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Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985

María Evelia Marmolejo
María Evelia Marmolejo, 11 de marzo - ritual a la menstruación, 1981. Performance com forte motivação feminista e política

Por Leonor AmarantePatricia Rousseaux em entrevista com Cecília Fajardo-Hill Andrea Giunta

Que intransigência une mais de cem artistas e ativistas na exposição Mulheres Radicais, na Pinacoteca do Estado? O esforço desafiador das curadoras Cecilia Fajardo-Hill, venezuelana radicada nos EUA e Andrea Giunta, argentina, resultou no resgate de vários sujeitos, que atuam em cenários diferentes, mas ligados a desejos de experiências feministas, lutas pessoais, políticas e libertárias comuns. A tensão entre território e subjetividade perpassa pelo corpo feminino que carrega várias camadas de lugares. As 125 artistas e coletivos, vindos de quinze países, se expressam por meio de performances, vídeos, pinturas, fotografias, esculturas, cerâmicas, desenhos. Segundo Cecilia Fajardo, muitas obras produzidas por mulheres têm sido marginalizadas por uma história da arte dominante, canônica e patriarcal.

No caso da América Latina, a relação entre corpo e violência é central. Andrea Giunta cita prisões ilegais,torturas, nascimentos em centros de detenção secretos, roubo de crianças, em muitos casos, nunca solucionados. “ Essas são algumas das circunstâncias que marcaram a situação do corpo, em geral, e do corpo feminino, em particular, sob as ditaduras latino-americanas”. Motivação ritualística, feminista e política movem os trabalhos de María Evelia Marmolejo, presente na abertura da mostra, cuja obra Cecília Fajardo conhece bem e, evoca em nossas conversas, uma das mais vicerais, a 11 de Marzo. Para ela, a performance é como um ritual, uma celebração do corpo feminino e papel central das mulheres na origem da vida. María Evelia apresentou na conversa com jornalistas, algumas das razões que construíram o trauma na sua obra. Ela, quando jovem,  tinha uma menstruação caudalosa e sempre manchava, manchava a
roupa, os lugares onde sentava e isto era objeto de bullying, numa época em que o bullying não era reconhecido ou combatido. Sua história é uma história feminina não  necessariamente feminista.

Em montagem correta, se estende em salas a Pinacoteca e funciona como um grande vídeowall fragmentado em nove capítulos: Autorretrato, Paisagem do Corpo, Mapeando o Corpo, Performance do Corpo, Resistência e Medo, O Poder das Palavras, Lugares Sociais, O Erótico, Feminismos que têm como fio condutor de  uma pesquisa profunda da expressão de mulheres invisibilizadas na sua época. Muitas operam em seus trabalhos, não só em relação à misoginia, mas também em causas como a xenofobia, o racismo.

O diálogo entre opostos e a negociação das diferenças marcam a arte corporal que se impõe no conjunto da exposição e se abre para a reflexão sobre o lugar do corpo. Logo na entrada da mostra, o vídeo, de Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra, compositora, coreógrafa, expoente da arte afroperuana envolve o público num ritmo contagiante. Com coreografia pop, agente de ritos em tempos de massificação, potencializa manifesto antirracista, que pode ser resumido como: descobrir e assumir-se negra.

Nos anos furiosos da década de 1960 as artistas de performances tentavam desestabilizar o sistema, mas o comando ainda estava nas mãos dos homens. Marta Minujin é uma das raras artistas a furar o cerco ainda muito cedo. Com Rubén Santantonín realizou (A confusão), 1965, performance que envolve o público, parte alta da burguesia portenha, e o faz percorrer espaços labirínticos empoeirados até encarar um casal despido numa cama. A participação dos espectadores integra a poética dos anos 1960 e 1970 e também está presente em outros trabalhos da mostra como as terapias de Lygia Clark com objetos relacionais; na comida servida e devorada por Hirsch na performance (Formigueiro), de 1967; no convite de Margarita Azurdia em que propõe ao público tirar o sapato, relaxar e sentir a areia molhada. Essas artistas procuram evidenciar o que está dentro e fora da performance com outras contextualizações, significados e dimensões.

Celofane motel suíte
Márcia X. e Alex Hamburger, Celofane motel suíte / Não-roupas, 1985-1986. Uma das artistas chave de performance no Brasil sempre trabalhou temas que abordam sexualidade, erotismo, consumo.

As curadoras, em suas buscas, encontraram mapas de desejos, impulsos e zonas reprimidas. Foram surpreendidas com o diagnóstico de classificações médicas de histeria feminina, como trabalhou Feliza Bursztyn, além de referências irônicas à noção freudiana da inveja do pênis encontradas nos trabalhos de Maris Bustamante. Aqui em São Paulo não houve performance, mas no Museu Hammer, em Los Angeles, onde a mostra foi anteriormente exibida, um ritual de celebração marcou a presença de Regina Silveira. Os visitantes consumiram os famosos biscoitos em forma da palavra, que ela criou em 1976, cujo molde pertence ao acervo da galeria Luisa Strina.

No espaço dedicado a Mapeando o Corpo, destaca-se, inspirado no trabalho de Duchamp, 1919, em que Ana Mendieta cola em seu rosto a barba do amigo poeta e editor Morty Sklar, para captar a força e inspiração dele. A artista cubana foi levada para os Estados Unidos aos 10 anos, na famosa operação Peter Pan, com o objetivo de “salvar” crianças do regime local. No entanto, Mendieta nunca se adaptou ao novo país e demostrou isso escolhendo seu corpo desnudo e sangue na sua obra, elementos recorrentes até a sua trágica morte, não elucidada reúne histórias de uma revolução feminina ainda em curso e que atua como uma obra, com um material configurado numa cosmografia densa. A mostra traz o trabalho de Graciela Carnevale, ativista argentina que atuou no grupo á e optou por trancar os visitantes de sua exposição, na galeria, numa alusão à situação repressiva na Argentina durante a ditadura de 1966/1970. Em todos os segmentos da mostra temos chaves que dão acesso a segredos não contados em que o horror presente no território latino-americano revela a tentativa de sobrevivência. Colocar cada obra no espaço adequado desse mosaico, que em alguns aspectos invoca os demônios e em outros nos coloca diante de entregas comoventes, é uma progressiva imersão em uma América Latina sitiada. Em meio a tantas descobertas emergem o autorretrato e o retrato que trazem à tona questões, paradoxos formulados por sujeitos femininos que se ergueram contra representações canônicas do rosto feminino ao longo da história da arte.

Andrea Giunta frisa a idéia de que estas artistas rompem com o lugar do olhar o corpo e o lugar da mulher, que até o modernismo que estava de fora, agora muda para dentro. Da mulher para ela mesma e seus pares. Por meio do autorretrato, artistas como Anna Bella Geiger interrogam identidades em trânsito, como na série em que o cotidiano indígena aparece lado a lado a retratos de sua vida diária. O videoperformance de Lenora de Barros, 1984, é um divisor de águas literal da mostra: suspenso entre duas salas gera organicidade ao espaço. Com Lenora um texto escrito pode se transformar em vídeo, assim como uma performance desdobrar-se em videoperformance. Contrapondo-se ao discurso geral, Roser Bru, filha de militante catalão, reverencia a única escritora latino-americana a receber o Prêmio Nobel, a poeta chilena Gabriela Mistral. O que se produz entre o olhar e o espaço não passa despercebido entre as artistas mulheres e a violência é tema constante.

Anna Maria Maiolino se autorretrata com tesouras e lâminas postas entre sua língua, numa cena de tensão. O rosto vem à tona e se torna território de interrogações sutis na fricção entre desenho e fotografia, um território visitado desde sempre por uma das artistas chave da contemporaneidade, a argentina Liliana Porter. Quem se deu ao trabalho de folhear catálogos de bienais e exposições das duas décadas focadas pelas curadoras descobriu o apagamento da artista mulher. No entanto, a mostra descobriu e garimpou uma variedade delas, pouco conhecidas, trabalhando temas e estilos diferenciados, dentro de uma diversidade e resistência. Há ainda casos de apagamento por parte do sistema de arte como ocorreu com Carolee Schneemann que começou seu trabalho na década de 60 e só foi reconhecida internacionalmente anos depois. Foi premiada em 2017 com o Leão de Ouro na Bienal de Veneza. Andrea Giunta conta que nos sete anos em que levou para realizar a exposição alguns dados foram alterados na pesquisa. “Houve uma mudança na forma de abordar o feminismo. A figura do feminicídio e a violência com o corpo e a psique das mulheres foram se generalizando de forma impressionantes”. A “microfísica do poder”, como diz Michel Foucault é o poder que atua no cotidiano enquanto relação.

