Rosane Borges tem 43 anos e nasceu em São Luís, Maranhão. Desde a adolescência esteve envolvida em atividades de movimentos negros e discussões políticas, lutou e ainda luta para mitigar e obstruir os efeitos do machismo e do racismo estrutural e institucional nos âmbitos privado e individual.
Na academia, entre o jornalismo e a comunicação enquanto ciência, a hoje doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela USP, passou a refletir sobre o que é ser uma comunicadora negra.
Ao PáginaB!, explicou que a sua formação política data da participação em diretório e centro acadêmico universitário.
Atualmente, Borges integra o grupo de pesquisa Midiato, da ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP. Em seu currículo, ainda, consta a coordenação do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra da Fundação Palmares, um dos órgãos do Ministério da Cultura.
Em Diálogos, Rosane Borges discute gênero, raça, visibilidade e poder sob a luz dos movimentos de minorias e da disputa de narrativas dentro e fora da Academia e nas redes sociais.
Neste 8 de março, com o avanço conservador que propaga o ódio a minorias, respondendo pelo acirramento da perseguição às religiões de matriz africana e pela extinção de direitos conquistados pelas mulheres ao longo dos anos, teríamos muito a aprender com as sacerdotisas destas religiões a respeito de mulheridade e resistência, se nos abríssemos às suas vivências e à riqueza simbólica de sua ancestralidade.
Algumas referências muito interessantes para repensarmos a autonomia das mulheres no mundo estão presentes no conjunto de saberes arquivados sob o imaginário de Pombajira (“Pombagira”, em grafia popular). Muitas vezes, bem antes que qualquer discurso feminista pudesse alcançar essas mulheres, os saberes transmitidos oralmente no âmbito de seu cotidiano religioso e comunitário foram as únicas ferramentas de sobrevivência.
Conforme definição de Luiz Antonio Simas, historiador e pesquisador de manifestações populares: “Do ponto de vista da etimologia, a palavra Pombajira certamente deriva dos cultos angolo-congoleses aos inquices. Uma das manifestações do poder das ruas nas culturas centro-africanas é o inquice Bombojiro, ou Bombojira, que para muitos estudiosos dos cultos bantos é o lado feminino de Aluvaiá, Mavambo, o dono das encruzilhadas, similar ao Exu iorubá e ao vodum Elegbara dos fons. Em quimbundo, pambu-a-njila é a expressão que designa o cruzamento dos caminhos, as encruzilhadas. Mbombo, no quicongo, é portão. Os portões são controlados por Exu”.
Então temos uma forma de mulheridade disponível no inconsciente coletivo de diversos povos que é dona dos caminhos. Isso é suficiente para manter viva a memória e o desejo de um modo de ser mulher que rompa com o confinamento patriarcal na dimensão privada e no estereótipo de feminilidade, percebendo-se livre física, emocional, social e espiritualmente para ir a toda parte. Por essa perspectiva, quando entendemos que Pombagiras regem as estradas, talvez estejamos falando simbolicamente sobre mulheres ocupando todos os espaços; se elas podem também bloquear passagens, o seu “não” é definitivo, de modo que qualquer perturbação a ele obstruirá o fluxo da vida e dos interesses coletivos; quando falamos sobre encruzilhadas (cruzamentos, opções) evocamos um sistema de escolhas que contemple as mulheres; quando nós relacionamos tais entidades ao cemitério (mundo dos mortos), que têm suas próprias ruas e esquinas, estamos destacando o trânsito nas próprias sombras, ou seja, sabendo caminhar em nós mesmas, em nossos labirintos psíquicos, atentas às marcas das diversas formas de violência para que não condicionem o nosso caminhar.
