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Em busca da água perdida

"A água mais cara é aquela que não existe", diz Newton. FOTO: Pedro França/Agência Senado

Soa esdrúxulo afirmar, mas é possível concluir. A crise de abastecimento de água que assola o Estado de São Paulo trouxe um ponto positivo: tornou urgente a conscientização de que é preciso reinventar a gestão de nossos recursos hídricos. Quem afirma, em entrevista à Brasileiros, é Newton de Lima Azevedo do World Water Council (WWC), o Conselho Mundial da Água. A entidade não governamental defende o insumo vital em âmbito global, agrega cerca de 300 instituições de 70 países e foi criada na França, em 1996, na cidade de Marselha. No WWC, Azevedo exerce o papel de governador, como são chamados os representantes de cada uma das nações filiadas. A entidade também é presidida, desde 2013 e até 2017, por outro brasileiro, o engenheiro civil Benedito Braga, acadêmico da USP, com décadas de atuação nas questões relativas à defesa da água.

Azevedo também é vice-presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB) e está na linha de frente de um compromisso firmado pelo Brasil em fevereiro último: sediar em 2018, na capital federal, Brasília, o 8o Fórum Mundial da Água. A realização do evento no Brasil é providencial. Converge com a intenção do WWC de ampliar suas políticas globais, pois essa é a primeira ocasião em que o fórum será realizado em um país do Hemisfério Sul (a 7a edição acontecerá na Coreia do Sul, em abril de 2015), e permitirá o aprofundamento de soluções para o enorme déficit na América Latina.

Somente no que tange às demandas de saneamento básico do continente, mais de 300 milhões de cidadãos não têm esgoto tratado, sendo que um terço deles vive no Brasil. Em nosso território, além dos dejetos orgânicos e químicos, que contaminam lagos, rios e oceano, ainda há estados da Federação, como o Piauí, que desperdiçam até 60% da água potável tratada pela precariedade da rede de distribuição. Mas a questão do abastecimento para o consumidor comum, que demanda 10% da água tratada, segundo o WWC, é só a ponta do iceberg de uma gestão irresponsável intimamente ligada ao poder privado. Setenta por cento da água potável do País tem uso indiscriminado no agronegócio. Outros 20% destinam-se à indústria, que começa a ensaiar mudanças de hábitos, desde que passou a ser penalizada com multas severas. Como veremos a seguir, é possível ser otimista, mas ainda há muito a ser feito para resgatarmos a água perdida.

Brasileiros – Como se deu a escolha do Brasil para sediar o 8o Fórum Mundial da Água?
Newton de Lima Azevedo – O argumento mais forte que defendemos para trazer o fórum ao Brasil foi: “Se o conselho quer realmente ser tratado como Conselho Mundial da Água, tem que ser, de fato, mundial”, pois esse será o primeiro fórum no Hemisfério Sul. Havia nove concorrentes e, no final, sobraram dois: o Brasil, com sede em Brasília, e a Dinamarca, com sede em Copenhague. E é bem difícil comparar Copenhague com Brasília, pois são cidades com realidades totalmente diferentes. Por aqui, ainda temos cem milhões de brasileiros sem acesso a esgoto tratado. E esse chamamento de trazer o fórum para a América do Sul foi estratégico, já que em todo o continente há 300 milhões de pessoas sem saneamento básico. Cem milhões aqui e outros 200 nos outros 12 países. Com todo o respeito a Copenhague, lá se discute o terceiro derivado do crédito de carbono, mas aqui ainda temos cocô indo para os rios, os lagos e o mar. No Brasil água ainda é um “bicho” indomado. Fomos para a votação aberta e tivemos 23 dos 35 votos.

Em 2018, haverá um novo pleito presidencial. Nos próximos quatro anos, até a realização do fórum, que medidas devem ser cobradas do presidente que será eleito em 2014?
Quem está assinando esse contrato com o WWC é a cidade de Brasília, com o aval do governo federal, por meio do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério do Meio Ambiente. Assinaremos o contrato em 15 de setembro próximo e pretendemos blindar o evento de qualquer conotação política. Para mantermos essa chama acesa, há uma ação fundamental, que também dependerá do apoio governamental: estamos fazendo um projeto que começará a ser implantado imediatamente após o próximo fórum, que acontecerá na Coreia do Sul, em 2015. Um programa que se estenderá do final do próximo ano até seis meses após o fórum do Brasil, em 2018, quando entregaremos todos os relatórios e encaminhamentos para o país sucessor. Pretendemos “irrigar” discussões em nossa sociedade e precisamos do apoio da imprensa para conscientizar a opinião pública.

Independentemente do fórum em 2018, o Brasil já exerce o papel de protagonista dessas questões na América Latina?
Sim. O Brasil tem uma legislação forte e os modelos de negócio existem. A questão das Parcerias Público-Privadas (PPPs) ainda é alvo de tabus, mas é inegável que elas também evoluíram. É importante dizer que o WWC não tem nenhuma vertente ideológica. Ele é pragmático, assim como a questão da água, que é bem objetiva. Um exemplo: para universalizar o acesso a esgoto e água potável no Brasil em 30 anos, precisamos investir R$ 20 bi por ano. Com todo o esforço que o governo federal tem feito, chegamos a R$ 9 bi. Então, das duas uma: ou universalizaremos esses serviços em 50 ou 60 anos, ou teremos de criar um ambiente jurídico-institucional que faça existir agências reguladoras e atrair aporte financeiro. A questão é que, no Brasil, para a iniciativa privada, os serviços ligados à água concorrem com outras áreas de infraestrutura. Daí o investidor pensa: “Concessão de rodovias é um puta negócio! E não é que a energia é ainda melhor?!”. Até o cara pensar que saneamento é legal, demora… Mas a questão é que não dá mais para ficar nessa. Temos de rever o que significa ser “legal”. O saneamento tem restrição da participação privada porque ainda há um discurso babaca, em minha opinião, de dizer que água é direito do cidadão e dever do Estado, mas aí o cara morre de sede ao lado da plaquinha em que isso está escrito.

E como podem ser integradas as ações do Estado com a iniciativa privada?
Nos últimos dez anos, houve evolução das PPPs, mas o setor de recursos hídricos pode e deve amadurecer ainda mais. É preciso melhorar as gestões integradas, pois temos um arcabouço jurídico de razoável para bom. É preciso que a sociedade também se conscientize e cobre essas ações. No caso de São Paulo, é terrível dizer isso, mas a crise colaborou para a penetração da discussão na sociedade. Há pesquisas que dizem que a falta de água, claro, é problema dos que mais sensibilizam o brasileiro. Já com relação ao esgoto, o cidadão não tem a menor ideia do problema que enfrentamos e não quer saber. Ele aperta a descarga e está pouco se importando se aquilo caiu no colo do vizinho da rua de trás. São esses conceitos que a gente quer bater de frente, porque temos água num nível razoável de abastecimento e qualidade. Já o esgoto é essa vergonha. Inadmissível pensar que, em um País que é a sétima potencia mundial, o cocô das pessoas vai direto para o rio ou para o mar.

E por que isso ainda é tolerado?
No Brasil, o saneamento é tratado como o primo pobre da infraestrutura. Mas se não temos esgoto, de quem é a culpa? Costumo dizer que é como no casamento, se a relação não vai bem, nunca existe culpa de um lado só. Então, há uma série de “culpas” e de “culpados”. A começar pelo problema cultural. O Brasil parece não ter mesmo a real dimensão do impacto desse descaso. Basta dizer que para cada real investido em saneamento básico podemos economizar quatro em saúde pública. Mas o problema mais sério é, sem dúvida, a atomização da responsabilidade. Veja o exemplo das telecomunicações, hoje em dia, temos mais celular do que pessoas no Brasil. Há pouco mais de 20 anos, ter uma linha telefônica por aqui era investimento. Não há dúvida de que quando você tem a concentração da regulação e do controle em âmbito federal é mais fácil ser eficaz. Agora, com relação ao saneamento, há uma confusão absurda, pois o responsável – último na hierarquia, mas o primeiro por ser o executor – é o prefeito. No Brasil, deve haver umas 300 cidades com prefeitos porretas, empenhados em levar saneamento básico à sua população, mas há também outras três mil nas quais o prefeito é o Toninho da Farmácia que tem outros mil problemas para lidar antes de querer fazer um plano municipal de saneamento. Não estou, com isso, dizendo que temos de fazer uma espécie de “Sanebras”, mas a dificuldade é não ter essa gestão integrada entre Federação, Estados e Municípios.

Hoje, qual é a realidade de nossas estatais de saneamento?

Temos, hoje, 26 empresas estatais de saneamento básico. Dessas, 20 estão quebradas e têm a despesa maior do que a receita. Ou seja, se não há dinheiro nem para sobreviver, como é que terá para investir? O pior é que existem programas do governo federal para ajudar a revitalizar essas empresas com apoio da iniciativa privada, mas elas simplesmente não se movimentam. Embora, do ponto de vista constitucional, o governo federal não tenha ingerência para falar com esses Estados, ele teria o direito moral de chamar o governador e o presidente de cada uma dessas companhias para uma conversa franca. Afinal, essas 20 empresas são responsáveis por 70% dos serviços prestados para a população brasileira. Daí, você chama o cara e diz: “Ótimo que você veio até aqui. Não tenho nenhuma ingerência sobre seu Estado, mas ofereço a você um cardápio de três ou quatro soluções para revitalizar sua companhia de saneamento. Caso contrário, não vamos atingir a meta de, até 2030, universalizar o saneamento básico e a água potável no Brasil”. Em última instância, o cara tem o direito constitucional de dizer: “Não quero nenhuma das três alternativas. Vou voltar para minha cidade e continuar naquela pindaíba”. O problema é essa diluição e atomização das responsabilidades.

Como o senhor interpreta a crise em São Paulo?
Como disse antes, não dá para falar de universalização de água e esgoto, se não falarmos de todo o resto. Setenta por cento da água vai para o agronegócio, 20% para a indústria e só 10% para o abastecimento da população. Então, não adianta eu ficar aqui dando cabeçada com o consumidor comum, se a indústria estiver gastando água loucamente e o agronegócio, com a irrigação e a contaminação dos lençóis por agrotóxicos, estiver destruindo tudo por aí. Mas começam a surgir instrumentos legais que estão fazendo repensar essas práticas. A indústria, por imposição da Agência Nacional de Águas (ANA), começa a entender o conceito do poluidor pagador. O industrial passou a pagar caro quando devolve a água poluída para o meio ambiente, e esse dinheiro é revertido em investimentos para a bacia hídrica. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) estão começando a ter um diálogo com o WWC.