Para ele, o poder é produtor antes de repressor, produz maneiras de viver, produz realidades. Algumas das obras abordam o processo de mudança, a transformação do papel da mulher.

Muitas artistas as curadoras ainda não conheciam, foram descobertas durante a pesquisa e, para a mostra em São Paulo, foram inseridas mais quatro brasileiras. Quem comenta é Valéria Piccoli, curadora da Pinacoteca:  “Além das artistas que já expuseram no Hammer Museum, em Los Angeles, e no Brooklin Museum, em Nova York, incluímos trabalhos de Wilma Martins, Yolanda Freyre, Maria do Carmo Secco e Nelly Gutmacher”.

A intenção das curadoras é levar a mostra para algumas capitais da América Latina e Cecilia Fajardo afirma que, em cinco anos, só a Pinacoteca de São Paulo, com a ajuda de seu diretor Jochen Volz, conseguiu viabilizar a itinerância, mesmo com a crise econômica do País. chega ao Brasil para colaborar com a reflexão sobre o lugar da mulher, e casualmente em um momento de indignação sobre o descaso do governo atual frente a episódios como a morte da vereadora e militante Marielle Franco, ainda não solucionada pela justiça após cinco meses de seu assassinato, e os casos cotidianos de feminicídio reportados no Brasil. ✱

Painel debate geopolítica e arte no seminário da ARTE!Brasileiros

Da direita para a esquerda: Patricia Rousseaux, João Fernandes, Voluspa Jarpa, Aníbal Jozami, Diana Wechsler, Fabio Cypriano e Mario Pfeifer. FOTO: Marina Malheiros

*Fotos: Marina Malheiros

 

Aconteceu na última quinta-feira, dia 6 de setembro, no Auditório Ibirapuera, o V Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, intitulado “Arte Além da Arte”, com a participação de artistas, curadores, diretores de museus e historiadores de arte de vários países. O evento começou com a projeção do trabalho “Again”, do alemão Mario Pfeifer, e seguiu com o painel “Geopolítica e Arte”, com Aníbal Jozami, João Fernandes, Voluspa Jarpa, Diana Wechsler e mediação de Fabio Cypriano.

Primeiro a falar, o sociólogo argentino Aníbal Jozami, reitor da Universidade Nacional Três de Fevereiro (UNTREF) e diretor da BIENALSUR, destacou a importância da cultura na integração dos povos e de seu papel na diminuição das desigualdades e injustiças no mundo. “Porque pensamos isso, criamos uma Bienal que foi muitas vezes um ato de indisciplina” disse ele.

Em sua primeira edição, em 2017, a BIENALSUR foi realizada em 32 cidades de 16 países e, segundo Jozami, impactou de algum modo cerca de 25 milhões de pessoas. Para o sociólogo, fazer a cultura circular é uma forma de romper com a hierarquização vigente, que estabelece que o que deve reger o mundo é aquilo que foi pensado e criado no Norte. “Nós acreditamos que não há uma ordem hierárquica na cultura, na arte.”

Concebida inicialmente na UNTREF, em Buenos Aires, a BIENALSUR formou um comitê com integrantes de quase 30 universidades espalhadas por diversos países, inclusive de países do norte. “Porque para nós a ideia de sul não é apenas geográfica, mas uma perspectiva de mundo, uma forma de situar-se nele”.

Jozami falou ainda da importância de a BIENALSUR ser mais do que um conjunto de mostras, mas também uma plataforma de pensamento e de debate. “E assim criamos o projeto Sur Global, que a cada dois meses reúne artistas, críticos, curadores, sociólogos, filósofos e políticos de vários lugares para discutir sobre a arte e a cultura contemporâneas”.

Por fim, o argentino falou sobre diferentes eixos de trabalho da bienal, especialmente aqueles que tiveram impacto direto na vida de pessoas em regiões desprivilegiadas de várias cidades. “Porque eu acredito que é possível fazer a cultura circular e ir contra essa hierarquização vigente no mundo. É possível seguir sendo amante da utopia”, afirmou Jozami, antes de concluir falando da necessidade de romper fronteiras em um mundo que, infelizmente, ergue cada vez mais muros.

A segunda apresentação foi da historiadora de arte argentina Diana Wechsler, diretora artística da BIENALSUR, que expôs um pouco mais sobre a bienal e sua criação. Para ela, é notável que as relações hierárquicas do mundo contemporâneo também se revelem no campo da cultura. “Esta relação de centro e periferia no sistema capitalista atual está impressa também nas relações simbólicas, no âmbito da arte. Por isso, se esse mapa convencional nos impõe uma série de circuitos e hierarquias, nós nos propomos a desativá-las e repensá-las. Por isso falamos na palavra indisciplina”.

Wechsler explicou que a BIENALSUR propõe uma série de dinâmicas distintas daquelas instituídas em outros eventos do tipo, já que trata-se de uma bienal processual, deslocada no espaço e bastante horizontal em sua curadoria. Na primeira edição, a partir de uma chamada aberta para as propostas dos artistas surgiram eixos de trabalho, com temáticas como arte nas fronteiras, arte e ação social, intervenções no espaço urbano, questões ambientais, questões de gênero e imigrações, entre outros.

Ainda sobre a horizontalidade da BIENALSUR, Wechsler explicou que o evento realiza seus projetos tanto em museus e outras instituições de arte como em escolas, universidades e em espaços públicos de diferentes cidades; trabalha também com artistas jovens ou consagrados, de vários continentes, permitindo que eles que dialoguem e troquem experiências.

Por fim, a historiadora destacou a possibilidade da BIENALSUR “assumir as demandas sociais contemporâneas a partir da produção artística e incluí-las como problemas que possam fazer de cada mostra, de cada projeto, não só um espaço de conhecimento, mas também de pensamento”, permitindo que as pessoas sintam-se em diálogo com estes projetos.

Após as exposições de Jozami e Wechsler foi a vez da artista chilena Voluspa Jarpa falar sobre seu trabalho, ligado à história e suas representações, desenvolvido principalmente a partir da pesquisa de arquivos. A artista trabalha há cerca de 15 anos com os arquivos das agências de inteligência que os Estados Unidos tem desclassificado (ou seja, tornado público) sobre os países latino-americanos no período da Guerra Fria.

Segunda ela, suas razões para trabalhar com os arquivos “não provêm dos conceitos básicos da historiografia, da necessidade de verificar e contrastar fontes de informação para estabelecer um ponto de vista de disputa com o historiador”. A razão para se aproximar e mergulhar nos arquivos “vem do encontro com o apagamento e censura da informação, vem da não história ou, o que é mais misterioso, vem da dimensão do sigilo como questão de segurança nacional, sua histeria e sua mudez”, disse ela, relembrando que viveu a infância numa América Latina ainda marcada por ditaduras militares.

O início de sua pesquisa se deu com a desclassificação, em 1999, de arquivos referentes ao período ditatorial chileno, onde estão expostos detalhes sobre a participação americana na repressão violenta à opositores do regime. “Lembro do choque quando vi essas notícias, e da expectativa criada, já que pensava que iria se produzir uma grande agitação histórica no Chile a partir disso. Não aconteceu, mas para mim isso se tornou uma questão simbólica”.

A artista falou também do choque de ver que, mesmo nos arquivos desclassificados, havia muitas tarjas e riscos que impediam a leitura de todo o documento. “É um ato histérico de mostrar e reprimir ao mesmo tempo. E revela que em um documento de 1972, por exemplo, há ainda hoje razões para informações não serem reveladas.”

Voluspa Jarpa mostrou alguns de seus trabalhos envolvendo pesquisa de arquivos da inteligência.

