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Tarsila do Amaral é tema de retrospectiva no MoMA

tarsila do amaral
Quanto mais próximo do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, mais Tarsila fica em evidência. (Foto: Reprodução)

Uma das artistas brasileiras mais consagradas mundialmente, Tarsila do Amaral é tema de grande exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).

A partir do dia 11 de fevereiro até o dia 3 de junho, os 120 trabalhos serão expostos na primeira individual da modernista no MoMA.

Reunidas em acervos da Europa, da América Latina e dos Estados Unidos, obras indispensáveis de Tarsila, como Antropofagia e Abaporu, fazem parte da mostra, que também apresenta fotografias, desenhos, documentos históricos e rascunhos.

Com curadoria de Luis Pérez-Oramas, do MoMA, e Stephanie D’Alessandro, do Art Institute of Chicago, onde foi primeiramente apresentada, a exibição salienta a produção da artista entre as décadas de 1920 e 1930.

Quanto mais próximo do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, mais Tarsila fica em evidência. Também está prevista para este ano a gravação de um filme, parceria entre Brasil e Inglaterra, sobre a vida da artista. A atriz francesa Marion Cotillard é a mais cotada para viver a pintora no cinema.

Leia análise da obra de Tarsila do Amaral publicada pelo historiador e crítico de arte Francisco Alambert na edição 9, de julho de 2011, da revista ARTE!Brasileiros:

Tarsila e o Brasil dos Modernistas

Por Francisco Alambert*

“Uma obra não fica tão somente porque reflete a sensibilidade de seu momento histórico. Mas fica ainda menos se não a reflete”, escreveu certa vez Sérgio Milliet, o primeiro crítico de arte moderna brasileira e também o primeiro grande intérprete de Tarsila do Amaral. A frase serve perfeitamente para a artista, que refletiu (tanto no sentido do espelhamento, quanto no sentido do pensamento) o seu tempo, o primeiro modernismo brasileiro, em sua busca de uma forma moderna e original – com todas as suas conquistas e ambiguidades.

Na obra de Tarsila, parte dela agora exposta na Casa Fiat de Cultura, em Minas, especialmente em seus desenhos se define uma das marcas visíveis da abstração própria ao modernismo brasileiro: uma adaptação da linguagem vanguardista a um quê de naturalismo e primitivismo afetadamente local. É daí que se constrói o vocabulário “pau-brasil” e a arte “antropófaga”, com suas linhas largas e sinuosas inspiradas no movimento da natureza brasileira e nas formas populares que, como o traço arquitetônico de Niemeyer, será o que melhor representa uma certa visualidade brasileira moderna.

Essa arte generosa e arrojada é tão ambígua quanto o próprio processo modernizador do Brasil. Se há integralmente uma arte que remete à memória da infância e à sua liberdade de imaginação, há também um sentimento arraigado do mundo agrário e pré-industrial, próprio a uma elite que via seu mundo desaparecer, mas ainda assim seu poder se perpetuar.

É na força dessas contradições, em seu reconhecimento explícito ou inconsciente, que reside a grandeza do modernismo brasileiro e da obra de Tarsila em particular, essa mulher que foi tudo: aristocrata latifundiária, rentista, coquete parisiense, aluna aplicada de Léger, comunista, escandalosa companheira de Oswald de Andrade, esposa de um homem muito mais jovem do que ela, cronista delicada etc.

Acredito que a tela A Negra (1923) seja seu trabalho mais emblemático, certamente um dos pontos altos do primeiro modernismo. Trata-se do mais antiacadêmico de seus quadros, pois, pela primeira vez, se confronta a forma imperial da pintura acadêmica em sua representação conivente com a escravidão. A negra que está no quadro é, antes, um imenso campo monocromático, uma potência feminina sedutora, maternal e ao mesmo tempo inerte e passiva, posta à frente de um fundo geométrico que ela ignora. Uma simultaneidade, porém apresentada em dois planos.

O peso simbólico e a presença do olhar da negra escrava, de pés acolhidos pelo chão da terra – que nos vê e nos revela ao revelar-se – se replica na mais famosa e polêmica tela de Tarsila, o Abaporu (1928), na qual o fundo geométrico desaparece, dando lugar a um colorido quente e muito particular, que será ainda mais forte em Sol Poente (tela de 1929, para a qual cabe perfeitamente a definição de Drummond: “o amarelo vivo, o rosa violáceo, o azul pureza, o verde cantante”). Em Antropofagia (1929) tudo isso se reúne: o seio desnudo da negra e os pés fortemente ligados à terra do ser brasileiro de cabeça pequena – mas iluminado pelo sol e por cores cantantes – se entrecruzam na figura síntese do otimismo nacionalista e crítico do primeiro modernismo.

Apenas essas invenções bastariam para se entender Tarsila como uma força significante de nossas utopias mais generosas e também de nossos horrores atávicos. Talvez por isso suas obras se perpetuem como referências para o presente.

No final dos anos 1990, Carmela Gross elaborou uma espécie de escultura ou instalação que chamou também de A Negra. Composta por camadas de véus pretos, instalada sobre rodas, essa figura gigante e sem rosto foi colocada para andar, como o negativo de um fantasma de histórias infantis, pela avenida Paulista – o berço dos antigos palacetes dos ricos do império e atual passarela do império do capital.
Mais recentemente, quando a primeira mulher (branca) foi eleita presidente do Brasil, o artista Gustavo Rosa resolveu colocar o rosto da presidente em uma réplica do Abaporu. Tarsila ainda vive no nosso tempo, para o bem e para o mal.

Historiador e crítico de arte. Texto originalmente publicado na edição 9 da revista ARTE!Brasileiros

 

Garaicoa: ahora juguemos para no desaparecer

Ser urbano Carlos Garaicoca - foto Kelson Spalato.
Detalhe da obra 'Fim do Silêncio' (2010), de Carlos Garaicoa, apresentada na exposição Ser Urbano, no Espaço Cultural Porto Seguro. FOTO: Kelson Spalato

Poucas horas depois de chegar em São Paulo, Carlos Garaicoa foi caminhar pelos Campos Elíseos, na zona central. Apesar de visitar a cidade já há 20 anos, era como se nunca estivesse estado por aqui. Nesta região, marcada por algumas das principais tensões sociais da capital paulistana, o artista cubano monta sua primeira individual do ano, no Espaço Cultural Porto Seguro. “Quando se trabalha em uma cidade diferente, muitas vezes o tempo é limitado e estranho. Os artistas, no mundo da arte, ficam atrapalhados com uma ideia um pouco falsa da cidade, distante da realidade. Estou gostando de poder trabalhar aqui”, ele diz. A mostra Ser Urbano, com curadoria do também cubano Rodolfo de Athayde, destaca a produção mais recente de Garaicoa por meio de desenhos, fotografias, maquetes e instalações realizadas nos últimos dez anos.

Desde suas primeiras obras, o artista reflete sobre movimentos de construção e desmanche dos tecidos urbanos. As noções de memória, ruína, poder e utopia que herda de sua Havana natal estão presentes, por exemplo, naquele que talvez seja o trabalho mais conhecido de Garaicoa no Brasil, Ahora Juguemos a Desaparecer II (2002), uma miniatura de cidade feita com velas em constante reposição instalada no Instituto Inhotim. O conjunto de obras apresentadas agora, ainda que concebidas sob um contexto europeu para cidades como Lisboa e Turim, dialogam diretamente com a situação socioeconômica de São Paulo e, sobretudo, brasileira. Afinal, o entorno dos Campos Elíseos sofre com a especulação imobiliária advinda de ações gentrificadoras como a construção do complexo Nova Luz, as indefinições sobre um possível parque Minhocão e a expulsão mal-sucedida e criminosa da população da cracolândia. “É evidente que a arte de Carlos não é descompromissada. Ela se torna mais complexa, com outras camadas, por não apontar apenas os problemas do autoritarismo político mas também como o mercado financeiro e sua agenda econômica impõem controle social e violências tão catastróficas quanto” afirma o curador.

Em Saving the Safe (2017), o artista guarda uma escultura do Banco Central do Brasil feita de ouro em um cofre – metáfora sobre como as instituições financeiras, pela própria acumulação de riqueza e controle das economias, provocam crises que asseguram seu poder sobre as pessoas e as cidades. Outras obras articulam exercícios de linguagem mais amplos, como na subversão que o artista faz do Haus der Kunst, icônico edifício neoclássico de Munique construído durante o regime nazista para abrigar a “verdadeira” arte. Garaicoa cria uma maquete antítese do original feita de metal e vidro translúcido, esvaziando a lógica autoritária de Hitler ao utilizar os materiais da arquitetura moderna, inclusive da Bauhaus. Operando poéticas que partem de molduras urbanas distintas, são trabalhos que abrem um arco de relações possíveis entre arte e política na dinâmica contemporânea que fogem de uma convocação imediatista ao ativismo. “Eu venho de um país onde sempre fomos perguntados por um posicionamento político preciso, uma definição que de tão obrigatória tende a não ser uma resposta verdadeira. Me interesso por elaborar ideias com uma densidade semântica que não apenas comentem contextos locais, mas que tratem de questões mais amplas, incluindo a própria linguagem. Posso estar completamente equivocado ou no lugar certo, mas é o risco da arte”, afirma.

Outras grandes instalações revelam aspectos singulares da pesquisa do Garaicoa, como seu empenho em títulos expressivos e o apuro de feitura e montagem dos trabalhos. A obra Fin del Silencio (2010), a única da mostra já vista por aqui, dispõe sobre um chão escuro um conjunto de tapeçarias confeccionadas a partir de fotografias das calçadas de Havana. Cada tapete contém um tipo de assinatura, textual ou gráfica de estabelecimentos comerciais pré-revolução, que é modificada pelo artista. Uma fotografia de La lucha, por exemplo, torna-se um tapete La lucha es de todos. Outras peças criam palavras com base na tipografia original ou guardam as características do instante fotográfico – como a sombra de um transeunte e de um poste sobre a frase El pensamiento. Ao caminhar pela sala, o visitante é levado a um espaço público fantasioso e subversivo. Na instalação Partitura (2017), uma orquestra é elaborada a partir de gravações de músicos de rua entre Bilbao e Madrid. O trabalho foi esboçado quando Garaicoa viveu quase um ano no Rio de Janeiro, em 2006. Cada pedestal da orquestra contém a execução de um instrumento em tablets com fones de ouvido, acompanhados de partituras imaginárias. No centro, o lugar do regente é substituído por telas que animam todos os rabiscos e caixas que ressoam a composição em seu todo.

É precioso notar como o espaço e o tempo são alargados pelo cubano tanto pelos longos períodos de produção de uma obra quanto por seus resultados plásticos em si. Segundo Athayde, a metodologia de Garaicoa é bastante específica. “Ele está o tempo todo gerando ideias em um monte de cadernos que envelhecem bem ao longo dos anos, vão ganhando força e maturidade. Além disso, há um aspecto de arte conceitual, com um rigor que o faz encarar o tutano das propostas”.

