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Rio explicita conflitos do país

Foto: Vanderlei Lopes A democracia é um mito, 2018 Guache sobre bronze 3,5 x 40,5 x 30 cm

Sempre me pareceu contraditório que as condições da violência política e social no Brasil, especialmente os homicídios contra jovens e pobres trans, negros e indígenas, não gerassem obras e mostras contundentes com essa temática.

Claro, há casos isolados, e duas edições recentes da Bienal de São Paulo, 2014 e 2016, trouxeram essa questão de forma bastante explicita, em obras contundentes, como Apelo, de Clara Ianni e Débora Maria da Silva na Bienal. Como… coisas que não existem, de 2014. Mesmo assim, em um circuito tão intenso e vibrante, não são temáticas de fato presentes como se vê, por exemplo, em Israel, que também vive sob forte situação de conflito e onde muitos trabalhos abordam esses dramas de forma crítica, muitas vezes se opondo ao próprio papel do Estado.

Andre Griffo, A sala dos provedores, 2018

O Rio de Janeiro, sob intervenção federal deste o início deste ano, é possivelmente onde essas contradições se tornem visíveis de maneira mais evidente e não é, portanto, uma surpresa, que duas mostras tenham sido inauguradas em setembro passado explorando feridas que costumam frequentar apenas as páginas policiais ou da política, e não da cultura: Arte Democracia Utopia – Quem não luta tá morto (até 05/2019), no Museu de Arte do Rio, e Com o ar pesado demais para respirar (20/09 a 24/11), na nova sede da galeria Athena.

São exposições bem distintas, uma institucional, fruto de uma longa pesquisa do curador Moacir dos Anjos, outra comercial, mas com um processo de construção que partiu de uma provocação de Lisette Lagnado.

“Como o noticiário tem atingido seu cotidiano”, perguntou a curadora a cada um dos artistas representados pela galeria, que “viveram sua maioridade durante o período em que o país teve um governo de esquerda que assumiu como programa a redução da miséria e da fome”, segundo sua constatação no texto que acompanha a mostra.

Com essa estratégia, a exposição alcança uma temperatura às vezes até documental, que apresenta um quadro complexo da situação atual. Há referências ao incêndio que destruiu o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio, na obra de Frederico Filippi, Com o ar pesado demais para respirar, que dá titulo à mostra, composta por chapas de aço cobertas por tinta preta, sobrepostas por sua vez por desenhos e rabiscos em branco. É como se os resíduos do incêndio estivessem ali contidos. Quase ao lado, a pintura de André Griffo, “A sala dos provedores”, que representando um espaço museológico com retratos de “benfeitores”, reforça a crítica a uma elite branca, que parece incólume à realidade.

Matheus Rocha Pitta, Laje #77, (A primeira pedra) , 2017

A questão política, contudo, aparece de maneira mais explicita em obras de Lais Myrrha, Matheus Rocha Pitta e Vanderlei Lopes. É dele “A democracia é um mito”, uma escultura em bronze pintada com guache, onde se vê um jornal cuja manchete é o próprio nome da obra junto à imagem de um ônibus pegando fogo, sendo que a obra também foi levemente queimada. Em época de fake news, mídia partidarizada e eleições manipuladas, a
escultura é a síntese de 2018.

Rubens Gerchman
Identificados policiais da Chacina (Série Registro Policial), 1988
Colagem, espelho, óleo sobre madeira, telefone e televisão de plástico
150 x 166 x 25 cmJunto aos 12 artistas representados pela galeria – a maioria criou obras para a mostra -Lagnado reuniu um time de “históricos” como Antonio Dias, Antonio Manuel, Rubens Gerchman, Artur Barrio e Letícia Parente, entre outros, que nos anos 1960/70 também produziram trabalhos absolutamente voltados ao seu tempo, como as ”Trouxas ensanguentadas”, de 1970. Com isso, a curadora aponta para os tempos cíclicos da arte, da política e da própria sociedade, afinal,um distanciamento necessário para quem vive a barbárie dos dias atuais.

Já no MAR, Moacir dos Anjos segue a série de exposições que tiveram início em 2009 no projeto Política da Arte na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. Desde então, o curador organizou diversas exposições que trabalham essa questão, seja em galerias comerciais ou espaços institucionais. Arte Democracia Utopia – Quem não luta tá morto me parece a maior delas e, dadas as condições atuais, de uma cidade sob intervenção, que após 8 meses não resolveu o assassinato de Marielle Franco e Anderson Pedro Gomes, e de um país dividido em uma eleição após o golpe parlamentar, a mais forte de todas.