No caso do agronegócio, além do consumo de mais de dois terços do total de água potável, ainda há a questão da intoxicação dos lençóis por agrotóxicos…
A CNA está começando a dialogar com o WWC, mas a questão é que o agronegócio é um setor gigante, que sustenta milhões de empregos no País. Além de ser um dos pilares da nossa economia, há nele quem insista no seguinte discurso: “Ou gastamos água para colocar o alimento na mesa ou não teremos alimento”. Uma visão um tanto maniqueísta. Se você for a países como Israel concluirá que há grandes avanços na questão do reúso para a irrigação agrícola – que lá é feita com o menor gasto possível de água potável. Ou seja, se a gente não se movimentar para pensar a água em todos os setores, jamais resolveremos o problema. E o maior problema de gestão hoje é a perda por ineficiência. Das 20 companhias que estão quebradas, algumas como a Agespisa, do Piauí, perdem até 60% da água tratada antes mesmo que ela chegue à população. É preciso ter gestão eficiente, mas, para tal, é preciso ter agências reguladoras que cobrem essa eficácia. A indústria começou a mudar de postura, pois a coisa passou a doer no bolso, e ela teve de rever seus processos. Os movimentos estão aí, mais velozes do que antes, mas não tão rápidos quanto necessitamos. São Paulo, hoje, não tem mesmo o que fazer, a não ser economizar água e acender algumas velas para São Pedro, porque esses projetos tomam planejamento e tempo de execução. Pesquisas de 2002 já alertavam para o que está acontecendo em São Paulo, e não dá para deixar uma metrópole dessa dimensão a mercê de São Pedro.

Até que o Brasil atinja a meta de saneamento e água potável para todos, prevista para 2030, não corremos o risco de enfrentar outras tantas crises de abastecimento?
Tem um pouco de futurologia nisso tudo, mas uma coisa é fato: quanto mais houver consciência e quanto mais veloz essa consciência for incorporada a nossa sociedade, haverá menos chance de que isso aconteça. Agora, se continuarmos do jeito que estamos, podemos nos preparar para uma crise atrás da outra. Mas sou otimista e sempre vejo o copo meio cheio. Em São Paulo, a população tem dado uma boa resposta à crise e o povo brasileiro é porreta, a hora que entende, a coisa vai. Claro, ele não entendeu ainda o problema do esgoto, mas conversas como essa são cada vez mais importantes. A sociedade precisa ter acesso a essas informações numa linguagem mais palatável para mudar seus hábitos e cobrar ações.

Ironicamente, o Brasil tem reservas subterrâneas de grande magnitude, como o Aquífero Guarani. Por que esses recursos ainda não são explorados? É possível prever quando isso acontecerá?
Existem planos para o Guarani, mas não dá para precisar quando essa água chegará até nós. O grande problema é a falta de vontade política e de consciência da real importância da água. Quando exportamos carne, também exportamos a água que foi utilizada no processo. A água transita por tudo e tem enorme valor econômico. Água é PIB. Gera e faz perder emprego. Melhora ou piora a saúde do cidadão. Há vários países pequenos em que o esgoto é tratado a ponto de torná-lo água potável. Os caras bebem a água que vem do esgoto, felizes da vida, pois ela é inclusive mais limpa do que a nossa. Há também tecnologias como a dessalinização e temos uma enorme costa litorânea. Recursos não faltam. O que falta é capacidade de empreender. Agora, se a maioria das nossas empresas de saneamento não tem dinheiro nem para trocar hidrômetros, como é que eu vou dizer a elas para fazer uma estação de reúso com membrana ultrafiltrante japonesa?

Apesar da crise em São Paulo e de todos esses problemas, sua experiência permite ao senhor sustentar uma postura otimista?
Sou otimista, assim como outras pessoas que, há mais de 20 anos, começaram a trilhar esse caminho. Em 1995, atuei em uma das primeiras concessões privadas para tratamento de esgoto, na cidade de Limeira, interior de São Paulo. Muita gente foi contra. Tomamos tiros de todos os lados. Passados 20 anos, esqueceram que havia ali uma gestão da iniciativa privada. Hoje, a cidade tem 100% de água potável e 100% de esgoto tratado. A perda é de somente 16% e há 98% de aprovação da população. Além disso, há na cidade menos de 1% de inadimplência. O cidadão paga porque está contente e satisfeito com o serviço. É preciso perceber que o pior dos mundos é: a água mais cara é aquela que não existe.

O direito humano à água e a crise no abastecimento

*Por Léo Heller

O direito humano à água e ao esgotamento sanitário foi explicitamente reconhecido por Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de julho de 2010 e do Conselho de Direitos Humanos da ONU em setembro de 2010, com forte apoio do governo brasileiro. A Assembleia Geral reconheceu que se trata de “um direito humano essencial para o pleno desfrute da vida”, o que pode ser compreendido em articulação com outras definições sobre os direitos humanos, como a de que todos os direitos são universais, indivisíveis e interdependentes e estão relacionados entre si. Esse reconhecimento, a par de tornar os cidadãos dos vários países portadores desse direito e aptos a reivindicarem-no judicialmente, traz obrigações aos governos e gestores públicos.

O cumprimento do Direito Humano à Água (DHA) supõe assegurar água com disponibilidade, acessibilidade física, qualidade e segurança, financeiramente acessível e que cumpra com os requisitos de aceitabilidade, dignidade e privacidade. Semelhantes atributos aplicam-se ao direito ao esgotamento sanitário.

No atual momento, em que o País vive uma dramática crise no abastecimento de água, afetando fortemente sua região mais populosa, urbanizada e industrializada, cabe analisar a situação a partir da lente do DHA.

Inicialmente, avaliando o atual desabastecimento, verifica-se que, caso os princípios do DHA tivessem sido observados pelos responsáveis pela prestação dos serviços, as oscilações climáticas que vivemos não teriam se convertido em escassez de água para consumo humano.

Entre os princípios do DHA, espera-se dos Estados-membros das Nações Unidas que empreguem o “máximo recurso disponível” para assegurar o acesso. Violações a esse direito são consideradas situações de retrocesso. Obviamente, caso o planejamento do abastecimento de água nas localidades afetadas tivesse se dado de forma adequada, levando em conta as variações climáticas, mesmo as mais extremas, o problema não estaria ocorrendo com a atual magnitude.

As tendências científicas mais contemporâneas indicam que os sistemas de abastecimento de água têm de ser planejados de forma estratégica, criativa, adaptativa e capaz de aprender com as mudanças da realidade. Quando incorporarmos esses princípios efetivamente no Brasil, nossas cidades ganharão resiliência para enfrentar situações de estresse hídrico.

Outro aspecto que merece um olhar a partir do DHA são as medidas adotadas ou planejadas para enfrentar a crise. Aí reside a maior preocupação atual, pois sabe-se que, em situações de restrição de consumo, são justamente as populações mais vulneráveis as que mais sofrem seus efeitos. Justamente essa população mais indefesa, com menos capacidade econômica, tem de lançar mão de alternativas ao desabastecimento. Isso porque ela é a mais impactada, inclusive quanto à saúde. Refiro-me não apenas ao segmento da população visivelmente mais pobre, a exemplo da que vive nas vilas e favelas, mas também aos moradores de rua, aos idosos, às crianças e à população carcerária.

O atual momento requer colocar os princípios do DHA no centro da atenção dos decisores públicos. A gestão da crise, por meio de medidas para a restrição de consumo, sejam elas quais forem – redução de pressão nas redes, instrumentos econômicos punitivos, campanhas contra o desperdício, rodízio e racionamento – não deve assumir que todos os usuários sofrerão impactos equivalentes. Ao contrário de medidas de caráter universal, essas devem ser tomadas focalizando afirmativamente as parcelas mais vulneráveis da população, que devem ser protegidas, a bem do cumprimento do DHA.

Além disso, outros princípios do DHA também devem ser evocados neste momento: a transparência e a participação. Medidas para restrição do consumo não se restringem a um processo técnico de tomada de decisão. É um processo que tem implicações sociais diretas nas populações das cidades. Portanto, o processo decisório não deve ser uma exclusividade de gestores públicos e de especialistas. Deve ser um processo democrático, que conte com a participação dos representantes dos afetados, seja nos próprios fóruns constituídos para gerir a situação de crise, seja envolvendo os conselhos de participação social já instituídos.

*Pesquisador da Fiocruz-Minas, relator especial das Nações Unidas para o Direito Humano à Água Segura e ao Esgotamento Sanitário e membro da Plataforma Política Social

 

A polícia que quer uma nova polícia

Orlando participou do 55º CONUNE em debate sobre desmilitarização da polícia e novas política de drogas. FOTO: Mídia Ninja

O caso Amarildo transformou o de­le­gado Orlando Zaccone em um “policial que incomoda”, como ele mesmo se define. O carioca da Tijuca já defendia publicamente questões controversas, ainda mais nesse meio, como a legalização de todas as drogas e a desmilitarização do modelo de segurança. Além disso, o delegado tem uma trajetória incomum: antes de entrar para a polícia, foi repórter do jornal O Globo durante um ano, ainda na juventude, desistiu e virou monge hare krishna, “estava com alguns questionamentos existenciais”, e depois foi cursar Direito.

Mas nada disso o estigmatizou tanto quanto o papel que desempenhou ao rejeitar a tese de que o assistente de pedreiro, levado à interrogatório na Unidade da Polícia Pacificadora na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, e desaparecido desde então, tinha ligações com o tráfico: “Fui obrigado a realizar na prática aquilo que sempre defendi. Não podia deixar que se construísse a imagem de Amarildo e de sua mulher como traficantes pelo simples fato de morarem na favela do lado da boca de fumo. No Brasil, o que está em jogo não é a violência policial, mas contra quem essa violência é exercida. Se o Estado não consegue transformar o pedreiro em traficante, o policial vai preso. Se consegue, ganha medalha”.

Após seis meses de buscas pelo corpo do pedreiro, a Justiça decretou a morte presumida de Amarildo. Em fevereiro deste ano, 12 dos 25 policiais militares denunciados pelo desaparecimento e morte de Amarildo, crime ocorrido em julho de 2013, foram condenados por tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual.

Depois do caso célebre, Zaccone saiu dos holofotes. Foi afastado da titularidade e transferido para uma delegacia de acervo de cartório, no qual trabalhava com inquéritos antigos, sem fazer atendimento ao público nem investigações.

Ainda que minoritário, é crescente o número de policiais adeptos ao discurso crítico com relação à segurança pública, que dialogam nacionalmente pela internet e se dedicam cada vez mais a formações acadêmicas.

Secretário-geral da Leap Brasil (Associação dos Agentes da Lei contra a Proibição), mestre em Ciências Penais e doutor em Ciência Política, Zaccone é um dos 2.288 membros da página de Facebook “Policiais Antifascismo”. “Na contramão do pensamento hegemônico de uma polícia a serviço do Estado brasileiro, policiais civis, militares e guardas municipais se reúnem para construir uma polícia mais próxima do povo”, diz o texto de apresentação do grupo.

A segurança militarizada, segundo Zaccone, é antidemocrática porque constrói a figura de um inimigo dentro do Estado e o despe de todos os direitos de cidadania. “Isso começa com o traficante, mas pode ser o black block, o manifestante do MST. Temos duas questões: uma é a existência de uma força policial militar, com um regimento militar e os trabalhadores que são construídos não como trabalhadores, mas como soldados. A atuação militarizada da segurança pública é outra questão. O fim da PM não resolve esse problema”, diz o delegado.

Para Zaccone, a discussão sobre um novo modelo de segurança pública precisa passar por uma guinada e começar a envolver policiais: “Tem que falar com praça, com escrivão. Se perguntar para oficial e delegado, eles vão dizer que está tudo ótimo. Esses modelos de segurança são pensados para garantir privilégios. Deixar com que policiais participem disso pode ser um problema. Um policial que se identifica como trabalhador pode não querer jogar bomba e cassetete contra professor, porque a luta é a mesma. Eles querem o policial como cão de guarda”.

