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Pelas frestas da Trienal de Arte de Sorocaba

Frestas – Trienal de Artes se insere no fenômeno da descentralização da arte e reforça seu propósito de espaço aberto para livre expressão. Idealizada pelo Sesc de Sorocaba, chega a sua segunda edição com obras ativistas, colaborativas e urbanas que profanam a ordem estabelecida da cidade paulista, situada a 90 quilômetros da capital. Os 58 artistas contemporâneos, de 13 países, reforçam a relação dialética entre a arte e a realidade social, provocam o pensamento local e provam que a arte pode ser também um espaço de jogo. Há um movimento sucessivo e sistemático em toda grande mostra em busca do novo, e ele se depara com forças antagônicas entre a ruptura e a continuidade. A curadora Daniela Labra acerta no tema Entre Pós-Verdades e Acontecimento ao colocar em xeque as duvidosas verdades midiáticas que incendeiam as redes sociais.

Na cerimônia de abertura, depois das falas oficiais, o artista Gustavo Speridião surpreende o público com uma cantora executando, à capela, o hino A Internacional Comunista, numa crítica pertinente à situação precária dos trabalhadores de hoje. Enquanto isso Panmela Castro, autora do grafite que enfureceu um bispo da cidade por considerá-lo pornográfico, se prepara para apresentar a performance Femme Maison, um alerta sobre o papel desigual da mulher na sociedade. Espalhado pelo espaço um grupo performático faz chuva de papel com fotos de políticos e a tarja “golpistas”. Apesar do pequeno porte, Frestas mostra personalidade com pontos cortantes que rasgam a superfície tranquila e o cinza do cotidiano da cidade.

A concepção de uma arte participativa, colaborativa e desmaterializante se espalha por vários locais nos quais algumas obras são efêmeras. O grafiteiro Nunca, ao “tatuar” índios brasileiros na lateral de um prédio no centro da cidade, transforma sua obra em alerta contra a extinção de um povo em extinção.

Em termos de comunicação, Frestas forma uma cultura visual em mosaico, substituindo a cultura linear, se abre ao desconhecido para encontrar o novo, mas equilibrando artistas emergentes com as complexas junções conceituais dos nomes já consagrados. Raul Mourão faz um exercício de exteriorizar e interiorizar a presença humana na potente instalação realizada com grades e balanços. Sob o título Passagem, a instalação se abre para a participação do público, como se reforçasse a ideia de que não se pode simular a liberdade, como fala Ritkrit Tirabanija. Há nessa obra inesgotáveis sugestões de uso do corpo e seus efeitos comportamentais.

A confluência de esforços dos artistas vindos de regiões diferentes, cujos trabalhos são realizados praticamente ao mesmo tempo, reforça a ideia de que exposições dessa natureza são mesmo laboratórios experimentais. Daniel Senise, expoente da Geração 80 resgata parte do período de fausto da cidade, com fotos do antigo refeitório da Estrada de Ferro Sorocabana, antes um orgulho do País. Sobre belas imagens incorpora e fixa objetos e resíduos retirados do próprio local, numa dissolução visual do sujeito e revoltante lembrança do desmonte das malhas ferroviárias do Brasil. A intervenção Vazio Pleno, de Maria Thereza Alves, tem encontro marcado com Sorocaba para desvendar a presença indígena na cidade, uma contribuição no campo antropológico, reproduzindo quinze réplicas de uma urna indígena encontrada num museu da cidade. Ao enterrar as cópias em vários pontos da cidade, ela desloca a discussão sobre a condição dos povos indígenas de um campo protegido para as ruas, permitindo uma reflexão mais ampla.

Frestas tem obras singulares e o esforço para constituir a mostra num campo aberto, sem censura, é o seu grande feito. Dias & Riedweg foram às profundezas para trazer à tona uma obra inédita, Esperando um Cliente paradigma do universo underground. Uma videoinstalação sobre o acervo do fotógrafo norte-americano Charles Hovland exibe as fantasias sexuais de mais de três mil pessoas que responderam a ele por meio de anúncio em jornais nova-iorquinos entre 1970 e 1980. Dias & Riedweg são autores de obras seminais da arte contemporânea.

A violência já deu vida a milhares de trabalhos de todos as matizes e parece que o público é atraído por categorias bem definidas, de significado provocante, como o trabalho da artista e médica legista mexicana Teresa Margolles que dá sua contribuição com uma coleção de joias em ouro 18K confeccionadas com estilhaços de bala ou vidro retirados de corpos de vítimas da guerra do narcotráfico em seu país.

Sob o olhar de um estrangeiro, o alemão Michael Wesely, as imagens captadas nas manifestações de rua, favoráveis e contra o impeachment de Dilma Rousseff, exibidas na parede, transformam-se em plataforma de polêmica diante das quais alguns visitantes cerram os dentes, enquanto outros apenas sorriem. O artista parece perguntar qual é o fundo real das divergências entre a esquerda e a direita brasileiras. Ou qual a sua importância não verbal, mas real?

Às vezes o homem é colocado em relação direta ao ambiente que o cerca, como por exemplo, o cubano Reyner Leiva Novo. Em uma imensa parede ele exibe centenas de escovas de dente usadas, que ele trocou por novas com os habitantes de Sorocaba, compondo uma história intima e local.

O coletivo norte-americano Guerrilla Girls é o porta voz de uma nova consciência feminista que denuncia a segregação das mulheres dentro do Art System, dominado majoritariamente por homens. Na verdade, o que criticam é que poucas coisas mudaram na relação homem/mulher dentro do circuito de arte que insiste em repetir, sob formas disfarçadas, o comportamento conservador do mercado de outras décadas. O coletivo traz também o Departamento de Reclamações, já realizado no ano passado na Tate Modern, em Londres. Uma imensa lousa com giz se abre para o público deixar seus protestos. O grupo mantém o anonimato e só se apresenta com máscaras de gorila, em atitudes de dominação, ameaça, gozação, uma resposta ao universo restrito, árido e domesticado da arte.

O desfecho fica para Yango Hernandéz, o jovem artista cubano consagrado em exposições internacionais que, numa simples e potente instalação, aperfeiçoa a engenharia da imagem política. Uma cadeira com apenas três pernas se equilibra sobre um “palco”, girando em torno de si mesma, dentro de um círculo de madeira recortada. Falamos de um objeto fraturado, frágil e cotidiano, que trafega pelo tempo por meio da memória e pode nos remeter ao desiquilíbrio econômico, político, social, intelectual de todo o planeta.

Já pensando na terceira edição, Frestas Trienal de Artes de Sorocaba poderia se inspirar na Bienal de Lyon que em suas primeiras edições faz carreira solo para depois contaminar outras instituições importantes da cidade. A partir dessa expansão torna-se mais potente e internacional.