Aos 50 anos e com uma trajetória consolidada no panorama internacional – ele realiza em média seis exposições individuais por ano em países diferentes -, Garaicoa também é fundador da residência artística Artista X Artista, onde pode mergulhar na produção dos mais jovens e escapar do papel central que o mercado possui no sistema de arte atual. “Historicamente, o modo de fazer arte é dedicando tempo e hoje muitos artistas jovens pensam primeiro no valor comercial de sua obra, qual galeria falará por eles ou estão se esforçando para criar obras de um dia para o outro. Quando você se torna um artista profissional, você não é mais livre”, comenta. “Tudo o que fiz com o que ganhei nestes anos foi tentar conquistar mais tempo para a criação”. Nesta altura da conversa, o curador emenda: “Carlos é que nem um navio quebra-gelo, que vai abrindo brecha para ele e outros artistas superarem relações simplistas do mercado e criar pensamentos mais complexos”.

Volpi encanta o público na Europa

elas ruas de cidades do noroeste da Itália e do litoral sudeste da França, é possível encontrar anúncios com imagens de obras de Alfredo Volpi, o italiano que aos dois anos de idade foi morar no Cambuci, bairro tradicional de São Paulo, em 1898. A publicidade chama a atenção das pessoas para a exposição Alfredo Volpi – La Poétique de la couleur (A poética da cor), que está em cartaz na cidade-estado de Mônaco até 20 de maio. Aberta no Nouveau Musée National de Monaco, desde o dia 9 de fevereiro, a mostra com aproximadamente 70 trabalhos do artista, produzidos entre 1940 e 1970, tem deixado o público deslumbrado.

Com pouca difusão fora do Brasil e da América Latina, pode-se dizer que Volpi ainda está sendo “descoberto” na Europa. Isso explica a surpresa, seguida de encanto, que suas famosas organizações de bandeirinhas em têmpera, dentre outras várias expressões, têm causado no público local. Lá fora, está sendo considerado “o artista brasileiro mais amado do século XX” e também tem sido chamado por veículos especializados em arte de “herói” e “orgulho” brasileiro. Essa característica difusória da exposição em Mônaco é considerada “educativa” pelo diretor do Insituto Volpi, Pedro Mastrobuono.

Alfredo Volpi, Sem título: Fachada marrom, terra, lilás, vermelho, verde, fim da década de 1970. (foto: Divulgação)

Apesar de obras suas terem sido expostas na Bienal de Veneza de 1962 e em galerias europeias, é a primeira vez que uma exposição individual do artista acontece em uma insitutição pública fora do Brasil. Isso graças a um grande esforço que o Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna tem feito, e também pelo apoio da Galeria Almeida e Dale.

O impacto positivo causado pelas obras de Volpi já atingiu grandes colecionadores e também a realeza monegasca. A princesa Caroline de Hanover, que abriu a exposição, pontuou em entrevistas a admiração pelo artista e o encantamento que as obras lhe causaram. O curador Cristiano Raimondi, chefe de Desenvolvimento e Projetos Internacionais do museu, atenta para os sinais de influências que o pintor, autodidata, teve de grandes artistas europeus, como Matisse e Cézanne.

Além da exposição em Mônaco, Volpi também tem algumas de suas obras, selecionadas por Luisa Strina, exibidas na galeria S|2, da Sotheby’s, em Londres. Apesar de não seguir uma escola definida, tem seu trabalho caracterizado lá como um “modernismo exploratório”. Desta forma, sua mostra vem acompanhada também de uma exposição do italiano Bice Lazzari. Além da mostra, que termina em 29 de março, a famosa casa realizará um leilão com trabalhos do artista, de com sessões em 13 de abril e 29 de junho.

Alfredo Volpi MoMA
Algumas das obras de Volpi expostas em Mônaco. Em cima, à esquerda, Fachada com bandeiras e arcos, 1950; à direita, Sem Título,1970. Abaixo, Sem titulo: composicao azul e preta com linhas vermelhas, 1959. (fotos: Divulgação)

 

Ella Cisneros doará peças de sua coleção para governo espanhol

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Ella Fontanals-Cisneros participou de conversa com Leonor Amarante, promovida pela ARTE!Brasileiros, em 2016. (foto: Ênio César)

 

colecionadora cubana Ella Cisneros comunicou na semana de abertura de ARCOmadrid, que irá doar obras de sua coleção particular para o Ministério da Educação, Cultura e Esporte da Espanha, em uma parceria para que seja criado um espaço para a arte das Américas em Madri. O local escolhido para sediar o que será chamado de The Contemporary Art Collection of the Americas é o segundo andar do edifício Tabacalera, onde ficava uma antiga fábrica de tabaco. O prédio histórico está abandonado desde 2009 e, há mais de uma década, existe um projeto para a criação de um Centro Nacional de Artes Visuais no local.

O anúncio acontece na mesma semana da ARCOmadrid, uma das feiras de arte mais importantes da Europa, na qual participam diversos artistas latino-americanos. Na ARCO, Ella recebeu, na noite de terça-feira (20), o prêmio “A” pela sua coleção. Enquanto não há arrecadação de fundos suficientes para a criação do Centro Nacional de Artes Visuais, o Tabacalera já tem sido usado para abrigar exposições e outras atividades temporárias. Porém, o projeto para que exista um local permanente continua a ser desenvolvido e começará pela revitalização do edifício.

No final de janeiro, Cisneros confirmou o fechamento do espaço permanente de exibições que mantinha em Miami, USA, desde 2006, a Fundação de Arte Cisneros-Fontanals (Cifo). Na ocasião, falou sobre uma transição para um modelo internacional de apresentações. Desta forma, a parceria com o governo espanhol pode ser vista como o começo dessa nova concepção da Cifo. A sede da fundação, porém, continua na cidade estadosunidense.

Assim como parte da coleção de CIFO, outras organizações ao redor do mundo também estão cotadas para assumir espaços no edifício. A gestão desse projeto será compartilhada entre o governo espanhol e uma instituição de artes internacional, cujo nome ainda não foi divulgado.

Além do espaço para exibição de trabalhos latino-americanos, a parceria também valida um pacto para a pesquisa de cultura latino-americana e suas herança artítica. Essa associação também é mais um passo para que a Espanha seja vista como um ponto de ligação entre essa arte a Europa. Em entrevista coletiva, Ella disse que se sente muito feliz porque passou “muito tempo pensando que a coleção precisaria de um lar onde o público pudesse ter acesso a toda essa arte latino-americana” que coleciona há anos e finalizou afirmando que a Espanha é como se fosse seu segundo lar.

Em 2016, a colecionadora participou do ciclo de debates TALKS, promovido pela ARTE!Brasileiros e a SP-Arte. Nele, falou sobre a coleção da Cifo e sobre as artes em Cuba, país onde nasceu.Leia abaixo o texto de Leonor Amarante sobre a colecionadora.

A abertura cubana também na arte

Por Leonor Amarante

Ella Cisneros é uma das grandes colecionadoras de arte da contemporaneidade. De origem cubana, deixou a Ilha ainda menina com a chegada da Revolução e voltou há cerca de três anos. São Paulo e Rio de Janeiro já fazem parte de seu roteiro internacional e é por isso que Ella esteve aqui para participar da edição do TALKS em 2016.

A colecionadora é um caso emblemático de como a arte pode ligar o homem a seu meio. Afinal, Cuba sempre esteve em sua alma. Nestes dias de distensão política, ela tenta encontrar sua voz artística na Ilha. Longe de seu país, reuniu em algumas décadas mais de 2.600 obras para sua Fundação de Arte Cisneros-Fontanals (CIFO), sediada em Miami. Agora, está pronta para ser uma Peggy Guggenheim de Cuba. Tem disposição de sobra para isso. Ella acredita que vai contribuir, e muito, para o desenvolvimento do sistema de arte cubano. “Posso ajudar, entre outras iniciativas, incluindo artistas da Ilha em exposições de qualidade internacional.” Gustavo Pérez Monzón, por exemplo, um expoente da chamada Geração 80 Cubana, já foi contemplado. “Organizamos a mostra Tramas, com 76 obras de Monzón, na CIFO.” Isso depois de a exposição passar pelo Museu Nacional de Belas Artes de Cuba, como parte da 12ª Bienal de Havana, em maio de 2015. Tudo orquestrado por Ella.

Suas simpatias artísticas também se voltam às instituições cubanas. Ella está restaurando o Arquivo Veiga, expressiva coleção de catálogos, documentos e textos sobre os artistas locais. “Estamos em fase de restauração, reorganizando e digitalizando tudo para colocarmos à disposição do público.” A colecionadora também quer participar do projeto El Almacén, que vai transformar um antigo depósito de gasolina em espaço para guardar a coleção do Conselho Nacional de Artes Plásticas (CNAP) e de outras instituições cubanas. Na verdade, espera mudanças nas leis cubanas que colocam limitações para instituições estrangeiras atuarem na Ilha. A arquitetura é assinada pelo francês Jean Nouvel e pelo cubano Pedro de Rodríguez e a inauguração está prevista para 2017.

Se nos fixarmos no conjunto de iniciativas e no estatuto dos empreendimentos gestados pela colecionadora, podemos concluir que Ella Cisneros, além de forte e poderosa, é enigmática. Seu projeto maior, no qual trabalha há vários anos em silêncio, é a megaexposição Goodbye Utopia, com obras de artistas cubanos desde a década de 50 até os dias de hoje. “Vamos levar a mostra aos quatro pontos dos Estados Unidos, em 2017.” O título soa provocativo, mas Ella tem a convicção de que depois da visita do presidente Barak Obama a Cuba haverá mudanças significativas. “A viagem gera segurança ao processo que Obama abriu durante seu mandato e dá continuidade ao projeto de intercâmbio cultural entre os dois países.”

Em sua passagem por São Paulo, no ano passado, comentou que os artistas brasileiros estão hipervalorizados e que o mercado tem variantes. “Uma delas se dá em função da economia mundial, e aí ocorre algo curioso. Antigamente, se havia crise, os preços logo baixavam. Hoje, como os mercados estão loucos, as pessoas procuram onde investir com um pouco de segurança, e a arte se tornou um desses portos seguros.”

A colecionadora compara o mercado de arte brasileiro ao dos Estados Unidos. “Aqui há pouca diversidade. O brasileiro compra artista brasileiro. É muito bonito ver como o mercado se mantém forte internamente, mas isso é reflexo dos altos impostos que são pagos para compras fora do País. Hoje, o real vem baixando, mas os preços continuam em dólares.” Ella comenta que isso afeta, sobretudo, os artistas emergentes, “pois no Brasil os novos custam o triplo do que valem iniciantes no exterior”. Ainda sugere que os colecionadores locais deveriam pressionar para a revisão dos valores. “Alguns mantêm parte das obras em suas casas em Nova York e é importante que possam emprestar às instituições brasileiras, para que todos possam vê-las.”

Obra sobre presos políticos é censurada na ARCOmadrid

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Peça de Santiago Sierra retrata 24 pessoas que foram presas por motivos políticos na Espanha. (foto: Reprodução/Facebook)

A Feira Internacional de Arte Contemporânea ARCO, realizada em Madrid, foi aberta para a imprensa nesta quarta-feira (21) e já gerou uma grande polêmica. A Instituição de Feiras de Madrid (Ifema), organização realizadora de feiras (incluindo a ARCO) na capital espanhola, solicitou à galeria responsável que a obra Presos Políticos, do artista madrilenho Santiago Sierra, fosse retirada de seu estande, alegando que ela poderia ser motivo de controvérsias.

Presos Políticos é um trabalho que reúne 24 fotografias de pessoas que foram presas por motivos relacionados à política. Os rostos estão pixelados e não existe identificação das pessoas retratadas. Apesar disso, no rodapé das imagens, estão escritas as causas pelas quais cada uma foi encarceirada.