Esse contexto aumenta a tensão, obviamente, e Moacir soube trazer essa temperatura das ruas e das redes para a mostra, incluindo de tirinhas da Laerte às ações do coletivo #coleraealegria. Com isso, o curador aponta para situações limites, onde não interessa tanto de onde vem a ação, mas a importância de usar a linguagem em novas formas.
Nesse sentido, a presença de Claudia Andujar, uma artista sempre incluída nas exposições do curador, ganha caráter de precursora, já que seu trabalho com os índios nunca esteve preocupado com a arte em si, mas a defesa de uma causa.

Rivane Neuenschwander

O panorama construído por Moacir é amplo: são mais de 50 artistas e coletivas, que ocupam um andar inteiro do museu e apresentam distintas vertentes poéticas. Está lá ”Apelo”, o vídeo visceral sobre a morte de adolescentes pela polícia na periferia de São Paulo visto na Bienal de São Paulo, em 2014, a uma nova versão de “Rio Utópico”, de Rosângela Rennó, visto antes no Instituto Moreira Salles.

Rosângela Rennó, #rio utópico, 2018

A mostra, contudo, ganha ao questionar a própria estrutura da instituição, já que estruturas foram construídas sobre as paredes de vidro que limitam a entrada no MAR, permitindo que seja possível entrar no museu de outra forma, ao mesmo tempo que esse novo espaço seja ocupado tanto por debates como por coletivos que o desejarem. O próprio espaço expositivo também contem uma área para reuniões, e é por conta desse tipo de acolhimento que a mostra se diferencia de uma exposição convencional. Ela não é apenas um compêndio de arte e política, mas sim um espaço para se praticar arte e política.

Artistas e galerias do Brasil contra-atacam na Art Basel Miami Beach

Mendes Wood, com sede em São Paulo, Bruxelas e Nova York, mostra pinturas recentes de Antonio Obá que respondem ao recente exílio auto-imposto do artista afro-brasileiro na Europa e nos EUA Foto: Vanessa Ruiz

Por Anna Brady*, no The Art Newspaper

Mendes Wood, com sede em São Paulo, Bruxelas e Nova York, mostra pinturas recentes de Antonio Obá que respondem ao recente exílio auto-imposto do artista afro-brasileiro na Europa e nos EUA Foto: Vanessa Ruiz

As galerias brasileiras são a maior delegação de expositores latino-americanos da Art Basel em Miami Beach, respondendo por 14 estandes – e as respostas à recente e controversa eleição do presidente de extrema direita Jair Bolsonaro podem ser sentidas em torno da cidade esta semana. O ex-capitão do Exército, que toma posse em janeiro, foi apelidado de “Trump dos trópicos”, e suas opiniões controversas e a aparente falta de uma política cultural causaram alarme no setor de arte do Brasil.

Mendes Wood DM, com sede em São Paulo, Bruxelas e Nova York, mostra pinturas recentes de Antonio Obá que respondem ao recente exílio auto-imposto do artista afro-brasileiro na Europa e nos EUA. Obá recebeu centenas de mensagens ameaçadoras depois de sua performance em 2015, Atos de Transfiguração: O Desaparecimento de uma Receita para um Santo, em que ele tritura uma estatueta da Virgem Maria e derrama sobre seu corpo nu. A performance foi compartilhada por grupos de extrema direita nas mídias sociais no ano passado. O diretor da galeria, Renato Silva, diz que Obá, nas pinturas, está “tentando ressuscitar o corpo e a mente que [a extrema direita] roubou dele”.

MUITOS INTELECTUAIS DE ESQUERDA ESTÃO USANDO SUA AGÊNCIA NA ARTE PARA EXPRESSAR SUA OPOSIÇÃO À SITUAÇÃO POLÍTICA. MAS QUEM SABE POR QUANTO TEMPO MAIS PODEREMOS FAZER ISSO?

– MATTHEW WOOD, DA GALERIA MENDES WOOD

O artista agora está sendo processado pelo estado por indecência moral pública e danos a um objeto religioso. “Dada a nomeação de Bolsonaro, provavelmente teremos que tirá-lo do país ”, conta o co-fundador da galeria, Matthew Wood. A Mendes Wood também exibe trabalhos de Sônia Gomes, a primeira mulher afro-brasileira viva a fazer uma exposição individual em um grande museu brasileiro (Still I Rise, Museu de Arte de São Paulo/MASP, até 10 de março). Wood diz: “Muitos intelectuais de esquerda estão usando sua agência na arte para expressar sua oposição à situação política. Mas quem sabe por quanto tempo mais poderemos fazer isso?”.