Fela made in Brasil

(Foto- Reprodução) Fela Kuti
(Foto: Reprodução)

Do big beat ao hip-hop; do hip-hop ao soul-jazz e o funk; do funk aos ritmos africanos, com uma passagem obrigatória pela irrepreensível obra do nigeriano Fela Kuti: em resumo, a trajetória inicial do pesquisador musical Frédéric Thiphagne, pode ser, assim, reconstituída. Em 2008, o francês de Lyon, que viveu de 2009 a 2011 em Paris, deu início ao blog Les Mains Noires (em tradução livre As Mãos Negras: lesmainsnoires.blogspot.com). Nele, Thiphagne explora seus dois maiores interesses: compartilhar preciosidades de seu garimpo musical e publicar entrevistas de outros pesquisadores, quando tem a possibilidade de produzir retratos desses personagens em seus hábitats.

Reprodução do LP “Sorrow, Tears and Blood”, de Fela Kuti
Reprodução do LP “Sorrow, Tears and Blood”, de Fela Kuti

Ao chegar ao Brasil, no final de 2011, e se deparar com o elevado custo das reedições de históricos LPs e compactos importados, Thiphagne decidiu abrir um selo de distribuição, o Goma Gringa, para importar obras de gravadoras europeias e americanas. Ao lidar com os impasses burocráticos e tributários da alfândega brasileira, concluiu que, por mais nobre que fosse sua missão, ela seria enterrada na vala comum da inviabilidade comercial. “No Brasil, constatei que as reedições custavam três, quatro vezes o valor praticado na Europa. Algo que me deixou chocado, pois disco é cultura e o Brasil sempre soube disso, tanto é que havia essa frase estampada na contracapa dos álbuns lançados aqui. Para mim, produtos culturais têm de ter o preço mais acessível possível. Na Etiópia, penso eu, os discos deveriam ser gratuitos. É um povo que tem uma cultura musical das mais ricas, mas que, ironicamente, não pode consumir a própria cultura.”

Com o declínio dos planos de importação e a chegada de um novo sócio, o Goma Gringa começou a vislumbrar outros horizontes. Thiphagne juntou-se a seu primeiro cliente no País, o conterrâneo e músico Matthieu Hebrard, radicado no Brasil há 12 anos. Formado em violoncelo e contrabaixo acústico, em Paris, Hebrard consolidou parcerias com brasileiros e se prepara, agora, para lançar um álbum com o projeto Quebrante, no qual toca baixo, canta e divide composições com Thiago França, Marcelo Cabral e o DJ Will Robinson. A afinidade entre Thiphagne e Hebrard logo apontou caminhos mais longevos para o selo, com uma decisão aparentemente simples: se importar os discos elevariam tanto o custo, por que não produzi-los por aqui? E a concretização de tal ideia é um marco zero em grande estilo. Depois de negociar com a família do músico (morto em 1997), o Goma Gringa será o primeiro selo a produzir no Brasil um álbum do pai do afrobeat, Fela Kuti, o emblemático Sorrow, Tears and Blood, lançado originalmente em 1971, pelo selo Kalakuta Records.

A reedição reproduz a arte original e traz duas boas surpresas: um pôster encartado e o registro da faixa que dá título ao disco, com um arranjo de 16 minutos (a original tem 10’16”). A gravação foi especialmente concedida pela família de Fela. Outra boa nova é que a Goma Gringa pretende estabelecer via de mão dupla e lançar artistas brasileiros pelos selos que aqui representa. É o caso do germânico Analog Africa, que encomendou a Thiphagne uma coletânea dupla em LP com o melhor da produção setentista do carimbó, gênero paraense eternizado por artistas como o patrono Mestre Verequete e Pinduca. Em tempo: apesar de o francês conhecer a gíria “goma” (que significa casa) o nome do selo é a soma de goma-laca, matéria-prima dos extintos compactos de 78 rpm, e a origem das obras que se propõe a lançar.

“Temos que aprender a ser índios antes que seja tarde”, diz antropólogo

Eduardo Viveiros de Castro na mesa “Tristes Trópicos”
Eduardo Viveiros de Castro na mesa “Tristes Trópicos”

Temos que aprender a ser índios, antes que seja tarde. Foi essa a principal mensagem dada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro na mesa “Tristes Trópicos”, realizada na Festa Literária Internacional de Paraty de 2014. Segundo o pesquisador, neste momento em que o planeta passa por uma situação de “catástrofe climática” e está sendo transformado em um “lugar irrespirável”, devemos aprender com os povos indígenas “como viver em um país sem destruí-lo, como viver em um mundo sem arrasá-lo e como ser feliz sem precisar de cartão de crédito”. “O encontro com o mundo índio nos leva para o futuro, não para o passado”, disse ele.

“Hoje os índios estão mais visíveis do que nunca, mas mais vulneráveis do que nunca.

Viveiros de Castro dividiu a mesa com o também antropólogo Beto Ricardo, fundador do Instituto Socioambiental (ISA), e com a mediadora Eliane Brum. Em discurso afinado, os dois denunciaram a dura realidade vivida pelos índios brasileiros atualmente e disseram haver uma “campanha” em voga no Congresso para retirar os direitos que estes povos conquistaram com a Constituição de 1988. “Hoje os índios estão mais visíveis do que nunca, mas mais vulneráveis do que nunca. O Congresso tem uma maioria de proprietários de terra em uma ofensiva final contra os índios”, disse Viveiros de Castro, que também criticou o governo federal pelo trabalho quase nulo na demarcação de terras.

O antropólogo, célebre mundialmente por sua teoria do perspectivismo ameríndio, comparou a situação dos índios no Mato Grosso do Sul com a dos palestinos na Faixa de Gaza. Segundo ele, os guaranis do Estado vivem ou nas beiras de estrada ou confinados em reservas mínimas, das quais são frequentemente expulsos pelas pressões do agronegócio: “O Mato Grosso foi transformado em um nada, a custa de que se possa plantar ali soja, cana e botar gado para exportação, para alimentar os países capitalistas centrais. Devia chamar Mato Morto, ou ex-Mato”. E continuou: “Os índios estão vendo o céu cair em suas cabeças. Mas dessa vez vai ser na cabeça de nós todos.”

Beto Ricardo criticou também a cobertura dada pela imprensa à questões como essa no País. “Quantos nomes de grupos indígenas você conseguiria pronunciar de memória? A imprensa brasileira consegue pronunciar pouquíssimos. Fala em um índio genérico”, disse ele. Ao apresentar a série de publicações intitulada Povos Indígenas no Brasil, o antropólogo aproveitou para cutucar inclusive o público: “Quem quiser não só decorar os nomes das capitais do Brasil, mas os nomes dos povos, pode ler esses livros”. “Os índios tem muito a colaborar para um país mais democrático e diverso”, concluiu.