É também o que defende o tenente Anderson Duarte, da Polícia Militar do Ceará, criador da página de Facebook “Policial Pensador”, com 3.813 membros. “Criei a página em 2014, quando percebi a falta de vozes dissonantes no debate da segurança pública. Ou se fazia um debate conservador, militarista, de reforço à guerra, ou, por outro lado, um debate ‘de esquerda’ que não se preocupava em ouvir policiais progressistas, que via na polícia algo apenas ruim e não buscava compreender o policial como um trabalhador”.

Polícia atuou repressivamente nos protestos de 2013. FOTO: Mídia Ninja

O antropólogo Luiz Eduardo Soares, estudioso de segurança pública há 20 anos e um dos autores da PEC 51, que propõe uma reforma na arquitetura institucional, diz que os policiais foram excluídos do debate por uma soma de fatores: repressão política, proibição de sindicalização de policiais militares e um discurso da categoria em sua maior parte exclusivamente corporativista, que não mobiliza o resto da sociedade por não discutir uma política mais ampla de segurança pública. “Esta reportagem não poderia ser escrita há dez anos. É algo absolutamente novo essa intelectualidade orgânica na polícia e nos dá muita esperança porque as mudanças só acontecerão se os policiais fizerem parte. Eles são os protagonistas”, diz Soares.

Na época estudante universitário de Geografia, Duarte entrou para a polícia “sem a menor noção” dos problemas da segurança pública brasileira – segundo ele, um modelo falido. A oportunidade de se aprofundar no assunto aconteceu especialmente em cursos de pós-graduação. Durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada a Renaesp (Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública), programa nacional de estudo gratuito para agentes de segurança pública.

“Os mais de 50 mil homicídios ao ano, junto à crescente taxa de encarceramento, demonstram como nosso sistema é falido. Nossos policiais são mal remunerados, desvalorizados, matam e morrem muito, inclusive há altas taxas de suicídio. A democracia ainda não chegou plenamente aos quartéis, como mostram as prisões disciplinares, que colocam os policiais militares em condições de cidadãos de segunda categoria. Isso só se explica numa situação de guerra, de exceção. A guerra que temos é a ‘guerra às drogas’, que subverte o trabalho da polícia, fazendo com que ela deixe o seu papel de mediação de conflitos, fundamental para qualquer democracia, e se dedique majoritariamente à apreensão de drogas, que não é um problema de polícia, mas de saúde pública e de economia, já que há uma demanda e uma oferta que precisam ser regulamentadas. Como resultado do abandono do Estado nesse campo, mortes e prisões dos mais pobres, sem qualquer diminuição da sensação de insegurança da população. É preciso desmilitarizar a política”, diz Duarte.

Dados do 10º Anuário de Segurança Pública mostram que nove pessoas são mortas por policiais por dia no Brasil e ao menos um policial é morto, em sua maioria em horário de folga. De 2014 a 2015, houve uma estabilização do número de mortes violentas no País, mas as decorrentes de ações policiais cresceram 6,3%, chegando a 3.345. O número de policiais mortos caiu 3,9%, para 393.

Apesar de seu ativismo, Duarte nunca foi preso administrativamente. Segundo ele, no entanto, há formas de punição veladas, como transferências não motivadas e a não promoção. Em 2015, Duarte foi selecionado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública para compor uma equipe de cinco policiais que trabalhariam no Pacto Nacional pela Redução de Homicídios. A Secretaria de Segurança Pública do Ceará, no entanto, não o liberou para ir.

Abusos cometidos pela polícia não são um desvio de função da corporação – pelo contrário. Desde sua origem, o sistema de segurança pública no Brasil existe para servir ao Estado e à elite, e não à sociedade como um todo. É o que diz Elisandro Lotin, cabo da Polícia Militar de Santa Catarina: “Nós temos um Estado altamente concentrador e idealizado a partir de uma lógica econômica excludente e elitista. A polícia tem por função manter o controle social de 95% da população, que está fora de qualquer discussão político-econômica, quando necessário, com a utilização da violência. A grande questão é que o policial não se dá conta de que faz parte desses 95% de excluídos”.

Em outubro, a Justiça de São Paulo havia determinado, com base em Ação Pública Civil movida pela Defensoria Pública, que o Estado pagasse R$ 8 milhões de indenização por danos morais coletivos em função da violência policial ocorrida nas manifestações de 2013, que a PM elaborasse um protocolo de uso da força em protestos no prazo de 30 dias e cada soldado que atuasse nesse tipo de evento portasse identificação visível com o nome e o posto na hierarquia. A sentença dizia também que armas menos letais, como balas de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, só poderiam ser usadas em “situação excepcionalíssima”, cabendo à PM, em caso do emprego do armamento, “informar ao público em geral que circunstâncias justificaram sua ação e qual o nome do policial militar que determinou a repressão”. Menos de um mês depois da decisão em primeira instância, o Tribunal de Justiça suspendeu, em 7 de novembro, a liminar que limitava a atuação da PM em manifestações.

A violência contra manifestantes se repetiu nos diversos protestos contra o governo de Michel Temer neste ano. No primeiro dia de Presidência definitiva do peemedebista, uma jovem perdeu a visão de um olho ao ser atingida por uma bala de borracha durante um ato em São Paulo. Profissionais da imprensa, ainda que identificados, também foram vítimas de agressões da polícia enquanto cobriam manifestações. Caso da repórter fotográfica Marlene Bergamo, da Folha de S.Paulo, que foi atingida por uma bala de borracha no dia 2 de novembro, durante a desocupação de um prédio na região central de São Paulo.

Lotin é presidente da Anaspra (Associação Nacional dos Praças), membro da diretoria da Aprasc (Associação dos Praças de Santa Catarina), do Conasp (Conselho Nacional de Segurança Pública) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foi também candidato a deputado estadual pelo PSOL em 2014.  Pelo Código Penal Militar e pelos regulamentos vigentes, ele não poderia sequer conceder esta entrevista: “Fui punido várias vezes, inclusive com prisão administrativa. Você consegue imaginar um médico que não possa falar de saúde? Pois é, os policiais da base não podem falar sobre segurança pública. Mas, cada vez mais, nosso pessoal questiona e se mobiliza contra isso”.

Em vários protestos, a bandeira sobre a desmilitarização é levantada. Foto: Mídia Ninja

A Anaspra defende a desmilitarização da polícia como forma de desvincular a corporação do Exército, inserir esses profissionais no âmbito dos direitos trabalhistas e humanizar as relações dentro dos quartéis. Para Lotin, defender os direitos dos policiais é o primeiro passo para combater a violência cometida pelo Estado brasileiro, uma das mais altas do mundo, e repensar um novo modelo de segurança pública: “Se o policial é aviltado em seus direitos mais básicos enquanto trabalhador e cidadão, ele vai respeitar os direitos dos outros?”.

Segundo o cabo, o número de denúncias de tortura e maus-tratos nos quartéis é crescente, o que não significa necessariamente aumento dos casos de abuso, mas das denúncias em si. Para ele, isso se deve principalmente ao uso das redes sociais. “Essa é a minha percepção. Não tem nenhum levantamento das denúncias, nem dos órgãos de segurança, que tentam esconder, nem dos órgãos de pesquisa, que não têm acesso a esses dados.”

Soares conta que a promotora Glaucia Santana, do Rio de Janeiro, apresentou um termo de ajuste de conduta ao Estado em dezembro de 2015, após receber denúncias anônimas de policiais de UPPs: “Originalmente, o relatório dela começava assim: ‘Eu encontrei os policiais trabalhando em condições análogas à da escravidão’. Fizemos reuniões com três coronéis da PM para apresentar esse documento. Os três disseram, de forma unânime, que isso acontece porque os policiais são militares. Se eles reclamarem, denunciarem, se recusarem a cumprir essas jornadas, eles são presos administrativamente e correm o risco de perder as suas carreiras. Eles não têm direito à manifestação, desobediência, sindicatos. Isso é muito útil para os governos, que podem exigir que eles trabalhem em turnos dobrados, submetidos a todo tipo de pressão. É evidente que a luta corporativa necessária e legítima se encontra naturalmente com uma luta política muito maior, que é a desmilitarização. Outra bandeira coincidente é pela carreira única, acabando com essa fronteira que faz com que praças nunca cheguem a oficiais, os não delegados jamais virem delegados”.

Treinamento

O índice de assédios moral e sexual de mulheres nos órgãos de segurança pública chega a quase 40%, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Tem imagens na internet, qualquer um pode ver, de policial em treinamento e comendo a mesma comida que um cachorro, na mesma gamela. Tortura psicológica, isso é regra. As ameaças. Tivemos casos de policiais fazendo flexão no asfalto quente às 15h, num sol de 40 graus. O filme Tropa de Elite mostra aquela cena dos caras comendo comida no chão. Aquilo acontece”, diz Lotin. Em 2013, um policial militar teve morte cerebral dias após passar mal durante um treinamento no qual fazia exercícios no chão quente.

A primeira dificuldade de mobilização acontece entre os próprios PMs, segundo Lotin: “Para começar, a Constituição nos proíbe de ter sindicato, temos uma associação. Primeiro você tem que vencer barreiras internas, nosso próprio pessoal tem dificuldade em aceitar que tem direitos pelos quais deve lutar. Quando ouve falar em manifestação, o cara fica com um ponto de interrogação: não sabe se é trabalhador, policial ou militar, se é cidadão, se não é. Ele é condicionado ao longo da sua vida para não pensar nisso”. Lotin diz que não existe um movimento organizado desses policiais, tampouco uma agenda de mobilização em comum. Segundo ele, foi algo que surgiu “espontaneamente” em diversos lugares do Brasil.

Em setembro deste ano, a Anaspra se reuniu com o secretário Nacional de Segurança Pública, Celso Perioli, e com o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para discutir as demandas da categoria, como o fim das prisões administrativas, a rearticulação de um grupo de discussão sobre assédio moral e sexual dentro dos quartéis e a questão previdenciária.
O projeto de lei 148, que extingue as prisões administrativas, foi aprovado na Câmara em agosto e agora tramita no Senado. “Essa prisão é discricionária, ou seja, depende de o comandante ir com a sua cara ou não. Não tem um regulamento claro e que esteja de acordo com os ditames da Constituição. Se eu me envolver em uma ocorrência e acabar tirando a vida de alguém, é bem provável que eu responda em liberdade. Mas se tiver sem chapéu, posso ir preso”, diz Lotin. A prisão administrativa segue um rito mais rápido do que a comum e é determinada por um comandante, via de regra por questões internas, como vestir uma bota suja, chegar atrasado ou dar uma declaração para a imprensa.

O sargento Luciano Galesco, da Polícia Militar de São Paulo, ficou preso administrativamente por dois dias após reclamar em sua página de Facebook do lanche oferecido no quartel. Segundo seu advogado, Raul Marcolino, o deputado estadual Coronel Telhada (PSDB-SP) alegou ter se sentido ofendido com a publicação e comunicou o fato ao comandante-geral da PM, que determinou a prisão.

Marcolino foi policial militar por 12 anos, período no qual se formou em Direito. Em 2014, pediu exoneração para ser advogado e defender policiais vítimas de abuso: “Presenciei casos e fui vítima de outros. Fui preso injustamente diversas vezes, processado administrativamente e sempre consegui me defender, por isso fui ser advogado. Sendo policial, não conseguia ajudar ninguém, agora posso ajudar policiais”.