O artista brasileiro Marcius Galan, cuja obra está exposta na Galeria Luisa Strina na feira, diz que, embora seja muito cedo para conhecer as políticas de Bolsonaro, alguns planos, como o “fim do ministério da cultura” e “a criminalização do ativismo”, são preocupantes. Apontando para o encerramento de uma exposição dedicada à arte queer no Centro Cultural Santander em Porto Alegre em 2017 após protestos, Galan diz: “Eu acho que artistas são o maior risco para um sistema autoritário de governo, então hoje uma narrativa cruel está sendo construído para desmoralizar artistas”.

A ascensão divisora ​​de Bolsonaro ecoa uma política cada vez mais polarizada em todo o mundo, desde a eleição do presidente Donald Trump nos EUA até o Brexit, o voto do Reino Unido para deixar a União Européia. “A população estava tão dividida – as famílias estavam brigando, as amizades estavam sendo destruídas”, diz Thiago Gomide, co-diretor da Bergamin & Gomide, outra galeria sediada em São Paulo que mostra a feira.

“Um pouco menos galerias brasileiras estão expondo em Miami este ano”, comenta Ariella Grubert, gerente de produção da Latitude – Plataforma de Galerias de Arte Brasileiras no Exterior. “Em 2017, apoiamos 16 galerias brasileiras na Art Basel em Miami Beach, mas este ano estamos apoiando 11. Acho que é porque é ano de eleições, há muita incerteza”, aponta Grubert. “Alguns artistas podem sair do Brasil por causa de Bolsonaro, mas outros estão pensando ‘este é meu país, e eu vou ficar’ – há um sentimento de resistência”.

*Publicado em 6 de dezembro no The Art Newspaper

Art Basel Miami Beach: pintura, cor e collage

Maxwell-Alexander , E para salvar o país, Cristo é um Ex-militar II, Galeria A Gentil Carioca.

*Patricia Rousseaux, diretora editorial da ARTE!Brasileiros, viajou a convite da feira.

 

há uma dificuldade natural em sistematizar a visita anual à feira Art Basel Miami Beach. Não apenas é necessário acompanhar 268 expositores, com 5 ou 6 artistas em média escolhidos, vindos de 35 países, como também é necessário constatar algumas tendências. Na presença maciça de galerias americanas, várias europeias e asiáticas, a pintura esteve notavelmente presente. Seja apresentando artistas consagrados ou mais jovens, uma irrupção de cor parece competir com escolhas minimalistas. Com o novo investimento de Art Basel em Hong Kong, o público americano que se desloca durante a semana, ganhou acesso a arte asiática.

Clássicos da pintura contemporânea como Philip Guston, 1976, foram vendidos no primeiro dia pela Hauser & Wirth (Zurich, London, Somerset, Los Angeles, New York, Hong Kong, London) por U$ 7.5 milhões.

Philip Guston, Shoe Head, 1976

Algumas galerias como a Goodman, fundada em Johannesburgo, na África do Sul, em 1966. Com espaços tanto em Joanesburgo como na Cidade do Cabo, representa artistas estabelecidos e emergentes da arte contemporânea na África do Sul.

 

 

Nyideka Akunyili Crosby, Tea Time in New Haven, 2013, Victoria Miro de Londres.O artista nigeriano  vive e trabalha em Loa Angeles Califórnia. A arte de Akunyili Crosby “negocia o terreno cultural entre seu lar adotivo na América e sua Nigéria nativa, criando pinturas baseadas em colagem e transferência de fotos que expõem os desafios de ocupar esses dois mundos”.

 

 

Milton Avery, Seaside, 1931 na Victoria Miro

 

Contundentes, a pintura e o collage estiveram nas mostras de Museus e Coleções que abrem suas portas durante a semana. Uma das maiores coleções privadas na América do Norte, a Coleção Rubell, na região de Wynwood, um grande bairro no qual localizam-se galerias de arte de design e espaços culturais, o espaço é aberto na semana, com novas aquisições.

Jill Mulleady, Finissage, 2017, nasceu em Montevideo, mora e trabalha em Los Angeles,CA.

 

Uma nova consciência e juventude

Daniel Jablonski, "Diante do Aparelho", 2016
Daniel Jablonski, “Diante do Aparelho”, 2016

Como os jovens veem o período de ditadura militar pelo qual o Brasil passou entre as décadas de 60 e 80? Esse é o recorte da exposição Estado(s) de Emergência, realizada pelo Paço das Artes. A mostra apresenta o tema pela perspectiva de artistas que nasceram na época da abertura política e redemocratização do País.