Desta forma, é possível reconhecer figuras que recentemente esquentaram o levante pela independência da Catalunha, como Oriol Junqueras, presidente do partido Esquerda Republicana de Catalunia, e os líderes da Assembleia Nacional Catalã, Jordi Cuixart e Jordi Sánchez. Além da remoção da obra, a feira suspendeu uma conversa com o artista, que aconteceria no sábado (24), sobre os presos políticos na Espanha contemporânea. Santiago Sierra é representado pela galeria Helga de Alvear, sediada na própria Madrid e uma das mais importantes da Europa. A marchande, homônima da galeria, é inclusive uma das idealizadoras da ARCO.

Após saber que a obra teria sito vetada, o artista se pronunciou em seu perfil no Facebook, apontando a falta de respeito da intituição com a galerista Helga de Alvear. Sierra também escreveu que a atitude da Ifema prejudica a imagem da ARCO e também do Estado espanhol. “Acreditamos que ações deste tipo dão sentido e razão a uma peça como essa, que precisamente denunciava o clima de perseguição que nós, trabalhadores culturais, estamos sofrendo nos últimos tempos”, finalizou.

Apesar de possuir um comitê que faz a curadoria das galerias e obras que serão apresentadas, a ARCO permitiu que a obra fosse montada pela galeria e, poucas horas após a abertura, demandou que fosse recolhida, sob a justificativa de que, segundo nota da Ifema, os debates que a exibição da obra estava causando na imprensa estaria prejudicando a imagem da feira, da qual quinze galerias brasileiras participam. O que se fala entre a imprensa e o público, porém, é que teria sido uma decisão política, com pressão do governo espanhol, que tem influência sobre a Ifema. À imprensa, a galerista Helga de Alvear declarou que “alguém não deve estar querendo confusão com a Catalunha” (“Supongo que alguien no quiere tener jaleo con Cataluña”).

Com todo o escândalo em torno do episódio, a obra de Sierra, considerado um “artista difícil de ser vendido”, teve uma grande difusão e acabou sendo comprada por um colecionador espanhol, por intermédio de uma galeria catalã.

O preço final da transação foi de 96.000 euros, aproximadamente 385.300 reais.

Brasil na ARCO

Dentre as galerias selecionadas para apresentar obras na feira em Madrid, estão quatorze brasileiras, divididas entre Programa Geral, Opening e diálogos.

Apoiadas pelo projeto Latitude, são elas: A Gentil Carioca (com o coletivo de artistas OPAVIVARÁ!), Anita Schwartz (com Daniella Antonelli, Bruno Vilela e Rodrigo Braga), Athena (com Débora Bolsoni, Laura Belém, Rodrigo Bivar e Vanderlei Lopes), Baró (com Maria Lynch, Felipe Ehrenberg, Mônica Nador, Rasheed Arlen, David Medalla, Pablo Reinoso, Iván Navarro, Paulo Nenflídio, Túlio Pinto e Lourival Cuquinha), Casa Triângulo (com Albano Afonso, Alex Cerveny, Ascânio MMM, assume vivid astro focus, Eduardo Berliner, Guillermo Mora, Ivan Grilo, Joana Vasconcelos,  Lucas Simões, Marcia Xavier, Mariana Palma, Max Gómez Canle, Nino Cais, Sandra Cinto e Vânia Mignone), Fortes, D’Aloia & Gabriel (com Armando Andrade Tudela e Tamar Guimarães & Kasper Akhoej), Galeria Jaqueline Martins (com André Parente e Diango Hernández), Galeria Marilia Razuk (com Alexandre Canonico, Johana Calle, Marlon de Azambuja e Vanderlei Lopes), Galeria Nara Roesler (com Eduardo Navarro), Galeria Raquel Arnaud (com Carla Chaim, Célia Euvaldo, Frida Baranek, Sérgio Camargo e Waltercio Caldas), Luciana Brito Galeria (com Pablo Lobato, Liliana Porter e Héctor Zamora), Vermelho (com Ivan Argote e Dora Longo Bahia), Galeria Luisa Strina (com Juan Araújo e Carlos Garaicoa) e Galeria Cavalo (com Marina Weffort e Pablo Pijnappel).

A Fortes, D’Aloia & Gabriel também tem os artistas Rivane Neuenschwander, Jac Leirner e Ernesto Neto em uma coletiva intitulada Visiones de la tierra / El mundo planeado, na Sala de Arte Santander.

Olá, mundo!

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Miguel Rio Branco, marginal na essência

Em cartaz no MASP até 1 de outubro de 2017, a mostra Miguel Rio Branco: Nada Levarei Qundo Morrer apresentou uma seleção de 61 fotografias da famosa série Maciel, registrada, em 1979, no bairro homônimo em Salvador. Considerado um marco da fotografia brasileira, o trabalho investigou as ambiguidades entre público e privado, além de apresentar a figura feminina como símbolo de resistência.

Em 2011, a vida no ateliê instalado em Araras, na região serrana do Rio de Janeiro, espaço que desde 2006 tornou-se o lar de Miguel Rio Branco, foi tema de reportagem da edição 11 de ARTE!Brasileiros, que também retratou o cotidiano nos redutos criativos dos artistas José Bechara e Bete Jobim.

Escoltado por galos, galinhas, um casal de dachshund que atende pela alcunha de Café e Cacau, e uma basset chamada Capuccino, o artista nos recepciona na soleira de seu portão, na manhã de um domingo nublado que reduziu o belo trajeto de subida de serra a uma frustrante visão contínua de nuvens e rajadas de chuva.

Cansado da rotina das grandes cidades, o fotógrafo, pintor e artista multimídia, célebre pela profusão de cores em suas obras, encontrou refúgio e serenidade em meio a um bucólico vale de um verde predominante, que culmina na gigante Maria Comprida, montanha rochosa de quase dois mil metros de altura, que, reza a lenda, era habitada, em seu cume, por sacis-pererês e mulas-sem-cabeça.

Enquanto coa um café no subsolo da casa repleta de estruturas de madeira e vidro, Rio Branco defende que sempre esteve à margem de convenções: “De certa forma, sou marginal na essência. Uma pessoa que trabalha com fotografia, pintura, desenho, cinema, é também um marginal, porque o próprio sistema, o tempo todo, tenta definir você como uma coisa só”.

Diferentemente de suas fotografias, pinturas, filmes e instalações, que estimulam amplas subjetividades poéticas, Miguel Rio Branco é direto, sem meias palavras, como podemos constatar na entrevista a seguir, registrada na ocasião em que foi publicada a reportagem de 2011 e até então inédita, na íntegra.

ARTE!Brasileiros – Quando você passou a morar em Araras e como tem sido essa nova fase, Miguel?
Miguel Rio Branco – Vivo aqui desde 2006. Queria me afastar um pouco da cidade, mas ainda é algo que tenho de melhorar em mim. Tenho que me desligar ainda mais da questão das cidades e do estresse…

E você ainda vai muito ao Rio?
Não, vou bem pouco. Em média, duas vezes por mês.

Sua filha mais nova mora aqui contigo?
Sim, a Clara vive aqui comigo desde os 13 anos. Hoje, tem 16. Tenho também a Laura, a mais velha, que já está com 21 anos e estuda Produção em Exposições de Arte – eu ainda acho que ela deveria estudar Cinema (risos). A Clara mora e estuda aqui em Araras. Vai ao Rio aos sábados e na segunda-feira, de manhã, volta para as aulas.

Você teve uma vida de muito trânsito. Como foi viver em tantos lugares diferentes e, particularmente, no Brasil?
Nasci na Espanha e cheguei no Brasil com 3 anos de idade. Pouco depois, fomos morar em Buenos Aires, vivemos um tempo em Portugal e retornamos um breve período para cá, até que, dos 10 aos 14 anos, morei na Suíça. Fui alfabetizado em Portugal e voltei para o Brasil com um puta sotaque português e sacaneado por todos, era chamado de “Bacalhauzinho”. Depois, fui para o Colégio Santo Inácio e as coisas por lá também não deram muito certo. Fui ameaçado de ser colocado como interno em Friburgo e tive a sorte de meu pai ser transferido para a Suíça, onde vivi um período muito rico. Foi quando comecei a pintar no Instituto Flaureamont, um colégio, em Genebra, onde havia professores de Desenho que nos incentivavam muito. Foi aí que me preparei para a minha primeira exposição, aos 18 anos, em 1964.

E pouco depois dessa exposição você partiu para os Estados Unidos…
Sim. Em Nova York, vivi também um período muito bom, entre 1964 e 1967, tempos em que Bob Dylan e os Rolling Stones surgiram, uma época culturalmente muito poderosa. Voltei para o Brasil em 1967, e em 1968 ingressei na ESDI (Escola Superior de Design Industrial). Foi então que tive muito contato com o pessoal das artes plásticas. Fiz uma primeira exposição na Galeria Relevo, mas meu trabalho de pintura já não era tão intenso, já estava mais ligado à fotografia e ao cinema. Seguia outros caminhos, apesar de, tempos depois, nos anos 1980, eu voltar à pintura.

Sinais de maturidade também, uma vez que, em Genebra, você ainda era muito jovem… 
Sim. Depois é que percebi que tudo se conectava, que não havia essa questão de fazer apenas isso ou aquilo. Algumas pessoas, às vezes, me dizem: “Ah, não… Você é fotógrafo!”. Daí o cara vai em Inhotim e percebe que minhas coisas podem estar muito mais relacionadas ao cinema e às instalações do que com a fotografia. Atuo com várias conexões: cinema, música, fotografia. O problema é que ainda existem curadores que são muito ortodoxos e querem que sua exposição seja dividida. Teve uma curadora francesa que veio me dizer: “Ah, entendo seu trabalho, você está querendo fazer pintura com fotografia, você quer fazer pinturas”. Ora, mas isso é óbvio, pois eu sou parte pintura também!  A pintura é parte de minha essência e formação. Esse pensamento ortodoxo é uma coisa que, em termos de arte e criação, é profundamente negativo.

E reducionista… 
Reduz e empobrece. E existem poucos críticos com uma visão ampla. O Paulo Herkenhoff – talvez o mais interessante que eu conheço – é um dos poucos que tem isso. Uma pessoa que já foi artista plástico conceitual e tem uma abertura de mente muito interessante. Tem o Mário Pedrosa, que é um cara interessante, mas muito retido. O Paulo é rico em ideias. Fiz um livro com ele (Notes on The Tides, 2010), e pude perceber isso de perto. Tínhamos ideias que levavam a outras e revelavam esse lado generoso da arte, que é muito necessário. A gente não pode pensar em arte somente em termos de mercado e dizer “Não vou fazer isso, porque não vai render o que espero”.

