretora, para quem ela expressa os seus temores, dúvidas e preconceitos.

“A minha principal preocupação era não ser a branca que vai até a África falar como estão as coisas. Temia cair no lugar da arrogância cultural, criando um documentário cheio de verdades. Ao mesmo tempo, eu tive uma experiência muito verdadeira naqueles lugares, mas verdadeira em primeira pessoa do singular. A questão era como falar dessas descobertas sem adotar um tom universalizante. Daí surgiu o filme, dessa vontade de dividir todos esses aprendizados que tive sobre ser mulher, brasileira a partir do encontro com essas outras mulheres, que ora se pareciam comigo, ora eram totalmente opostas, me fazendo chegar a verdades ainda mais profundas.”

Registro feito no bairro de Talatona, em Luanda, Angola, durante a série investigativa para a Agência Pública, em 2015. Foto: Arquivo pessoal
Registro feito no bairro de Talatona, em Luanda, Angola, durante a série investigativa para a Agência Pública, em 2015. Foto: Arquivo pessoal

Outras verdades

Em 2015, Eliza retornou para a África num projeto financiado pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo. Junto com a jornalista Natalia Viana, a diretora foi até Angola realizar uma série de reportagens. O projeto inicial era tratar dos interesses da Odebrecht, a primeira empresa brasileira a entrar em Angola e, no momento das filmagens, a maior empregadora privada da nação. No entanto, ao chegar ao país, a dupla soube dos 15 presos políticos que estavam encarcerados havia mais de um mês, acusados de conspiração contra o poder.

O projeto foi alterado e as duas decidiram falar da repressão política no país, que, desde 1979, era governado por José Eduardo dos Santos. Durante as investigações, as duas passaram a ser perseguidas por agentes do governo, que seguiram seus carros, registraram suas ações, prenderam as câmeras, dentre outras ações coercitivas que as levaram a sair do país sob a proteção da embaixada brasileira. Assim como em Tão Longe é Aqui, nessa série de vídeos Eliza adota a primeira pessoa, sem, no entanto, o recurso da ficção.

A cineasta conta que a experiência em Angola a fez refletir sobre o papel da imprensa. “Eu sempre evitei ser a jornalista que entra num país e interpreta mais do que teria direito. Porém, a reportagem em Angola foi uma virada na minha experiência profissional.” Eliza conta que o clima de paranoia em Angola remete ao de uma ditadura militar: “Nós decidimos fazer um documentário em primeira pessoa com um único objetivo: validar o que os nossos entrevistados alegavam. Porque a realidade deles era tão absurda que eu mesma, quando ouvi os relatos pela primeira vez, achei que eles estavam paranoicos. E eu só consegui entender de fato o que eles estavam alegando quando nós começamos a ser perseguidas”, afirma.

Logo depois de publicarem o material, as duas receberam várias mensagens de angolanos agradecendo pelo vídeo. Algumas pessoas afirmavam que usariam o vídeo como prova de perseguição política para pedirem asilo em outros países. A cineasta reforça que essa experiência lhe mostrou a força do jornalismo comprometido. “Percebi o poder que tem o olhar de fora. Em Angola, se alguém de lá fizer um documentário como esse, será perseguido. E eu não, retornei ao Brasil e minha vida voltou ao normal.”

Como comparação, ela cita a cobertura da imprensa estrangeira durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff: “Foram os meios internacionais que chamaram a atenção para a gravidade da nossa situação política. Com suas reportagens de denúncia, a imprensa de fora obrigou a grande mídia nacional a reportar a realidade de outros pontos de vista menos simplistas”.

Eliza fotografa Julian Assange na Inglaterra, em 2011. Foto: Arquivo pessoal
Eliza fotografa Julian Assange na Inglaterra, em 2011. Foto: Lino Bocchini

Assange

Outro fato que impactou sua maneira de enxergar o jornalismo foi o encontro que teve, em 2011, com o fundador do WikiLeaks, Julian Assange. Inicialmente, Eliza foi convidada para participar de um projeto da Agência Pública em parceria com o WikiLeaks, que consistia em facilitar o acesso de vários países aos documentos das embaixadas dos EUA em seus territórios. Eliza desenvolveria uma série sobre esse processo. Para isso, foi até a casa onde Assange estava exilado, no norte da Inglaterra, junto com uma equipe de profissionais dispostos a divulgar as informações.