Por outro lado, a força vital simbolizada nas Pombagiras é a da plena consciência do corpo e da sexualidade não referenciada no pecado ou na cultura de objetificação/abuso, mas na qualidade de potência. O que vai na contramão de toda a socialização feminina, já que misoginia é uma forma de opressão estrutural construída especificamente sobre o corpo do ser humano nascido mulher, que é castrado de muitas maneiras ao longo da vida para corresponder ao projeto de submissão para ele previsto em muitos níveis. Isso implica dizer que Pombagira nos restitui a noção – inegociável – de que o corpo da mulher somente a ela deveria pertencer e que essa é a condição fundamental para que os caminhos existam. Os caminhos para a evolução de todos nós, uma vez que a libertação das mulheres alavanca toda a coletividade e garante o pleno desenvolvimento das próximas gerações.
*Maria Gabriela Saldanha é escritora e ativista feminista.
A yoga transformou a vida dessa paulistana quando ela menos esperava. Executiva, professora de inglês, Laura da Silva Prado Ferrari vivia o cotidiano a mil por hora da cidade de São Paulo: estresse, correria e muitas dores no corpo. Laura lembrou de como as aulas de yoga faziam bem e resolveu voltar à prática. O que era um escape e um exercício para segurar a barra do dia-a-dia virou profissão. Fez faculdade, especializou-se no assunto e começou a dar aulas para idosos. Depois, gestantes. Hoje, seu universo lida com preparar uma vida para chegar ao mundo. Bem diferente do ambiente de livros e dicionários de antigamente. Laura mergulhou no mundo da cultura oriental e percebeu que existe vida em equilíbrio. Acredita que a yoga deveria ser disciplina escolar, como matemática e português, e também critica a forma dos hospitais lidarem com a maternidade no mundo moderno. Por isso, ajuda mães a darem à luz da forma mais natural possível. Sem cortes, sem invasões.
Conversar com a cantora e compositora gaúcha Laura Finocchiaro é dar um mergulho nos anos 1980 e começo dos 1990. É lembrar-se, mais especificamente, de uma época em que a noite de São Paulo pululava com dezenas de casas noturnas alternativas. É também se aproximar do mundo pop e conhecer uma figura que está nos bastidores de vários programas de TV. Laura impressionou Cazuza, que chegou a gravar uma música sua; chamou a atenção da cena underground e tocou no Rock in Rio, no mesmo palco em que mitos, do calibre de Prince, passaram. Um começo de carreira meteórico desaguou na produção de trilhas sonoras para televisão e, mais recentemente, em experiências com a música eletrônica. De volta aos palcos, Laura apresentou seu show Avoar, no mítico Madame Satã, onde ela deu seus primeiros passos no mundo da música. A Brasileiros acompanhou tudo.
Dona Fusae é um exemplo de que a idade não é empecilho para nada. Vinda do Japão aos 3 anos de idade, Fusae só fala sua língua natal em casa e não é totalmente fluente no português, mas aprendeu a aproveitar a vida como uma legítima brasileira: curtindo a praia. A nipo-brasileira, que mora em Santos desde os anos 1970, resolveu, há pouco mais de sete anos, frequentar as aulas de surfe na escolinha de Cisco Araña, uma lenda viva do esporte na Baixada Santista. E não para por aí. Quando completou 77 anos, Fusae resolveu comemorar em grande estilo e saltou de paraglide. Além dos esportes radicais, também já praticou inúmeras artes marciais japonesas. Quando não está se aventurando, Dona Fusae cuida de sua casa e já planeja uma nova empreitada, dessa vez, um pouco mais tranquila: aprender a tocar gaita.
Nascida em Mococa, criada em São José do Rio Pardo, cidades do interior de São Paulo, Maria Lúcia virou Milu antes mesmo de nascer. O apelido foi dado pela parteira, que participou dos quatro nascimentos da família. Milu é a terceira da casa. Uma paixão e um casamento levaram-na para o mundo das artes, das antiguidades e, principalmente, dos leilões. O término do relacionamento afastou Milu dos leilões, mas paixão é paixão. Ela ama o que faz e isso é percebido em poucos minutos de uma noite de leilão que promove em São Paulo. Experiente, não faz pregão em noite de jogo de futebol, muito menos quando tem capítulo final de novela. Seu interesse por artes aumenta a cada dia. Da família, o único que tem interesse pelo assunto é o irmão, Márcio, um expert com quem Milu se consulta diariamente para montar seus leilões.