A exposição é apresentada na Oficina Cultural Oswald de Andrade, no bairro do Bom Retiro. Isso porque a instituição não tinha uma sede definitiva, tendo sido tirada da Cidade Universitária/USP em 2016 e funcionando no Museu da Imagem e do Som (MIS-SP) desde então. Em setembro, finalmente, o Paço recebeu a boa notícia de que terá um novo lugar para chamar de seu. Cedida pelo Governo do Estado de São Paulo, a casa da instituição agora será o Casarão Nhônhô Magalhães, em Higienópolis. A inauguração contará com uma exposição de Regina Silveira.

Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, “Comunidade”, 2011.

Estado(s) de Emergência, a última exposição do Paço antes de se fixar na nova sede, tem curadoria de Priscila Arantes e Diego Matos, e se forma na intensa vontade que a curadora, que também é diretora artística, tinha de falar sobre o assunto nessa perspectiva. O recorte se deu ao pensar sobre o próprio trabalho do Paço que, segundo ela, “trabalha nas bordas”. O projeto já vinha sendo realizado há dois anos, quando Arantes convidou Diego para realizar a curadoria conjunta, por afinidades em pesquisas.

“Trabalhamos muito com resistência. Não só no sentido temático e político da palavra, mas micropolítico também. Ampliando a palavra: uma arte que resiste a entrar no mercado, que cria críticas em relação a pensamentos hegemônicos”, diz Priscila. Muitos dos artistas selecionados –  como Lais Myrrha, Daniel Jablonski, Rafael Pagatini e Romy Pocztaruk – já passaram pela instituição em trabalhos para a Temporada de Projetos, realizada todo ano. Para Diego, o tema sempre o fascinou e o inquietou desde sua formação escolar. Ele já havia realizado uma exposição no Paço, pela Associação Cultural Videobrasil, com certa similaridade a essa. Ele pontua que a exposição também reflete outras, como o Estado de violência no Brasil. “A ideia de um Estado extremamente conflituoso e a ditadura talvez seja última sombra disso”.

Fernanda Pessoa, Histórias que o Nosso Cinema (Não) Contava, 2017. Stills do trailer

A história de ditaduras ao redor do mundo, especialmente na América Latina, já tinha sido abordada em outras mostras ao longo da existência do Paço. As mais conhecidas talvez sejam as individuais Operação Condor, do português João Pina, realizada em 2014, e Migrações, do argentino Marcelo Brodsky, que aconteceu em 2016.

Diego conta que observa desde 2013 uma ascensão do assunto ditadura militar na produção desses artistas mais jovens. “Existe um termo que acho bastante interessante, que já vi, por exemplo, Márcio Seligmann também concordar e a própria Priscila. Uma ideia de desassombramento, porque são pessoas que, como não viveram ou não têm uma relação traumática direta necessariamente com o tema passam a olhar para isso de uma forma mais acurada, até como pesquisadores propriamente”, comenta Matos.

Mais um still do trailer to filme de Fernanda Pessoa

Para os dois curadores, o que leva artistas mais jovens a falarem sobre a ditadura, mesmo não tendo vivido sua pior fase ou ter tido algum contato direto, são vários fatores. Os mais evidentes seriam a crise institucional da Nova República, trazendo um desejo de entender como se chegou até isso, e a transparência trazida nos últimos 15 anos pelo governo. A última, que permitiu a realização da Comissão Nacional da Verdade e o acesso a vários documentos da época, oferecendo muito material para trabalharem.

O artista Daniel Jablonski, que apresenta na exposição o trabalho Diante do Aparelho, de  2016, decidiu homenagear os esconderijos de diversos militantes perseguidos na ditadura com sua obra. Apartamentos que serviam como moradia ou espaço para reuniões eram chamados de “aparelhos” na época. “Entre 2008 e 2011, quando fui morar sozinho, tive a ideia de fazer uma espécie de inventário de todos que parraram pelo meu apartamento pela primeira vez”, explica.

As pessoas posaram para o artista embaixo de um letreiro com o nome do apartamento, o qual ele intitulou “aparelho”, por uma razão histórica e afetiva. “Além da questão política, ele também tem uma questão demográfica muito interessante. O ‘aparelho’ foi o primeiro apartamento de muita gente, porque a maioria dessas pessoas que vivem neles tinham 20 e poucos anos mesmo. Estavam não só planejando uma ‘revolução’ contra o Estado, mas promovendo uma mudança de costumes contra o modelo de afeto, de sexualidade e de família que existia na casa dos parentes”, aponta Jablonski.