A série acabou não saindo do papel, mas a cineasta pôde conhecer um pouco mais sobre o trabalho da organização, além do próprio Assange, com quem realizou um vídeo. Intitulada What Does It Cost To Change The World? (Quanto Custa Mudar o Mundo?), a obra é uma paródia dos comerciais da Mastercard. No vídeo, a voz em off de Assange cita todos os seus gastos para sustentar o WikiLeaks, desde os processos legais até a manutenção dos servidores em 40 países. Ao final, ele aparece em frente às câmeras sorrindo e diz: “Assistir ao mundo mudar como resultado do seu trabalho? Não tem preço”.

Depois de conhecer Assange, a cineasta concorda que há de fato uma perseguição ao australiano. “Ele está muito tempo cercado dentro da embaixada, é muito claro que, com a sua prisão, as autoridades querem passar a mensagem de que não se deve tentar trazer à tona outras verdades. Ao mesmo tempo, fiquei muito impactada de ver como um pequeno grupo de pessoas pode fazer a diferença e divulgar informações essenciais.”

Para a cineasta, é justamente esse compromisso com os fatos que está fragilizado na imprensa brasileira. “Atualmente a mídia de esquerda reproduz o que os veículos de direita têm feito: julgar mais do que oferecer informações aos leitores.” Eliza também defende que a mídia alternativa deveria falar para um público mais amplo: “Precisamos entrar em outras bolhas e dialogar com o diferente. Eu tenho um desejo de falar para os não convertidos e isso obviamente é um desafio, principalmente quanto à linguagem. Temos de ter empatia com as pessoas das quais discordamos totalmente”, afirma a diretora. 

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Autorretrato feito em 2013, durante as filmagens do curta Severinas, em Guaribas, no sertão do Piau

O fim da escravidão

Uma das obras mais conhecidas de Eliza é o curta Severinas, filmado na cidade de Guaribas, no sertão do Piauí. Ela produziu a obra em 2013, logo após ler o livro Vozes do Bolsa Família, de Walquiria Rego e Alessandro Pinzani. Os autores estudaram o mecanismo que privilegia a entrega do benefício em dinheiro para as mulheres. Na obras, os dois constatam que a medida gerou mudanças grandes nos núcleos familiares, já que as mulheres passaram a controlar parte da renda da casa.

A cineasta ficou muito impressionada com o livro: “Achei a premissa encantadora, fiquei com vontade de ir até esses lugares e ver o que encontraria. Novamente consegui uma bolsa da Agência Pública e viajei para Guaribas, a cidade piloto do programa Fome Zero, onde passei duas semanas”.

De forma delicada, Eliza entrou na casa dessas mulheres para entender o seu cotidiano numa das cidades mais pobres do País:“Um dos aspectos mais impressionantes da viagem foi ouvir as mulheres da minha idade dizendo que tinham vivido a escravidão. E isso me marcou muito porque não eram pessoas centenárias que de fato presenciaram o fim do regime escravocrata. Eram mulheres de 30 anos”, diz.

Outra cena de destaque é a entrevista com um dos líderes locais, o professor da cidade. “Todos me falaram que eu deveria conversar com ele, que é tido como o homem mais culto da região. Eu pensei que na entrevista ele poderia me dar um panorama das mudanças que as diferentes gerações de mulheres vivenciavam. Porém, para a minha surpresa, quando eu fiz essa pergunta ele falou que não havia nada daquilo e que cada um devia se colocar no seu lugar, já que a mulher possuía qualidades inferiores às dos homens.”

Ao ouvir as palavras do professor, a cineasta ficou estarrecida. “Foi muito surpreendente perceber que naquela sociedade isso era verbalizável por um homem culto. E o irônico é que eu tenho certeza de que muitos dos meus amigos bacaninhas, em algum lugar deles, também pensam isso. Só que, na bolha onde eu circulo, se isso for verbalizado, vai pegar muito mal e todo mundo vai cair em cima. E naquele lugar isso era a verdade, era correto falar dessa forma. E isso me fez entender melhor ainda aquelas mulheres da minha idade que viviam ali”, afirma.