Ela não sai do país das maravilhas de Alice. Há mais de 10 anos, o livro do escritor britânico Lewis Carroll é a sua rotina. Desenhos, colagens, vídeos, exposições, oficinas, palestras, workshops, novas ideias todos os dias. A obra de quase 150 anos faz Adriana transitar nas mais diversas áreas além da literatura. A psicanálise, a história, o design e até o cinema, com o recente filme de Tim Burton, exploraram o tema do livro de Carroll, o que deixa Adriana mais interessada e instigada. Em 1998, no centenário da morte de Lewis Carroll, ela foi para Oxford e conheceu o ambiente no qual o autor vivia na época em que escreveu o livro. Adriana também entrou em contato com a Sociedade Lewis Carroll da Inglaterra, que desde a década de 1960 estuda a obra do escritor. Ficou tão fascinada com colecionadores, fãs e pessoas que tinham no universo de Alice uma realidade quase paralela que fundou a Sociedade Lewis Carroll do Brasil, em 2009, para reunir pessoas de todo o mundo em torno do livro. Para saber mais sobre Adriana e seu país das maravilhas, acesse http://adrianapeliano.blogspot.com/
A vaidosa e espalhafatosa Clarice era frequentadora da Associação dos Amigos do Museu de Arte Moderna desde os seus 22 anos foi eleita como presidente em 2001. Está à frente da associação sozinha. Sem mais os assíduos sócios de outrora, não há verbas nem mesmo para bancar um garçom para o bar do museu. Em 1949, Assis Chateubriand cedeu duas salas na R. 7 de Abril, para abrigar o MAM de São Paulo e a sua associação. Em 1958 o museu foi para o Ibirapuera, onde está até hoje. Aos poucos a AAMAM foi se dissociando do museu até se tornar completamente independente. Em um edifício na Av.Ipiranga, 324, ao lado do Copan, desde 1978, enfrenta dificuldades e percalços no caminho. Hoje, o bar sofre restrições de horários impostas pelo condomínio comercial em que se encontra. Clarice, com seus colares e jóias douradas, mora a duas quadras dali, é aposentada e dedica suas noites a este patrimônio e a incentivar jovens artistas, tentando manter vivo esse lugar que faz parte da história de São Paulo.
Dias antes da abertura da 1ª Bienal de Veneza, toda cidade discutia a pintura Supremo Convegno, do italiano Giacomo Grosso, sem ainda tê-la visto.
O primeiro grande escândalo de censura a uma obra de arte, envolvendo até o Vaticano, ocorre em 1895, em plena Belle Époque, quando o artista Giacomo Grosso envia à 1ª Bienal de Veneza a pintura Il Supremo Convegno, que retrata um velório dentro de uma igreja, com cinco das amantes do morto nuas, em poses lascivas, tendo uma delas o caixão mortuário entre suas pernas abertas. O então obscuro pintor e professor de Turim quebra a banca, incendia e assanha a icônica cidade italiana com uma ousadia até então nunca vista. O quadro é o instantâneo de um mundo em crise, captado pelo olhar de um artista libertário.
Grosso relaciona o erotismo e a morte e antecipa o pensamento de George Bataille, que nasceu dois anos depois desse episódio, ao atribuir ao erotismo e à “violência” uma dimensão religiosa, fazendo deles os meios para se atingir uma experiência mística “sem Deus”.