A última intervenção de Viveiros de Castro, após as perguntas do público, foi talvez a que mais chamou atenção pela dureza e aparente pessimismo, mas foi muito aplaudida. O antropólogo disse sentir vergonha de ser brasileiro quando vê o que se fez com os povos originários dessa terra, ou ainda quando lembra que o Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão (com exceção da Mauritânia). Para ele, no entanto, o sentimento de vergonha deve ser preservado, já que é também o que gera o sentimento de intimidade com o país: “Se eu fosse francês, teria vergonha do que a França fez na Argélia, na Indochina, na África. Ou seja, ser brasileiro não é especialmente vergonhoso. Ser de qualquer país é vergonhoso, porque todo país é construído em cima da destruição de povos”, explicou.

Livro de Cabeceira

Na tradicional mesa de encerramento da Flip intitulada “Livro de Cabeceira”, Viveiros de Castro esteve mais uma vez entre os participantes, e fechou com brilho sua passagem pela festa literária. Ao lado de alguns dos convidados de maior destaque do evento, como Andrew Solomon, Fernanda Torres e Juan Villoro, o antropólogo escolheu ler o trecho de um sermão de Padre Antonio Vieira em que o religioso ressaltava a dificuldade de conversão dos índios brasileiros: “Como diz o Vieira: ‘A gente dessa terra é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo. Outros gentios, outros pagãos, são incrédulos até crer. Os Brasis, ainda depois de crer, continuam incrédulos.’” E Viveiros de Castro concluiu: “Ou seja, esse tema, a ideia de que os índios tem uma inconstância essencial, passou a ser uma espécie de traço definidor do caráter ameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do nosso imaginário nacional. A saber, o imaginário do índio mal convertido, que à primeira oportunidade manda deus, a enxada e as roupas ao diabo e retorna feliz à selva. E eu diria, para concluir, que é graças a isso que os índios continuam a salvo dos seus salvadores”.

De volta aos manicômios? SUS retoma debate sobre hospitais psiquiátricos no Brasil

(Foto: Davide Contenti/ Picssr)
(Foto: Davide Contenti/ Picssr)

No primeiros dia do último mês de setembro, o Sistema Único de Saúde (SUS) anunciou  que voltará a debater a expansão de leitos em hospitais psiquiátricos no País. A iniciativa, que vai na contramão da reforma psiquiátrica vigente há mais de 15 anos, foi defendida por representantes de secretarias municipais e estaduais de saúde e sugerida pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass), em reunião com o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems).

Desde 1987, setores da saúde mental lutam pelo fim dos manicômios no País. Não é por menos: o maior deles, o Hospital Colônia, de Barbacena (MG), matou mais de 60 mil pessoas e vendia os corpos para faculdades de medicina do País – tema do livro “Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex. Além disso, a primeira condenação do Brasil por violação de direitos humanos foi de uma violência seguida de morte ocorrida dentro de uma instituição psiquiátrica, a Casa de Repouso Guararapes, no Ceará. Violações de direitos foram constatadas nos manicômios e pacientes acometidos com transtornos mentais ficaram isolados por até 30 anos nesses palcos de atrocidades.

Nessas três décadas de luta antimanicomial, surgiu a rede substitutiva, formada por novos lugares públicos voltados ao cuidado dessas pessoas, com tratamentos humanos e que garantem liberdade, como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e as residências terapêuticas. Além disso, foi sancionada a Lei da Reforma Psiquiátrica, em 2001, que coloca a internação como último recurso e registra os direitos e a proteção às pessoas acometidas de transtorno mental.

Mesmo assim, ainda hoje, há 159 manicômios no Brasil. O movimento, no entanto, é contrário: nos últimos 11 anos a oferta de leitos psiquiátricos no SUS diminuiu quase 40% e desde 1989 foram fechados quase 100 mil leitos desse tipo.

“Temos uma história no País de uma reforma psiquiátrica que responde aos princípios internacionais do bom cuidado na saúde mental”, explica Lumena Almeida, psicóloga, ex-secretária nacional de Atenção à Saúde, que já foi também secretária adjunta de Saúde em São Bernardo do Campo e secretária de Saúde de Mauá, além de trabalhar no SUS há mais de 30 anos.

Em conversa com o páginaB!, Lumena elenca quatro motivos pelos quais a medida é considerada um retrocesso:

1) Há muitos anos, o Brasil vem experimentando o cuidado em liberdade. E vem mostrando que o cuidado em liberdade é muito mais efetivo do que o cuidado fechado em hospício, em hospital psiquiátrico. Não é mais uma aposta, a gente vivencia isso, a gente tem casos disso.  A política nacional de reforma psiquiátrica está implantada em vários municípios.

2) A política nacional vem fazendo um forte investimento na rede substitutiva. Se o Ministério avalia que tem problemas no cuidado, nos CAPS, ele tem que qualificar esse cuidado.

3) Nós já conseguimos fechar 30 mil leitos de moradores de hospitais psiquiátricos, pessoas que ficaram presas 26, 30 anos, só pelo fato de terem um diagnóstico de transtorno mental. Nem a pena máxima no Brasil chega a essa duração. Então o Brasil já estava saldando sua dívida histórica com essas pessoas, construindo uma rede de moradia para que elas pudessem morar em liberdade. Ou seja, agora voltar para o hospital psiquiátrico como um espaço de cuidado é retroceder, ir pelo caminho inverso que o País vem fazendo de resgatar a dignidade das pessoas que moraram durante grande parte da sua vida em hospitais psiquiátricos.

4) Todos os municípios brasileiros que implantaram uma rede com qualidade prescindiram do leito em hospital psiquiátrico. Porque a gente mostrou que é possível cuidar com essa rede que está prevista na política, que é CAPS, unidade básica, consultório de rua, residência terapêutica, unidade de acolhimento e leito em hospital geral. Então não está se sentindo necessidade desse leito, ele não faz sentido mais no processo de cuidado que vinha sendo implantado.

Caminhos possíveis

Lumena Almeida traz também ideias de caminhos que o governo federal pode percorrer se tem o intuito de fomentar a política de saúde mental do País, sem esconder a reação que a notícia recente gerou:

É com muito espanto que os setores que há mais de 30 anos no Brasil tem trabalhado na reforma psiquiátrica, na política nacional de saúde mental, ouvem essa fala do Ministério da Saúde, do Conass e do Conasems. Toda política nacional para ser implantada também tem problemas, fragilidades. Por exemplo, o Ministério da Saúde ajudaria muito mais se ele liberasse o recurso para todos os serviços novos que foram criados e ainda não foram financiados pelo Ministério nos últimos períodos. Isso sim é uma questão que teria que ser discutida. Ou que ele retomasse, por exemplo, o Percurso Formativo, que é um processo de formação que o Ministério da Saúde fazia com a rede de saúde mental, muito potente, para poder qualificar o cuidado na rede dos CAPS. Esse é o papel que o governo federal tem para poder qualificar a política. E não ter um retrocesso de proposta que é a ampliação dos leitos psiquiátricos.