Marcolino recorrentemente recebe ameaças veladas por causa de sua atuação profissional e diz que precisa andar de carro blindado. O advogado conta que seus clientes costumam sofrer repressões no quartel depois de serem defendidos por ele. Ainda assim, é cada vez maior o número de policiais que o procuram.

Lotin defende que o fortalecimento do movimento de policiais questionadores acompanhou a criação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que completa dez anos: “Essas pesquisas referendaram aquilo que a gente sabia empiricamente. Saber que 74% dos policiais militares entrevistados defendem a desmilitarização como forma de humanização da segurança pública nos dá um sentido maior e nos diz que temos que mudar o modelo”.

Ainda assim, as ideologias de direita e extrema-direita predominam dentro das instituições de segurança. Em um encontro de policiais trabalhando nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), conhecido por defender a pena de morte e ações violentas da polícia contra criminosos, foi ovacionado e recebido com flexões. “Bolsonaro é uma espécie de ícone entre os policiais, e é estranho isso porque ele nunca defendeu a categoria. Aliás, recentemente, votou a favor da PEC 241, que poderá congelar salários e até promoções. Acho que o pessoal está começando a acordar para a demagogia do mito”, diz Lotin.

Zaccone enxerga a atual crise econômica como oportunidade de conscientização: “Do ponto de vista político, é um momento maravilhoso porque os policiais estão vendo que todo o exercício do modelo que interessa ao poder político e jurídico não traz nenhum retorno para eles enquanto trabalhadores. Com a crise financeira dos estados, os policiais estão sem salário. Nesse momento cai a ficha de que são trabalhadores”.

Os tiros de março

enterro edson luis
Protesto na fachada do cinema, durante os funerais de Edson Luís, em março de 1968 – Foto: Reprodução

Cinemas do Rio de Janeiro anunciaram em letras garrafais filmes que não estavam em cartaz naquele momento: Coração de Luto, À Queima Roupa e A Noite dos Generais. Era uma forma de se unirem aos protestos que tomaram conta do Rio depois que o secundarista Edson Luís de Lima Souto foi morto com um tiro no peito, durante invasão da Polícia Militar ao restaurante popular Calabouço, no centro da cidade.

Nascido em uma família pobre de Belém do Pará, Edson Luís mudara-se para o Rio para estudar no Instituto Cooperativa de Ensino. Tinha 18 anos. Como outros 300 colegas com poucos recursos financeiros, fazia as refeições no Restaurante Central dos Estudantes, mais conhecido como Calabouço. Eles se preparavam para fazer uma passeata-relâmpago quando a polícia chegou atirando. Vários estudantes saíram feridos.

Atingido no peito, Edson Luís chegou a ser levado a um hospital a três quarteirões do Calabouço, mas já estava morto. Era final da tarde do dia 28 de março de 1968. Em vez de deixar o corpo com a necropsia, os estudantes o carregaram para velório na Assembleia Legislativa. No dia seguinte, pelo menos 50 mil pessoas acompanharam o caixão até o cemitério, realizando a primeira grande manifestação contra a ditadura.

O ano estava apenas começado, mas seria tão tumultuado e trágico que inspiraria a obra 1968 – O ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura. Na prática, 1968 fechou o tempo em 13 de dezembro, com o decreto do Ato Institucional Número 5, aquele que acabou com todas as garantias constitucionais. A partir daí, desmoronou a democracia de faz-de-conta encenada pela ditadura desde o golpe de março de 1964.

A morte de Edson Luís ficou impune. Cinquenta anos depois, o Palácio Pedro Ernesto, antiga sede da Assembleia Legislativa, abriga a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Cinquenta anos depois, de novo tiros transformaram o palácio em espaço para velar vítimas da violência, desta vez a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, executados no dia 14 de março. Sinal que a redemocratização deixou tanto a desejar que agora retrocede. Por isso mesmo, a morte de Marielle não pode ficar impune.

Em tempos de gravação por celular, vídeos de homenagens à Marielle estão correndo mundo. Não era assim no passado recente. O cineasta Eduardo Escorel filmou cenas do cortejo e enterro de Edson Luís em março de 1968 mas, com o recrudescimento da repressão, preferiu entregar o material à Cinemateca do Museu de Arte Moderna. A filmagem de 12 minutos só reapareceu em 2008, depois de passar 40 anos extraviada. Veja cenas:

Agenda: confira os destaques da semana 17 a 23/3

 

Sétima edição do programa Arte Atual apresenta mostra no Tomie Ohtake, Bruno Dunley lança seu primeiro livro, na galeria Nara Roesler em São Paulo e no Rio, e Nelson Leirner abre nova individual na carioca Silvia Cintra + Box 4. Na Bahia, Antônio Dias ganha exposição na Paulo Darzé Galeria. Confira a agenda completa abaixo:

 

Juliana Cerqueira Leite, ‘H1’ (detalhe), 2017

Arte Atual: Fratura, coletiva no Tomie Ohtake, até 6/5.

Nesta sétima edição do programa, que conta com o patrocínio da Recovery, a partir das
obras de Adriano Costa, Arjan Martins e Juliana Cerqueira Leite, os curadores propõem
questionar as urgências do tempo presente e seu apego à própria descartabilidade. “Em
uma época que resiste a planejar seu futuro ou a conhecer seu passado, talvez seja o
momento de questionar a fugacidade do que se propaga ao redor: e se nada – nenhum
produto, nenhum corpo, nenhuma história – for tratado como descartável? ”, analisa Paulo
Miyada.


Bruno Dunley, Sem Título, 2014

Bruno Dunley, lançamento de livro na galeria Nara Roesler, em São Paulo e no Rio, nos dias 20/3 e 22/3, respectivamente.

O livro apresenta pela primeira vez uma seleção de trabalhos emblemáticos no contexto da produção do artista com cerca de 100 obras dos últimos dez anos. Livro audacioso do ponto de vista editorial, composto por páginas duplas, o projeto gráfico surpreende pela criação de espaços escondidos que propõem novas relações espaciais para o expectador-leitor, que tem liberdade para estabelecer associações entre as imagens.


Nelson Leirner, Fita Métrica, 2017

Nelson Leirner: A Nova Revolução Industrial, individual na Silvia Cintra + Box 4, no Rio de Janeiro, abertura em 17/3.

Com curadoria de Lilia Schwarcz, a exposição apresentará ao público nove tapeçarias que foram produzidas manualmente, reproduzindo os projetos do artista, por um grupo de tecelões durante o último ano.

A “nova revolução” proposta por Leirner é na realidade uma volta no tempo, quando o mundo não estava dominado pelas máquinas da revolução industrial, e nem pela tecnologia que recentemente inundo nossas vidas, mudando inclusive a forma como nos relacionamos com o tempo.


Antônio Dias, ‘Sem Título’, 2016

Antônio Dias: Cruz Credo, individual na Paulo Darzé Galeria, em Salvador, até 20/4.

A mostra contém 16 trabalhos de Antonio Dias, artista que marca profundamente a arte brasileira desde os anos 60 com uma obra exemplar na utilização das mais variadas formas e materiais para criação de ideias estéticas, através de um estilo muito pessoal na depuração de uma poética plástico-visual, o que o tornou um dos mais importantes artistas na arte internacional hoje.


 

 

Tacita Dean, Descanso, 2013

Esse Obscuro Objeto do Desejo, coletiva na Carpintaria (RJ) e na Galeria (SP) da Fortes D’Aloia & Gabriel, abertura simultânea em 17/3.

Esse Obscuro Objeto do Desejo explora as interseções entre abstração, percepção, desejo e memória através do trabalho de oito artistas que compartilham um interesse na morfologia do desejo: Miroslaw Balka, Tacita Dean, Iran do Espírito Santo, Félix González-Torres, Douglas Gordon, Roni Horn, Rivane Neuenschwander, Wolfgang Tillmans.


Myriam Glatt, Série Lux, 2017.

Myriam Glatt: descartes, individual no Centro Cultural dos Correios de São Paulo, abertura em 22/3.

A exposição descartes é  primeira individual da artista Myriam Glatt na capital paulista. A mostra reúne um conjunto de trabalhos produzidos a partir de materiais recolhidos em entulhos – papelões, principalmente – que são apropriados pela artista e reutilizados como suporte das obras. A partir da pintura e da colagem, Myriam cria instalações visualmente potentes, concebidas especialmente para o espaço expositivo, que tocam em temas como ecologia, consumo, arquitetura e apropriação na arte contemporânea.


 

Jean-François Rauzier, Escadaria Selarón, 2014.

Jean-François Rauzier: Hiperfoto-Brasil, individual no Centro Cultural São Paulo, até 6/5.

Com curadoria de Marc Pottier e idealização de Bertrand Dussauge, o projeto chega à capital paulista depois de ter passado pelas cidades do Rio de Janeiro, Brasília e Salvador. A edição de São Paulo apresentará ao público cerca de 100 trabalhos, entre hiperfotos e hipervídeos – parte deles ainda inéditos, recriações de uma série de espaços da cidade. A mostra é parte de uma iniciativa que o artista desenvolve em diversas metrópoles do globo desde 2002, quando começou a desenvolver suas primeiras hiperfotos.


Gabriel Bonfim, ‘Maria da Pena e Luiza Brunet’

Gabriel Bonfim: M, individual no Palácio dos Correios de São Paulo, até 20/4.

A exposição dos trabalhos de Gabriel Bonfim acontecem em São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro. São fotografias em cores – 9 em São Paulo e 7 no Rio de Janeiro e em Curitiba – além de uma videoinstalação artística com 11 telas, na qual Gabriel Bonfim retrata cenas aparentemente comuns na vida de mulheres brasileiras. No registro da transexual na escadaria Selarón, no Rio de Janeiro, ou da Ialorixá na igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador, as imagens descortinam histórias que levam o espectador a perceber algumas das dificuldades enfrentadas por essas mulheres.

 

 

O pensamento humano disponível em uma biblioteca digital

Com tantas informações disponíveis na rede, um projeto da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, com o suporte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), tem como objetivo reunir e disponibilizar milhares de materiais de diferentes culturas. O acervo, nomeado Biblioteca Digital Mundial (WDL, na sigla em inglês), conta com mais de 19 mil obras que vão da literatura a fotos e filmes, passando por gravações e mapas.

Para facilitar a acessibilidade ao material, os conteúdos do site podem ser acessados em sete idiomas, além das descrições em áudio para pessoas com deficiência. Além dos idiomas oficiais das Nações Unidas, consta também o português, devido ao papel essencial da Biblioteca Nacional brasileira no desenvolvimento do projeto. A maior parte do material foi cedido por instituições educacionais e culturais, acervos, museus e organizações internacionais ao redor do mundo.

O patrocínio do projeto parte de contribuições de fundações e instituições financeiras que apoiam a promoção da difusão de trabalhos que fazem parte das histórias culturais da humanidade. São obras, manuscritos e referências que datam de 8.000 a.C.

Como funciona o projeto?

Com tantas produções de variados momentos da história, algumas tão frágeis que requerem manuseio especial que somente museólogos podem prover, digitalizar esses arquivos não é tão simples quanto colocá-los sobre um scanner.

A parceria entre a Biblioteca do Congresso estadunidense, a UNESCO e as instituições que cedem suas obras para o projeto também prevê a criação de centros de digitalização especializados.