Seu retorno da Suíça ocorreu às vésperas do AI-5, em meio a um turbilhão de acontecimentos. Antes de começarmos essa gravação, você comentou que, por conta das constantes manifestações, teve apenas três meses de aula na ESDI. Qual foi seu grau de engajamento nas questões sociopolíticas daquele período?
Sempre tive muita consciência política, mas nunca fui partidário. Sou talvez uma pessoa muito mais ligada ao sistema anárquico do que a esse sistema polarizado em direita e esquerda. Você pode ser de direita totalitária e também ser de esquerda totalitária. Achava interessante essa movimentação toda por aqui, mas confesso que tudo me parecia muito papo-furado, muito debate e conversa jogada fora. Na ESDI, as aulas pararam para que fosse discutida a possibilidade de refazer o currículo e torná-lo mais adequado à realidade brasileira. Com isso, todo o projeto de design baseado nas experiências da Bauhaus, simplesmente, dançaria. Acho que não dá para ter essa mentalidade de jogar uma coisa fora para construir outra. É preciso absorver as coisas mais ricas de cada parte do mundo. Em 1968, a repressão estava às vésperas de entrar em seu momento mais nefasto por aqui e, na época mais pesada, durante o governo Médici, entre 1970 e 1972, eu estava em Nova York. Sempre fui muito individualista, e meus protestos, minha raiva contra as injustiças sociais eram sempre colocadas nas minhas fotografias e nos meus filmes. Minha maneira de mostrar minhas convicções políticas era essa. Não era uma coisa panfletária, partidária. A riqueza do indivíduo tem de ser mantida sempre. Você, obviamente, tem de respeitar certas questões da sociedade em que vive, mas penso que existem maneiras inteligentes de se protestar, não acho que seja preciso pegar um revólver e sair dando tiros por aí.

Miguel Rio Branco e a dachshund Cacau, em seu ateliê. Foto: Luiza Sigulem

O fato de você ter se isolado aqui em Araras tem a ver com esse seu senso de individualidade?
Eu, de certa forma, sou marginal na essência. O fato de ser filho de diplomata, por si só, já atribui a alguém a marginalidade de nacionalidade. Ser uma pessoa que trabalha com fotografia, pintura, desenho, cinema, é também uma marginalidade em relação ao próprio sistema, que o tempo todo tenta definir você como uma coisa só. Eu estou aqui e continuo me sentindo marginal. Estou rodeado de pessoas de classe média alta com quem não tenho absolutamente nada a ver. Quando fiz o trabalho com os Caiapós e com outros índios, quis expor uma sociedade que oferecia alternativas à sociedade estabelecida. Várias ideias não consegui realizar, mas fiz fotografia de vários filmes de um cara chamado Alceu Massari. Filmes bem políticos, de denúncia de situações absurdas nas aldeias. Em 1983, convidado pelos chefes, eu consegui entrar em uma aldeia de Caiapós porque já tinha ido lá para fotografar um garimpo de ouro que havia na região. Foi uma experiência muito rica em termos de contrastes de sociedades. Dez anos depois, havia na aldeia uma cisão interna. Naquele período anterior, eles eram como guerreiros imperialistas e sobreviveram assim por muito tempo, mas dez anos depois já havia índios andando de helicóptero e avião.

Inevitável falar sobre o que está acontecendo em Belo Monte, com várias tribos sob risco de dispersão em massa.
Obviamente, a questão da energia limpa é fundamental. Não dá mesmo para encontrar saídas que impliquem sempre na devastação dos recursos naturais. Acho essencial desenvolver e investir em pesquisas de energias alternativas. Mas é uma grande violência querer levar conceitos de uma sociedade como a nossa, que já está tão decadente, para uma que ainda tem noções tão diferentes do que é o convívio em grupo. É uma coisa extremamente ruim o que está acontecendo em Belo Monte. Não vejo nada de positivo nisso. E tem outra questão fundamental: gerar mais energia para que? Para alimentar mais geladeiras e eletrodomésticos?! Vivemos em um sistema de desperdício, e essa obsolescência é um dos piores hábitos que a gente pode ter. Eu, por exemplo, que trabalhei muito com fotografia, aprendi a linguagem praticando e nunca tive fetiche por máquinas. Hoje, há uma enorme obsessão em relação às câmeras digitais. Tenho até problemas de conversar com outros fotógrafos, por conta desse fetiche.

O assunto é recorrente?
Sim, tem sempre alguém extasiado porque saiu uma nova câmera que faz isso, outra que faz aquilo. Na minha vida profissional nunca fiquei discutindo essas questões e não vai ser agora que vou entrar nelas. Isso é algo que está intimamente ligado a esse consumo desenfreado. O equipamento é uma coisa básica, que você precisa ter para produzir o que quer mostrar ou dizer. Ele não é o fim. É um simples meio e ponto final. Comecei a paginar no primeiro Photoshop e, pouco tempo depois que dominei tudo, veio a Adobe e lançou uma nova versão, com todas as ferramentas trocadas de lugar. Uma tremenda sacanagem, mas, claro, uma maneira de tirar nossa concentração, porque estamos vivendo a era da desconcentração. Então, voltando a Belo Monte, construir uma usina para gerar mais energia em um lugar que implica detonar a vida de várias aldeias é uma ideia criminosa. A população tinha que ter acesso a essas questões e participar do debate e das decisões. Não se pode começar um projeto desses já sabendo que existe uma porrada de mutreta, um monte de gente envolvida que vai levar muito dinheiro com isso. Nossos serviços públicos e privados são uma porcaria. Não tem um livro meu que tenha logotipo de grandes empresas e pretendo manter isso até o fim. Tem gente que quer produzir meus livros, me propõe um patrocínio xis, e digo francamente: “Esse cara não vou colocar em meu livro, de jeito nenhum! Meu telefone não funciona, como é que vou aceitar o apoio dele?!”. Lembro de uma ocasião em que estourou minha caixa de luz e os caras vieram no mesmo dia “resolver” o problema. Fizeram um gato e demoraram três meses para, de fato, trocá-la. Claro, substituíram por uma caixa eletrônica pior que, ainda por cima, aumentou meu consumo. Ou seja, estava melhor com o gato! Como posso receber dinheiro de uma empresa dessas em um projeto meu?! Simplesmente, não dá!

Além dessas questões, você também considera que o financiamento privado impõe concessões demais aos artistas?
Felizmente, ao menos o meio audiovisual tem hoje maneiras de não depender disso, porque a produção de cinema, por exemplo, barateou demais. Você faz um filme com uma câmera digital, monta no computador e consegue fazer um produto de qualidade. O grande problema é a distribuição. Como é que essa produção vai chegar ao grande público?

Uma independência que, no entanto, não atinge a esfera da cultura de massas… 
O problema é que a cultura de massas também é fascista e totalitária. Serve de controle. Os Estados Unidos provam isso. Propaganda descarada. Lógico que tem os meios alternativos de distribuição, como a internet. Essas coisas evoluem dia após dia, mas aqui, por exemplo, o fato de ainda termos uma internet tão lenta tem a ver também com esse controle. Não existe o interesse de que as pessoas interajam muito. Quanto menos, melhor. É a mesma questão do controle da educação.

Voltando a questão geracional, você, que assistiu todo o processo de perto, que balanço faz do período democrático recente?
Podemos fingir que a democracia existe, mas, na verdade, ela não existe. Quando George W. Bush foi eleito nos Estados Unidos, por exemplo, o mundo todo se deu conta de que nem mesmo nos Estados Unidos a democracia é tão democrática. O que houve ali foi uma eleição roubada.  Até hoje não entendo por que o Al Gore não teve culhão para reverter isso. A questão é que o interesse dessa gente está todo ligado a grana. O ideal americano é o dinheiro. Existe uma parte menor da população que realmente defende os ideais de liberdade do país, a liberdade de expressão, de se fazer o que quer sem ser interferido, mas, desde 2001, essas questões foram abandonadas e deram lugar a toda essa propaganda em relação ao medo da invasão do outro. Uma postura completamente fascista, de um país que se tornou fascista ao defender a luta contra os fascistas. Na Segunda Guerra Mundial, se os japoneses não os tivessem atacado, os americanos, muito provavelmente, ficariam neutros, pois eles tinham fortes alianças comerciais com a Alemanha. Por aqui, conseguimos instituir governos democráticos. Acho legal o fato da Dilma estar mostrando personalidade própria. Tem gente que diz que não, que é o Lula que continua por trás, mas discordo. Esses dias vi o mapa-astral dela no Globo e achei bem interessante. Ela é considerada uma sagitariana não ortodoxa, uma pessoa de poucos amigos, que está a fim de fazer as coisas certas. Vejo essa aproximação dela com o Fernando Henrique, por exemplo, como algo positivo. Eu, particularmente, não acho o Fernando Henrique nenhum santo. A própria questão da reeleição dele já foi um verdadeiro golpe. Mas isso tudo faz parte de um longo processo. Veremos o que vem pela frente. Não sabemos nem se, em 2012, virá um tsunami engolir tudo…

Você falou, há pouco, em mapa astral e agora no mundo engolido por tsunamis… O que pensa dessas coisas, Miguel?  
Todas essas questões fazem parte do autoconhecimento. São informações que você vai encontrando ao longo da vida e se perguntando se aquilo pode ter alguma verdade ou não. Essas questões não vêm só de gente picareta, não. Tem gente que consegue dizer coisas surpreendentes. É como o candomblé. Você pega um pai de santo e uma mãe de santo e eles são capazes de promover experiências que vão além da nossa compreensão. Estimulam essa parte toda do cérebro que a gente insiste em não aprender a usar. A sociedade faz com que a gente perca essas coisas, mas desde criança sabemos utilizá-las de forma intuitiva. O Museu do Inconsciente, por exemplo, criado pela Dra. Nise da Silveira, é para mim mais importante do que muitos museus de arte. É preciso conseguir um espaço que possibilite ao público ver direito o que é o acervo do Museu do Inconsciente. Estão agora fazendo um monte de novos museus e aposto que todos eles serão entregues na mão de publicitários. Para que fazer novos museus no Rio, se você tem, por exemplo, o Museu de Arte Moderna, que tenta retomar a vida depois de um incêndio e não consegue?! Para que mais museus? Claro, porque eles querem erguer monumentos para poder dizer “fui eu que fiz!”, mas entupirão esses museus de bobagens, como dar cursos para ensinar as pessoas a fazer arte. Ok, isso é válido, mas eles nem desconfiam que arte não é algo que necessariamente precise de curso. É preciso, isto sim, ensinar as pessoas a pensar de outras formas e a criar de outras formas. Receitas de “como se faz” podem ser uma questão de culinária, não de cursos de arte. Você não pode dar cursos unicamente para ensinar o camarada a se inserir no mercado. O mercado não comporta tanta gente formada só para isso.

Essa mentalidade pode levar o mercado a um esgotamento?
Acho que existe uma dose maciça de oportunismo. E quem ganha mais dinheiro são os produtores, agitadores culturais e intermediários que estão ali só para lucrar e ter cada vez mais poder. Pela Lei Rouanet o artista faz um livro e ele mesmo não pode ganhar dinheiro com sua obra, porque a contrapartida é a divulgação. O artista está sempre “promovendo” o trabalho dele e quem ganha mais é o produtor e o intermediário. Passou aqui pelo Rio, por exemplo, uma exposição sobre o Miles Davis, no Centro Cultural Banco do Brasil, em que a obra dele foi completamente diluída. Não deve ter vindo um terço do que havia na exposição original, que veio da França. Não parece uma exposição, parece um parque temático. Não havia, por exemplo, uma sala da exposição em que você pudesse entrar e passar o dia vendo vídeos do Miles Davis. Tudo muito fragmentado, detonado e diluído, porque até mesmo essa diluição faz parte do controle das pessoas. Você diminui as questões e controla as pessoas, para que elas não pensem demais, apenas se divirtam. Andy Warhol inaugura essa questão de colocar a publicidade como ato de criação, mas, a meu ver, 90 % da arte contemporânea de hoje é porcaria. Não dá para defender. Você entra em uma exposição e sai dela absolutamente sem nada na cabeça, um vazio enorme, não tenho mais saco para isso. Não tenho visto quase nada.