Formação, informação e deformação

Sebastião Salgado - Church Gate Station Bombay Índia - 145x200cm-1995

Em 1781 Immanuel Kant publicou “A Critica da Razão Pura”, que rapidamente tornou-se um marco para a teoria do conhecimento ao definir as condições pelas quais a ciência separa-se da metafísica. Com isso ele criava novos critérios para distinguir o que é uma opinião, relativa, subjetiva e interessada do saber que aspira universalidade, objetividade e imparcialidade e que na origem é o que chamávamos de verdade. Ao mesmo tempo ele reinventava um método que comportava sua própria reatualização: o método crítico. Separava-se assim o conhecimento, resultado da comparação entre conceitos e fenômenos e crítica do conhecimento, o exame do processo, dos pressupostos, das condições ou dos pontos de vista pelo qual este conhecimento se realiza.

Toda informação depende, portanto, de uma formação. Formação tem aqui dois sentidos diferentes: produção de fatos, dados e acontecimentos, mas também educação de sujeitos, usuários, leitores, cidadãos ou consumidores, para os quais o conhecimento será útil, válido ou relevante. Portanto, a crítica incide duas vezes neste processo, examinando as deformações causadas no curso da construção dos fatos e também desfazendo as deformações inerentes aos processos educativos do sujeito: seus preconceitos históricos, crenças particulares e interesses individuais. Comprimindo muito o assunto, poderíamos dizer que este modelo de crítica determinou fronteiras importantes até hoje: ciência ou política, fatos ou interpretações, Estado ou família, leis gerais e valores particulares. Foi este modelo que implantou também o sentimento social de respeito pela razão, fonte e origem da autoridade que estamos dispostos a reconhecer.

Disse que em 1781 Kant publicou a “Crítica da Razão Pura” e você, caro leitor, deve ter pensado em coisas como “isso é antigo demais”, afinal “quem foi Kant?” ou “este texto vai ser chato, universitário e elitista demais”. Legendas mentais como: “esquerdismo vermelho” e “chega de crítica, precisamos de ideias positivas, práticas e resolutivas” podem ter piscado no canto esquerdo de seu cérebro. Quando usei palavras quase técnicas como “ciência” e “metafísica” perdi metade dos leitores para a máxima: “não complica o que não existe” e mais um terço para “legal, mas muito difícil para quem está no corre da vida real”.  Mas duvido que alguém tenha pensado que o ponto mais problemático do parágrafo anterior esteja em sua quarta palavra, ou seja: publicou. Kant publicou, ou seja, tornou público através de um livro, composto por tipos móveis impressos em folhas de papel.

Suas ideias foram lidas, primeiramente por alunos de universidades que falavam alemão, começando pela pequena cidade prussiana chamada Königsberg, onde o rio cruzado por sete pontes. Dali ele tornou-se inspiração para os teóricos ingleses da moral, para o entendimento do que foi a revolução francesa, para formação das instituições americanas, para os modelos de educação, cultura e ciência no mundo. Portanto, tudo o que afirmei acima e todo o legado de Kant, também chamado de o debate das luzes, depende deste acontecimento que tornou possível o acontecimento Kant, que é a existência de um espaço público. É tão somente pelo uso da razão no espaço público que alcançamos maioridade, autonomia e liberdade, os meios e os fins de como queremos ser reconhecidos. É no espaço público que os interesses se cruzam formando conflitos, nele acontece a disputa de ideias e de palavras que caracteriza a política em sentido moderno, é nele também que se formam discursos e narrativas pelos quais nos fazemos reconhecer e podemos reconhecer os outros. O trabalho da crítica, neste contexto, é o de denunciar deformações, zelando pela pureza do processo, mais do que pelas teses vitoriosas ou perdedoras a cada rodada. Por isso o afeto fundamental da crítica clássica é a culpa. Culpa por ter corrompido a pureza da lei com interesses e inclinações.

Disso decorre um problema crucial: o que acontece quando o espaço público se deforma? Se ele é condição para o exercício da crítica, como fazemos quando ele passa a ser controlado de tal maneira que, em vez de comportar tendencialmente a participação de mais pessoas, generalizando a inclusão de vozes e sujeitos, que quiseram ou puderam se emancipar de suas minoridades, ele passa a ser organizado, reversamente, por regras de exclusão? É o caso, por exemplo, das políticas públicas que retiram investimentos da educação (criando tetos de aplicação de receitas), ou que desprezam a importância da ciência (cortando bolsas de estudo), ou que desfazem do papel da cultura (extinguindo ministérios). Quando se diz que isso está a serviço da redução do tamanho do Estado, outros objetarão que está em curso uma identificação equívoca entre Estado e espaço público.

Ciência, arte e educação são justamente meios decisivos para formação qualificada de novos habitantes para o espaço público. Pode-se contra argumentar aqui que tais práticas habilitam apenas formalmente alguém a participar do jogo. Se a economia não permitir, não haverá expansão do espaço público. Não há espaço público para pessoas passando fome, morando na rua ou desempregadas no que restou de suas casas. Por isso muitas políticas públicas percebem tais “ocupantes indevidos” do espaço público (ruas, pontes e regiões centrais de grandes cidades) como um obstáculo a ser removido e não como um sintoma provocado pela própria contração do espaço público (redução de serviços de suporte social, saúde e políticas de emprego, habitação e circulação de pessoas). Muitos intervirão dizendo que o fato fundamental é que não há dinheiro para tudo e que em situação de falência precisamos primeiro arrumar a casa da economia para depois pensar na educação ou na saúde, afinal os bens materiais são condição para os bens simbólicos.  Contra isso outros argumentarão que talvez a falência não seja tão profunda assim, que a crise esteja sendo fabricada ou exagerada para produzir e justificar a conveniência dos “remédios” anti-crise.

Ora, o que o leitor encontrou no parágrafo acima, parece apenas uma recapitulação bem comportada e genericamente civilizada do debate entre esquerda e direita que se encontrará em versões mais ou menos tendenciosas nos grandes jornais e na imprensa brasileira. A forma debate é um dos aspectos assumidos pelo uso da razão em espaço público. Debater presume argumentos e argumentos dependem de fatos, mas também, como vimos de interpretações e de interesses. O debate tem por isso uma dupla função, ele exerce e cria condições para novas formas jurídicas e deliberações políticas, mas ele também é uma experiência formativa, ou seja, ele educa, ele ensina como falar e como lidar o outro por meio da linguagem e da razão. Outra palavra chave para entender a noção de debate é a ideia de reflexão. Refletir implica suspender a ação e o juízo, examinar o que se apresenta diante de nós, reconstruir o processo de formação do que se apresenta diante de nós, seja isso um fato, seja isso uma interpretação.