Para garantir o sucesso da digitalização, sem danos as obras, a Biblioteca Digital Mundial promoveu investimentos em países em desenvolvimento para a criação de centros de digitalização. Entre os beneficiados estão Egito, Iraque, Uganda, Rússia (embora não seja considerado um país em desenvolvimento) e o Brasil. Além dos equipamentos, o programa ofereceu treinamento e softwares para a implementação do projeto.

A Biblioteca Digital Mundial desenvolveu também, com parceiros, três publicações com temáticas específicas, para difundir entre os usuários materiais de grande relevância para a história da humanidade: “As Bíblias”, “O Projeto Afeganistão” e “Os Primeiros” .

O medo de andar nas ruas

Foto reproduzida de capazes.pt/cronicas/nada-vai-mudar-se-nao-lutarmos-e-denunciarmos/

A sensação de medo também varia de acordo com o gênero. Pesquisa
recém-concluída constatou que 83% das mulheres têm medo de andar
sozinhas à noite. Entre os homens, o índice cai para 55%. “Todos os
indicadores mostram que a sensação de medo em andar na rua, ir para o
trabalho, sair para comprar pão, é muito maior entre as mulheres do que
entre os homens”, afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto
Locomotiva, que entrevistou três mil pessoas, em 35 cidades, nos dois
primeiros meses do ano.

A ideia de pesquisar o tema surgiu da hipótese de que a sensação de medo
era generalizada nas cidades brasileiras, associada à dúvida se essa vivência
dependia do gênero. Constatada a discrepância entre os gêneros, Meirelles
trabalha com a possibilidade de o pano de fundo desse temor estar no fato
de, em geral, a fonte do medo vir do sexo masculino: “Uma mulher não
atravessa a rua para não cruzar com outra mulher. Por outro lado, os
homens não têm medo de ser assediados. Não têm medo de ser violentados.
Eles não fazem ideia do que seja isso.”

Embora a ameaça de violência sexual não faça parte do universo
masculino, o tema permeia o cotidiano de todos. De acordo com a pesquisa,
28% dos brasileiros conhecem uma mulher que foi violentada. O índice
aumenta para 34% quando o universo pesquisado é apenas feminino.
“Existe uma proximidade com casos de estupro muito maior do que nós
imaginávamos”, afirma Meirelles.

Outro detalhe que chama a atenção na pesquisa é o fato de 96% das
brasileiras defenderem que é preciso ensinar os homens a respeitarem as
mulheres. Faltam, no entanto, políticas públicas nesse sentido. Por outro
lado, é cada vez mais intenso o debate sobre o tema organizações, redes sociais e manifestações. Assim como há um medo generalizado, há também
muito empenho para não sofrer violência calada.

A cantora americana Katy Perry homenageia Marielle Franco

Marielle Franco. Midia Ninja
Marielle denunciou, dias antes de morrer, violencia policial em Acari. FOTO: Mídia NINJA

Durante show no Rio de Janeiro, na Praça da Apoteose, no último domingo, Katy Perry fez questão de lembrar as mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes, executados no dia 14 de março. A cantora levou a irmã e a filha de Marielle ao palco e abriu espaço para que as duas se pronunciassem. Além de prestar solidariedade às famílias, dedicou uma de suas canções à vereadora.

Assista:

 

Executados

Eram cerca de 21h30 de uma quarta-feira (14 de março) quando Marielle Franco, vereadora do PSOl pelo Rio de Janeiro, passava de carro pela rua Joaquim Palhares, na região central da capital. O carro em que estava, acompanhada do motorista Anderson Pedro Gomes e de sua assessora, foi abordado por homens armados que dispararam nove tiros contra o veiculo. Marielle morreu na hora, atingida por pelo menos quatro disparos na cabeça. Anderson Pedro também morreu no local, atingido por três tiros nas costas.

A noticia pegou de surpresa eleitores da quinta vereadora com mais votos na ultima eleição. A “cria da Maré”, como se autointitula, Franco começou sua jornada de militância após a morte de uma amiga. Desde então, formou-se socióloga na PUC do Rio de Janeiro e tornou-se mestre em administração publica pela UFF, a Universidade Federal Fluminense. Jovem, com 38 anos, já havia coordenado a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Para além da surpresa, houve também quem sugerisse a possibilidade da ligação do crime com a intervenção militar na Segurança Pública estadual, uma vez que Marielle foi nomeada relatora da comissão que acompanharia a intervenção sob a ótica da conservação dos Direitos Humanos. Outra possibilidade levantada por militantes nas redes sociais é a de retaliação contra a vereadora por ter denunciado casos de violência policial em Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, no último dia 10 de março.

A vereadora, que recebeu 46.502 votos na eleição de 2016, voltava de um evento de empoderamento de mulheres negras quando foi emboscada. Ela deixa para trás uma filha de 19 anos e um espirito de luta por democracia e comoção que deve levar pessoas às ruas das grandes capitais nesta quinta-feira.

Pelo menos dez capitais brasileiras têm manifestações de homenagem e por justiça marcadas para este 15 de março. Entre as cidades que recebem atos de repudio contra a violência que tirou a vida do motorista e da vereadora do PSOL, estão São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Brasília, Natal e Porto Alegre.

Marielle não é a primeira mulher e, certamente, não é a primeira mulher negra a ser vitima de feminicido no Brasil. De acordo com levantamento da Agência Lupa, com base nas informações do Atlas da Violência do IPEA, uma mulher é assassinada a cada duas horas no país e em 65,3% dos casos a vitima é uma mulher negra.

A cada 2 horas uma mulher é assassinada no Brasil, 65,3% são negras

Os corpos de Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Pedro Gomes, que cobria um colega que estava de licença, foram velados na ALERJ, Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no começo da tarde.

Colegas de partido e militância de Marielle deixaram recados sobre a vereadora. Jean Wyllys, deputado federal pelo PSOL-RJ, disse em discurso durante sessão solene na Camara dos Deputados, que “as ideias de Marielle Franco são a prova de bala!”. O deputado solicitou à Casa a criação de uma comissão para que se possa acompanhar a investigação do assassinato da vereadora e de Anderson Gomes.

Entrevistado logo que chegou ao local do crime na noite da ultima quarta-feira (14), Marcelo Freixo, deputado estadual também pelo PSOL-RJ, emocionou-se ao comentar os anos de trabalho ao lado de Marielle Franco na coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Hoje, em sua conta no Twitter, Freixo desabafou, “Mari era uma amiga, companheira com quem dividíamos o cotidiano, nossas vidas, esperanças, angústias, sonhos”.

De Canudos ao MST

Walnice Nogueira Galvão é uma intelectual como poucos. Seu entusiasmo é contagiante, assim como sua verve crítica, que não poupa ninguém “abaixo” de Proust e Homero, e o humor espirituoso. Discorre com imensa erudição sobre assuntos os mais diversos, de marchinhas de carnaval a reforma agrária – é colaboradora das escolas do MST, para as quais prepara livros de estudos literários. Mas é mesmo na obra de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha que se debruça constantemente, sem perder o interesse, desde sua tese de doutorado na USP, As formas do falso – um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas, de 1970, e a de livre-docência, No calor da hora – a guerra de Canudos nos jornais, em 1972.

Publicaria vários livros sobre os dois autores, em meio a outros de crítica literária ou de pesquisa cultural. Entre eles, a reunião das reportagens feitas por Euclides em Canudos e também um volume com sua correspondência. E agora preparou a edição crítica do novo lançamento de Os Sertões (trabalho este que ela ensina chamar-se “ecdótica”, expressão da Grécia antiga). Na conversa a seguir, ela conta que ficou oito anos reunindo as milhares de correções feitas por Euclides, fala dos conflitos vividos pelo autor diante da tragédia em Canudos e afirma que, se estivesse vivo hoje, o vingador dos jagunços chacinados seria “líder do MST”.

CULTURA!Brasileiros – Reunir e comentar todas as correções feitas por Euclides nas primeiras edições de Os Sertões deve ter dado um trabalho des­­comunal. Como foi isso?
Walnice Nogueira Galvão – Olha, eu não tenho nada de monge medieval (risos), mas eles preparavam edições com anotações e variantes nos mosteiros; passavam a vida inteira fazendo isso. Um por um, à mão! Me agrada muito a ideia de pensar que o que eu fiz com esse livro se localiza nessa linhagem. Fiquei oito anos fazendo esse trabalho.

Que tipo de correções ele fazia?
Ao todo, em vida, ele faz dez mil correções. É um louco, né (risos)? São, sobretudo, correções miúdas. Ele não muda nenhum capítulo, nenhum parágrafo inteiro. Você percebe que ele não está nem um pouco interessado em corrigir informação (embora ele soubesse, depois, que havia ali uma ou outra informação errada); ele está corrigindo estilo. É um artista, não um historiador. Vou te dar um exemplo que parece maluquice: ele percebeu a certa altura que usava excessivamente o particípio passado, o que deixa o texto com muitas palavras terminando em “ado”. Então ficou obsessivamente transformando, rabiscando, cortando os finais em “ado”. Sabe por quê? Porque dava um defeito de estilo chamado eco, que a gente evita até quando fala. Você não diz: eu estou com a mão no coração para fazer uma declaração. É horrível. Outra correção que ele faz muito é de pontuação. Ele cortou umas mil vírgulas, mais ou menos. Implicou também com a palavra “estrada”, pois não tinha estrada nos sertões. Então a maioria das vezes que aparece “estrada” ele troca por um sinônimo: vereda, trilha, picada, caminho. Isso dá uma percepção dos mecanismos do processo criador do Euclides.

Muita gente prefere pular a primeira e segunda partes e ir direto para A Luta, que conta da guerra. O que você acha disso?
A Luta é muito bom, mas a primeira parte, A Terra, é a de que mais gosto, acho de uma beleza extraordinária. Aquilo é uma maravilha! É como se a natureza que ele descreve estivesse dentro dele. Ela não é nem descrita, é vivida com paixão! Ele é um artista visionário.

Como você vê a posição de Os Sertões na literatura nacional?
É estranhíssima, porque é um dos livros mais renegados que já vi e, no entanto, um dos mais influentes. Os modernistas odiavam o Euclides da Cunha. Ele era tudo aquilo contra o que eles pregavam. Essa retórica altissonante, essa demagogia, esses efeitos de estilo, essa escrita caudalosa. Eles queriam o coloquial, o simples, o direto; queriam rebaixar o discurso. No entanto, o que o Euclides fez nos Sertões vai servir ao chamado romance regionalista de 30: um mapeamento dos principais temas da literatura e do pensamento social brasileiro. Ele foi levantar lebres da miséria, do sertão, do jagunço, do cangaceiro, do sertanejo, do coronel, da reforma agrária, do latifúndio, da religiosidade popular, do fanatismo religioso, do subdesenvolvimento, do colonialismo, dos retirantes, da seca. Aí nos anos 1940, o que acontece? Nascem as ciências sociais brasileiras. Que estão até hoje lidando com esses mesmos temas. O Euclides da Cunha vira um precursor da sociologia, da antropologia, da ciência política, das ciências sociais em geral.