Para Jarpa, pensar nas diretrizes geopolíticas explicitadas nestes muitos arquivos diz muito também sobre a cultura. “Pensar que isso não tem um correlato na arte é ignorar a plataforma histórica na qual nos movemos.” Segundo ela, uma das coisas que mais aprendeu em todo estes anos foi a entender a profundidade com que a geopolítica determina a subjetividade e a forma como os discursos circulam pelo mundo.

“Nós não temos suficientemente claro que ainda vivemos sob sistemas coloniais, não só econômicos e políticos, mas sobretudo psíquicos e subjetivos, que nos impedem de ver até que ponto nossas histórias e nossas decisões ainda não nos pertencem”, concluiu a artista. “Habitamos regiões que não estão suficientemente emancipadas. E quando produzimos, na arte, discursos de emancipação, acho que eles ainda não são olhados como discursos de emancipação.”

O último a falar no painel foi o português João Fernandes, diretor-adjunto do Museu Nacional de Arte Reina Sofia, de Madrid, que também foi diretor do Museu de Serralves, no Porto, entre 2003 e 2013, e curador em diversas bienais. Citando os trabalhos de Jasper e do alemão Mario Pfeifer, também presente no seminário, Fernandes começou sua fala propondo uma reflexão sobre a produção artística em um mundo cheio de desigualdades, exploração e opressão.

“É interessante a forma como tantas obras de arte hoje nos trazem essas evidências de problemas do mundo dos quais o mundo revela muito pouca consciência”. Para ele, muitas vezes a arte revela problemas escondidos e nos ajuda a problematizar discursos dominantes. Fernandes ressaltou, no entanto, um aparente paradoxo do mundo globalizado, no qual muitas vezes  “quanto mais informação, menos conhecimento temos”. “E até a própria proliferação da informação dos sistemas de comunicação artística contribuem para anestesiar socialmente muitas das próprias situações que acontecem.”

O diretor seguiu falando da importância da Bienal de São Paulo em seus primeiros anos na tarefa de descolonizar a história da arte; “descolonizar criticamente realidades que ainda hoje sobrevivem em relação a todo esse passado colonial eurocêntrico, homocêntrico, falocêntrico etc.”. Segundo ele, foi aqui que começou a ser assimilado, “comido, devorado e vomitado”, todo o discurso de dominação que marcou também a produção artística e o domínio geopolítico do mundo ao longo dos tempos.

“(…) temos que pensar como produzir a radicalidade de criar e problematizar novas linguagens artísticas independentemente dos sistemas da informação”, concluiu João Fernandes.

Após citar a Semana de 22 e a antropofagia, Fernandes falou da importância destes modelos de resistência surgidos na América Latina ao longo do século 20 e de como eles contribuíram com novas formas de fazer arte. Voltando aos tempos atuais, o diretor afirmou que “a arte tem absorvido muitos discursos produzidos fora dela e, se isso tem um lado positivo ao colocar em evidência fatos escondidos por uma ideologia dominante, também tem feito degradar e desintegrar aquilo que a obra de arte oferecia de diferente, da experiência dela, das suas novas propostas de construir formas de pensar, experienciar, sentir e divergir”.

O mais interessante, segundo ele, é pensar que a arte consegue estimular possibilidades de interpretação e conhecimento tão diferentes, “e isso é algo que só se consegue se a arte não abdicar e não deixar de aprofundar a radicalidade de um discurso próprio que ela sempre teve e pode continuar a ter”.

“Por isso não me interessa tanto uma ‘arte além da arte’, mas uma arte que faça parte do mundo, que saiba fazer parte dele, que nos mostre como a vida é mais interessante que a arte. Então temos que pensar como produzir a radicalidade de criar e problematizar novas linguagens artísticas independentemente dos sistemas da informação”, concluiu Fernandes.

2018 | 33ª Bienal de São Paulo, liberdade de criar o mundo

Lucia Nogueira, Sem Título, cortesia do artista, Catherine Petitgas

Uma Bienal mais horizontal, que privilegie o diálogo e não o pensamento único e que enfatize mais a fruição do que o discurso: esta é a ambição da 33a Bienal de São Paulo, que abre as portas para o público no dia 7 de setembro. Com tal intuito, algumas estratégias foram colocadas em prática. Diferentemente do que ocorre tradicionalmente com os curadores assistentes, em que o trabalho se dá de forma conjunta e sob a orientação do curador geral, foram convidados sete artistas curadores que tiveram ampla liber- dade para criar seus núcleos, sem interferência do grupo. Ao curador geral, Gabriel Pérez-Barreiro, coube – além da escolha desses sete parceiros, a seleção de 12 outros artistas que pontuam a exposição e a coordenação geral dos trabalhos. Para chegar aos nomes finais, os critérios foram bastante subjetivos. Pérez-Barreiro conhecia ape- nas dois deles, Waltercio Caldas e Alejandro Cesarco. Os outros cinco (Antonio Ballester Moreno; Claudia Fontes; Mamma Anderson e Sofia Borges) foram agregados ao grupo por qualidades variadas como a consistência do trabalho e a capacidade de aglutinar pensamentos e obras de outros artistas. O efeito surpresa é um dos grandes diferenciais desta edição da mostra. Em primeiro lugar porque os artistas- -curadores praticamente não interagiram e, em sua maioria, desconhecem o que os colegas conceberam. Em segundo porque tomou-se a decisão de divulgar muito pouco sobre a mostra. De maneira inédita, não foi divulgada este ano a lista completa dos artistas, os jornalistas não tiveram acesso ao Pavilhão em montagem e as sínteses apresentadas tanto na imprensa como nos meios oficiais de comunicação são excessivamente genéricas. Na entrevista abaixo, Pérez- -Barreiro fala sobre suas escolhas e estratégias.

ARTE!Brasileiros — Há uma grande diferença entre o planejado e o real?

PÉREZ-BARREIRO — Olha, seguimos o caminho que eu procurava, de abraçar esse processo aberto, diferente, de convidar os curadores e dar-lhes liberdade para conceber uma exposição. As surpresas são bem-vindas. Fazem parte do processo. Até porque tem muito artista que eu não conhecia. Acho muito positivo estar diante de uma bienal que, a princípio, não se limita aos meus conhecimentos, que são sempre parciais. Estou trabalhando com o desconhecido e com a confiança nos curadores. Acho que todos eles fizeram um bom trabalho. 

Ao contrário de outras dinâmicas de curadores assistentes, ou curadores parceiros, eles também não sabem o que o outro está trazendo…

Eu procurei um pouco isso. Quando você está vendo o que seu vizinho está fazendo, isso te afeta. É normal. E eu queria que eles trabalhassem meio sem limites e sem se intimidar ou pensar que deve dar uma resposta ao que está acontecendo ao lado. Teríamos o risco de virar uma conversa, o que não era o plano.

Ou seja, você quer a personalidade de cada um dos blocos reforçada e não diluída?

Muito reforçada. E como escolhi artistas bem diferentes um do outro, eu não queria que eles ficassem nem tentando fazer uma leitura do outro. O trabalho deles é construir uma exposição. É construir o mundo. Quero que cada um faça o que precisa fazer, sem interferência, nem da curadoria geral nem dos outros curadores. E de fato isso foi assim e foi intencional. Não estamos construindo uma exposição única.

Você acha que o fato de você chegar numa exposição sem saber nada ou pouco sobre ela, te permite um acesso maior ao trabalho, ou o contrário?

São os dois. A Bienal tem esses dois públicos. Tem um publico muito menor, numericamente, que é aquele muito especializado. Na primeira semana vem para cá os grandes curadores do mundo, a gente conversa de uma forma muito codificada. E depois você tem essas outras 900 mil pessoas que não necessariamente têm alguma informação. Para mim esse público é prioridade. Pessoalmente acho que a arte é interessante quando ela foge, abre outras possibilidades. A leitura que o pessoal vai ter não será necessariamente a minha e eu gosto disso. Não acho que a minha visão seja tão brilhante que todo mundo tenha que sentir exatamente o que eu sinto. O desafio do nosso tempo é a diversidade. A gente ainda tem muita dificuldade de entender isso, a diversidade na subjetividade.

Como dar conta dessa diversidade? No setor educativo?