E o que você pensa sobre o fotojornalismo praticado hoje?
Hoje, o fotojornalismo é feito por qualquer um. Quem tem um telefone celular com câmera pode fazer fotojornalismo. Como isso também já está totalmente controlado, o que sai na televisão é o mesmo que sai nos jornais. Nunca achei que fazia fotojornalismo. Para mim, o que fazia era mais uma espécie de “fotodocumentarismo” com uma interpretação poética, uma construção diferente, como em uma exposição que eu fiz no Parque Lage, em 1978, chamada Negativo Sujo, que já era isso. Trabalhei para a National Geographic em 1979, fazendo um trabalho sobre menores abandonados que me levou a conhecer, depois, o Pelourinho e a fazer o trabalho com as prostitutas. Eu estava morando em Salvador, casado com a irmã do Mário Cravo – com quem eu tenho um filho, que é músico e tem 33 anos, Gerônimo Cravo Rio Branco, ele é baterista, vivia na Bahia e há onze meses foi para o Canadá. Nunca fiz, realmente, fotojornalismo. Tem uma moça, que era jornalista e hoje virou uma respeitada curadora, que uma vez me chamou de “fotorrepórter”. Fotorrepórter é a vovozinha dela! Eu nunca fiz fotorreportagem. Se a pessoa não tem capacidade de enxergar isso, como é que consegue se tornar curadora?!

As divisas entre a foto publicitária, o fotojornalismo dos veículos diários e das revistas semanais, defendem alguns críticos, parece estar cada vez mais tênues. Você concorda?
Concordo e digo mais: essas coisas se misturam há muito tempo. Vem também da paginação das revistas americanas, que sempre foi assim. Se você pegar uma das primeiras edições da Playboy americana verá que já naquela época tudo era misturado. Naturalmente, a única coisa que não era misturada era aquele folder do meio com o poster da playmate. Minha cultura fotográfica veio justamente de revistas como Playboy, Timelife, Elle. Era o que eu via de fotografia. Cartier Bresson, por exemplo, eu fui saber quem era por volta de 1979, 1980, por meio de amigos de São Pulo. Meu primeiro contato com a agência Magnum foi em 1972. Fiz um trabalho para eles em 1973, mas ninguém sabe disso, porque foi um contato passageiro. Eu estava voltando de Nova York e levei um portfolio para a Magnum, várias pessoas viram meus trabalhos, e Charlie Harbutt, não sei se ele era o presidente na ocasião, não me recordo, gostou muito do que viu. Mas não cheguei a entrar para a Magnum naquela ocasião, muito embora tenham encomendado um trabalho, mais voltado a uma antropologia visual que fiz, em 1973, em São Fidélis, no estado do Rio. Durante um ano, fiquei registrando a vida de uma família. Ia para lá, de dois em dois meses, e passava 15 dias com eles. Estudei fotografia em Nova York por apenas um mês – o suficiente, para mim – e nesse período que vivi lá, de 1970 a 1972, não tive contato algum com pessoas do meio da fotografia. Meu contato era com o pessoal das artes plásticas. Americanos e brasileiros como o Hélio Oiticica, que morava lá e chegou a me acolher por oito meses.

Nesse período você teve uma produção intensa de filmes em Super 8 que foram perdidos em um incêndio. Quantos eram ao todo? 
Em Nova York, fiz oito filmes em Super 8, mas perdi todos eles nesse incêndio. Filmes feitos de situações que eu criava e outras que eram tomadas ao vivo mesmo. Tinha um, de três minutos, só com luvas que eu ia achando no inverno da cidade e depois tacava fogo nelas. Tem um outro, que fiz quando morei na rua 3, em cima de uma base dos Hell Angels. Eu vivia com minha amiga Patricia Nolan, que também é fotógrafa, e certa noite ela estava sentada na janela, meio lânguida. Lá embaixo, um hell angel tentava fazer a motocicleta andar, querendo impressioná-la, e a moto não pegava. Um filme de três minutos, mas uma coisa muito interessante porque dizia muito sobre machismo e impotência.  Esse filme era lindo, se chamava Waiting for The Man, que era uma música do Lou Reed.

Sei, composta por ele nos tempos do Velvet Underground…
Sim, da fase Velvet Underground. Aliás, não conheço todo o trabalho do Andy Warhol, mas suspeito que a melhor coisa que ele fez foi justamente ter lançado o Velvet Underground, porque os filmes que ele produziu, simplesmente não dá para ver. Nem naquela época nem hoje. Eram tempos em que surgia também a body art. Hoje, o pessoal da body art está pegando aquelas imagens, trabalhos que não eram para ser comercializados, e estão vendendo tudo. Um absurdo! Por exemplo, aquele filme meu Nada Levarei Quando Morrer, Aqueles Que Me Devem, Cobrarei no Inferno não é comercializável, mas já houve mais de um galerista querendo fazer daquilo uma série limitada. Eu me recuso. Não tem nada a ver. O mundo todo só pensa em dinheiro e essa coisa ainda vai dar merda. Aliás, já está dando muita merda, e é por isso que eu acho que esse é o momento mais indicado de pensar – ao menos as pessoas que estão realmente interessadas em ter um mundo um pouquinho mais interessante – em todas essas coisas. Uma das grandes proteções que, a meu ver, ainda existe, é ficar fora das cidades, voltar para a natureza e não entrar numas de guerra, porque não vamos chegar a lugar nenhum. Não adianta confrontar. Aliás, falo isso, mas confronto muito, justamente por defender todas essas questões. É por isso que escolhi viver aqui… Esse lugar serve muito para eu tentar me acalmar um pouco.

O Carnaval já foi lambuzão

Cena do entrudo em rua do Rio de Janeiro, retratado por Jean Jean-Baptiste Debret – Foto: Reprodução

Entrudo. Parece um palavrão, mas é só o nome da festa precursora do Carnaval no Brasil. Inspirado em práticas medievais, o entrudo não tinha nada a ver com os bailes de máscara da Europa. No Rio de Janeiro, os foliões saíam às ruas para molhar e lambuzar os outros, em princípio com limões-de-cheiro, como eram chamadas as bolas de cera cheias de água perfumada, produzidas especialmente para a ocasião.

O problema é que, em vez de limões-de-cheiro, alguns espirravam outros líquidos, como groselha, café e até mesmo xixi. Para completar, jogavam farinhas, polvilhos ou outro pó que tivessem à mão. Nas ruas, o entrudo era uma brincadeira que reunia apenas escravos ou negros libertos. Uma das mais conhecidas imagens da festa é a aquarela Cena de Carnaval, de 1823, do francês Jean-Baptiste Debret.

Debret não só pintou a aquarela, como descreveu a imagem no livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil: “A cena se passa à porta de uma venda, instalada como de costume numa esquina. A negra sacrifica tudo ao equilíbrio de seu cesto, já repleto de provisões que traz para seus senhores, enquanto o moleque, de serina de lata na mão, joga um jato de água que a inunda e provoca um último acidente nessa catástrofe carnavalesca”.

Parte da elite também festejava, mas dentro de casa, como mostra gravura de Earle – Foto: Reprodução

“Sentada á porta da venda, uma negra mais velha ainda, vendedora de limões e de polvilho, já enlambuzada, com seu tabuleiro nos joelhos, segura o dinheiro dos limões pagos adiantado, que um negrinho, tatuado voluntariamente com barro amarelo, escolhe, como campeão entusiasta das  lutas em perspectiva”, continuou Debret.

Coube a outro renomado artista, o inglês Augustus Earle, deixar entre o seu legado uma gravura (acredita-se que de 1822) sobre o entrudo entre integrantes da elite da época. Isso porque parte da elite também entrava na brincadeira, mas dentro de casa. Considerado violento e ofensivo, o entrudo acabou proibido em meados do século XIX.

Elas são o samba

Tamara Ferreira é diretora de chocalho na concorrida bateria da Va-Vai, tradicional escola do Bixiga. Foto: Luiza Sigulem

Faltava pouco mais de um mês para o Carnaval de 2017 e Rosemeire Marcondes cortava dezenas de fantasias para o desfile da Lavapés em seu apartamento no bairro do Glicério. Uma das 40 crianças criadas pela fundadora da agremiação, ela tem uma trajetória que se confunde com a do samba em São Paulo. “Pela minha história de vida, eu tinha que odiar o samba: meu pai morreu por causa de uma baqueta de ouro num concurso. Mas acabei ficando, sendo criada nesse mundo”, conta.

Deolinda Madre, a Madrinha Eunice, foi quem passou a tomar conta de Rose após a morte de seus pais. Mulher negra, dona de quatro bancas de frutas na cidade, ela foi responsável pela fundação da mais antiga escola de samba em atividade em São Paulo. Era 1937 e a cidade tinha cordões, mas não escolas. “O que diferenciava era o estandarte”, explica Rose.

Nascida no interior de São Paulo, filha de africanos escravizados, Madrinha Eunice é mulher pioneira e figura notória no samba, apesar de não tão conhecida fora dele. Fundou a Lavapés após uma viagem ao Rio de Janeiro com o marido, onde se encantou com o desfile da Deixa Falar (hoje Estácio de Sá). Voltou à capital paulista decidida a fazer algo parecido.

Passou quase seis décadas comandando a agremiação que venceu sete Carnavais entre 1950 e 1964, desfilando como baiana e cultivando o samba entre a família, levando os netos, como os chamava, para a festa do Bom Jesus de Pirapora, base do samba paulista. “Ela falava muito da cultura dela, do negro no interior. Falava dos bailes, que o melhor baile de negro era em Piracicaba, o 13 de Maio. E falava da religião: ela envolvia muito o samba com essa mistura, dizia ‘eu sou católica apostólica, mas sou da quimbanda’”, diz Rose.

De 1990 em diante, Madrinha Eunice avisava a todos que estava para morrer. “Em 1995 ela disse: ‘Deste ano não passo’.” A morte veio mesmo naquele ano depois de complicações de diabetes que a fizeram ter as pernas amputadas. Um dia, desanimada por não poder andar, cantou sambas o dia inteiro, a noite toda. “Quando parou, dormiu e não acordou mais”, lembra-se a neta. O falecimento gerou discordância na família. “Na hora de enterrá-la, falaram: ‘Vamos enterrar com o pavilhão’. E eu disse: ‘Não! Vai enterrar a escola?’.

Verônica Borges, 32 anos, é socióloga, antropóloga e ritmista na bateria da escola que fica na zona leste de São Paulo. Ela toca caixa. Foto: Luiza Sigulem

Desde criança, Rose era apontada por Eunice como sua sucessora, e assim se tornou. A personalidade forte da avó foi a chave para seguir com a escola, com todas as dificuldades que a agremiação enfrentou ao longo dos anos. “Ela era demais, aonde chegava era mão de ferro. E quando ela falava ‘se vocês não me derem o que eu quero, vou contar o que sei’, ahhh… Aí era rápido!”, gargalha Rose. “Ela foi uma figura marcante, como mulher, trabalhadora e guerreira. Dona do seu próprio eu, ninguém mandava nela. E sendo negra, que na época era complicadíssimo e até hoje é, né?”