E a questão do racismo, tão apontada no livro?
Ah, sim, aí ele se atrapalha, tropeça e cai. Toda vez que ele enfrenta esse tema de frente, envereda por umas teorias estranhíssimas que estudou na Escola Militar, provavelmente a mais avançada em sua época no Brasil, em que predomina o determinismo, o cientificismo e o positivismo. Ele se arma dessa ciência europeia e não percebe que aquilo é uma taxonomia dos recursos do mundo inteiro para que os países imperialistas possam pilhar. E isso inclui as teorias sobre as raças inferiores, que só existe para justificar que o branco europeu pudesse dominar as riquezas das colônias e escravizar seus habitantes. Isso atrapalha o Euclides. Só que quando ele descreve aquilo que viveu na guerra de Canudos, essas teorias não servem. Não tem nenhuma teoria, dessas todas da ciência europeia, que explique para ele onde é que reside a bravura, a coragem e a dignidade que levam aquelas pessoas até a morte para não se entregarem. Não tem! Isso virou o mundo dele de cabeça para baixo, completamente.

O que você acredita que ele estaria fazendo hoje?
Estaria liderando o MST. Gostou (risos)? Que é a consequência lógica do que ele escreveu. O MST gosta muito dele. Eles têm um assentamento chamado Antonio Conselheiro e outro, em Mato Grosso, chamado Euclides da Cunha. Legal, né?

E o que você achou de A Guerra do Fim do Mundo, do Vargas Llosa, inspirado nos Sertões?
Eu tenho horror (risos)! Os Sertões expressa a consciência dilacerada do Euclides diante daquilo que ele viu. Aquele cara que tinha estudado a mais nova ciência europeia em todos os campos, chega lá e descobre que ela não serve para nada. Então ele se alinha, emocionalmente, ao adversário. Ele fica do lado dos jagunços, torce por eles. E fica horrorizado com o comportamento do exército dele. É um processo para ele extremamente doloroso, cheio de contradições, que ele não consegue resolver até o fim. Por isso que o livro é trágico do jeito que é. E o Vargas Llosa o que faz? Transforma o livro num best-seller. Ou seja, facilita tudo. Retira o conflito, retira as contradições, retira as antíteses, retira figuras de linguagem como o Hércules-Quasímodo e a Troia de Taipa. Fica tudo simples, fácil e bem explicado para o Vargas Llosa. Ele acabou com o livro. Ele devia ter uma tal inveja do Euclides da Cunha que faz uma coisa pior: cria um jornalista míope, que está fazendo a reportagem da guerra e que depois perde os óculos. É um insulto. Retratar o Euclides como um cara que não enxerga? Eu acho isso de uma baixeza que você não imagina.

E o que acha de outras obras que também partiram de Os Sertões?
A melhor de todas é Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber Rocha, que era outro gênio. Ele mistura Euclides da Cunha com Guimarães Rosa e o José Lins do Rego de Cangaceiros e Pedra Bonita. Transfere, em ficção, a dualidade entre a violência do cangaço e o fanatismo. Não botou o Antonio Conselheiro no filme. Mas vai nas profundezas do livro e pega o fundamento.

“Talvez a política mais honesta da América Latina foi impedida pelos políticos mais corruptos da América Latina”, diz Boaventura

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos recebeu a reportagem para um chá em São Paulo. Foto: Maria Carolina Trevisan

*Por Maria Carolina Trevisan e Gustavo Aranda, dos Jornalistas Livres

Referência mundial no campo da ciência social, o premiado pensador Boaventura de Sousa Santos esteve no Brasil para lançar seu novo livro A difícil democracia (Boitempo Editorial). Em uma análise primorosa da situação política atual, Boaventura discute o que chama de “democracia de baixa intensidade”, reflete sobre as causas das crises que envolvem países da América Latina, Europa e África e, principalmente, alerta para a urgente necessidade de ‘reinventar as esquerdas’, subtítulo da obra. O sociólogo chama a atenção para as consequências políticas, econômicas e sociais depois de períodos em que o poder esteve com as esquerdas. Alerta para a ameaça fascista aberta sob a bandeira do combate à corrupção, que se impõe como proteção à democracia.

“A frustração pode plasmar-se numa opção política pelo fascismo, sobretudo se a frustração for vivida muito intensamente, se for acirrada pela mídia reacionária, se houver à mão bodes expiatórios, estrangeiros ou estratos sociais historicamente vítimas de racismo e sexismo”, escreve. Para ele, o crescimento de movimentos fascistas “é funcional aos governos de direita reacionária na medida em que lhe permite legitimar mais autoritarismo e mais cortes nos direitos sociais e econômicos, mais criminalização no protesto social em nome da defesa da democracia.”

Autor reconhecido e premiado no mundo todo, Boaventura escreve sobre sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, além de fazer trabalho de campo em Portugal, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde, na Bolívia e no Equador. Entre seus livros mais importantes estão Um discurso sobre as ciências (1988), Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1994), Reinventar a democracia (1998), Democracia e participação: o caso do orçamento participativode Porto Alegre (2002), Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (2013), A cor do tempo quando foge: uma história do presente – crônicas 1986-2013 (2014), O direito dos oprimidos (2014) e A justiça popular em Cabo Verde (2015).

Boaventura recebeu a reportagem para uma conversa sobre Brasil, colonialismo, esquerdas e democracia. “O capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e atua com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. Não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado. Tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. Nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós coloniais.”

Sobre o Brasil, Boaventura afirma: “O País estará em um impasse durante um tempo. O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política. Os partidos de esquerda, em nenhuma condição, se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. Se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Não podemos governar na base de conciliação com grupos de direita que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB e com o PSDB, não sejamos ingênuos.”

Ele diz que a saída pode estar em um novo partido de esquerda, que esteja baseado mais nos movimentos sociais e menos nos interesses partidários. “O presidente Lula é um fator muito importante. Se ele voltar à presidência, não vai poder governar como governou. Se ele não voltar a ser presidente, o mito estará intacto. A aceitação que ele continua a ter é absolutamente notável e todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo. Lula foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro. Mas é preciso que digamos publicamente que temos consciência para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.”

Leia, a seguir, a conversa completa com o sociólogo e professor português: 

Brasileiros – Em seu livro mais recente, “A difícil democracia”, tem a seguinte afirmação: “vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas”. O que o senhor quis dizer?

Boaventura de Sousa Santos – É uma frase que procura mostrar que as democracias realmente existentes são parcialmente falsas, são truncadas. Não têm nada a ver com o ideal democrático de soberania popular e de livre ação dos cidadãos, que se sentem espiados nos seus representantes e, portanto, entre representados e representantes a distância será mínima. Pelo contrário, as distâncias hoje são máximas em muitas sociedades ditas democráticas.

Por outro lado, a democracia é um ideal de livre ação e de soberania, que não tem que estar confinado ao sistema político. Acontece que a democracia liberal foi sempre desenhada para poder aplicar exclusivamente ao sistema político, e portanto não poder estender-se à família, às relações sociais, às empresas, às ruas, às comunidades, ao espaço público, às universidades, etc.

“A democracia é de fato uma ilha democrática no arquipélago do despotismo.Despotismos na família, na escola, na fábrica, na empresa, na rua, tanta violência, tanta forma de brutalidade no sistema mundial.”

Exatamente quando a democracia não atua, precisamente porque grande parte das relações sociais estão fora do controle democrático e são geridas por vontades até democráticas e mais frágeis nessas áreas sociais (seja na família, na empresa, na rua), são sujeitas a uma situação em que suas aspirações de vida estão reféns de um direito de veto do mais poderoso. Os grupos sociais que estão sujeitos a um direito de veto dos mais poderosos, como o jovem negro que vai na rua e é abordado pela polícia, pede-lhe uma identificação sem qualquer motivo, apenas pela sua cor de pele. Ele está a ser sujeito a uma forma de fascismo social. Por que é fascismo social? Não é fascismo político porque esse foi um sistema político que se opôs à democracia. Este convive com a democracia em todas as áreas onde a convivência das relações sociais não são democráticas. Infelizmente, grande parte das nossas sociedades e grande parte da nossa população, não vive relações sociais democráticas em que há um equilíbrio de poder. Vive por vezes em situações de poder despótico, ou seja, vivem situações de fascismo social. Essa coexistência é que está presente.

Então nos países em que há maior desigualdade a democracia é mais frágil e mais sujeita ao fascismo social?

Muito mais frágil. E pode ser um instrumento para aumentar essa fragilidade. Por que o neoliberalismo vem, desde os anos 1980, a tentar destruir os direitos sociais dos trabalhadores, tem vindo a tentar destruir o poder que o Estado tinha na distribuição social? Ao mesmo tempo se mostra muito adepto da democracia e a democracia hoje é de fato, numa das suas versões, característica do nosso tempo, a democracia é um instrumento de imperialismo. Destrói a Líbia para impor a democracia, destroi-se o Iraque para impor a democracia, destroi-se a Síria para impor a democracia, destroi-se o Afeganistão para impor a democracia.

“A democracia que eu chamo de ‘baixa intensidade’ transformou-se num instrumento do imperialismo. Não é essa a democracia pela qual lutamos e isso é exatamente a característica do nosso tempo: são diferentes conceitos de democracia que dividem os campos democráticos, digamos assim. Nós precisamos saber de que lado estamos.”

O campo democrático o qual me identifico, que é uma luta da radicalização da democracia, da ampliação do campo democrático, a ‘democracia de alta intensidade’ é que efetivamente luta contra as formas de fascismo social na nossa sociedade, portanto procura ampliar o campo de livre ação democrática, para que o arquipélago do despotismo seja mais pequeno, gradualmente mais pequeno, e idealmente não exista.

Trazendo para a nossa realidade no Brasil, fica cada vez mais evidente que quem manda na nossa democracia é o capital. Como o senhor vê essa situação?

É evidente que o capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. O capitalismo não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado, ele tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou.

“É um dos pontos do meu trabalho hoje: ao contrário do que a gente pensa, nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós-coloniais. O colonialismo não tem que ser apenas ocupação territorial estrangeira, como aconteceu historicamente. Pode assumir outras formas: colonialismo interno na forma de xenofobia, de racismo, de islãmofobia. O capitalismo no século XVI não tem nada a ver com o capitalismo do século XXI.”

Mas a gente continua a falar do capitalismo do século XVI e no capitalismo do século XXI. Eu faço o mesmo com o colonialismo: o histórico, de ocupação territorial, era uma forma. Temos que analisar as outras formas de colonialismo, porque há muita gente que vive na nossa sociedade sob o domínio das revoluções coloniais, a casa grande e a senzala. E portanto, isso em sociedades sobretudo que foram colonizadas historicamente, continua sob outras formas.

Aliás, nos anos 1960, sociólogos importantes deste País, como Dom Pablo Gonzáles Casanova, teorizaram a ideia do “colonialismo interno”. Criou-se as elites com a ideia do mito da democracia racial, através do olhar de intelectuais, alguns deles bastante importantes, como Gilberto Freire. Permitiu, durante muito tempo, a ideia do mito da democracia racial. Foi preciso chegar ao século XXI para o Brasil, muitas décadas depois da intendência, chegar à conclusão de que realmente é uma sociedade racista e que por isso era preciso haver cotas, por exemplo, para inclusão dos jovens na sociedade, porque não é nem toda a desigualdade no Brasil se justificava apenas pelas diferenças de classe, que obviamente são muito fortes. Houve aqui uma articulação entre raça e classe, e gênero, obviamente, porque as mulheres também compõem um grupo muito substancial dos mais pobres deste País.

É essa a constelação de dominações que domina as nossas sociedades. O que acontece é que essas dominações atuam em conjunto, os movimentos que lutam contra elas estão separados: as feministas podem lutar apenas contra o patriarcado, mas descuidam da luta anti-colonial, anti-capitalista; os movimentos quilombolas podem lutar contra o colonialismo na sociedade, mas descuidam da luta anti-capitalismo e anti-patriarcal, os próprios indígenas a mesma coisa.