No entanto, ao conversar com as meninas da cidade, Eliza teve uma surpresa agradável. Ao contrário das mães que associavam o sucesso a ter um bom marido, elas apresentavam um discurso diferente. “Todas, sem exceção, me responderam que não queriam casar ou ter filhos, mas trabalhar para garantir o seu próprio sustento. Eu me arrepio toda vez que lembro disso, porque ali eu vi a transformação. É fantástico que um programa tenha conseguido mudar de modo tão profundo a forma dessas meninas viverem e pensarem o próprio mundo”, ressalta a cineasta.

Diante das mudanças na política nacional, Eliza se sente angustiada com os rumos do Bolsa Família. “Recentemente, o filme foi reexibido e tudo que eu conseguia pensar era que essas políticas de inclusão estão ameaçadas. Saí da sessão com a consciência de que uma política que demora anos para ser construída pode ser apagada muito rapidamente. Ao mesmo tempo, me nego a acreditar que as transformações regredirão. Tento pensar que é um processo irreversível.”

A presença feminina, por sinal, é um traço comum de grande parte das produções da cineasta. Ela ressalta que, em pleno século XXI, as mulheres ainda têm menos espaço nos meios de comunicação e no cinema em especial: “Tenho um desejo muito grande de amplificar essas vozes. Acho que encontrar essas mulheres, dar esse espaço de imagem e fala a elas é, de certa forma, fazer a pequena justiça que me cabe. Isso me dá um prazer profissional enorme”, afirma.

Nas viagens que faz sozinha, a própria cineasta precisa lidar com o machismo, sentindo-se vulnerável em muitas situações. Mas ela garante que essa situação de aparente fragilidade também pode ajudá-la a se aproximar das pessoas.

“Geralmente, por ser mulher, não sou vista como uma ameaça. Pelo con­trário, as pessoas se sentem mais à vontade para falar das suas vidas. E talvez por eu aceitar entrar na casa delas sozinha, me colocando em situações que poderiam ser de risco, cria-se uma empatia entre nós e uma entrega por parte do entrevistado.”

Na foto, com o jornalista Bruno Wies, durante as filmagens de O Jabuti e a Anta. Foto: Carol Quintanilha
Na foto, com o jornalista Bruno Wies, durante as filmagens de O Jabuti e a Anta. Foto: Carol Quintanilha

 

Capitalismo selvagem

Em um dos seus últimos projetos, Eliza trata das disputas em torno da Amazônia. A ideia surgiu em 2014, quando a cineasta foi contratada pelo Greenpeace para fazer a série Linhas, sobre os diferentes modelos de energia. Ela conta que, assim que a equipe de filmagem se deparou com Belo Monte, o impacto foi imediato: “Nenhum de nós tinha vivenciado uma catástrofe tão escancarada como a que estava acontecendo e está acontecendo em Belo Monte”, afirma.

Depois dessa experiência, Eliza decidiu fazer o longa-metragem O Jabuti e a Anta, já exibido em festivais em 2016. O filme, que é narrado pela atriz Letícia Sabatella e coproduzido pelo Greenpeace, trata dos impactos do modelo de geração de energia baseado no uso de hidrelétricas. A cineasta afirma que, ao longo das filmagens, sentia “um amor profundo pelo rio Xingu e uma angústia de saber que tudo aquilo tinha prazo de validade”.

No documentário, a diretora entrevista as pessoas das comunidades ribeirinhas que tiveram seus modos de vida totalmente alterados pela construção de hidrelétricas. Numa das sequências mais emblemáticas, uma das moradoras se revolta com a situação: “Tenho muito carinho por essa terra onde moro. E agora, de repente, por conta das barragens, vou ter que sair daqui. Ontem eu tinha casa, hoje não tenho mais. Isso dói muito.Poxa a gente não é nada, a ponto de você ter que dar o que é seu pra outras pessoas”.

A partir de depoimentos fortes como este, o longa-metragem trata dos avanços do capitalismo e dos movimentos de resistência por parte das comunidades. Em determinado momento do filme, a narradora comenta: “A sensação primeira é que o dinheiro aqui tentava comprar tudo, até os estilos de vida, até as vidas. Índios com lanchas, ribeirinhos com apartamentos, parecia tudo errado”.