Sob o título Prima Edizione della Manifestazione Internazionale di Venezia, a Bienal surge em 1895 como modelo estruturante de se expor arte e, cinquenta anos depois, a experiência se multiplica como “praga” pelos cinco Continentes. A iniciativa da exposição parte de um grupo de intelectuais que se reunia no Café Florian, o mais antigo do mundo, criado em 1720, que ainda hoje funciona na praça de San Marco.
Quando Il Supremo Convegno chega ao Giardini della Biennale, onde até agora acontece a exposição, destrói a grande ilusão hegemônica da arte submissa a reis e papas. Quebra todos os protocolos da Bienal, cria uma ponte para um futuro onde o artista possa sonhar seu sonho e provoca enfrentamentos artísticos, políticos, religiosos.
A tela sobre o velório de um dongiovanni foi liberada para ser exposta em uma sala sem grande protagonismo, mas tornou-se a mais visitada e recebeu o Prêmio de Público: mil liras e acentuada notoriedade.
Com parte da população contra e outra a favor, o falatório toma conta das pontes da cidade. Em outro patamar, políticos, religiosos e intelectuais promovem a dialética que se manifesta frente a frente por meio de cartas ou através de jornais. O cardeal de Veneza, Giuseppe Sarto, o futuro Papa Pio X, também vai conferir a pintura e não gosta do que vê. Imediatamente escreve ao então prefeito, Riccardo Selvatico, um intelectual de prestígio, exigindo que o quadro não seja exposto. Habituado à polêmica, Selvatico, que estava tentando um segundo mandato como prefeito de Veneza, defende o trabalho de Grosso, afinal, não quer saber de confusão na festiva exposição que também comemorava as bodas do rei Humberto I. Chama para uma reunião os intelectuais simpatizantes da pintura, que criam uma comissão de defesa ao direito de liberdade artística e, consequentemente, o trabalho do artista turinense. Para dar força ao movimento, escolhem para representá-los e escrever a carta ao prefeito, o escritor Antonio Fogazzaro, unanimidade no meio político e religioso. A carta que o prefeito entregaria posteriormente ao cardeal, entre outros argumentos diz: “Nos parece forte demais condenar a obra Il Supremo Convegno em nome da moral… Nós, caro Riccardo Selvatico, respondemos unanimemente não à censura. O quadro de Giacomo Grosso não é um ultraje à moral pública, mas sim uma grande obra de arte”.
Depois de vários dias de debates, Il Supremo Convegno é liberada com a condição de ser exibida em uma sala meio escondida. De nada adianta. Uma multidão curiosa, com as mulheres vestidas elegantemente e com sombrinhas de renda e os homens de fraque e cartola, enfrenta horas na fila para ver as graciosas ragazze nuas. Grosso recebe o Prêmio Popular de Melhor Obra, segundo os visitantes, e £1000, além de notoriedade. A pintura é rapidamente comprada por £15.000 pela Venice Art Company, empresa americana que organiza uma turnê para exibi-la nos Estados Unidos, onde o eco do escândalo já tilintava nas caixas registradoras.
Sabendo da itinerância, os turinenses se perguntavam quando e onde veriam o famoso quadro, feito por um artista da terra e que abalou a toda poderosa Veneza. Foi o jornal local quem deu a triste resposta ao publicar o incêndio ocorrido no local onde a controvertida pintura estava guardada, antes de ser exposta aos americanos. Hoje só restam cópias da tela, fotos nos arquivos da Bienal e no livro Biennale di Venezia, mas tudo isso me foi contado por Luigi Carluccio, em 1984, na biblioteca da Bienal de Veneza, quando ele era o presidente da instituição. Ria muito ao lembrar desse episódio que, para ele, foi um dos mais saborosos que a Bienal de Veneza já produzira. Anos depois, em 1991, quando eu era comentarista de arte no programa Metrópolis, da TV Cultura, entrevistei Leo Castelli, o famoso galerista de Nova York e mentor da pop art, no hotel Regina, em Veneza. O câmera era o videomaker e meu amigo Rafael França, do grupo Três Nós Três. Em meio a tantas histórias, Castelli sai com essa: “Muitos italianos como eu gostam de Il Supremo Convegno porque nos remete à alegria, sensualidade e sonho de liberdade até a morte”. Concordei e assinei com ele.