Também. E na curadoria. E na arquitetura. Eu acho que eles têm que caminhar juntos. O projeto arquitetônico do Álvaro Razuk tenta não enlouquecer a pessoa. Ele foi escolhido porque não se coloca como autor. Cada núcleo tem uma linguagem arquitetônica diferente. Eu acho que num prédio cansativo, dessas dimensões, é importante criar variação na experiência física, deixando lugar para sentar, conversar. Vamos abrir um café no segundo andar, na metade do percurso para dar uma descansada. A Bienal está criando um espaço para pensar. E acho que a arquitetura tem que dar conta disso. É um pouco difícil chegar numa síntese, mas a sensação é que trata-se de uma bienal um pouco mais delicada, mais rebaixada. Não há menção a nenhuma obra espetacular? No projeto tem áreas que são super intensas, de densidade quase insuportável, depois tem des- canso. O que não tem é o gesto para espetáculo. Não tem ninguém no vão, por exemplo. Isso por- que como não teria como garantir a autonomia dos projetos com uma coisa que atravessa três andares – num gesto meio fálico. Todo mundo teria que trabalhar com isso. Com relação a essa leitura global da Bienal, eu não consigo imaginar. Estou muito contaminado pelo que eu sei, mas me interessa muito esse tipo de conclusão do público. Estou muito curioso em relação ao olhar dos outros.

Você escolheu 12 artistas. É um conjunto com uma grande diversidade. Imagino que isso tenha sido proposital?

Foi. Porque no início, quando você fica colocando post-it na parede, eu me dizia que se fosse muito parecido iria um pouco em contra ao espírito da coisa. E eu quis muito, em toda a Bienal, também me desafiar. Quer dizer, não trazer muita coisa que eu já conhecia. Foram poucos aqueles com quem trabalhei neste grupo. A maioria é formada por pessoas ou que eu tinha admirado por muito tempo sem nunca conhecer, como a Vânia Mignone, por exemplo.

Você se preocupou com a presença brasileira de alguma forma? Nesse grupo a presença brasileira é um pouco maior.

Sim. Eu me coloquei cotas nas minhas escolhas dos curadores. Metade mulher, metade homem, diferentes idades, um terço brasileiro, um terço latino-americano, um terço o resto do mundo. Quer dizer, fiz esse exercício, mas eles tinham toda liberdade, então num determinado momento fiquei até preocupado que ia ter menos brasileiros, então nas minhas escolhas priorizei isso um pouco. É chato esse trabalho, mas eu sei onde estou pisando. Tem uma expectativa sobre isso e não quero obrigar o brasileiro a fazer uma representação brasileira. Já passamos esse momento histórico. Então no final, acho que vai estar bem perto da minha intenção original.

Anibal López, El préstamo, Guatemala, 2000/2012

Cada um dos curadores escolhe uma questão que é de certa forma muito candente na produção contemporânea e que ecoa com suas próprias questões? Isso foi conversado?

Foi e não foi. Cada um deles seguiu uma metodologia diferente. Uma outra intenção secundária era que a Bienal fosse tipo uma aula de curadoria. Quem olhar com esse olhar vai ver que há sete metodologias curatoriais diferentes. Acho isso interessante porque a gente pensa muito a curadoria como uma coisa só. Vamos tentar colocar dois exemplos diferentes:o Waltercio escolhia a obra, a Wura escolhia a artista.

E o fato de os curadores serem também artistas? O diálogo se deu de forma diferente?

Acho que sim. Falando a pura verdade, sinto que cada um deles me inspirou. Isso é uma exposição que eu nunca conseguiria fazer. Acho que eles superam na capacidade de articular uma visão. Estou muito emocionado com o resultado e acho que nós, curadores profissionais, estamos acos- tumados a lidar com muita questão estratégica, pensando qual publico você vai atender fazendo isso ou aquilo. A Bienal me dá o luxo de ser surpre- endido. Essa liberdade de articular os interesses foi uma bela surpresa.

Neide Sá: uma mulher transparente

Neide Sá com sua obra 'Transparência', 1968.

Oúltimo livro do jornalista e romancista Edgard Telles Ribeiro, Uma mulher transparente, lançado este ano pela Todavia, desenha as marcas que a ditadura militar no Brasil deixa na vida de Gilda, uma mulher esfíngica. Na vida real, a artista carioca Neide Sá, nascida em 1940, não se assemelha um tanto à personagem com sua elegância noir. Quando a artista começa a produzir suas peças, em meados da década de 60 – e assinalada pelo movimento Poema-Processo (leia texto sobre livro do movimento aqui), do qual se destaca como uma das fundadoras –, não se pode negar que a artista transpõe seu olhar sobre o momento político do País.

São obras de Neide que ressaltam essa sua ligação com três Ps – política, poética e palavra –, que estão em exposição agora em Mulheres Radicais, na Pinacoteca de São Paulo, e em Arte-Veículo, no Sesc Pompeia.

Até recentemente, também faziam parte de Estrutura poética, ruptura e resistência, sua primeira individual na Galeria Superfície. O artista visual e diretor da galeria, Gustavo Nóbrega, não teve dúvidas de que Neide era uma artista que merecia um resgate substancial. Desde que começou a representa-la, se empenhou em inseri-la em grandes exposições.

Versão 1967-2010 de A Corda, exibida em individual da artista na Galeria Superfície.

No caso de Mulheres Radicais, ele conta, as curadoras Andrea Giunta e Cecilia Fajardo já haviam aparecido na casa da artista para convidá-la para fazer parte da exposição e pesquisar obras. Neide, no entanto, não sabia onde estava a obra, que no caso seria A Corda.

“Tinham obras que ela nem lembrava que existiam ainda e encontramos num depósito lá na casa dela”, conta o galerista. Dentre as obras encontradas durante sua pesquisa para a exposição em homenagem aos 50 anos de Poema-Processo no ano passado, que rendeu um livro, estava a obra pensada pelas curadoras, que prontamente foram contatadas por ele.

Durante a ditadura militar, a obra – composta por pregadores/clips, colagens de impressos jornalísticos e uma corda – ficava exposta na rua para que as pessoas fossem pregando as colegas, como num varal. “A polícia chegou a sequestrar algumas vezes essa obra dela, mas não sequestrava a artista porque não sabia quem era”, conta Nóbrega. Outra versão da obra  esteve exposta na galeria e, agora, outra faz parte da exposição no Sesc, mostra que reúne obras de artistas que realizam intervenções midiáticas.

A obra A corda’, de Neide Sá, em sua versão de 1967.

Outra obra da artista que manifesta seu posicionamento de forma eminente é Transparências (1968). Três cubos de acrílico em proporções diferentes, colocados um dentro do outro, com vinis adesivos colados letras. Dependendo da perspectiva pela qual é observada, palavras como ‘Guerra’ e ‘Paz’, além de formações onomatopaicas que remetem a sons de batalhas, são percebidas: “Na codificação da palavra, eles [Neide e o Poema-Processo] conseguiam passar mensagens que o regime militar não percebia”, aponta Gustavo. Ele explica que Neide foi uma artista que chamou muito sua atenção nesse percurso de pesquisa sobre o movimento porque, além de ser a única mulher atuante no grupo de vanguarda, teve uma produção muito grande tanto naquele momento quanto posteriormente.

Neide é transparente porque, em seu fazer artística, comunica-se de forma aberta e determinada. Por meio do uso habilidoso da semiótica e da construção de seus poemas visuais, instiga o público, que se transforma em um interlocutor na experiência do contato com a produção da artista.

Um Milton Dacosta camaleônico

Milton Dacosta, 'Construção sobre fundo vermelho', 1957

Publicada em 5 de setembro de 2018

 

Mais de uma década após sua última individual em São Paulo, Milton Dacosta é homenageado com retrospectiva na Galeria Almeida e Dale. A exposição
entra, ainda, no conjunto de tributos pelo centenário de nascimento do artista, ocorrido em 2015. Falecido em 1988, Dacosta não era adepto dos rótulos, tendo um percurso livre em sua passagem da figuração para a abstração, enquanto os colegas artistas disputavam a importância dos estilos.