A narrativa em primeira pessoa, por sinal, foi uma escolha da diretora para revelar os dilemas de quem está plenamente inserido no sistema de consumo. “É muito fácil aderir à campanha contra Belo Monte, fazer pressão para que se investigue o caso de Mariana. O difícil é não comprar um celular ou, no meu caso, não trocar de equipamento quando sai uma câmera melhor. Parece que são coisas diferentes, mas a viagem foi mostrando que era tudo a mesma coisa. Enquanto não relacionarmos essas grandes empresas que promovem genocídios e desastres ambientais com os nossos próprios estilos de vida, Belos Montes continuarão sendo construídas, mineradoras continuarão operando e grandes indústrias continuarão fabricando coisas com trabalho escravo, enquanto nós consumimos.”

Foto: Carol Quintanilha
Eliza aproveitando rio na Amazônia. Foto: Carol Quintanilha

Ao contrário da maioria das suas produções, O Jabuti e a Anta será exibido no circuito comercial. A cineasta conta que está em fase de negociação com uma distribuidora, que ainda não pode revelar. Eliza optou por essa estratégia para atingir um número maior de pessoas: “No atual momento, com a quantidade de produções audiovisuais que entram na rede, não basta apenas disponibilizar na Internet, é preciso fazer com que o público saiba que o filme está lá”, afirma.

A diretora pontua as contradições de lançar o longa-metragem no mercado: “O Jabuti e a Anta é uma obra crítica ao sistema capitalista, principalmente os modelos energéticos. Inserir esse filme numa lógica de mercado me parece um pouco complicado. Ao mesmo tempo, é importante alcançar um público maior. Torço então para que o filme tenha uma boa carreira nos cinemas, chegue ao Netflix e seja muito assistido. Mas que também seja exibido nas ocupações das escolas e esteja disponível para qualquer comunidade que queira fortalecer sua autoestima”, afirma.

Eliza faz parte de uma nova geração de cineastas que não dependem necessariamente de incentivos públicos para produzir seus trabalhos. Os filmes que a diretora lançou até agora são independentes, tendo contado com financiamento coletivo ou o suporte de instituições como o Greenpeace e a Agência Pública de Jornalismo.

A cineasta diz que é impressionante a quantidade de boas produções brasileiras que são lançadas por ano. Ela cita Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé, e Martírio, de Vincent Carelli, como produções recentes que a tocaram muito. “São filmes muito potentes que só conseguiram ser realizados a partir de moldes alternativos de financiamento. Em paralelo, temos uma transformação tecnológica que impactou muito o audiovisual. Faz um tempo que toda a minha produtora cabe dentro da minha mochila. Essa mobilidade, sem dúvida, gerou uma facilidade de produzir que não havia anteriormente.”

Credit: Paulo Pereira
Filmando na Baixada Fluminense (RJ), em 2012. Foto: Paulo Pereira

Ocupações

Sempre interessada em temas politizados, Eliza passou o último ano produzindo o filme Resistência. O longa-metragem, que ainda não tem previsão de lançamento, tem como pano de fundo os meses do governo interino de Michel Temer. Mais uma vez se utilizando da narrativa em primeira pessoa, o documentário reflete sobre a política nacional a partir das experiências das ocupações. A diretora foi até alguns prédios ocupados, como a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e o Ministério da Cultura no Rio, para conversar com as pessoas que ali estavam

“Queria filmar esses indivíduos co­­­muns que estavam na resistência, entendendo a importância do coletivo e a forma da ocupação como um método de chamar a atenção para as suas pautas. Todas as ocupações em que entrei tinham discussões muito fortes sobre a questão de gênero, o racismo, a perifeira, isso costurava todas elas.”

Assim como Eliza, muitos outros cineastas produzem documentários que discutem, de maneiras distintas, a atual crise política do País. Anna Muylaert, Petra Costa e Adirley Queirós são alguns deles. Para a jornalista, esses diversos olhares são imprescindíveis: “Não temos ideia de quais serão os rumos da nossa política, mas sabemos que a história é escrita pelos vencedores. Caso os vencedores continuem sendo essas pessoas que tomaram o poder, temos um grande problema. Nesse sentido, nós cineastas estamos construindo outros pontos de vista que certamente ajudarão a reconstruir a narrativa desse momento histórico”.