No Brasil de hoje, com certeza Grosso teria sérios problemas com a censura que insiste em nos intimidar. Talvez ele fosse encaminhado à polícia, preso, e sua maravilhosa e ousada tela…execrada!
Há muitas maneiras de definir uma cultura e há quase tantas culturas quanto maneiras de defini-las. Duas distinções podem nos ajudar a reduzir um pouco o problema. A primeira é distinguir cultura e civilização, sendo a primeira um conjunto de saberes que se reproduz segundo um modo específico de transmissão, como a arte, a ciência e a religião e a segunda uma rede de práticas e disciplinas de coerção normativa. A segunda separação possível se dá pelo método dos contrários: o oposto da civilização é a barbárie, o oposto da cultura é a natureza. Dá-se com o conceito de cultura algo análogo ao que encontramos diante da expressão “homem” que indica tanto o ser humano em geral quanto o gênero masculino.
Nesta pequena ambiguidade semântica esconde-se um universo de problemas que remontam à antiga teoria de que existe apenas um sexo, e este é o masculino, sendo a mulher um homem imperfeito, cujo órgão genital é na verdade um pênis dobrado para dentro. Isso converge com um etnocentrismo renitente que nos faz ver, tão frequentemente, a nossa cultura particular como A cultura universal, e a reconhecer a cultura dos outros como uma forma menor, ainda não tão evoluída como a nossa. Quando falamos em cultura do estupro todas estas acepções se combinam. Isso designa a força de coerção que associa a masculinidade com a submissão, dominação ou capacidade de exercer poder e violência contra a mulher. Isso refere-se também à leniência e naturalidade com a qual interpretamos atos de violência particular como uma tendência universal, integrando-os ao cotidiano, naturalizando-os e neutralizando nossa capacidade de indignação e a potência transformativa que esperamos de cada forma de sofrimento.
Faz parte da cultura do estupro a invisibilidade de certos modos de sofrimento feminino, entendido como parte essencial da própria feminilidade, particularmente quando se trata do erotismo feminino. Por exemplo, até meados do século XX médicos franceses evitavam empregar a anestesia em partos porque a dor, especificamente a dor da mulher neste momento, possuía um sentido moral: punição pelo exercício de seu desejo e lição pedagógica inaugural para sua maternidade. É por casos como este que a teoria feminista começa por duvidar da fronteira entre política e cultura, ou seja, do que devemos tomar como espaço de liberdade, ainda que parcial, para criar novas leis e o espaço onde devemos nos submeter, ainda que não passivamente, às leis instituídas. Deduz-se desta problemática uma certa teoria da liberdade, profundamente vinculada à dimensão dos direitos, dependente portanto da lógica do contrato e do assentimento e de nossos conceitos mais ou menos intuitivos de posse, uso e propriedade. A cultura do estupro é inseparável da teoria da mulher como propriedade, seja de um pai, de um homem, de uma instituição ou de um discurso.
O ponto extremo desta problemática, costumeiramente levantado pela cultura machista, muitas vezes levantado como um argumento para perpetuar a cultura do estupro é o que poderíamos chamar de fantasia do estupro. Uma mulher que anda sozinha a noite, com trajes ousados, num beco escuro está deixando-se levar pela fantasia de ser estuprada. Ela não se cuidou suficientemente, ela não se guardou, ela não se protegeu. Percebemos aqui os mesmos termos que encontramos usualmente no discurso da propriedade: seguro, risco, ousadia e conservação.