Talvez essa disposição em se movimentar tenha sido o que fez de Milton um dos maiores pintores brasileiros do século XX. Para Paulo Pasta, artista muito apreciador da obra de Dacosta, isso tem nome: “Não tem precipitação na pintura dele, tem deslocamento. Eu acho que melhor do que abstração seria chamar o que ele faz de síntese”. Paulo não chegou a conhecer Milton, mas teve muito contato com sua obra e com amigos do pintor
fluminense: “Acho que esse caminho que ele faz para a abstração ele vai palmilhando isso passo a passo. Você percebe esse caminho dele. E como ele vai depurando as figuras. Eu acho isso muito bonito e uma resposta ética do Milton”, comenta.

A exposição na Almeida e Dale segue uma ordem cronológica, começando pelas pinturas dos anos 30, incluindo Autorretrato, de 1938. É nos anos 40 que se percebe a influência da metafísica italiana em Milton.

ACIMA, FIGURA, S.D. ABAIXO, MULHER COM ROSTO APOIADO SOBRE A MÃO, DEC. 1950

Para Pasta, que também carrega um gene metafísico em sua pintura, é uma fase na qual Dacosta “começa a evasão do figurativo para a abstração”. Mas, ao invés de De Chirico – como muitos apontam -, Paulo percebe uma influência  principalmente de Carlo Carrá e completa: “Eu acho que essa escolha dele por uma influência metafisica responderia também a sua vocação um pouco intimista e comedida. Acho que é de acordo de todos que ele faz um construtivismo sensível, muito brasileiro naquilo que ele tem de pudor e  discrição”.

Casado com a pintora Maria Leontina desde o final dos anos 40, trabalhou muito ao lado dela. Alguns boatos espalham que Milton teria se apropriado de características da obra da esposa no que produziu na década seguinte. É nessa década, inclusive, que ele participa da Bienal de Veneza e ganha o prêmio de melhor pintor nacional na II Bienal de São Paulo. Filho do relacionamento, o multiartista Alexandre Dacosta conta que algumas pessoas chegam a confundir o trabalho dos dois, mas discorda: “Eu acho que não dá pra confundir porque a pintura dela era uma coisa mais fluida, na dele era uma pintura mais assentada no chão, digamos assim”.

Nascido em 1959, Alexandre se lembra que, quando moraram em São Paulo na década de 60, o casal tinha um ateliê em meu próprio lar. Em uma espécie de edícula de dois andares, nos fundos da casa, Maria produzia no térreo enquanto Milton produzia no andar de cima. É claro, também, que o casal de artistas trocava figurinhas sobre seus estudos e ideias. Alexandre define essa proximidade de ambos como “uma proximidade de alma”.

Também dedicado à pintura, além de outras modalidades artísticas, o filho afirma que já tentou negar a influência de Milton naquilo que produz. Mas não conseguiu, quando viu já estava fazendo um trabalho ligado ao construtivo, tanto com traços do pai quanto da mãe. “A fase que estou fazendo agora chama-se desconstrutiva”, conta. Paulo Pasta também acredita que foi influenciado de alguma forma por Dacosta. O equilíbrio da luz entre cores compostas, apesar de usarem paletas diferentes, é para ele um ensinamento que aprendeu observando o trabalho do pintor que, para ele, “abandonou o realismo, mas nunca abandona o real”. A exposição na Almeida e Dale pode ser visitada até 24 de novembro.

Palermo, Palermo: Manifesta 12

A dupla italiana Masbedo Protocol. No 90/6, 2018. Comissionado pela Manifesta. Foto: Divulgação

Quando o Ministro do Interior da Itália, Matteo Salvini, proibiu o desembarque de 629 imigrantes do navio Aquarius, em junho passado, o prefeito de Palermo, Leoluca Orlando tentou contrariar a ordem: “Estamos convencidos que imigrantes não são um problema. Esta situação é uma oportunidade de defender os direitos de todos os seres humanos em se mover e viver no lugar que lhes convier”, disse Orlando naquele momento. Como os portos italianos são de cuidado do poder federal, os imigrantes tiveram que desembarcar na Espanha, quase uma semana depois. A defesa do livre trânsito, contudo, ecoou nos dias seguintes, quando o prefeito participou dos eventos de abertura da 12a. edição da Manifesta, a bienal itinerante da Europa, que segue em Palermo até 4 de novembro. Político raro, ele roubou as atenções dos jornalistas que acompanhavam os dias de inauguração, com discursos que contrastam com o cenário conservador e reacionário do mundo atual.

Nascido em Palermo, onde se formou em direito, Orlando, 71, estudou em Heidelberg, na Alemanha, com professores como os filósofos Martin Heidegger e Hans Georg Gadamer. Eleito prefeito em Palermo, em 1985, foi um dos líderes que conseguiu reduzir o poder da máfia, historicamente no controle da Sicília.

Manifesta
Jelili Atiku, Festival of the earth, Alaraagbo XII, 2018. Performance realizada no Planetary Garden durante a Manifesta 12 em Palermo. Foto: Divulgação

Desde então, foi reeleito quatro vezes e o mandato atual foi conquistado com 74% dos votos. Desde os anos 1990, quatro mil mafiosos foram presos e o discurso de Orlando a favor da imigração, consolidado na Carta de Palermo, de 2015, não é apenas teórico: nos últimos dois anos 400 mil imigrantes entraram na Sicília, quantidade impressionante para uma população de 5 milhões de habitantes.

Jardim planetário

Esse contexto não podia ser mais favorável a uma mostra como a Manifesta: “Queremos ser uma bienal radicalmente local e relevante, por isso é uma mostra sobre Palermo, e as questões essenciais aqui, de uma ilha entre três continentes, que luta contra o crime, contra o racismo e o aquecimento global”, disse Hedwig Fijen, diretora e criadora da Manifesta.

Desde 1996, a Manifesta já passou por 12 cidades europeias, começando por Roterdã, na Holanda, onde a bienal foi concebida, passando por São Petersburgo (2014) e Zurique (2016), nas edições mais recentes.

Em Palermo, a concepção da mostra teve início com um projeto conduzido pelo escritório de arquitetura holandês OMA, que criou o “Palermo Atlas”, uma compilação de informações da arquitetura, cultura e história da cidade.

A mostra em si foi organizada por um time de quatro mediadores culturais, dois deles arquitetos — o espanhol Andrès Jaque e o italiano Ippolito Pestelleni Laparelli, que também trabalha no OMA —, a artista holandesa Bregtje van der Haak — que participou da 27a Bienal de SP, em 2006, e a curadora suíça Mirjam Varadinis.

“Trabalhamos em conjunto tanto na seleção como na escolha dos locais, o objetivo foi buscar espaços que não costumam apresentar arte, já que há ótimos museus aqui, para criar um novo percurso pela própria cidade”, contou Haak à arte!brasileiros. Para tanto, a mostra se divide em 20 espaços, desde pequenas capelas, passando por imensos palácios, chegando no Jardim Botânico da cidade.

É de lá, aliás, que vem o nome desta Manifesta: “O Jardim Planetário”. O termo é  emprestado do botânico francês Gilles Clément que, em 1991, usou a expressão jardim planetário, para apontar como natureza e cultura humana são corresponsáveis na manutenção da Terra. A partir desse conceito, a mostra se desenvolve por três seções: Jardim dos Fluxos, Sala sem Controle, Cidade no Palco.

Na rua 

A parte da mostra no Jardim Botânico, contudo, é a que menos empolga na Manifesta, afinal é difícil competir com as plantas que crescem no local desde 1789, uma das referências mundiais para o estudo de espécies exóticas. Originalmente, o local foi criado para o cultivo e pesquisa de plantas medicinais pela Academia de Estudos de Palermo. Atualmente, ele possui mais de 12 mil espécies. Dos oito artistas que participam desta seção, o colombiano Alberto Baraya é o que melhor explora a relação com espaço, usando uma série bastante conhecida, na qual reúne plantas falsas e as apresenta como se fossem objeto de estudo científico, o que foi apresentado na Bienal de São Paulo em 2006. “É um trabalho que na verdade não consegui evitar aqui, afinal é totalmente adequado ao Jar-
dim Botânico”, afirmou, perto de uma vitrine com vários pedaços de limões sicilianos de cerâmica em um dos viveiros do espaço.