Rose hoje é uma das presidentes que atuam no Carnaval paulista, pelo Grupo 3 da Uesp (União das Escolas de Samba de São Paulo). A Morro da Casa Verde, do Grupo 1, é representada pela figura lendária de Dona Guga. Já no Grupo Especial, três escolas têm mulheres na liderança: Mocidade Alegre, com Solange Cruz; Rosas de Ouro, com Angelina Basílio; e Tom Maior, com Luciana Silva. No Rio, Regina Celi comanda o Salgueiro.

Para manter a agremiação, Rose segue a tradição ensinada pela avó: faz rodas de samba com comida. “Tem a ver com as tias baianas, com tudo o que vivi. As mulheres comandando na cozinha, e comandando tudo depois. Em Pirapora a mesma coisa: a mulher punha a mão no bumbo, e só aí que o samba ia embora.”

Das raízes dessa história

A fala de Rose evidencia a importância da figura feminina como fundamento das escolas, seja em São Paulo, seja no Rio, embora em muitos postos a presença de mulheres siga rara. A pesquisadora carioca Rachel Valença, que foi componente, diretora da ala infantil, ritmista e – após décadas de quadra – presidente da Império Serrano, explica um pouco essa questão por meio de sua própria experiência enquanto mulher branca e de classe média, que conheceu a agremiação da zona norte do Rio na década de 1970.

“Quando cheguei, estranhei muito como se dava a participação das mulheres. Em toda a cultura afrodescendente, a mulher tem uma importância grande porque se trata de uma cultura matriarcal. Então, a pessoa mais influente na Império era uma mulher, a dona Eulália. Ela nunca teve cargo, mas até morrer dava palpite na bateria, sentava com carnavalesco. Cheguei de fora, com outra cultura, e logo me convidaram para o departamento feminino, que organizava as festas, fazia os salgadinhos. Achei aquilo um absurdo. Só depois fui perceber que isso era uma coisa importantíssima, porque a preparação da comida é um ritual, a pessoa que alimenta na cultura negra tem o poder. Aprendi muito e acho que em todas as escolas de samba as mulheres têm uma importância enorme”, afirma Rachel, autora, com Suetônio Valença, do livro Serra, Serrinha, Serrano: O Império do Samba.

“As escolas jamais poderiam existir se não fosse a mão feminina orientando. É importante que as pessoas saibam que as tias baianas são as matriarcas, muitas ajudaram a fundar as escolas”, ressalta Leci Brandão, cantora e compositora pioneira no Carnaval carioca.

“A presença da mulher nesses espaços, por conta da posição da mídia, fica muito focada na corporalidade das mulheres negras, das passistas e rainhas de bateria, e não se contextualiza a escola de samba como um território de resistência e permanência política, e o papel das mulheres tanto na preservação dessa memória como ocupando diversos lugares”, diz a pesquisadora Kelly Adriano de Oliveira. Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, Kelly estudou as escolas paulistas e questões de gênero, raça e religiosidade.

Ela explica que o contexto pós-abolição é a chave para compreender a importância feminina no samba. “As mulheres continuaram o trabalho doméstico, enquanto os homens que trabalhavam nas fazendas ficaram sem função. Do dia para a noite, todo mundo ficou livre, mas não foi incorporado como força de trabalho. Dez, 15 anos depois, foi criada uma lei chamada Lei da Vadiagem. Se os homens ficassem nas ruas sem fazer nada eram presos. Quer dizer, eram presos porque não conseguiam colocação de trabalho. E as mulheres viravam chefes de família, elas que mantinham as tradições. Nesse movimento todo, entra o samba.”

Quando o samba começa a sair do ambiente doméstico, as mulheres perdem poder. “Ele vai para a rua,  se tornar algo mais do espaço público, e as mulheres começam a ser afastadas. Depois, aos poucos, foram se inserindo nesse espaço externo também”, diz Kelly, ressaltando que, no Rio, essa mudança do privado para o público começou mais cedo.

No galpão da Lavapés, Rosemeire Marcondes corta tecidos para as fantasias da escola da região central paulistana. Foto: Luiza Sigulem

Quem conduz e quem compõe

Assim como Rachel, da Império Serrano, que, além de presidente, tocou na bateria, Rose também atuou em uma área artística, entoando o samba da Lavapés por muitos anos. Mulheres intérpretes não são novidade – cantaram na avenida Leci, Dona Ivone Lara, Clara Nunes, Tia Surica e Beth Carvalho, só pra citar nomes bem conhecidos –, mas também nunca foram padrão.

Em São Paulo, a Unidos do Peruche desfilava nas ruas no fim da década de 1980 com Eliana de Lima na primeira voz, e na sequência veio Bernadete dos Santos. Aos 66 anos, ela traz a lembrança de ter sido a primeira cantora a entrar no sambódromo do Anhembi, em 1991, ao conduzir a Império Lapeano pelo Grupo 3 da Uesp. Esse episódio era apenas o início da carreira da cantora na avenida. Após virar a noite na rua acompanhando os desfiles, mal tinha se deitado quando descobriu, pelo rádio, que poderia cantar novamente. Só que dessa vez pela Peruche, no Grupo Especial.

“A Eliana de Lima (na época a intérprete oficial da escola, onde Bernadete vinha atuando como cantora de apoio) deu à luz na noite anterior ao desfile. Eu achei que eles não iam arriscar me dar a escola na mão, achei que iam trazer o Jamelão, que já tinha cantado aqui. Mas cheguei na escola e me falaram ‘é você quem vai levar a Peruche na avenida’”, conta.

Bernadete também nasceu no samba. “Meu pai era maloqueiro”, ri ela, enquanto aguarda para entrar em mais um ensaio de domingo na quadra do bairro do Limão. “Ele tocava violão de sete cordas, ia pro samba na quinta e voltava na segunda. Tinha um grupo chamado Conjunto em Preto e Branco, eles se reuniam na minha casa. Todos cantavam, minha mãe cantava com eles, mas não saía de dentro de casa. E eu cantava logo quando criança, e todo mundo falava ‘ela tem a voz boa’”, conta. Anos depois, foi essa voz potente que convenceu a diretoria da Peruche a deixá-la conduzir a agremiação no Anhembi.

Ainda no carro de som da escola, mas hoje não mais como primeira cantora, ela acredita que não há mulheres nesse posto por “machismo mesmo”. “Para eles, nenhuma mulher canta mais. No meu tempo vínhamos sozinhas, hoje são dez de apoio. Eu bato na cara deles todo dia, porque quando é para fazer evento sou eu que vou”, diz ela.

Além de cantar, Bernadete é presidente da ala dos compositores da escola. “Eu tenho muitas compositoras, trago elas pra cá, presto atenção nisso. Acho que temos que agregar.”

Paulo Sérgio Ferreira, diretor da Liga SP, que reúne as escolas do Grupo Especial e de Acesso, avalia em menos de 5% a porcentagem de mulheres na ala de compositores. No Rio, nos dois últimos Carnavais nenhum samba do Grupo Especial foi assinado por mulher. Embora no mesmo Rio, no fim da década de 1950 a Unidos da Ponte tivesse Carmelita Brasil como presidente e compositora. Já em 1965, Dona Ivone Lara entrava para a ala de compositores da Império Serrano, e em 47 ela havia composto, em conjunto, um samba para a Prazer da Serrinha.

Outra referência feminina, Leci Brandão chegou na ala de compositores de uma escola em 1971. Neta, filha e afilhada de mulheres mangueirenses, ela compunha havia sete anos quando foi apresentada pelo compositor Zé Branco na agremiação do Rio. “O presidente na época disse o seguinte: ‘Mas por que você está trazendo ela aqui?’. E ele: ‘Porque eu acho que seria interessante se vocês dessem essa oportunidade, ela já compõe’. O presidente então pediu que eu escrevesse uma carta  explicando os motivos pelos quais eu queria entrar na ala, e eu falei que seria muito importante participar daquela academia – que eu considero uma universidade mesmo do samba. E ali foi decidido que eu teria que fazer um estágio de um ano e, se passasse, receberia a carteira da ala de compositores. E isso aconteceu. Em 1972 eu desfilei na Mangueira pela primeira vez”, conta Leci.

Bernadete dos Santos, foi a primeira cantora a entrar no sambódromo do Anhembi, em 1991, pela Império Lapeano. Foto: Luiza Sigulem

Driblando no batuque

Quando, em 2008, a ritmista Verônica Borges pediu para tocar caixa na bateria da Nenê de Vila Matilde, escola da zona leste paulistana onde tocava agogô, ouviu “não”. “‘Você sabe, mulher não pode’ foi a resposta”, conta ela, que já tocava o instrumento havia alguns anos em blocos, “‘mas se quiser voltar pro agogô será sempre bem-vinda’”. Apesar da maior exigência de uma bateria do Grupo Especial em relação a de um bloco, ela sentiu que havia espaços predeterminados. Apaixonada pelo batuque, queria estar tocando onde fosse, e seguiu no agogô, instrumento cuja ala chegou a coordenar por um ano na Acadêmicos do Tucuruvi.

Socióloga e antropóloga, Verônica chegou ao samba via bateria Alcalina da Unicamp, onde estudou. Aprendeu ali a tocar todos os instrumentos, começando pela caixa e indo para o surdo. Em 2011, decidiu tentar a caixa de novo na Nenê. Para isso, arriscou uma estratégia ousada antes de falar com o mestre: na parada da bateria, ao som do coro da escola, pegava o instrumento de um amigo e solava. Diretores vinham do seu lado, percebiam que ela estava tocando certo e ficavam surpresos. Pediu novamente e ouviu um “sim”. Já no primeiro ensaio foi para a peneira (seleção de ritmistas) e passou.

“Hoje sinto que sou muito respeitada pelo ritmo que faço lá dentro, mas ainda vejo caras de espanto e admiração. Esses dias lembrei que, logo que comecei, tinha a lista com os nomes dos ritmistas e eu vi que tinha sido apelidada de ‘mina da caixa’”, conta ela, primeira mulher a tocar um instrumento pesado na escola. Assim como Bernadete, Verônica participa do documentário Bambas  (2017) sobre mulheres e samba, de Anná Furtado, uma das iniciativas recentes que aborda o tema, presente hoje em blocos (como o Ilú Obá de Min), grupos (como o Sambadela, do qual Verônica faz parte, ou o Mbeji) e rodas de conversa.

Apesar do frescor da pauta, ainda mais quando se pensa em bateria, registros apontam uma ritmista no couro da Portela (Dagmar do Surdo) lá atrás, em 1954, outra no tamborim da Vai-Vai em idos dos anos 1970 (Terezinha Benedita de Moraes, como conta o blog Batucada Feminina). A Mangueira foi a última escola a ter mulheres em seus naipes, em 2007.

“Temos que pensar que quem está indo além e quem chegou primeiro teve de derrubar mais portas”, diz Verônica. “Acho que consegui ficar tranquila na Nenê com o primeiro ‘não’ porque venho de uma bateria universitária, em que pude me fortalecer como ritmista.”