Ao mesmo tempo nós qualificamos A cultura segundo o gênero ao qual atribuímos mais poder: patriarcal, masculina, misógina, sexista e assim por diante. A cultura feminina é o caso particular, anômalo e deficitário. Mas o que salta aos olhos, neste argumento, é a pobreza conceitual com a qual se entende a noção de fantasia. A tradução da fantasia de estupro, na cultura do estupro é: aquilo que você quer sem ter coragem de assumir que quer. Podemos conjugar declinações desta hipótese: aquilo que você pede sem saber que está pedindo; aquilo que no fundo você gosta, mas não quer admitir; aquilo que você ainda não sabe que quer, mas quer mesmo assim.
A posse do desejo do outro é o problema fundamental da cultura do estupro, por isso ele acontece privilegiadamente em situações nas quais a subordinação de poder leva à tentação do apossamento do desejo do outro
O filme Elle (2016), de Paul Verhoeven é uma discussão qualificada sobre este problema e uma lição didática e preventiva para a cultura do estupro. Muitas feministas consideram o filme machista porque ele mostra uma mulher cujo erotismo, em suas variadas formas, envolve a incitação ou a prática de agressividade. Nesta crítica há certo entendimento de cultura que valoriza o fato de que imagens são exemplos e narrativas são modelos de ação. Nos culturalizamos por identificação e a identificação é a assimilação de traços de pertinência e igualdade. Notemos aqui um conceito proprietarista de canibalismo cultural.
Nossa cultura devora outras culturas ingerindo seus traços e no fundo “você é o que você come”. Filhas tolerantes ao machismo aprenderam isso com suas mães, filhos machistas devoraram isso de seus pais. Filhas e filhos foram criados na cultura machista observando e identificando-se com a forma de tratamento iníqua e desigual ao que foram expostos em seus processos de criação. Observemos também que esta concepção proprietarista de cultura e de identificação redundará em um conceito jurídico e contratualista de liberdade. Liberdade que oscila entre a negação do que é obrigatório (cultura como coerção) e a afirmação de equidade de direitos (cultura como justa distribuição de bens e recursos, simbólicos e materiais).
Se nesta perspectiva o filme pode ser lido como incitação à cultura do estupro, pois fornece e lembra o argumento da existência de fantasias de estupro, quero argumentar que o filme também fornece elementos para uma leitura crítica da experiência do corpo como propriedade (seja de um, seja de outro). Trata-se de uma empresária que ganha dinheiro com a cultura do estupro, produzindo vídeo games envolvendo cenas erótica nas quais mulheres são seviciadas sexualmente. Isso é compatível com sua história, uma vez que ela é filha de um notório assassino e de uma mãe fútil e hipersexualizada.
Clinicamente seria bastante plausível que alguém com experiências deste tipo tivesse que conciliar impulsos de punição e masoquismo como condição necessária para sua satisfação sexual. Muitas pessoas precisam sentir-se odiadas para, nesta situação de rebaixamento moral e de objetivação carnal, autorizarem se ao prazer. Para outras tantas basta um tapa, de leve e bem calculado na hora antes da hora “h”. Para outras ainda será suficiente imaginar-se amarrado, preso ou coagido à uma relação sexual. Isso tem várias vantagens: suspende a responsabilidade e o risco de serem realmente rejeitadas, responsabilizam o parceiro pelo trabalho de produção do prazer e, last but not least, jogam com a transgressão da lei e o exercício arbitrário do poder como afrodisíaco insuperável.
O fato crucial é que isso não justifica, nem legitima nem faz prosperar a cultura do estupro. O problema aqui não deveria ser reduzido à sua versão contraturalista do consentimento livre e esclarecido. O impasse é bem retratado no filme. Depois de descobrir que seu estuprador mascarado é o vizinho por quem ela nutre fantasias sexuais, ela vai a casa dele e ambos tem uma relação no subsolo. Entre tapas e agressões ela diz “vem!”. Neste ponto ele confessa a sua fantasia “assim eu não consigo”.