Detalhe da obra de Daniel Jablonski

Já Fernanda Pessoa apresenta na íntegra o seu filme Histórias que o nosso cinema (não) contava. Premiado em vários festivais dentro e fora do Brasil, o longa é uma montagem de trechos de quase 30 filmes populares. Muitos, do gênero pornochanchada, da década de 70, demonstram alguma relação com o período ditatorial. Ela conta ter aprendido muito sobre como era o funcionamento da sociedade no longo processo de pesquisa e montagem do filme.

O longa também aborda, de forma muito forte, outras questões de opressão que existiam, como o machismo simbólico. Fernanda considera que o que mostra isso de forma mais explícita é uma analogia que aqueles filmes traziam entre o corpo feminino e o milagre econômico prometido pelos militares. “Eu fiz o filme justamente para tentar entender um momento que eu não vivi. Acho que o problema hoje é que ainda não estudamos direito o que foi a ditadura”, confessa.

Livro reforça Walter Zanini como intérprete da arte contemporânea

Há livros que causam curiosidade antes de serem lançados pelo protagonismo do objeto de estudo. Este é o caso de Walter Zanini: vanguardas, desmaterialização, tecnologia na arte, com textos do crítico, professor, historiador e curador Walter Zanini, com organização de Eduardo de Jesus, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. O fecho intelectual da pesquisa resulta da estreita relação de Zanini com a vivência cotidiana da arte, revelando enigmas de sua fisionomia artístico intelectual.

O método Zanini de trabalhar inclui troca de experiência com os artistas e uma incansável forma de questionar o papel da arte. Dois momentos exemplificam essa prática: o laboratório de arte criado no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo MAC/USP (dirigido por ele desde a sua inauguração em 1963, onde abre espaço a
jovens artistas, à arte conceitual, arte postal, videoarte, performance e poéticas tecnológicas, até 1978) e, suas curadorias renovadoras na 16a e 17a edições da Bienal de
São Paulo. Foi ele quem instituiu a analogia de linguagem ao eliminar, definitivamente, o conceito de exposição das obras por países, compondo um grupo internacional de
críticos e curadores de museus para ajudá-lo nesta tarefa. O livro é uma investigação teórico-conceitual da presença das tecnologias na produção artística, no Brasil e no
exterior, a partir da passagem dos séculos 19 ao 20. Os textos revelam o olhar sistemático do crítico sobre a função reveladora da arte contemporânea, em um processo em constante mutação. Os textos mostram o avanço da arte, quando os processos artesanais de produção foram postos frente a frente às inovações tecnológicas e seus diversos canais. Há muito o que descobrir nessas camadas sobrepostas que têm como ponto de partida as experiências da Art Nouveau e da Deutsche Werkbund. A pesquisa passa por análises de movimentos das vanguardas históricas, como o futurismo italiano e o russo, dadaísmo
e construtivismo, chegando aos anos de 1980. Essa linha do tempo perpassa pela arte cinética, arte cibernética e eletrônica, crise do objeto, a contestação dos suportes
tradicionais e a evolução da videoarte.