Refletir significa ainda sair de si mesmo, deixar a sua posição e assumir a conjectura da pertinência e existência de outro lugar. Finalmente, refletir é fletir novamente, ou seja, retornar a si, mas agora transformado pela jornada da reflexão. Se a reflexão funciona bem o outro também se transforma ao participar de nossa reflexão. E ela é melhor ainda se implica consequência e responsabilidade. Ora, a urgente necessidade de reconstruir o debate público no Brasil não é uma operação de legislativa, feita apenas de novas e melhores leis, da radicalização de atitudes morais, ela é uma tarefa urgente. Uma reforma da reflexão, uma reforma da crítica, uma reforma das instâncias que deveriam ter cuidado do debate e do espaço público e que não o fizeram durante os anos 2013 a 2017. Tudo isso precisa ocorrer junto com a reforma política. É preciso refundar a crítica, e como toda crítica ela começa pela auto-crítica. Isso implica rever o papel daqueles que tem por ofício cuidar da conversa assim como participar dela. Aqueles que funcionam como os representantes das “regras do jogo”, e estes representantes classicamente são a universidade e os intelectuais (Kant volta aqui mais uma vez), a imprensa e o sistema da cultura, a educação e o judiciário. É curioso como todas estas funções foram convocadas e parasitadas no interior do debate que evoluiu para não-debate em 2016, culminando na suspensão organizada da lógica da conversa e assunção da lógica do golpe, da pós-verdade e da  pós-política. Esquerda e direita estão agora juntas e envergonhadas, ainda que por motivos distintos. A operação limpeza moral, baseada na purificação do mal, parou no ridículo golpe dentro do golpe que mantém um corrupto no poder “por motivos práticos”, assim como teria retirado uma corrupta do poder “por motivos igualmente práticos”. Afinal, que racionalidade é esta senão a vitória da deformação sobre a formação e a informação? Como tão poucos conseguiram enganar tantos com razões tão deformadas?  Aqueles que repudiam professores, intelectuais e artistas, que desmerecem o espaço público, aqueles que se aproveitaram do ressentimento social para suspender o debate, aqueles que usaram a retórica da limpeza para contrariar a “razão pura”, aqueles que ganharam muito com a emergência do novo irracionalismo brasileiro, estão agora quietos, indiferentes e envergonhados. É o momento de refundar a crítica, sem tripudiar deste engano, mas entendendo como ele se tornou possível.

Quando identificamos espaço público com Estado, quando confundimos interesse público com bens públicos, quando reduzimos bens públicos aos recursos e responsabilidades do Estado, estaríamos deixando de enfrentar a pergunta realmente crucial, ou seja, a redução do Estado não seria um artifício para melhor controlá-lo em favor de interesses particulares? Aqui o problema da deformação do espaço público encontra outra versão. Neste caso não é que ele se contraia, diminuindo seu tamanho, excluindo pessoas, por exemplo, pobres e analfabetos ou negros e mulheres, mas ele muda de dono, ele deixa de ser de todos e passa a ser de alguns, por exemplo, daqueles que estão representando as pessoas e que usualmente chamamos de políticos. A rigor, político não é o que assume isso como uma profissão ou carreira parlamentar, mas todo aquele que fala e age em espaço público. É apenas por uma destas deformações, típicas da redução do espaço público a uma lógica de condomínio, que ressurge esta tendência anti-política, expressa, por exemplo, pela recusa ou desleixo com o voto. Ainda que baseado em atitude crítica, (note o retorno da palavra crítica mais uma vez), a atitude anti-política é no fundo uma política suicidária. Ela afirma garbosamente que os políticos lá em Brasília estão destruindo o Brasil (e estão mesmo), mas não se dá conta de que ao dizer isso, preguiçosamente, se está a afirmar ao mesmo tempo: “eu sou uma criança infantil, que não tenho interesse em participar disso, ou seja, do espaço público, pois ele é cheio de interesses, sujeiras e negociatas. Ademais quem se mete com isso torna-se imediatamente suspeito”. Tudo verdade. Uma verdade tão verdade que habilita os “não políticos” os “homens de ação e obras” a praticar a pior das políticas, a saber, aquele que consagra-se a reduzir o espaço público, econômica e formativamente e aquela que serve aos particulares amigos no melhor dos mundos possíveis para os negócios, ou seja, o negócio que é supervisionado pelo Estado em favor de uns e não de outros. Um negócio que não e um verdadeiro capitalismo, mas um uso do Estado para fazer bons negócios com minha família, amigos ou protegidos.

Ocorre que a crise da crítica brasileira envolveu um elemento novo, a formação de uma geração de atores políticos em uma nova linguagem, cujo suporte é a internet, e uma nova gramática de reconhecimento, cujo suporte são as experiências de sofrimento, de classe, de raça, de gênero, combinadas com processos de inclusão-exclusão social quanto a bens simbólicos, como educação, saúde, habitação e circulação.  Nossa geografia clássica, formada por fronteiras claras e distintas entre o público e o privado, cuja violação era percebida como deformativa, passou por uma mutação. Redes sociais são espaços nos quais não é mais o ator que define seu posicionamento, nem mesmo seu lugar de fala, enquanto identidade, mas é o próprio discurso que alterna interesse público e razões privadas. Isso se choca brutamente com o razão baseada em instâncias, que divide administrativamente os problemas e suas funções, as autoridades e suas prerrogativas. Uma crítica baseada em áreas ou especialidades, em autoridades constituídas e reputações firmadas, tem que se haver com um espaço que subitamente pode se tornar horizontal, onde todos falam de igual para igual. Mas este espaço pode, em seguida, ser extinto ou transformado em um deserto de indiferença ou irrelevância.

Rapidamente, o mesmo espaço anódino pode ser reocupado por um discurso vertical de uso, posse e propriedade da razão. A crítica deixa assim de confiar em seus representantes legais constituídos e passa a depender de eventos locais, de reviravoltas cuja característica mais interessante é que ela não é prontamente organizada ao modo de um mercado nem de uma garantia de autoridade. Ora, esta novidade promissora corroeu grandes impérios de informação, criando outros em seu lugar. Ocorre que a produção de informação relevante assim como a de formação qualificada custa muito caro, ao passo que a disponibilidade de informação segue a curva histórica de barateamento. Essa nova linguagem se torna disponível, para um contingente expressivos de brasileiros, no exato momento em que a tensão social se aprofunda. Ou seja, no ponto em que precisaríamos agudamente do trabalho da crítica ela teve que ser, por assim dizer, reinventada às pressas. Esta reinvenção prática da crítica obviamente produziu novas fórmulas e novos espaços de fala, no entanto, criou também o que se poderia chamar de uma reação regressiva baseada na anti-crítica, no obscurantismo e na reaparição de fórmulas pré-kantianas de pensar o espaço público. A pós-verdade é um nome muito novo para designar um fenômeno muito antigo.  A renovação da crítica não se dará pela adesão ao ponto neutro e angelical, uma purificação teológico-política, na qual os verdadeiros eleitos deverão nos guiar ao paraíso. Ela também não virá pela exaustão da culpa e da denúncia de impostores, mas talvez da reformulação da experiência com a vergonha por ser enganado, e com a humildade pelo reconhecimento da extensão do problema.