No entanto, é nessa fricção entre a cidade, seus locais e as intervenções dos artistas que a Manifesta se realiza de fato e um dos melhores exemplos disso foram as procissões realizadas na semana de abertura. Elas ocorreram inspiradas pelas dezenas de festividades religiosas que ocorrem ao longo do ano em Palermo, entre elas a da padroeira da cidade, Santa Rosália, um dos marcos da cultura siciliana explorada por Coppola nos filmes de “O Poderoso Chefão”, uma referência impossível de se evitar por ali.

O nigeriano Jelili Atiku, a italiana Matilde Cassani, e a dupla italiana Masbedo usaram as ruas de Palermo, cada um a seu jeito, criando situações que simularam procissões e festividades públicas. No caso de Atiku, a performance Festino dela Terra misturou as celebrações de Santa Rosália com arquétipos antigos da cultura Iorubá dos homens
verdes. Já Cassani ocupou o cruzamento mais suntuoso da cidade, Quattro Canti, com uma ação denominada Tutto, jogando milhares de papéis coloridos no local, uma referência à tradição barroca da cidade. Esses trabalhos fazem parte da seção Cidade no Palco.

Manifesta
Matilde Cassani, performance realizada em Palermo com a colaboração de Francesco Bellina e Stefano Edward. Foto: Divulgação.

Golpe

As obras mais contundentes da Manifesta fazem parte da seção Sala sem controle, uma ironia explicita ao termo Sala de Controle, e nela artistas como a cubana Tania Bruguera, o francês Kater Attia, o turco Erkan Özgen, a holandesa Patricia Kaersenhout e o italiano Filippo Minelli, entre outros, dão um tom político à mostra, ao retratar dramas contemporâneos.

Esses artistas se dividem em dois palácios: Ajutamicristo e Forcella de Setta, ambos exemplos de uma Palermo suntuosa nos séculos 18 e 19, mas decadentes após o período que a máfia dominou a cidade ao longo do século 20. Esse estado de quase ruína foi cenário para a peça Palermo, Palermo, que a coreógrafa alemã Pina Bausch criou na cidade, em 1989.

No palácio Ajutamicristo, Bruguera faz uma instalação em colaboração com Movimento No
Muos, contrário ao sistema chamado Mobile User Objective System (MUOS), utilizado por uma base norte-americana que controla drones para usos bélicos e cujas antenas parabólicas são prejudiciais aos habitantes de Niscemi, a cidade siciliana onde estão instaladas. A instalação é uma espécie de compilação dos materiais de protesto dos militantes italianos contra o MUOS. A artista norte-americana Laura Poitras também aborda
o mesmo tema, apresentando em uma projeção a região onde se localizam as antenas parabólicas. Já Özgen exibe “Purple Muslim”, uma instalação criada em colaboração com refugiadas sobre o impacto da guerra nas mulheres que fogem de zonas de conflitos, um documentário que retrata os traumas da violência a partir de relatos sensíveis. Finalmente Minelli pendurou no Palazzo Ajutamicristo dezenas de bandeiras de protestos de várias procedências, entre elas uma verde e amarela com a palavra golpe em destaque.

Atual e atenta a questões locais que merecem atenção global, a Manifesta 12 é uma edição vibrante, que explora Palermo de maneira respeitosa: ao mesmo tempo que revela espaços até então não visitáveis, os preenche com obras de impacto e conteúdos urgentes.

  • Leia também sobre a Manifesta 13, aqui.

Montblanc de la Culture Arts Patronage premia a artista Mônica Nador

Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage
Mônica Nador, homenageada pelo Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage Foto: Coil Lopes


Desde 2016, os curadores Sam Bardaouil e Till Fellrath foram colocados à frente da Fundação Cultural Montblanc com o objetivo de pesquisar e criar estratégias  junto à Fundação. Viajaram e nomearam curadores de várias partes
do mundo para auxiliá-los nessa tarefa. Formaram, assim, um conselho.

No Brasil, o curador responsável é Jochen Volz, diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo. A rede de curadores é denominada por eles como Curatorium e busca aumentar a escala de alcance da instituição.

Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage chega à 3ª edição no Brasil
SAM BARDAOUIL, JOCHEN VOLZ E TILL FELLRATH DURANTE A CERIMÔNIA DE PREMIAÇÃO EM 2017 NA PINACOTECA DE SÃO PAULO

Em 6 de setembro, a Fundação Cultural Montblanc agraciará pela terceira vez, com o Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage, um agente da arte no Brasil, pelo seu trabalho como patrono junto à sociedade. O Prêmio ocorre em 17 países em edições especiais. Os curadores acreditam que a arte brasileira tem um enorme potencial, daí a importância de terem escolhido um curador pelo Brasil para o Conselho.

Além de oferecer um prêmio a patronos, a Montblanc se dedica a investigar o surgimento de jovens artistas que estejam fazendo um trabalho interessante em seus países de atuação. Os selecionados são contemplados com uma bolsa de comissionamento para a produção de um projeto que, mais à frente, é incorporado a grandes eventos de arte ao redor do mundo, como Bienais.

Em 2016 e 2017, o Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage homenageou, respectivamente, a dupla de cineastas Luiz Bolognesi e Laís Bodanzky, pelo projeto Cine Mambembe, e Solange Farkas, pela Associação Cultural Videobrasil.

JAMAC

Neste ano, a 27a edição global e 3a no Brasil irá conceder o prêmio para o JAMAC, Jardim Miriam Arte Clube. Este projeto começa quando a artista Mônica Nador decide, em 2003, que precisava sair do conforto de Higienópolis e desbravar os espaços periféricos da cidade de São Paulo. Levou consigo uma enorme vontade de fazer a diferença na vida de pessoas que não tinham acesso ao universo artístico do qual fazia parte. Foi assim que, naquele mesmo ano, juntou e organizou suas ideias para abrir um espaço na parte marginalizada da Zona Sul de São Paulo. Espaço esse no qual conseguisse compartilhar com aquela comunidade o que ela e outros colegas artistas aprenderam ao longo de sua formação. A decisão de se mudar para o Jardim Miriam veio de um questionamento que Nador, ou Conca – como foi apelidada por suas irmãs e é carinhosamente chamada pelos mais próximos –, tinha desde os anos de faculdade. Ela conta que, quando esteve no curso de Artes Visuais entre 1978 e 1982, a formação excluía as questões sociais. A inquietação em torno disso e de outros fatores em sua vida fez com que ela se ligasse à problemática da pobreza: “Também me interesso por outras questões sociais, mas para mim o grande entrave é a distribuição de renda”, comenta.

Mas o JAMAC não seria possível, ela aponta, se a comunidade não tivesse abraçado a iniciativa e se engajado em seu desenvolvimento. A primeira pessoa que procurou ao chegar no bairro, por indicação de um amigo, foi o professor de geografia Mauro de Castro. “Eu tinha uma preocupação muito grande que era de perguntar se interessava para as pessoas que eu levasse um equipamento do tipo que eu estava propondo”, explica. Mônica não queria se impor, queria se integrar ao local onde escolheu viver e trabalhar: “Eu sempre quis construir as práticas a partir das necessidades locais e junto com as pessoas.” Mauro integra desde aquela época um grupo ligado a movimentos sociais chamado Núcleo Aparecida Gerônimo e representa uma espécie de liderança comunitária no Jardim Miriam. Nos preparativos para a implementação do projeto, Mônica se deslocava todo domingo para o bairro, se reunindo com Mauro e o coletivo para discutir e construir a ideia. Assim, aquele projeto tão pensado ia saindo do mundo das ideias.

Trabalho do coletivo Contrafilé. Segundo Mônica, a ação só foi possível por causa dos programa Pontos de Cultura, do governo Lula.

Em 2006, quando o JAMAC foi convidado para participar da Bienal de São Paulo, com curadoria de Lisette Lagnado, Mônica conheceu outra pessoa que viria a ser uma grande parceira em manter aparelho. Sob o tema Como viver junto, aquela edição trazia um grande trabalho com as periferias, recrutando também educadores que tinham alguma ligação com arte e cultura nas regiões marginalizadas da cidade. Foi então que Mônica conheceu Thais Scabio. Na época, a hoje cineasta ainda era estudante: “O trabalho deles era exercitar algumas experiências de sensibilização das pessoas da comunidade”, explica a artista.