O capítulo inaugural refere-se à arte e uma de suas questões de identidade. Da Arte Artesanal e Mecânica à Arte Eletrônica problematiza as interfaces entre arte e
tecnologia à luz de suas relações com as transformações da arquitetura e do design no século 19. Desse período seorigina o capítulo sequencial Arte cinética, o impulso para
o imaterial, aspectos da contribuição do cinema de artista e experimental. Vários grupos ligados ao movimento são citados como o Zero, de Dusseldorf, 1957, do qual partici-
pou o brasileiro Almir Mavignier; Recherche d ́Art Visuel (GRAV), de Paris, 1960, comandado pelo argentino Júlio Le Parc; MID de Milão,1964; Anonima, de Cleveland,1960,
entre outros. O trabalho de Abraham Palatnik no Brasil é só citado e, depois comentado em outro segmento. O cenário das exposições, a partir desse momento, muda substancialmente, misturando trabalhos tradicionais com realidades imagéticas inéditas que surgiam de novas máquinas, incorporando as múltiplas manifestações do
período caracterizadas pela imaterialidade. Em Impulso para o imaterial há o “incontestável reconhecimento da obra musical de John Cage” e de dois alunos preferidos: Robert Rauschenberg, seu também colaborador, e de Allan Kaprow, criador da arte corporal. A expressão “desmaterialização da arte” surgiu pela primeira vez com a crítica americana Lucy R. Lippard, em artigo assinado com John Chandler, em 1968. Em uma de suas entrevistas diz que “hoje tudo, incluindo a arte, existe dentro de uma situação política”. Esse olhar novo surgiu em Lippard, depois de uma viagem que ela fez à Argentina, em 1968, onde conheceu artistas engajados no movimento arte/ política, dentro dos acontecimentos de maio de 1968. O grupo CoBRA aparece nesse capítulo com destaque para Asger Jorn, e sua ideia de “laboratórios de estudos, como os institutos científicos”. O objetivo do artista dinamarquês era ensinar jovens a alcançarem não só resultados artísticos práticos como também crescerem no campo da teoria da arte. Os temas fragmentados, não longos, tentam demonstrar o pensamento de Zanini, sobretudo,
em dois segmentos aos quais ele se dedicou: a videoarte no Brasil, em que traça um histórico das primeiras experiências eletrônicas que surgem por aqui, entre 1969 e 1973. Enquanto nos Estados Unidos esse movimento já tomava corpo no final de 1960, no Brasil, por falta de recursos, se inicia tardiamente. Zanini comenta a arte e a tecnologia “como manifestações que remontam do período entre 1940 e 1950 com as experiências cibernéticas de Abraham Palatnik, precursor da complexa passagem dos procedimentos artesanais da arte no Brasil”. Não havia ferramenta portátil para os artistas nessa época dos imensos computadores IBM, quando um só deles ocupava uma sala de 50 metros quadrados.

“Waldemar Cordeiro, o pioneiro da arte por computador, associado ao físico Giorgio Moscati, demonstrou em 1969 os primeiros resultados de sua pesquisa, que teve
reconhecimento internacional, mas logo interrompida com sua morte em 1973”. Depois dele, outros artistas foram atraídos pela eletrônica como Wesley Duke Lee, Artur Barrio, Gabriel Borba Filho e Antonio Dias. E, entre os teóricos, Zanini comenta a participação de Vilém Flusser, intelectual checo, fundador da disciplina Teoria da comunicação, na Faap, do qual fui aluna. O discurso multimidiático de Flusser, teórico definido por Zanini como “o filósofo de aderência fenomenológica, identificado sobretudo a Heidegger”, atraiu artistas e teóricos de todo o mundo. Ao falar dos Primeiros tempos da arte/tecnologia no Brasil, Zanini observa que, sobre “sob influxos internacionais, as experiências comportamentais
foram logo seguidas pela rápida propagação do uso de audiovisuais e filmes super-8 e 16 mm, às vezes registros de ações conceituais”.

O intenso envolvimento do crítico com os problemas estruturais da arte contemporânea está refletido ao longo dessa coletânea, como uma espécie de fio condutor. Nos textos reunidos em Aspectos da contribuição do cinema de artista e experimental emerge o grupo de Milão, liderado por Lucio Fontana, argentino/italiano, autor do Manifesto del movimento spaziale per telezivione, 1952, exprimindo a convicção de que “a arte deveria se libertar de sua materialidade”. Entre os trabalhos citados aparece o do Grupo Fluxus, que Zanini trouxe à Bienal de São Paulo, em 1983, e colocou o Brasil em contato com a obra de Vostel. “A iniciativa de um vídeo do coreano Nam June Paik, em 1965, marca o momento inaugural da videoarte”, anota Zanini. Paik influenciou artistas como Vito Acconci, Bruce Nauman, Davidson Gilliotti. Também optaram pela videoarte Dan Graham, Dennis Oppenheim, Richard Serra, Bill Viola, Gary Hill e outros mais.

No conjunto, o livro reforça que Walter Zanini é um dos críticos brasileiros mais expressivos no comprometimento com a arte contemporânea mundial e seu trabalho, obra de consulta permanente.


Walter Zanini – Vanguardas, Desmaterialização, Tecnologias Na Arte
Jesus, Eduardo De
Wmf Martins Fontes
R$ 25,00

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Novo território de arte e cultura sustentável

Imagem: SEVENDE / C Gross / Divulgação

Com a missão de preservar e fomentar a memória e a experiência artística contemporânea na cidade de ITU e região, a Fábrica de Arte Marcos Amaro – FAMA inaugurou mais duas salas de exibição. Em menos de um ano, uma equipe chefiada pela diretora da Fundação, Raquel Fayad, e o curador e organizador, Ricardo Resende, colocou em pé uma seria iniciativa e importante investimento do artista e empresário Marcos Amaro.