Assim como o parceiro ideal do sádico não é o masoquista (conforme a piada: masoquista diz: me bate, me bate, ao que o sádico responde: eu não, eu não) a fantasia de estupro não é demanda de estupro. Esta equivalência só existe para uma cultura que acha que somos proprietários de nossos desejos assim como possuímos carros, casas e direitos trabalhistas (no tempo que eles ainda existiam). A falsa compreensão que subjaz a cultura do estupro é de que cada qual tem seu desejo e pode negociá-lo no mercado dos desejos com os outros que também são soberanos senhores de seus desejos individuais. O que escapa a esta concepção é que a nossa fantasia inclui a fantasia do desejo do Outro, assim como nossa cultura inclui as ficções que fazemos sobre as outras culturas.
Uma ótima ilustração disso está na cena em que Michele, a masoquista, masturba-se olhando pelo binóculo seu vizinho retirar do carro estátuas em tamanho real do presépio de Natal, acompanhado por sua esposa beata. Ou seja, não é só o que ela imagina para si, mas o que ela imagina sobre a fantasia do outro que determina seu erotismo. Isso muda tudo. Ela mesma não tem nenhum apreço por jantares de Natal, crenças cristãs na família redentora, nem piedade pelos casamentos alheios, ainda que estes envolvam suas amigas ou ex-maridos. A fantasia é composta por uma dupla volta, aquilo que eu “suponho” que desejo e aquilo que eu suponho que o outro supõe desejar.
O perigo da cultura do estupro não é, portanto, a violência do desejo de um que ultrapassa os limites da vontade do outro. Este é o nível mais banal em que apelamos para o plano jurídico para conter a violência contra a mulher. O plano em que tal violência deve ser coibida com maior visibilidade e intolerância no nível das leis, dos costumes e das práticas. Mas o plano mais profundo de transformação cultural requer um tratamento preliminar da ideia de que é possível “saber o que o outro deseja” (ou reversamente o que ele não consegue aguentar em seu desejo).
O problema da posse do desejo do outro é o problema fundamental da cultura do estupro, por isso ele acontece privilegiadamente em situações nas quais a subordinação de poder leva à tentação do apossamento do desejo do outro: pais e filhos, empregador e empregado, homens sobre mulheres.
O desespero e a impotência que se escondem habitualmente por trás do estupro não decorrem do fato de que alguém sabe o que quer e avança sobre o outro, mas do fato de que em geral estamos falando de alguém que desorientou-se quanto ao que quer e por isso precisa se apossar violentamente do desejo do outro, precisa impor a sua fantasia de desejo do outro ao próprio outro.
Por isso muitos pedófilos, honestamente, afirmam que sua violência é um ato de amor, uma forma de “ensinar” ou de “favorecer” algo belo é bom em suas vítimas.
Sim, isto parece estupidamente trágico, mas não desculpa ninguém.
Ao final do filme, quando o amante-estuprador é morto pelo filho de Michele, em um assassinato acidental, na medida em que ele não percebe a realidade do teatro que se encena na manobra masoquista (aludindo a uma possível repetição dos 27 assassinatos cometidos por seu avô, daqueles que não conseguiam fazer o sinal da cruz), sua esposa religiosa faz uma declaração fundamental: “agradeço por você ter dado a ele, durante este tempo, o que ele precisava”. Aqui está a verdadeira perversão, aquela que não tem dúvida do que o outro precisa, aquela que se apossa do desejo do outro sem vacilo, aquela que se torna cega, surda e muda para o “não” que recebe do outro.
Enquanto nosso modelo de cultura restringir-se à aplicação do individualismo vulgar para pensar a nossa fantasia como o desejo em estado de propriedade, enquanto nosso modelo de cultura basear-se na antropofagia de traços de identidade assimilados por imitação e enquanto nosso modelo de reconhecimento for o contrato de oposição simples entre o livre e o coercitivo estaremos longe de transformar os fundamentos da cultura do estupro.