Foi a ideia de um ambiente acolhedor que a fez mudar de opinião em relação a baterias femininas, que se reúnem em ensaios. Como projeto do curso de Antropologia, já imersa nas batucadas, ela resolveu estudar a bateria de mulheres da Águia de Ouro. “Antes eu não curtia muito essa ideia, hoje acho que é fundamental ter um espaço para que as mulheres possam aprender, se desenvolver e fortalecer, contanto que esse espaço modifique a bateria geral. Porque o que eu vejo muitas vezes é na bateria feminina as mulheres tocando tudo, e na bateria geral tocando agogô, chocalho, mas não tocando surdo nem caixa”, pondera ela, que já ouviu como justificativa para a ausência feminina em certos naipes a força física, ao que rebate: “Resistência se adquire”.

Diretora na concorrida bateria da Vai-Vai, junto a Cintia Adelaide (no agogô) — as primeiras mulheres a ocupar esse cargo na escola –, Tamara Ferreira rege ali ala de chocalhos, mas toca quase tudo. Quis inicialmente tocar tamborim, hoje em dia quer aprender timbau. Aos 28 anos, a ritmista também acredita na importância das referências femininas. “Ao ver outras mulheres tocando a gente tem em quem se espelhar. E hoje a gente tem que tirar uma onda. A gente é mulher, está tocando e tem que tirar onda”, ri ela, que está sempre cheia de energia caminhando entre o grupo que ocupa as ruas da Bela Vista nas noites de ensaio

A morte como pena

Por dentro do PCC - A facção criminosa,
"Por dentro do PCC - A facção criminosa", que surgiu em São Paulo, foi tema da tese de doutorado de Camila Dias na USP. FOTO: Arquivo Pessoal

A editora Todavia acaba de lançar o livro A Guerra – Ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, escrito pelo jornalista Bruno Paes Manso e pela socióloga Camila Nunes Dias. Os dois pesquisadores e estudiosos da área se segurança pública e direitos humanos usaram como ponto de partida para o livro as rebeliões sangrentas que ocorreram no Brasil nos últimos anos.

Leia entrevista de Maria Carolina Trevisan com a autora Camila Nunes Dias, publicada na edição 114 da revista Brasileiros, em fevereiro de 2017:

O Primeiro Comando da Capital, PCC, nasceu oficialmente em 1993, quase um ano após o Massacre do Carandiru, em que 111 presos da Casa de Detenção de São Paulo foram mortos. O grupo foi constituído a partir de um “estatuto” que define princípios e valores, como lealdade, respeito e solidariedade, e luta por liberdade, justiça e paz , tendo regras e normas de conduta – “o Partido não admite que haja assalto, estupro e extorsão dentro do sistema”– e de comportamento –“jamais usar o Partido para resolver conflitos pessoais”.

O que pode parecer um código de ética em nome da paz da facção também indica penalidades violentas para quem não seguir os preceitos da carta.“Vida se paga com vida”, dizem os “irmãos”, como os integrantes se referem uns aos outros. As penas para os desobedientes podem ser humilhação pública, agressão física e execução. “Quanto mais alto o escalão e mais importante o seu papel na estrutura da organização, maiores os riscos de que a exclusão seja acompanhada de execução”, explica Camila Caldeira Nunes Dias, professora de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC e uma das mais respeitadas estudiosas do País sobre o grupo criminoso.

Camila conta que o PCC foi criado em São Paulo e os governos subestimaram a presença do grupo como organização. “O governador Geraldo Alckmin disse que São Paulo não tem nada a ver com isso. É claro que tem. As lideranças estão em São Paulo”, ela afirma.

Em sua tese de doutorado Da Pulverização ao Monopólio da Violência: Expansão e Consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no Sistema Carcerário Paulista, no departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, Camila define três fases do PCC: sua constituição e seu fortalecimento dentro dos presídios paulistas, entre 1993 e 2001, que culminaram com uma megarrebelião em 29 unidades prisionais; sua força nas ruas, de 2001 a 2006, quando uma série de atentados a bancos, supermercados e aviões pagadores evidenciou o poder da facção para além dos muros das penitenciárias, contrapondo-se à negação de sua importância pelas autoridades de segurança; e o estabelecimento de seu poder, a partir de 2006, quando se inaugurou um amplo conflito entre a Polícia Militar e o PCC, que assumiu a hegemonia do crime no estado de São Paulo.

Diante dos massacres atuais ocorridos nas penitenciárias do País, que já vitimaram 136 pessoas nos primeiros dias deste ano, Camila diz que construir presídios, como o governo responde aos conflitos, não é solução.

Para ela, que também integra a equipe de pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP, é preciso uma mudança profunda nas políticas de segurança para resolver a crise penitenciária e o caminho passa pelo desencarceramento.

Brasileiros – Em sua tese de doutorado, a senhora pontua três fases do PCC: o nascimento, o fortalecimento dentro e fora dos presídios e o estabelecimento de seu poder contra as forças de segurança. Diante dos recentes massacres em Manaus e Roraima, seria possível determinar uma quarta etapa?
Camila Caldeira Nunes Dias – Ainda é arriscado caracterizar essa nova fase de maneira mais definitiva, mas ela mostra a nacionalização do PCC e as disputas competitivas em razão dessa nacionalização. A característica não é mais o contexto do estado de São Paulo. Quando se espalhou pelo Brasil, outros interesses surgiram e foi gerado um conflito com outros grupos. A partir dos conflitos recentes, está claro que o PCC é uma organização com presença nacional, mas cujo centro de comando continua em São Paulo. A disputa pelo controle e pelas rotas de tráfico e o comando das prisões brasileiras em outros estados também caracterizam essa etapa.

Que papel teve o Massacre do Carandiru no nascimento do PCC?
O PCC surgiu um ano depois do Massacre, em 1993, a partir de um duplo homicídio que aconteceu na Casa de Custódia de Taubaté, quando os presos envolvidos fizeram um pacto, uma aliança de proteção mútua. Esses acontecimentos não resumem o processo, mas são marcadores importantes. A criação do PCC é decorrente do contexto de extrema violência que o sistema prisional de São Paulo vivia e o Massacre do Carandiru é o mais emblemático desses eventos, mas não é isolado. A política de encarceramento também é decisiva para sua criação.

Em termos de política de segurança pública, desde o Massacre até hoje, houve avanços? Ou estamos no mesmo lugar há 25 anos?
Sim. A única mudança que a gente pode identificar, em São Paulo pelo menos, é o maior cuidado, se é que dá para falar em cuidado, da Polícia Militar na invasão de presídios. Passou-se a evitar a entrada da corporação. A Secretaria de Administração Penitenciária, que ainda não existia, passou por um processo de autonomização da administração penitenciária. Foram criados grupos específicos de funcionários, não só de agentes penitenciários, mas para fazer a escolta de presos, a vigilância das muralhas, intervenção. Isso também é uma decorrência do Massacre do Carandiru e faz parte das consequências do aumento da população carcerária no estado paulista. O crescimento do sistema prisional exigiu uma estrutura burocrática administrativa separada e a criação de carreiras específicas para atuar no sistema.

Sobre os massacres no Amazonas e em Roraima, de quem é a responsabilidade pelas mortes dos detentos?
Independentemente de quem foram os assassinos, se policiais, agentes, funcionários ou outros presos, a responsabilidade pela vida da população carcerária é do Estado.

Ainda é obscuro o papel da Polícia Militar nesses massacres recentes…
É muito inquietante imaginar como todas aquelas armas de fogo foram parar nas mãos dos presos. Eram armas longas, grandes. Sinceramente, não vejo condições de isso ter ocorrido sem que houvesse facilitação ou participação direta de agentes públicos. A participação do Estado vai muito além de simples omissão. Essas armas não entram num presídio se não há conivência, participação mais robusta do Estado. A gente não sabe qual é o grau dessa participação ou até onde vai, se é um funcionário corrupto ou algo mais estrutural.

Que relação há entre políticos locais e facções criminosas? 
Acompanhei por alto uma investigação que ocorreu no Amazonas, a La Muralla, que girava em torno das relações da Família do Norte com políticos. Tudo sugere que esse evento de Manaus não aconteceu por acaso. Além disso, parece que a empresa que administrava o presídio (Umanizzare, que faz a gestão privada do Complexo Prisional Anísio Jobim, o maior de Manaus) tem uma promiscuidade na relação com o governo, com a secretaria. Todo mundo quer lavar as mãos. Há um ofício informando o governo e a secretaria, comunicando a entrada de armas de fogo no final do ano passado. Havia o pedido para restringir. Todo esse conjunto de dados evidencia que existe um componente, cuja dimensão ainda não sabemos, de participação do Estado.

É comum a existência de acordos entre governos e facções? 
Especialmente em São Paulo, não sei se a gente pode falar em “acordo” porque acho que Marcola (líder do PCC) e Alckmin (governador de São Paulo, Geraldo Alckmin) não se sentaram à mesa diretamente. Por isso, chamo de “acomodações”. Construiu-se em São Paulo – e talvez até isso esteja ameaçado – um quadro na segurança pública e no sistema prisional que tem uma estabilidade, em que se confia em alguns consensos. Uma questão basilar desse consenso é o fato de presos tidos como as principais lideranças do PCC nunca terem sido transferidos para o sistema penitenciário federal ou sequer terem entrado no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado, que submete o preso a um grau maior de isolamento). Estavam numa penitenciária que formalmente é comum.

O que significaria a transferência para uma penitenciária federal?
As federais têm capacidade muito maior de cortar a comunicação. O Brasil tem quatro desses presídios. São extremamente rigorosos em termos de regime disciplinar. Neles há a área do RDD e da pena que não é RDD. Mas mesmo a área “comum” é muito mais rigorosa que as penitenciárias estaduais: o preso fica numa cela sozinho, tem duas horas de sol, não tem televisão na cela, rádio. Nas estaduais, a realidade é outra. A maioria dos presos apontados como líderes do PCC está em Presidente Venceslau II, em São Paulo, onde há uma segurança rigorosa, mas não tanto quanto nas federais. Lá, os presos têm três horas de banho de sol, estão em celas coletivas, têm televisão e visita íntima. Uma operação do Ministério Público de São Paulo denunciou que os presos têm uma série de regalias. É uma informação significativa que ajuda a entender o cenário (a Operação Ethos aconteceu no final de 2016. Constatou-se que advogados, por meio de pagamento de propina a pessoas envolvidas com órgãos do Estado, visavam concretizar o objetivo de facções criminosas, de financiar o controle de agentes públicos e colaboradores).

Por que é uma informação significativa? 
Porque a imagem que se vende das penitenciárias estaduais é de que elas são muito rigorosas, de que os presos de São Paulo estariam nas penitenciárias de segurança máxima e não precisariam ir para o sistema federal. Com essa investigação do Ministério Público, várias coisas foram reveladas. Uma delas é que os presos gastavam milhares de reais com médicos, com coisas que a população comum do sistema prisional não tem. Fala-se, por exemplo, que Marcola queria colocar botox. Os presos dos outros presídios estão morrendo por falta de atendimento médico. Após essa operação, aqueles presos apontados como cúpula do PCC foram para o RDD. Fico me perguntando se o que aconteceu em Manaus seria coincidência.