Em junho de 2018, a FAMA deu início aos trabalhos abrindo sua primeira exibição, intitulada O Tridimensional na coleção Marcos Amaro: frente, fundo, em cima, embaixo, lados, volume, forma e cor.

“De Aleijadinho, passando por Almeida Júnior à Adriana Varejão, Cildo Meireles, Iole de Freitas e Nelson Leirner, esses são alguns dos nomes que compõem a exposição – que se inicia no século XVIII e alcança a contemporaneidade, permitindo um percurso na História da Arte Brasileira. A mostra apresenta o acervo em formação, que tem como interesse o ato escultórico como categoria artística do tridimensional. Nessa configuração, os trabalhos saem do bidimensional para o tridimensional, entre o que seria uma pintura ou um relevo sobre a parede. Uma instalação ou uma escultura. De pequeno, médio e grande porte, com cor ou sem cor: é como a coleção se constituiu ao longo dos últimos dez anos”, diz Resende.

Os trabalhos selecionados trazem um recorte da Coleção de Arte Marcos Amaro para os galpões da FAMA. Nos jardins que rodeiam a fábrica em restauro, foram instaladas algumas das esculturas da coleção. Ao mesmo tempo, estas farão parte de uma exposição especialmente organizada junto à Prefeitura para serem expostas nas avenidas da cidade.

Estão presentes aí obras de Emanoel Araújo, Gilberto Salvador, Marcos Amaro, Mestre Didi, Mário Cravo Júnior, José Resende, León Ferrari, Caciporé Torres, Sérgio Romagnolo e José Spaniol.

Após meses de visitação, parcerias com instituições da região e o início de relacionamento com escolas, a FAMA já conta com mais dois espaços restaurados
para exibição. A exposição O Tempo e a Gravura no Espaço – Sala Negra apresenta a Coleção Guida e José Mindlin de Matrizes de Gravura, recentemente adquirida pela
Fundação Marcos Amaro.

Organizada pelo bibliófilo José Mindlin (1914-2010), que tinha paixão pelos livros, e sua esposa Guita (1916-2006), é uma coleção única. Essa coleção de 450 matrizes é o núcleo da exposição que reúne uma seleção de xilogravuras que mostram a dramaticidade do gesto de gravadores como Renina Katz (1925), Djanira (1914-1979), Mestre Noza (1897-s.l.1984), Oswaldo Goeldi (1895-1961). Na sequência trabalhos mais lúgubres como O Pássaro (2015-2018), de Laura Lima, com coautoria do artista Zé Carlos Garcia, uma escultura feita de penas negras que simulam um pássaro morto caído no chão. De alta dramaticidade, fantasmagórica, parece ter saído de uma das matrizes vistas na exposição. A textura final das penas e seu posicionamento parecem dar vida a uma xilogravura, agora expandida no espaço. Nuno Ramos (1960) faz uma homenagem ao Oswaldo Goeldi ao gravar em baixo relevo sobre uma “lápide” de mármore branco uma imagem das suas xilogravuras banhada de óleo enegrecido, criando as sombras que caracterizam suas gravuras. Goeldi, como Nuno Ramos, é um artista que irradia uma densidade literária, que pode ser observada também nas pinturas de Rodrigo Andrade, nas gravuras de Wesley Duke Lee, na pintura de Iberê Camargo, de Siron Franco e na instalação de Tunga.
Independentemente de critérios curatoriais ou das escolhas das obras, que costumam ser sempre o alvo de críticas eminentemente estéticas, há um imenso valor ético e estético em colocar este acervo à disposição do público.

Agora, além das reformas arquitetônicas e da finalização das salas de reserva técnica, está na mira o planejamento e capacitação de um educativo capaz de acompanhar, escutar, contar histórias e sistematizar as experiências de visitação.

Na rota contrária ao fechamento de espaços culturais no país como um todo e da censura prévia na construção de projetos, a FAMA se coloca na rota de investir em cultura e arte contemporânea, permitindo que jovens e adultos sejam motivados a perguntar, a pensar e a refletir.

Uma exposição com partido, sim!

Andar de cima
Renata Lucas, Andar de cima, 2018

Inaugurada dois dias antes do segundo turno das eleições presidenciais e chamada pelos
próprios organizadores de “mostra-manifesto”, Rejuvenesça! é uma exposição que não tem medo de tomar um partido quando se trata de defender a democracia e os direitos no Brasil. Produzida pela artista Renata Lucas, a mostra conta foi concebida em poucas semanas, num caráter de urgência para se posicionar em um momento conturbado da História do país, trazendo obras dos artistas Anri Sala, Arto Lindsay, Carla Zaccagnini, Carlos Fajardo, Nedko Solakov, Mauro Restiffe, Renata Lucas e Rodrigo Andrade. Outros artistas que endossam a iniciativa, embora ainda não tenham obras instaladas no espaço são Dominique Gonzalez Foerster, Iran do Espirito Santo e Micol Assael.