Apesar de engajada nos saberes da arte e cultura, mesmo morando no bairro, Thais ainda não conhecia o JAMAC. O encontro mútuo gerou, desde aquele ano, muitos bons frutos e novos projetos. Thais começou montando um cineclube para exibir aos frequentadores do espaço alguns grandes filmes aos quais nunca tinham se atentado. Um tempo depois, já tinha uma proposta didática para formação audiovisual.

Foi aí que o JAMAC começou a oferecer, além do grafite, da estampa e outras propostas das artes visuais, um mergulho no mundo do cinema. De lá pra cá, muitos jovens se formaram. Brinca Mônica que muitos fugiam da oficina de estamparia para a oficina de cinema, e vice-versa, mas nunca houve ciúme por isso.

Nesses 15 anos de atuação do clube de arte na região, Nador diz que o que mais a marcou são as experiências humanas que adquiriu nos anos que se passaram: “A gente fica enorme. A diversidade é muito rica. A situação é muito rica. Eu aprendi demais com as pessoas daqui”. Ela conta que houve uma grande modificação na forma em que ela via o bairro nos anos que ali está: “Nós, em nossa bolha da classe média, somos um bando de ignorantes”, afirma. “As pessoas na periferia são muito informadas, muito articuladas. É diferente do que a gente pensava, principalmente nos anos 80 e 90. Tanto que eu vim pra cá em 2003, com a ilusão de que viria trazer a informação e a cultura”, completa.

Se antes a artista tinha um olhar um tanto colonizador para o Jardim Miriam, hoje ela consegue enxergar que o espaço também a formou: “Apesar da minha compaixão, eu ainda sim era muito branca”. Seu deslocamento de um dos bairros mais elitistas da capital para um dos bairros mais afastados fez com que ela enxergasse muito do
que era maquiado no lugar de onde veio: “Quando vim parar aqui, pensei: não é que em São Paulo tem preto mesmo? E não é que não tenha no centro, é que eles são  invisibilizados”.

Hoje, o maior sonho de quem gere o JAMAC, é ter um espaço fixo no qual possa ter a segurança que irá ficar: “Queremos comprar uma sede”, diz Conca. O que mais preocupa é saber se irão dar conta de conseguir um prédio para abrigarem todas as atividades que oferecem, tendo em vista que o atual é alugado, mas está sendo reivindicado pelo proprietário. “Não dá pra nós sonharmos muito, mas o que eu quero é que todo mundo tenha um JAMAC na esquina de sua casa”, admite. Para finalizar, ela cita José Martí: “Um povo sem a cultura nunca será um povo livre”. É por isso que acredita que a cultura
é tão diminuída, para que os poderosos neguem a liberdade às pessoas.

Arte além da arte?

arte além da arte

*Por Diana Wechsler

Pensar a arte, “além da arte” hoje, implica em se perguntar novamente sobre seus alcances e seus limites e, nesse caminho poder sustentar – hipotética e temporariamente – sempre, a consideração de que, de alguma forma, todo é arte ou não é.

Lembremos que o conceito de arte está inscrito histórica e culturalmente de forma precisa e que falar de “arte” hoje implica em se remeter, a priori, a considerações do Século XIX, que consideravam e incluíam dentro do conceito de ”arte” variáveis ligdas a necessidades representativas, mágico-religiosas, ornamentais, etc.

É certo que esta noção continua vigente em nossos dias e continua sendo eficaz, independentemente das suas limitações, para nomear certo tipo de imagens, objetos e atos. Justamente no momento em que a noção de arte se estabelecia, a historia da arte aparecia também como uma disciplina científica capaz de ordenar e pensar o sistema das imagens no ocidente europeu.

A partir daqui começamos a nos perguntar, em que medida, esta disciplina, formulada desta forma, teria condições de dar conta da diversidade da produção simbólica global, compreendida dentro da noção de “arte” e, ainda mais, dentro dos processos artísticos contemporâneos.

A expansão do seu campo de ação tem sido crescente. Nos últimos 40 anos, tanto os estudos dedicados as artes visuais, como varias das perspectivas interligadas -a sociologia cultural, a antropologia, a filosofia e a historia- contribuíram para ampliar o pensamento crítico e o repertório de objetos a considerar.

CHRISTIAN BOLTANSKI
CHRISTIAN BOLTANSKI (FRANÇA), MISTERIOS, 2017. INSTALAÇÃO APRESENTADA NO MUSEO DE BELLAS ARTES DA CIDADE DE BUENOS AIRES

Deixando sempre o debate aberto, tal vez seja necessário estabelecer alguns novos parâmetros. Situarmos a mirada e o imaginário em outro lugar, resignificar a apreensão de formas e imagens e como elas se constituem, de forma não só a ordená- las pensando desde a lógica de um “sistema”, e sim desde um lugar entrópico, procurando acompanhar seu des-orden, identificando e associando múltiplos vectores. Dado que o âmbito da produção contemporânea se expandiu – definitivamente os artistas estão cada vez mais impactados pelas esferas social, política, ambiental e procuram interferir/intervir de alguma forma- as produções simbólicas também precisaram ampliar sua caixa de ferramentas teórico-críticas, na busca de captar tanto as dimensões poéticas como sua complexidade e com elas dialogar com diferentes públicos.

Por outro lado existe a lógica do mercado que, insistentemente busca definir cidadanias e a cultura, precisamente o espaço da arte não é alheio a isto. Neste sentido, uma produção contemporânea com aspirações de incidir além dos espaços que lhe seriam naturalmente adjudicados, a lógica de obra única, de “cubo branco”, de aspiração museológica, contribui com o trabalho de emancipação do pensamento.

É a partir destas considerações que os formatos – de arte e para a arte – em que se insere a arte contemporânea demandam uma revisão e um replanejamento das relações entre os atores, os projetos e os espaços do “sistema da arte”: de artistas a curadores, críticos, colecionistas, até instituições – museus, centros, galerias, residências, centros de formação.

Neste sentido, o sociólogo Aníbal Jozami e eu pensamos criar uma plataforma, BIENALSUR que pense, além do sistema, procurando traçar outras vias para atravessa- lo. Criando regras que pudessem enriquecer (o sistema?) um pouco arrogante? Um cruze desde a sociologia e das relações internacionais e a partir de estudos culturais, junto a outras disciplinas, que permitisse analisar formas específicas e conhecidas dentro do sistema e repactuá-las, sem fugir de certas marcas da ordem geopolítica global.

arte além da arte

Decidimos trabalhar então, com alguns dos instrumentos já desenhados para representar o mundo: os mapas – instrumentos de ordem e controle de territórios – E, como forma de representar um dos aspectos marcantes de BIENALSUR, escolhemos um mapa cuja “Rosa dos Ventos” orienta, provocadoramente, onde se estiver colocado, ao SUL.

Pensar desde o SUL, não se remete somente aquela obra de Joaquím Torres García, e sim, um SUL global. Não se trata de uma questão geográfica e sim de uma tentativa de mudança do ponto de vista. Uma tentativa de “fazer girar nosso pensamento”. Podemos estar BIENALSUR, em São Paulo, Buenos Aires, Johannesburgo, Tokyo ou em Madrid o Svalbard.

Uma cartografia sem limites políticos, que presenta simultâneamente cidades-sedes de projetos artísticos escolhidos, por um conselho de especialistas, dentre uma vasta apresentação. A partir de uma convocatória aberta. Essa cartografia, longe de estabelecer fronteiras, propõe convivências. Coloca par a par, museus, escolas, espaços públicos, pequenas instituições. Estabelece convergência de temas e artistas de origens, formações e gerações variadas em exposições pensadas a partir dos projetos enviados pelos artistas, invertendo assim, a dinâmica habitual.

Este projeto que pensa criticamente os parâmetros instituídos nos permite refletir sobre as “bordas” que determinam hoje os contornos ou limites da arte. Desde onde enxergamos e como, o que fica fora ou dentro do nosso olhar, mais ainda quando exercemos um olhar crítico. Uma proposta indisciplinada é condição para expandir, desde o olhar artístico, os limites do pensamento para a emergência de um humanismo contemporâneo.