Jesse Owens e a supremacia branca

Em Nova York, Owens teve de usar elevador de serviço para chegar à recepção em sua homenagem (Foto- Reprodução)
Em Nova York, Owens teve de usar elevador de serviço para chegar à recepção em sua homenagem (Foto: Reprodução)

Do alto de uma tribuna especial, o líder nazista Adolf Hitler comemorava as vitórias alemãs nas Olimpíadas de Berlim de forma quase histérica. Era agosto de 1936. Para evitar um boicote internacional, nos meses anteriores ele havia ordenado uma faxina que eliminou dos espaços públicos todas as referências racistas do regime. Não passava de jogo para a plateia.

Na verdade, Hitler planejava acompanhar a consagração de seu regime no estádio olímpico de Berlim. Cada vitória alemã o aproximava da meta. Até surgir o americano Jesse Owens, o velocista negro que arrebanhou quatro medalhas de ouro naqueles Jogos. Ovacionado no estádio, Owens logo se transformou em símbolo internacional da luta contra o racismo.

Dali em diante, também conviveu com a lenda de que Hitler teria se recusado a cumprimentá-lo pela vitória. Na verdade, o líder nazista já havia parado de parabenizar os atletas quando Owen disparou rumo à consagração olímpica. Hitler mudou de atitude pouco antes de outro atleta negro, o americano Cornelius Johnson, ganhar o ouro no salto em altura.

O fato de ter se tornado um símbolo mundial do combate ao racismo não amenizou em nada o cotidiano de Owens nos Estados Unidos. Para participar de uma recepção em sua própria homenagem no Waldorf Astoria Hotel, em Nova York, teve de subir pelo elevador de serviço, como conta na autobiografia “The Jesse Owens Story”, lembrando que, naqueles tempos, negros não podiam usar elevadores sociais.

“Quando eu voltei para o meu país, com todas aquelas histórias sobre Hitler, eu não podia andar na parte da frente do ônibus, tinha que ir para a parte de trás”, escreveu Owens. “Eu não fui convidado para trocar um aperto de mão com Hitler, mas eu também não fui convidado para cumprimentar o presidente na Casa Branca”, completou, referindo-se a Franklin Delano Roosevelt.

A morte de Fidel Castro, para além do reducionismo de opiniões polarizadas

Morte de Fidel Castro e os diferentes estilos de pêsames globais (Foto: Acervo EBC)

Aos 90 anos de idade morreu Fidel Castro, em meados de 2016. Sua morte foi anunciada pela televisão estatal de Cuba por  Raul Castro, seu irmão e presidente do país caribenho:

“Querido pueblo de Cuba: Con profundo dolor comparezco para informar a nuestro pueblo, a los amigos de nostra América e del mundo, que hoy 25 de novembre del 2016, a las 10 e 29 horas de la noche, falleció el Comandante en jJefe de la Revolucion Cubana, Fidel Castro Ruz. En cumplimiento de la voluntad expresa del compañero Fidel, sus restos serán cremados”.

Fidel há tempos estava doente. Sua última aparição em público havia acontecido em agosto do ano passado, quando completou 90 anos.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, divulgou, através de sua assessoria, nota bastante protocolar e cuidadosa até porque trabalhou muito pela aproximação com Cuba:

“Neste momento do passamento de Fidel Castro, estendemos uma mão amiga ao povo de Cuba. Nós sabemos que este momento enche cubanos – em Cuba e nos Estados Unidos – de fortes emoções, relembrando os incontáveis caminhos em que Fidel Castro alterou o curso das vidas de indivíduos, de famílias e da nação cubana. A história vai registrar e julgar o enorme impacto de sua singular figura no povo e no mundo a sua volta”.

Já o presidente eleito, Donald Trump, não teve nenhum cuidado. Foi direto:

“Hoje, o mundo assiste a morte de um ditador brutal que oprimiu seu povo por cerca de seis décadas. O legado de Fidel Castro é o de pelotões de fuzilamento, roubos, sofrimentos inimagináveis, pobreza e negação dos direitos humanos fundamentais.”

Na mesma linha, o senador republicano pela Florida, o cubano-americano, Marco Rubio, que foi candidato a presidência, também foi direto:

”Por seis décadas, milhões de cubanos foram forçados a abandonar seu próprio país, e aqueles acusados de fazerem oposição ao regime eram rotineiramente presos e até mortos. Infelizmente a morte de Fidel Castro não significa a liberdade do povo de Cuba ou a justiça para os ativistas da democracia, os líderes religiosos e os opositores políticos que ele e seu irmão prenderam e perseguiram. O ditador morreu mas a ditadura continua”.

Enquanto Obama foi cuidadoso, Trump e os republicanos foram diretos. Diretos no fígado.

Vale ler o texto de Eduardo Galeano, do livro Espelhos, uma História Quase Universal, com tradução de Eric Nepomuceno. que está circulando pela internet:

“Seus inimigos dizem que foi rei sem coroa e que confundia a unidade com a unanimidade. E nisso seus inimigos têm razão. Seus inimigos dizem que, se Napoleão tivesse tido um jornal como o Granma, nenhum francês ficaria sabendo do desastre de Waterloo. E nisso seus inimigos têm razão. Seus inimigos dizem que exerceu o poder falando muito e escutando pouco, porque estava mais acostumado aos ecos que às vozes.

E nisso seus inimigos têm razão. Mas seus inimigos não dizem que não foi para posar para a História que abriu o peito para as balas quando veio a invasão, que enfrentou os furacões de igual pra igual, de furacão a furacão, que sobreviveu a 637 atentados, que sua contagiosa energia foi decisiva para transformar uma colônia em pátria e que não foi nem por feitiço de mandinga nem por milagre de Deus que essa nova pátria conseguiu sobreviver a dez presidentes dos Estados Unidos, que já estavam com o guardanapo no pescoço para almoçá-la de faca e garfo.

E seus inimigos não dizem que Cuba é um raro país que não compete na Copa Mundial do Capacho. E não dizem que essa revolução, crescida no castigo, é o que pôde ser e não o que quis ser. Nem dizem que em grande medida o muro entre o desejo e a realidade foi se fazendo mais alto e mais largo graças ao bloqueio imperial, que afogou o desenvolvimento da democracia à la cubana, obrigou a militarização da sociedade e outorgou à burocracia – que para cada solução tem um problema –, os argumentos que necessitava para se justificar e perpetuar.