No seu trabalho de doutorado, a senhora diz que o PCC tem uma dimensão regulatória. O que isso quer dizer? 
Dentro das prisões, todos os conflitos, as relações que podem carregar algum grau de conflito, são mediados pelos membros do PCC. Qualquer coisa que fuja às normas de convivência na cela é levada aos membros do PCC na unidade. Eles fazem a mediação do que aconteceu, ouvem quem acusa, ouvem o acusado e as testemunhas, e definem o que fazer, seja punição ou não. Isso vale para qualquer coisa que você imaginar dentro de uma prisão, desde as coisas mais banais e cotidianas. Existem unidades prisionais em São Paulo que têm 60 presos numa cela onde caberiam 12. Imagina o grau de conflitos dessa convivência, inclusive violentos. Nessa dimensão é que o PCC tem uma atuação importante em termos regulatórios e de mediação de conflitos. Essa atuação faz com que os espaços sejam mais pacificados do que eram há 20 anos. Por isso, o PCC conseguiu se tornar essa instância central de mediação e regulação. Hoje, um preso num sistema prisional não pode resolver um conflito por ele mesmo, da maneira que achar melhor. Isso é fundamental para entender como a violência física, especialmente os homicídios, caiu muito nos presídios paulistas.

Depois dos assassinatos dos membros do PCC no Amazonas, isso pode mudar?
Não sei. Mas essa dimensão da redução da violência física é uma das características mais importantes dessa terceira fase do PCC, demonstra sua hegemonia. O PCC só passou a prescindir da violência física direta como forma de regulação dos conflitos no momento em que se tornou hegemônico em São Paulo, e não é mais ameaçado por outros grupos.

Em declarações sobre os assassinatos em Roraima e Rondônia no final de 2016, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes (indicado por Temer ao STF no dia 6 de fevereiro), se negou a falar sobre as facções. “Não comento sobre criminosos”, disse. Como enfrentar a questão se não se considera a existência e a importância desses grupos?
Tendo em vista as pessoas que estão à frente dos ministérios, especialmente o Ministério da Justiça, é muito difícil falar qualquer coisa. Essas pessoas não têm a menor capacidade de encontrar uma solução para o problema. Primeiro, por incapacidade, incompetência. Segundo, porque não têm esse interesse específico. O interesse do ministro da Justiça é se eleger, ser um candidato viável eleitoralmente. Nada do que ele diz tem o objetivo de resolver o problema. Fala as bobagens que fala não porque não saiba da situação. Foi secretário de Segurança em São Paulo, portanto conhece o problema do PCC. Mas fala a partir dos interesses que tem de disputar eleições. É evidente. Durante esses 23 anos de existência do PCC, São Paulo nunca reconheceu o PCC como um problema. Desde que pisei pela primeira vez na prisão, em 2001, a presença do PCC já era ostensiva. Nesses anos todos, nunca vi o governador Geraldo Alckmin (que também governou o estado entre 2001 e 2003 e de 2003 a 2006, e está no governo paulista desde 2011) reconhecer publicamente o PCC como um problema. Todos os secretários de Segurança e de Administração penitenciária também não reconheceram, salvo Nagashi Furukawa (foi secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo entre 1999 e 2006), um dos únicos que tinham uma relação muito menos nebulosa e mais transparente com essa questão. Foi no período dele, por não fazer acordos ou acomodações, que ocorreram as maiores turbulências no sistema prisional. Era um dos poucos que admitiam o PCC como problema. Fora ele, todos os outros minimizaram essa existência.

Poderia ser ignorância ou falta de conhecimento dessas autoridades?
Não acho. Se tivessem reconhecido antes que o PCC tem uma atuação tão forte em São Paulo, tão presente e tão incisiva, e que até por isso os homicídios caíram no estado, talvez os governadores do mesmo partido que se sucederam não tivessem se prolongado tanto tempo no poder. Um dos grandes pilares de sustentação dessa continuidade dos governos do PSDB em São Paulo é a política de segurança, que é muito sensível eleitoralmente. Se tivesse claro, no meu entendimento e de outros pesquisadores, que uma das questões centrais que explica a queda de homicídios no estado é justamente a hegemonia do PCC, essa regulação dos conflitos dentro e fora das prisões, talvez a eleição ou reeleição fosse inviabilizada. Por tudo isso é que a questão do PCC, da segurança pública em geral, é muito sensível no que diz respeito a interesses político-eleitorais e não é tratada de maneira honesta, franca, em que os políticos reconheçam o problema para tentar minimizá-lo. Daí, a gente não consegue avançar.

O que São Paulo tem a ver com o que aconteceu no Amazonas e em Roraima?
O governador Geraldo Alckmin disse que São Paulo não tem nada a ver com isso. É claro que tem. As lideranças estão em São Paulo.

Como vê o Plano Nacional de Segurança divulgado pelo ministro da Justiça?
Na verdade, é mais do mesmo. Além disso, é péssimo até em relação ao que sempre tivemos. Como a imprensa em geral não se interessa pela questão prisional fora desses eventos de violência extrema, daqui a pouco as coisas se acomodam e ninguém vai mais falar no assunto, nem discutir daqui a dois, três anos com Alexandre de Moraes quantos bilhões de reais foram gastos nas penitenciárias federais que ele anuncia e por que estão sendo construídas. Ele fala em investimentos para construir cinco penitenciárias federais, sendo que as quatro que existem estão com vagas ociosas.

Construir presídios resolve? Ou piora a situação, que já é calamitosa? 
A cada nova crise desse sistema que está permanentemente em crise, a resposta das autoridades é construir prisões. Foi assim que o PCC cresceu, se expandiu, se fortaleceu e se tornou hegemônico. Foi assim que surgiram as facções em todos os outros estados do Brasil, como o Comando Vermelho. Dizer que vai construir mais prisões, que vai financiar para que os estados construam mais prisões significa dizer que vai aumentar o espaço de atuação dessas facções, vai crescer o número de presos e, portanto, o número de pessoas que estarão sujeitas ao controle das facções. Construir penitenciárias federais significa gastar muito dinheiro porque essas penitenciárias têm uma estrutura cara, e não vai resolver o problema. Gostaria de saber a explicação dele, considerando que as quatro penitenciárias federais têm vagas ociosas. O sistema federal não é para o cumprimento de penas. É voltado especificamente para punição, isolamento de líderes. Vai ficar impossível gerenciar.

Qual o objetivo do sistema penitenciário federal?
Ninguém sabe direito. A forma como vem funcionando é para o preso considerado líder de uma facção. Ele vai e fica um tempo. Inicialmente, não poderia passar de um ano. O sistema não é adequado à Lei de Execução Penal, no sentido de ter trabalho, escola, tudo aquilo que supostamente o detento precisa ter para a ressocialização. É um sistema diferenciado, que deixa o preso em isolamento, com pouco contato com outros seres humanos. O preso não pode cumprir pena ali, embora alguns estejam há muitos anos no sistema federal, totalmente ao arrepio da lei, não sei qual é a manobra jurídica para isso. Um deles é Fernandinho Beira-Mar. Daí, o ministro anuncia a construção de mais cinco desses. Não faz o menor sentido.

O que o ministro pretende com isso? 
Quando ele anuncia, a impressão é que está dando uma resposta ao problema. Temos especialistas que falam que uma das características da punição na sociedade contemporânea é que as autoridades dão respostas muito mais simbólicas do que concretas. Porque isso não vai ser cobrado, em termos de resultado, vai cair no esquecimento. A raiz disso tudo, para mim, é que essas pessoas têm seus interesses próprios, políticos, eleitorais e usam esses massacres para sustentar esses interesses, mas sem qualquer preocupação em efetivamente discutir e reconhecer o problema. Aí não tem como entrar numa discussão séria de política pública porque não é nisso que eles estão interessados.

A situação de violência nos presídios não vai parar tão cedo, não é?
Vivemos um momento de tensão no sistema prisional, que deve durar alguns meses. Mas acho que, para a própria dinâmica de sobrevivência, para não se dizimar, vai acabar encontrando um equilíbrio. Até que isso aconteça, estaremos vivendo turbulências. Uma alternativa seria colocar os líderes desses grupos para conversar. É claro que o governo nunca vai admitir publicamente e a gente provavelmente nunca vai ficar sabendo, caso isso aconteça. Mas acho que é uma saída. Isso aconteceu em outros países, como El Salvador. Em termos de encontrar solução, traria uma pacificação. É claro que não seria a solução do problema, porque novos conflitos poderão vir.

Existe solução para a crise nos presídios?
A solução do problema não pode deixar de passar por uma política de desencarceramento. E, claro, uma política ampla que envolva prevenção e atuação de forma mais específica sobre os presos que ficam encarcerados, trabalhar na reinserção, em um sistema de proteção ao egresso, à sua família. Ou seja, uma série de políticas articuladas que pensem no antes, no cumprimento da pena em si e no depois. É uma solução que precisa considerar médio e longo prazos. Mas não teremos isso. Teremos apostas eleitoreiras, de curto prazo, liberação de milhões e milhões de reais na construção de prisões, um ralo que não tem fim, e não vão resolver nada.

Da parte das forças de segurança, não teria que se repensar esse modelo de guerra às drogas, por exemplo? 
Quando falo que deveria ter uma política de desencarceramento, não tenho dúvida de que um dos elementos presentes numa política como essa teria de passar pela mudança de fato na questão do Estado em relação às drogas. Porque a gente sabe que a guerra às drogas é uma guerra contra os pobres. Os grandes fornecedores, os financiadores do tráfico não estão na prisão. Quando falo em política de descarcerização, um dos elementos centrais diz respeito a uma nova relação do Estado com as drogas, focada na prevenção e no atendimento aos dependentes, e não na punição, na repressão e no encarceramento. Hoje, no estado de São Paulo, cerca de 30% a 40% estão presos por tráfico. Isso representa uma quantidade significativa de pessoas encarceradas por tráfico e as penas podem ser altas. Se formos analisar os casos particulares, a maioria das pessoas é usuária que vendia pequenas quantidades de droga para sustentar sua própria dependência. Boa parte dos presos respondendo por tráfico de drogas é de pessoas pegas com pequenas quantidades. Seria necessária uma ampla discussão e rever toda a política que tem sido feita de guerra às drogas, que só tem contribuído para encarcerar jovens, cada vez mais jovens, que na verdade são pessoas que estão na prisão por conta de uma série de vulnerabilidades que as tornam suscetíveis a cair nas malhas do sistema de Justiça.

O que significam as imagens de crueldade registradas nos massacres recentes e veiculadas nas redes sociais?
Essa forma de matar com decapitação e mutilação é muito comum. Sempre falo que existe um componente forte do simbólico, de expressar publicamente um poder. Essa dimensão simbólica está amplificada com a difusão pelos celulares e pelas redes sociais. O fato hoje de circular as imagens exponencializa a importância simbólica desse tipo de morte, que tem o objetivo de explicitar o poder. A partir do momento que o PCC adquiriu hegemonia e se consolidou, esse tipo de ocorrência deixou de acontecer por que não seria mais preciso demonstrar seu poder, que está estabelecido. Em outros estados, especificamente num momento de disputa, essa dimensão simbólica adquire importância maior.

Acha que vai haver responsabilização do Estado sobre os últimos massacres? 
Acho que não. Para mim, todos aqueles que estavam em cargos de direção no momento dos massacres, teriam de responder criminalmente. As pessoas para as quais foram encaminhados ofícios e que nada fizeram tinham de responder criminalmente, inclusive a empresa que administra o presídio, nas várias denúncias de irregularidade. Acho que não vai acontecer. Nem no Massacre do Carandiru, em que os policiais apertaram o gatilho e atiraram para matar, o Estado foi responsabilizado