 

*Diana Wechsler é historiadora de arte, pesquisadora, diretora da área de cultura da UNTREF e diretora artística da BIENALSUR

V Seminário ARTE!Brasileiros debate os limites da arte

Diferentes perspectivas globais na experimentacao da arte no v seminário da artebrasileiros
Diferentes perspectivas globais na experimentacao da arte no v seminário da artebrasileiros

A arte contemporânea sempre estabeleceu vínculos com outras áreas, é só se lembrar de Beuys e a questão ecológica, nos anos 1970, por exemplo, ou mesmo as práticas terapêuticas desenvolvidas por Lygia Clark, no mesmo período.

Nos últimos anos, contudo, essa aproximação criou de fato relações muito estreitas, como ocorre com a agência de pesquisa Forensic Architecture, baseada na Universidade de Londres, e que é uma das candidatas ao Turner Prize, organizada pela Tate neste ano.

O grupo tem desenvolvido métodos pioneiros de investigações espaciais de violações tanto públicas quanto de corporações em todo mundo. No Brasil, o artista e cur`ador Paulo Tavares fez parte da agência inglesa, mas desde o ano passado ele criou a agência Autônoma, uma plataforma dedicada à pesquisa e à intervenção espacial.

A quinta edição do seminário internacional ARTE!Brasileiros tem como tema ARTE ALÉM DA ARTE para mapear obras, projetos, instituições e mesmo exposições que trabalham em um campo limítrofe entre arte e não arte. Tavares será um dos participantes segunda mesa da tarde, tocando na dimensão de advocacia da arquitetura/culturas visuais no contexto Latino Americano. Atualmente, ele também é cocurador da Bienal de Arquitetura de Chicago, que ocorre em 2019.

Na mesma mesa, estarão presentes o curador da 33a Bienal de São Paulo, Gabriel Pérez-Barreiro, para apresentar sua proposta; a diretora do Museu de Antioquia, Nydia Gutierrez, que desenvolveu uma aguerrida defesa da programação do Museu durante anos de luta entre as FARC e o governo e, Anneliek Sijbrandij, fundadora do projeto The Verbier Art Summit, na Suíça, criado para juntar anualmente artistas e acadêmicos e fazer reflexões críticas sobre a responsabilidade política e social do mundo da arte.

 

De novo

O seminário será aberto com a exibição da obra “Again/Noch einmal” (De Novo), do alemão Mario Pfeifer, comissionada pela 10ª Bienal de Berlim, atualmente em cartaz na Alemanha. O vídeo utiliza estratégias próximas às desenvolvidas pelo Forensic Architecture ao reencenar um caso de extrema violência e preconceito contra imigrantes ocorrido na Alemanha, há dois anos, recriando um júri popular que analisa o caso. Pfeifer vem a São Paulo e vai falar sobre sua obra no início do seminário.

No primeiro painel da manhã, vão debater Geopolítica e Arte o sociólogo e diretor da Universidade 3 de Febrero de Buenos Aires e diretor de BIENALSUR, Aníbal Jozami; o diretor adjunto do Museu Reina Sofia, João Fernandes; a artista chilena Voluspa Jarpa e a historiadora de arte, diretora diretora artística da BIENALSUR e diretora da área cultural da UNTREF, Diana Weschler.

Em cartaz em Palermo, na Itália, a 12ª edição da Manifesta, a bienal itinerante europeia (leia matéria na página xx), ocorre a partir do convite do prefeito da cidade, Leoluca Orlando, que vem marcando sua atual gestão pelo apoio à arte como forma de transformação social. Palermo é agora, em 2018, a capital cultural da Itália. “Há uma década, eu tenho certeza que não seria possível organizar um evento cultural do porte da Manifesta aqui em Palermo. A violência e a máfia não tolerariam”, afirmou Orlando na abertura da mostra há dois meses. Em seu quinto mandato não consecutivo na cidade, ele é um dos responsáveis pela transformação da capital da Sicília. Impossibilitado de comparecer pessoalmente ao Seminário, ele envia um depoimento exclusivo que será exibido durante o painel Geopolítica e Arte.

Para encerrar o Seminário, curadores e Chairmen da Montblanc Cultural Foundation fazem entrega do Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage ao JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) e à artista responsável pela sua criação e gerenciamento, Mônica Nador.

Poema-Processo: a vanguarda que deu ao poema status de objeto

Wlademir Dias-Pino Estruturas, 1966 Madeira, tubos e plástico

 

Gustavo Nóbrega, junto à Galeria Superfície, da qual é fundador, é responsável pela criação, pesquisa e edição do livro Poema-Processo, publicado pela Martins Fontes.

Nóbrega é artista plástico e vem de uma família de galeristas. Isso o levou, desde cedo, a ter um contato estreito com a arte. Seu olhar, porém, esteve sempre voltado para artistas que tivessem um trabalho de cunho mais poético ou outros que usam a palavra na imagem. Ele trabalha nessa vertente ora na pesquisa, ora nas exposições que resolve montar na galeria.  Foi assim com Leonílson, com Mira Schendel, e agora, na mostra que acabou de apresentar e que comentamos na página 64 da edição 44, com Neide Sá.

Esse foco o levou a encampar uma importante pesquisa sobre os artistas que fizeram parte da história da poesia visual no Brasil.

“Um dia eu vi uma matéria numa revista internacional sobre o Poema-Processo. Eu achei fascinante. E pensei: ‘como é que o Brasil não conhece isso?’. Fui atrás e, a partir daí, uma coisa levou a outra. Wlademir Dias-Pino, Neide Sá (Saiba mais sobre a artista clicando aqui). Fui descobrindo o mundo dos artistas que participaram dos diferentes processos e estabeleci várias conversas com eles. Essa foi a maior fonte de pesquisa.”, diz Nóbrega.


ENTRE 1956 E 1967, DA POESIA CONCRETA AO POEMA/PROCESSO, TRABALHO DE WLADEMIR DIAS-PINO, SÓLIDO, 1962. SERIGRAFIA, CORTES E VINCOS SOBRE PAPEL

O livro mapeia a 1a Exposição Nacional de Arte Concreta, inaugurada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956, que contou com a participação de vários pintores, escultores e poetas. Hoje, nomes consagrados como Augusto de Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, Haroldo de Campos, Ronaldo Azevedo, Waldemar Cordeiro e Wlademir Dias-Pino.

Em 1959, Ferreira Gullar assinava o Manifesto Neo Concreto, junto a Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis. Alguns deles tinham fundado o Grupo Frente no Rio, e outros o Grupo Ruptura em São Paulo.

Pouco tempo depois nasceu, em Natal, o Grupo Dés, cujo manifesto intitulado “Por uma Poesia Revolucionária, Formal e Temática” era assinado por Anchieta Fernandes, Dailor Varela, Fernando Pimenta, Jarbas Martins, João Charlier, Juliano Siqueira, Ribamar Gurgel e Moacy Cirne.

Baseado nas produções criativas desses grupos, os artistas viram a necessidade de diferenciar poesia de poema. “A poesia era tomada como um conceito abstrato, enquanto o poema era enxergado em seu aspecto táctil, material, passível de ser manipulado”, diz Nóbrega na apresentação do livro.  O poema ganhou status de objeto. Produziram-se assim, poemas para serem rasgados, queimados, degustados.

O movimento Poema-Processo, em 1967, surgiu paralelo à Tropicália, numa época onde qualquer ruptura criativa colaborava com a ideia de ruptura com a comunicação institucional da ditadura. Fundado por Wlademir Dias-Pino, Neide Sá, Álvaro de Sá, entre outros, o grupo chegou a ter mais de 70 artistas e poetas brasileiros participantes e até um uruguaio, Clemente Padin, e um argentino, Edgardo Antonio Vigo.

Wlademir Dias-Pino 1967

O grupo trabalhava com a ideia de processo, utilizando a linguagem como veículo. A partir daí, se construíam várias versões que se somavam por sua vez a diferentes estilos, o que permitia uma despersonalização da obra.

O livro, que tem até um texto original do crítico Frederico Morais para o Jornal Diário de Minas, de 1957, quando este tinha apenas 21 anos, intitulado “A poesia nas Artes Visuais”, traz à luz uma das vanguardas históricas brasileiras da arte contemporânea.

(Poema-Processo: uma vanguarda semiológica, 320 páginas, WMF Martins Fontes, R$ 120)