E não dizem que apesar de todos os pesares, apesar das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha sofrida mas obstinadamente alegre gerou a sociedade latino-americana menos injusta. E seus inimigos não dizem que essa façanha foi obra do sacrifício de seu povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e do antiquado sentido de honra desse cavalheiro que sempre se bateu pelos perdedores, como um certo Dom Quixote, seu famoso colega dos campos de batalha. “

Aqui no Brasil, com seu habitual e consistente equilíbrio, o filósofo Renato Janine Ribeiro lembrou as ambiguidades do regime e postou em sua página no Facebook várias análises. Opiniões contrárias e opiniões favoráveis a Fidel Castro.

O filósofo também manifestou sua indignação no seguinte texto:

“Você tenta entender Fidel, sua ambiguidade: um revolucionário nacionalista com forte preocupação social que os EUA bloquearam, tentaram matar, praticamente jogaram nos braços do comunismo e que com isso puniram um povo todo. E o outro lado, o ditador, a repressão, muitas coisas, mas também ambíguas, porque foi o exército cubano que salvou Angola da invasão racista sul-africana. Um personagem ambíguo. Aí, retardados começam a dizer que foi apenas um assassino, do mal, que os verdadeiros cubanos estão em Miami, – e que eu estou defendendo Fidel. Pensar faz bem, sabem? Quem não gosta de pensar vá aos blogueiros e publicações apropriados.”

Falta de água e de saneamento afeta mais as mulheres ao redor do mundo

O percurso de busca à água muitas vezes é longo, podendo apresentar riscos a essas pessoas. FOTO: Fotos Públicas

O acesso à água segura e ao saneamento sanitário não está disponível da mesma forma para homens, mulheres e outras identidades de gênero. É o que mostra estudo da Organização das Nações Unidas (ONU), coordenado pelo pesquisador brasileiro Léo Heller, que é relator especial sobre os dois temas na instituição.

Segundo Heller, que também coordena o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Saneamento da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, em quase todas as localidades onde há falta ou má distribuição de serviços de saneamento, são as mulheres que coletam que coletam água para manter a higiene doméstica.

“A situação mais usual é que, quando não há água nas proximidades da residência, as mulheres e meninas são, na maioria das vezes, encarregadas de buscá-la em algum lugar, o que demanda tempo.”

Ele ressalta que essa situação reforça a dependência econômica delas de seus companheiros, já que não são remuneradas por esse trabalho. O  percurso de busca à água muitas vezes é longo, podendo apresentar riscos a essas pessoas de sofrerem ataques de todas as espécies, como de animais selvagens e violência sexual.

Sem acesso a banheiros, essas mulheres se valem de espaços abertos para fazerem suas necessidades, o que as deixa mais vulneráveis ainda.

A inadequação de espaços públicos atinge também a vida de mulheres transgêneros. Estudos feitos na Índia revelam que as transexuais enfrentam dificuldade em encontrar casas para morar, sendo forçadas a viver em favelas e áreas remotas, com sérios problemas de esgoto e distribuição de água.

Outro grupo atingido é a população em situação de rua. Em Belo Horizonte, Minas Gerais, uma pesquisa coordenada por Heller mostra que os albergues e as unidades de acolhimento não são em número suficiente para a quantidade de pessoas sem moradia.

Heller ressalta que o estudo é importante para orientar políticas públicas voltadas para serviços de água e esgoto. “Às vezes, a legislação e as políticas públicas, quando são neutras em relação a essa questão, acabam favorecendo os homens.”

O estudo sugere ainda que os governos criem um sistema de indicadores de gênero para melhorar a coleta de dados desagregados por sexo e outros fatores relevantes que são necessários para avaliar o impacto e a efetividade das políticas que visão a igualdade de gênero.

Como as mulheres influenciaram os protestos por democracia no mundo?

Mulheres protestam no Egito em manifestação de 2013. Foto: Reprodução/Mídia Ninja

*Por Monique Oliveira

Por que a primavera árabe falhou e só a Tunísia emergiu como um pais democrático? Em parte, pela ausência de direitos às mulheres na região, diz estudo  interdisciplinar publicado no European Journal of Political ResearchPesquisadores investigaram dados de 177 países que se tornaram uma democracia a partir dos anos 1900.

Em especial, a análise demonstrou que os países não se tornam plenamente democráticos sem direitos políticos e sociais para as mulheres. E isso é particularmente verdadeiro para os países da Primavera Árabe, onde a incapacidade de promover direitos às mulheres comprometeu qualquer tentativa de governança democrática na área.

O estudo mostrou que os direitos civis para homens e mulheres – direitos à liberdade de expressão, por exemplo – estavam sempre presentes a um nível elevado antes da implementação dos direitos constitucionais. Este padrão foi observado em quase todos os casos de democratização bem sucedida no século XX.

Participaram do estudo Yi-Ting Wang, da Universidade Cheng Kun (Taiwan); Patrick Linderfors, da Universidade de Estocolmo (Suécia); Aksel Sundström, da Universidade de Gothemburg (Suécia); Fredrik Jansson, da Universidade de Estocolmo (Suécia); Pamela Paxton, da Universidade de Texas-Austin (EUA); e Staffan Lindberg, da Universidade de Gothemburg (Suécia).

O custo da repressão

O estudo aponta que, embora antes se considerasse que direitos civis a homens fossem suficientes para a transição democrática, pesquisas mais recentes notam a importância de direitos às mulheres. Isso se deve, principalmente, ao argumento do custo à repressão.

Segundo os autores, a transição de um regime autoritário ocorre quando o custo à repressão dos revoltosos é tão grande que será mais fácil a manutenção do poder em uma democracia. Ou seja, quando uma redistribuição mínima de poder se torna menos custosa que a tentativa da manutenção da autoridade a qualquer custo.

E é aí que entra o papel dos direitos às mulheres. Se mais mulheres tiverem direitos políticos, maior será o custo da repressão na sociedade. “Quando mais cidadãos gozam de direitos e são mais capazes de iniciar revoltas eficazes, a repressão torna-se difícil’, diz o estudo.

Quando as mulheres se engajam no mercado de trabalho e na participação política, menos pessoas na sociedade tendem a resolver suas questões na esfera privada, apontam os pesquisadores. “Portanto, espera-se que a melhoria das liberdades civis das mulheres irá aumentar substancialmente a pressão para mudanças políticas.”

O artigo cita a importância da participação de mulheres em movimentos políticos na América Latina. “Na década de 1980, grupos pró-democratização de mulheres surgiram no Brasil, no Chile e no Peru, centrados na idade de que o cotidiano de mulheres eram economicamente mais difícil do que o de homens”, diz os pesquisadores.”Em protestos urbanos no Brasil, estudos apontam que 80% dos manifestantes são mulheres.”