“Os movimentos estão divididos e a dominação está unida. É essa situação que nós temos. Nós precisamos unir os movimentos. Quando o capitalismo se reforça, reforça-se também o colonialismo e o patriarcado.”

Por exemplo, ao olhar para o governo da presidente Dilma, tinha mulheres e tinha negros. No momento em que houve o golpe para forçar o capitalismo de origem neoliberal, desaparecem as mulheres e desaparecem os negros nos ministérios. E houve aquela coisa caricata do presidente dizendo que não tinha encontrado mulheres para os ministérios. Aquela coisa absurdamente caricata num País onde a maioria são mulheres.

Como foi possível que o processo de impeachment acontecesse daquela forma, tão desrespeitosa com a primeira mulher presidente do Brasil, eleita com 54,5 milhões de votos?
É difícil dizer porque é especulativo. Mas ela foi vítima de discriminação, sem dúvida nenhuma. Isso mostra também que os partidos progressistas e o movimento popular andaram 13 anos distraídos porque pensavam que a sociedade tinha sido profundamente transformada. As forças de esquerda tomaram o governo, mas não tomaram o poder social. E nem sequer cuidaram de democratizar a sociedade. No futuro, não haverá democratização do Estado se não houver democratização da sociedade, o que é uma tarefa muito mais ampla. Portanto, todas essas conquistas parece que se desfazem no ar, de um dia para o outro, e se viu que era tudo um certo verniz. Passado esse verniz, as empregadas domésticas tinham que ser servis, como tinham antes, estavam tendo demasiados direitos, já não dependiam tanto da filantropia.

“A classe no Brasil é sempre racista e é sempre patriarcal. Isso nos trouxe uma grande virulência e está se mostrando uma grande virulência neste momento.”

As esquerdas foram surpreendidas com essa fraqueza da democracia? Houve um descuido? Como se pode reorganizar as esquerdas? 

O que é a esquerda? Temos a esquerda organizada em uma pluralidade de partidos e temos a esquerda que são os movimentos sociais que lutam contra a opressão e as diferentes formas de dominação, e que estiveram ou não ligados a partidos, muitos deles em uma estrutura apartidária, digamos assim. É evidente que os partidos populares e os governos, como na Bolívia, no Equador, na Venezuela e aqui no Brasil, que saem da emergência de forte mobilização popular, criam uma ilusão nos movimentos sociais de que seus amigos tinham chegado ao poder. E, portanto, descansaram. Quando exatamente deveria ter sido o contrário porque no momento em que os amigos chegavam ao poder, sabiam que esses amigos iam ser sujeitos a múltiplas pressões para se distanciarem dos seus amigos, e portanto governar o País contra eles. Mesmo não crendo, era preciso continuar a haver uma pressão de baixo.

Isso é uma coisa que nós lutamos em todos os países. Os movimentos sociais do Equador e da Bolívia lutaram muito por uma Constituição e quando foi promulgada, descansaram. O primeiro dia de luta era esse: lutar para que a Constituição fosse cumprida. Não. Descansaram. No Brasil, os movimentos sociais de alguma maneira descansaram. Talvez o único que não descansou e continuou com uma atividade de intervenção foi o MST, um dos maiores movimentos sociais da América Latina e quiçá do mundo, e portanto continuou com um certo ativismo.

Muitos outros pensaram que, tendo amigos no Planalto, podiam descansar. Finalmente nós íamos ter uma sociedade um pouco mais inclusiva. Isso descuidou a retaguarda dos movimentos. No que diz respeito aos partidos, o partido protagônico, PT, é sempre a mesma ideia de tomar o governo ou tomar o poder.

“Realmente houve a ilusão de que num sistema político que não foi reformado se poderia governar à moda antiga para outros objetivos. Com as mesmas alianças, as mesmas formas, com a mesma ideologia que vem da segunda República, que é um pacto entre as elites, onde as classes populares não deveriam entrar para perturbar o jogo.”

Mas na verdade, como as sociedades não podem ser planeadas como uma linha de montagem, houve aqui uma perturbação e em 2003, um operário consegue chegar à Presidência da República. A partir daí, cria-se uma primeira fissura na própria hegemonia das classes dominantes: alguém que não pertence às elites, o primeiro movimento é tentar absorver. O que foi de certa maneira fácil, na medida em que, como eu digo, basta ver a “Carta aos brasileiro” do presidente Lula, dizendo que não iria alterar os compromissos internacionais, financeiros do País, um modelo de desenvolvimento que não era sustentável a longo prazo, era uma modelo de continuidade do colonialismo, que era o extrativismo e a extração de recursos naturais, tornado possível devido ao impulso de desenvolvimento da China, num contexto de altos preços das commodities. Era uma situação em que todos ganham. É mais fácil governar numa situação desse tipo.

A partir daí, os bancos nunca tiveram tantos lucros. O Brasil transformou mais de 50 milhões de pessoas através do Bolsa Família e das políticas de inclusão. Não se pode trivializar a ideia de que tantos milhões que não comem uma vez por dia passaram a comer 3 vezes por dia que isso não é uma revolução. Obviamente que é uma revolução, mas que foi feita com o mesmo modelo de desenvolvimento e com o mesmo sistema político que favorecia as elites e as classes dominantes.

No momento em que a solução do ganha-ganha entra em crise, o modelo entra em colapso, praticamente. Entra em colapso também por conta de situações internacionais, por exemplo o preço do petróleo, que de uma semana para outra passou a metade. Não foram os mercados, foi uma intenção do imperialismo norteamericano, no meu entender, que queria neutralizar a Rússia, que tem muito petróleo, neutralizar o Irã, que com o fim do embargo ia entrar no mercado internacional do petróleo e era preciso fazer baixar o preço, e a Venezuela. Era preciso neutralizar o Brasil, que estava tendo algum protagonismo internacional como um dos países emergentes. O erro foi um pouco esse: terminou a hegemonia da própria classe dominante. Ou seja, ela vai aguentar a sua hegemonia até a produção do golpe? O golpe é o ponto final da hegemonia da classe dominante? A partir desse momento ela esbroa-se. Exatamente o que estamos a ver.

Diante do quadro de combate à corrupção e do desgaste dos partidos políticos o Poder Judiciário ganhou força. Qual a sua opinião sobre esse quadro?

Como a corrupção é sistêmica, a hegemonia que permitiu a segunda República caiu completamente e as classes dominantes estão a comer-se umas às outras, com escândalos diários de escutas em que os periódicos que criaram o golpe e que promoveram o golpe estão neste momento a atacar os golpistas, digamos assim, como se realmente agora se repusesse a democracia pondo apenas os golpistas à vista. Nós já tínhamos visto que eram golpistas, não é? É uma crise de hegemonia na sociedade brasileira, que não pode, neste momento, ter nenhuma solução muito criativa. A solução criativa numa situação em que, por um lado, a classe dominante perdeu a hegemonia, nitidamente, está sem ter um norte para onde ir, metem-se na prisão uns aos outros, digamos assim, por outro lado, as classes populares não têm ainda uma capacidade organizada de resposta, foram apanhadas de surpresa, houve um grande choque, as medidas que estão aí em preparação não chegaram ainda ao bolso das pessoas, leva tempo para que esse empobrecimento, o sucateamento da educação, da saúde, atinjam a sociedade, leva um tempo até filtrar, até a base.

Houve um impasse entre uma classe dominante que tem uma crise de hegemonia muito forte, e as classes dominadas, as classes populares, que ainda não conseguiram se organizar como uma resposta.

“Temos aqui uma dualidade de impotências: a da classe dominante e a das classes populares. Dos três órgãos de soberania, todos eles um pouco deslegitimados, o único que não foi eleito – o Judiciário – assume uma posição de gerir esse impasse durante algum tempo. É natural. E pode geri-lo de várias formas: mantendo-se no campo do Judiciário, ou algum de seus membros passa a se firmar como líder político. Isso vai criar uma perturbação enorme nos movimentos populares e pelas Diretas Já.”

 

Está se construindo a ideia de que as reformas trabalhista e previdenciária são a única saída para salvar o País. Que consequências essa política neoliberal pode nos trazer?
As medidas que estão aqui sendo impostas são as medidas que foram impostas aos portugueses em 2011. É exatamente a mesma coisa: crise da previdência, das leis trabalhistas, privatizar a saúde e privatizar a educação. A receita neoliberal é global, com nuances de país para país. Na Europa, temos vindo a vivê-la, a própria Grécia, também sob alguma forma violenta, e Portugal em 2011, conseguiu livrar-se. O que mostra o seguinte: essa receita neoliberal é global, apresenta-se com uma total rigidez, isto é, ou se fazem essas reformas ou não há investimento externo, ou não há competitividade, ou o fim da recessão, e portanto o país não tem como avançar, tem mesmo que fazer essas reformas.

Podemos dizer que, se calhar, o fato de Temer ter caído em desgraça na Globo é parte da convicção de que ele não tem poder suficiente para levar a cabo as reformas. E provavelmente em um sistema de eleições indiretas ou de qualquer outra forma, alguém pode ter legitimidade suficiente – se for alguém do Judiciário provavelmente ainda mais legitimidade, porque não traz a mácula da corrupção, e isso vai ser muito importante: não é o movimento popular a lutar contra a corrupção, porque quem é candidato é quem lutou contra a corrupção. Isso altera completam tente o cenário. Mas o objetivo é aplicar essas medidas, obviamente.

E isso é que nós temos que ver que é uma grande farsa do neoliberalismo. Já está demonstrado que não é assim. Há um grande poder de convicção, por ter o oligopólio da mídia, que mostra e entra nessa forma de alienação das classes populares e quer convencer as classes populares que vivem acima de suas posses, que realmente a sua pensão, mesmo magra, está em perigo se não for privatizada, e é melhor que a gente liberalize o mercado de trabalho e precarize porque vamos aumentar empregos. É um pouco essa a lógica que está aí.

O que acontece é vermos que quando isso resiste, com êxito, mostra-se efetivamente que é uma farsa. O melhor exemplo é o caso português: entre 2011 e 2015 tivemos um governo reacionário, que aplicou essas medidas. Em final de 2015 há eleições, e os portugueses como sempre, desde 1974, votam à esquerda, mas quem governa é a direita. Porque a direita está unida e a esquerda está desunida.

Pela primeira vez em 40 anos, os três grandes partidos de esquerda decidem articular-se, não para se fundirem, de maneira nenhuma, mas com um acordo de governo que ponha travão à precarização das leis trabalhistas e à privatização da previdência, entre outras austeridades. Foi possível criar uma alternativa através de uma coisa muito corajosa, que é o Estado “geringonça” – palavra depreciativa criada pela direita e que está a funcionar.

Funciona há pelo menos 4 anos, os alemães já tem uma palavra correspondente a geringonça e os ingleses também. Ou seja, nós transformamos um nome negativo contra a esquerda em um nome positivo, e temos muito orgulho nessa geringonça. É um pacto de governo mas que teve este efeito. É que fizemos exatamente o oposto ao que diz a receita neoliberal. E os resultados que estamos a ter é exatamente o oposto ao que eles diziam: o país nunca teve tão pouco desemprego, estamos em 9%; é um dos países que mais cresce na Europa, estando acima dos 10%; o déficit público está a diminuir; a dívida pública se mantém porque é impossível diminuir de um ano para o outro, e o país está exatamente fazendo o contrário do que diz a receita neoliberal, e está a erguer-se de novo.