“Sintetizamor”, a usina dançante de Donato e Donatinho

O compositor, cantor e arranjador João Donato e seu filho, o também compositor, multi-instrumentista e produtor Donatinho- Foto- Renato Pagliacci
O compositor, cantor e arranjador João Donato e seu filho, o também compositor, multi-instrumentista e produtor Donatinho- Foto- Renato Pagliacci

“Em instantes dancem, sim?”. O convite irrecusável, expresso na voz sussurrada e inconfundível de João Donato e seguido por um hilário “nightclub”, serve de abre-alas para as dez composições reunidas em Sintetizamor. Recém-lançado, o álbum resulta da parceria entre o veterano artista acriano, um dos maiores tesouros de nossa música, e seu filho, o compositor, produtor e multi-instrumentista Donatinho, 33, que, egresso da cena de live PAs da música eletrônica da segunda metade da década de 2000, lançou, em 2014, seu primeiro trabalho solo, Zambê, título que, no ano seguinte, conquistou o Prêmio da Música Brasileira na categoria Melhor Álbum Eletrônico.

Escrita por Donato, Donatinho e Davi Moraes, De Toda Maneira, a canção citada no início deste texto, dá pistas de sobra do que virá depois. Além de contar com uma feliz profusão de parcerias nas vozes e nas letras (Domenico Lancelotti, Gabriela Riley, Jonas Sá, Ronaldo Bastos, Jean Kuperman, João Capdeville, Rogê e Julia Bosco, esposa de Donatinho), Sintetizamor é também impregnado de texturas eletrônicas e beats capazes de exterminar qualquer possibilidade de inércia humana. Uma usina dançante equipada com “reatores” polifônicos revestidos de timbres analógicos e osciloscópicos de sintetizadores, synth-basses e programações eletrônicas; talkboxes e vocoders que remetem ao saudoso Zapp de Roger Troutman; além de um manancial de acordes e solos de piano elétrico (claro, o clássico Fender Rhodes, consagrado em terras brasileiras em Quem é Quem, a obra-prima de 1973 que revelou o canto sereno e suave de João).

Infalível, em meio às melodias e letras que imediatamente grudam na cabeça, a receita processada por Donatão e Donatinho remete a uma fase solar da música popular mundial, iniciada com a utilização de recursos elétricos e eletrônicos no período de ascensão dos chamados jazz-funk e jazz-fusion. Transição escancarada em um sem-número de álbuns produzidos pela dupla Mizell Brothers e títulos divisores como Headhunters (1973), de Herbie Hancock – álbum que, aliás 1., despertou a paixão de Donatinho pelas teclas pretas e brancas quando ele era um garoto de 12 anos de idade; Hancock que, aliás 2., é homenageado na segunda faixa, Surreal. Com pequenas variações climáticas – sobretudo nas três últimas faixas, Vamos Fugir à FrancesaIlusão de Nós e Hao Chi, mais intimistas – Sintetizamor persegue também estéticas consagradas no decênio 1975-1985 para reprocessar elementos do melhor da disco music, do disco funk, do synth-pop e do boogie.

Sobre esse último gênero citado no parágrafo anterior, aliás, é inegável a associação da usina sintética de Donatão e Donatinho com certa produção brasileira do primeiro quinquênio dos anos 1980 hoje cultuada nos Estados Unidos e na Europa como “Brazilian Boogie”. Faixas como Quem é QuemInterstellar e A Lei do Amor (carro-chefe do álbum, que imediatamente arrebatou o público assim que foi divulgada no começo de junho último) dialogam diretamente com certo imaginário musical daquele Brasil às vésperas da redemocratização, uma nação, impregnada de espírito jovem e entusiasmada com seu futuro, que foi tomada de assalto nas rádios FM do eixo Sudeste com hits como Estrelar, de Marcos Valle (outro gigante de nossa música, que havia recém-voltado ao País depois de cinco anos radicado em Los Angeles), Aleluia, da onipresente dupla Robson Jorge e Lincoln Olivetti, Festa Funk, de Almir Ricardi, Rio, Sinal Verde, de Junior Mendes, e Olhos Coloridos, de Sandra de Sá.

A capa e o poster com as letras do álbum Sintetizamor foram criadas pelo quadrinista Allan Jeff, brasileiro de prestígio internacional. Foto: Divulgação / Deck
A capa e o poster que contém as letras e a ficha técnica do álbum Sintetizamorforam criadas por Allan Jeff, brasileiro de prestígio internacional no universo das HQs. Foto: Divulgação / Deckdisc

Com capa e ilustrações especialmente produzidas pelo brasileiro Allan Jeff, ás das HQs que brilha no exterior em publicações de gigantes como a DC Comics, Sintetizamor foi integralmente gravado no estúdio Synth Love, de Donatinho. Além dos já citados Davi Moraes e Rogê (guitarras), Julia Bosco e Gabriela Riley (vocais), os arranjos também contaram com os seguintes músicos e intérpretes: Marcelo Amaro (shaker e afoxé), Marlon Sette (trombone), Diego Gomes (trompete), Ricardo Pontes (flauta), Pedro Dantas (baixo), Leonardo Vieira (guitarra), Felipe Pinaud (guitarra), Maria Joana (vocais) e Fernanda Sung, que recita Hao Chi (em tradução livre “delicioso”), poema de Julia Bosco que foi vertido para o chinês.

Também no início de junho, quando foi divulgada a faixa Quem é Quem, o DJ nova-iorquino Greg Caz, notório apaixonado por nossa música, repercutiu a novidade com um comentário divertido – e ao mesmo tempo sintético – em sua página pessoal no Facebook: “Quando um lançamento brasileiro é anunciado, há uma tendência em muitos lugares, particularmente no Reino Unido, de o texto começar com as seguintes palavras ‘em tempo para o Verão, aqui está o novo álbum de…’. É um clichê engraçado, mas, neste caso, não poderia ser mais apropriado. Senhoras e senhores, em tempo para o Verão: The Donatos!!!”. No encerramento da apresentação de Sintetizamor, trabalho aventado havia anos por ele e seu pai, Donatinho esclarece alguns aspectos do álbum: “Este é um disco de pai para filho, de filho para pai, de nós para vocês. Sintetizamor é isso: música feita com sintetizador, que, ao invés de sintetizar dor, sintetiza o amor”, conclui.

Neste Brasil sombrio e rachado de 2017, o hedonismo dançante, luminar e festivo registrado em Sintetizamor tem certa força involuntária de servir como válvula-de-escape mais que bem-vinda para atenuar a atmosfera de melancolia vigente. O baile no palco da comedoria do Sesc Belenzinho, capitaneado por Donatão – que no próximo dia 17 completará 83 anos, pleno de juventude e vigor criativo – e Donatinho, não deve deixar dúvidas desse potencial.

SERVIÇO
Lançamento do álbum Sintetizamor, de João Donato e Donatinho
Sesc Belenzinho
Sexta-feira (4), às 21h30
Classificação: 18 anos

MAIS
– Leia entrevista com João Donato, publicada na ocasião em que o artista completou 80 anos
– Leia resenha de Donato Elétrico, o mais recente álbum solo do músico

Ouça A Lei do Amor, a quinta faixa do álbum, que pode ser comprado aqui