Ou seja, o neoliberalismo é uma farsa. O capitalismo só é rígido enquanto não tiver que se confrontar com uma alternativa. É mais fácil, para garantir a acumulação deles, produzir o empobrecimento das classes populares, precarização das leis trabalhistas, privatização da previdência – porque é um bolo de dinheiro enorme – que anda no sistema financeiro que é quem domina este País, obviamente. Eles querem essas vantagens, não os critique por isso. Nós temos a criticar é promover forças suficientes para resistir contra isso. No momento em que eles tem que se confrontar com uma alternativa política, adapta-se. Diziam que não haveria investimento direto em Portugal, está a aumentar o investimento direto, e é por isso que Portugal está a crescer.

O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui no Brasil exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política eventualmente como a reforma política, porque esta, como vê, só é possível numa condição, que é a grande reforma política. Por isso, o Brasil estará em impasse durante um tempo.

“Os partidos de esquerda, em nenhuma condição se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. E portanto se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Ir governar na base de conciliação com grupos de direita, com partidos de direita, que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB, com o PSDB, não sejamos ingênuos, podemos cometer o erro uma vez. Mas não vamos cometer o mesmo erro muitas vezes porque senão um político daqui disse que a esquerda é burra. É burra se continuar a cometer os mesmos erros.”

Alguns políticos costumam classificar o Partido dos Trabalhadores, e seus líderes, como “inimigos”. O que significa essa construção?
É realmente a perda da face dessa democracia fársica. Porque na democracia não há inimigos, há adversários. É a grande distinção. O inimigo é aquele que se quer destruir, o adversário é aquele com quem se tem que articular na oposição e tentar ganhar ou perder, mas tem uma posição contrária e que democraticamente pode ser elaborada, para ganhar ou perder. O inimigo é para destruir. A lógica do amigo-inimigo, do nazismo alemão, a ideia é que nos dividimos entre duas águas. Aliás todo o conservadorismo, o projeto que está em curso neste momento não é o liberalismo. É a que já não tolera a democracia, mesmo de baixa intensidade, passa a se tornar mais “fascizante”, digamos assim, por exemplo, começa a não ter confiança nem sequer na classe política, e quer que sejam os seus a governar – é o caso do Macri, do Trump, do Macron – são os homens de negócios que se transformam em políticos.

Eles vão perdendo a confiança porque no jogo democrático são muito impacientes. A direita aqui no Brasil, dada que a alteração no preço dos commodities estava a levar a uma crise no sistema, no seu segundo mandato, a presidente Dilma teve que tomar medidas anti-populares, e ter um ministro [Joaquim Levy] que era totalmente contrário a tudo aquilo que ela tinha proposto na campanha eleitoral. Então, era de prever que houvesse crise e que nas próximas eleições esta orientação política perdesse as eleições. Estavam impacientes. Nós nunca vimos em nenhum outro país, poucos meses depois de um presidente ganhar as eleições, estar-se a pedir o seu impeachment, sem prova nenhuma de crime de responsabilidade.

“É essa a grande novidade que o Brasil deu ao mundo. Infelizmente é uma novidade triste: talvez a política mais honesta da América Latina foi impedida pelos políticos mais corruptos da América Latina. Em plena democracia. Isso é que mostra a falência do sistema democrático.”

Qual a sua opinião sobre o atual movimento das Diretas Já?

As Diretas Já tem um impulso interessante que é repor a legitimidade democrática. É uma ideia de dar a palavra ao povo. É também a forma mais eficaz de travar essas leis porque ninguém que vá dizer numa campanha eleitoral que quando chegar ao poder vai aplicar aquelas leis é eleito. Provavelmente, depende de como os mídia vão funcionar, sobretudo num País que passa 4/5 horas por dia a ver televisão, penso que seria difícil que ocorressem.

A luta é exatamente entre aqueles que querem aplicar as medidas e aqueles que querem travar as medidas. O que se viu efetivamente é que não querem recuar de maneira nenhuma nas medidas, porque muitos acreditam genuinamente que é a única maneira de repor a sua rentabilidade. Mas há muitas outras medidas possíveis, bastava que o capital financeiro não fosse tão voraz como é no Brasil, que tem as taxas de juros mais elevadas do mundo. E que 7,9% do PIB é para pagar os juros da dívida, coisa que nenhum outro país no mundo faz.

Que tempo é esse da reinvenção das esquerdas, subtítulo do seu livro?
É muito difícil prever porque os sociólogos são bons para prever o passado, mas o futuro não somos muito bons. Evidente que com o bombardeamento midiático que se fez, dando sinal das medidas e da demonizarão da esquerda e do partido que foi protagonista durante este período, nós vamos precisar de um certo tempo, porque a pessoa na rua que não é militante começa a sentir no bolso o sucateamento do sistema de saúde, que já é fraco mas que vai ser muito mais fraco; o pagamento da educação dos seus filhos; a possibilidade de perder a casa e ser despejado; o salário que vai baixar; a distância entre a periferia e o centro, que o Haddad de alguma maneira tinha tentado encurtar vai aumentar; portanto vão começar a sentir isso, mas o sofrimento humano nunca é ativo politicamente.

“O sofrimento pelo sofrimento não vai lá. É preciso organizar-se politicamente, que as forças políticas, os movimentos sociais e os partidos possam captar a insatisfação que se vai gerar. Mas leva um pouco de tempo porque as pessoas ainda não viram as consequências. Há espaço para um partido novo de esquerda, de outro tipo.”

Quanto tempo? Depende de quanto tempo de doutrinação. A doutrinação tem muitos limites, ela não consegue doutrinar completamente porque os seres humanos vivem na História e fora da História. Ninguém esperaria que Portugal fosse criativo politicamente e agora foi criativo. Amanha pode ser o Brasil, pode ser outro país. O que é preciso é o poder de agregação das forças de esquerda – e não vai ser fácil. Vai ser difícil. O que aconteceu com Jeremy Corbin, que ninguém esperava, diferente dos jovens que criaram o Podemos, os jovens ingleses decidiram inscrever-se em massa no Partido Trabalhista. Foi o que o levou ao poder. Eles achavam que o partido tinha sido completamente descaracterizado por Tony Blair, tinha apoiado a guerra no Iraque e feito todas aquelas estripulias. Através de uma inscrição massiva, alteraram a política do partido.

No Brasil, eu corro o Brasil todo, o jovens não estão a sentir-se atraídos de maneira nenhuma pelo PT, alguns pelo PSOL, mas eu trabalho muito com rappers, são esses os jovens que eu vejo, que estão a fazer uma atividade política extraordinária neste País mas fora do movimento partidário. Isso vai durar algum tempo, não sabemos como vão se reorganizar, penso que há efetivamente espaço para um partido novo de esquerda, de outro tipo.

Qual a sua opinião sobre a presença do ex-presidente Lula na crise e no processo de saída da crise?
O ex-presidente Lula é tanto parte do problema como é parte da solução. Eu tenho respeito por ele, sou amigo dele. É um homem que sem dúvida é a figura mais notável da História do Brasil depois da Independência. É a quem o Brasil deve, para sempre, tem uma dívida absolutamente extraordinária. Mas é evidente que é um homem refém do seu passado, como também todos nós somos. É um homem que teve como ninguém mais tem, e como não teve a presidente Dilma, a capacidade de conciliar classes. É uma pessoa que realmente conseguiu fazer uma política de conciliação muito forte. Isso é um trabalho notável que ele realizou e que transformou o Brasil. O Brasil é hoje muito diferente de 2003. E o legado dele vai se dar até contra ele, mas foi devido a ele que hoje as pessoas pensam o que pensam no Brasil. A possibilidade de uma sociedade melhor.

O presidente Lula, evidente que neste momento, como não houve renovação nos partidos de esquerda, é o único nome da esquerda com alguma viabilidade para ganhar as eleições. Se a esquerda quer ganhar as eleições, tem que ser com o presidente Lula. É evidente que isso é importante para ganhar as eleições. Agora, com o presidente Lula não vai haver renovação do PT, não vai haver renovação política muito profunda. Porque essa renovação passa pela transformação do PT num partido-movimento, passa pela democracia participativa dentro do partido, como tem o Podemos, passa por uma articulação com o PSOL e com os movimentos sociais, que eu penso que neste momento, com a lógica de conciliação que o presidente Lula tem no seu imaginário, vai ser muito difícil de levar.

Estando Lula não vai ser possível criar outro partido político. E eu penso que a política brasileira tem espaço, eventualmente para um novo partido a partir dessa mobilização social ainda incipiente. O que é curioso é que aquilo que em Portugal foi possível unindo as esquerdas pela via partidária, no Brasil está a se fazer via movimentos sociais. Temos duas frentes: Brasil Popular e Povo Sem Medo. São duas articulações que falam uma com a outra, em que algumas organizações estão nas duas, portanto eu penso que essa articulação profunda está-se a dar.  Se amanhã vai se transformar ou ter uma voz partidária, depende muito do futuro.

O presidente Lula é um fator muito importante, evidente que a direita sabe exatamente isso que estou dizendo, há uma fração eventualmente da direita mais inteligente que até é capaz de pensar que talvez fosse bom que o presidente Lula voltasse à Presidência, para destruir de uma vez para sempre o mito Lula. Porque ele não vai poder governar como governou, não há uma reforma política que lhe permita governar de outra maneira, os preços das commodities são o que são e portanto destroi-se o mito de uma vez para sempre. Se ele não voltar a ser presidente, o mito está intacto. A aceitação que ele continua a ter, que é absolutamente notável, é que todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo, o homem mais demonizado pela imprensa continua a ter aceitação popular enorme. Foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro, e essa parte de futuro tem um lado muito claro e outro menos claro. É preciso que digamos publicamente que temos consciência disso, para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular, que foi também a sua tradição. Só que ele não teve que tomar uma grande posição entre uns e outros, era amigo de todos, Lula paz e amor. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.

Esse momento de crise profunda pode se transformar em oportunidade? 
É um momento interessante na sociedade brasileira, de renovação. A democracia se defende na rua, neste momento. A rua é o único espaço público que não é colonizado pelo mercado financeiro, portanto é um espaço importante de manifestações pacíficas. Vai ser problemático porque vai haver infiltrados e agentes provocadores para provocar violência, dizer que são todos violentos e suscitar a brutalidade policial.

A rua é muito boa para manifestar as aspirações políticas das classes populares e dos jovens, mas não pode formular política, ela não é capaz de formular política. Tudo isso vai levar o seu tempo. 

“O grande problema é que essa crise de hegemonia pode entrar em uma crise social muito forte. Que desagrega o tecido social.”

Mas o Brasil vai se reinventar. As crises, se não forem permanentes – e o neoliberalismo quer a crise permanente porque assim a crise se transforma ela própria em solução e destrói a oportunidade – e essa no Brasil não é porque é uma crise política, de hegemonia e econômica, cria oportunidades. Vamos ver como o campo popular se articula, pode reagir pela reposição das energias democráticas e por isso as Diretas Já é uma sinalização nesse sentido. O importante é bloquear as medidas. Esta é a luta em que o Brasil vai estar metido nos próximos tempos.

Assista a entrevista:

https://www.youtube.com/watch?v=RYAQZQCdOg8