Ainda sem ter tempo estabelecido para seu encerramento, Rejuvenesça! se propõe a ser uma mostra progressiva, agregando obras que chegarem ao seu espaço expositivo. A ideia se constrói na intenção de caracterizar um ponto de resistência tanto dos artistas que se propõem a participar quanto do próprio espaço.

A Casa do Povo se dispôs – e ainda se dispõe – a realizar uma série de inciativas em defesa do Estado de Direito, numa posição clara contra tempos funestos que parecem estar por vir, como Renata discorre em uma carta de apresentação: “O candidato mais votado no primeiro turno das eleições presidenciais incorpora um discurso fascista, cuja principal bandeira é recobrar um dos momentos mais sombrios de nossa história: a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985)”. O candidato citado pela produtora é Jair Bolsonaro, eleito presidente da República para os próximos quatro anos.

A continuação da exposição por esse tempo ainda não determinado indica, portanto, uma forma de lutar contra propostas descabidas do, agora, presidente. Na introdução, Lucas também critica a isenção de agentes da arte em relação a esse momento: “A atual edição da Bienal de São Paulo, assim como diversas instituições e galerias de arte, procurou manter-se neutra diante da barbárie, comportando-se como se nada acontecesse à sua volta”.

Portanto, além de marcar uma posição nesta conjuntura, Rejuvenesça! também se propõe a pensar sobre os rumos da arte em um novo governo cuja base de apoio provocou os dois episódios mais desfavoráveis à manutenção da liberdade artística nos últimos anos: o boicote à exposição Queermuseum e as difamações ao artista Wagner Schwartz pela performance La Bête. Somados às declarações preocupantes do presidente eleito sobre arte e cultura, esses acontecimentos provocam grande apreensão no meio.

Afinal, é ele quem sempre pontua que artistas se aproveitam dos incentivos dados pelo governo e que disse, sobre o incêndio no Museu Nacional: “Já está feito, já pegou fogo. Quer que eu faça o quê?” Portanto, o desprezo de alguns em relação ao que a eleição desse candidato representa poderia significar uma obediência a alguns princípios repressores de seu plano de governo em relação à cultura e à arte. Renata ainda escreve, na carta-manifesto: “Em contraposição a essa cínica indiferença, nós, artistas que aqui nos apresentamos, criamos uma mostra que contou com a solidariedade da Casa do Povo, espaço democrático que entende a arte como ferramenta crítica dentro de um processo
de transformação social”.

Livro debate arte, direito e liberdade em momento oportuno

Organizado por Cris Olivieri, advogada com especialização em gestão de processos comunicacionais e culturais e mestre em administração das artes pela Universidade de Boston, e Edson Natale, músico, escritor e jornalista, o livro nasce num momento mais que oportuno no Brasil. É o primeiro livro de uma série que a ser lançada pelo selo Edições Sesc, sob o título de Gestão da Cultura e do Entretenimento.

Em 2017, presenciamos uma enxurrada de casos de intolerância – como se não bastassem as de ordem racial, politica e econômica – especificamente à diversidade cultural.

O encerramento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, o veto à sua exibição no Rio de Janeiro; a proibição da peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu em Jundiaí; os ataques ao MAM, em São Paulo, pela exibição da performance La Bête, com o artista Wagner Schwartz; assim como ameaças a curadores e artistas, provocaram inúmeras manifestações em defesa da liberdade e integridade de obras e expressões artísticas.

Cientes da importância deste debate os organizadores criaram uma interessante interlocução que, a partir de diferentes autores – advogados, dramaturgos, educadores, produtores culturais, líderes religiosos –  atuantes nas áreas da cultura ou da comunicação, trouxeram contribuições à ideia de liberdade, como garantia da expressão artística – sejam legais, oferecidas pela Constituição ou por conceitos teóricos.

Os depoimentos, editados em subtemas ou perguntas e com parágrafos curtos, permitem acompanhar e percorrer o livro sem transformar o tema num único depoimento narcisista ininteligível.

Aqui a diversidade está garantida pela maneira em que cada um se expressa. O diretor de teatro e dramaturgo Zé Celso diz em Arte Por Quê?:“Nossa vocação é criar com o universo. Se existem deuses e demônios criadores, estão em nós e em toda natureza ou em lugar nenhum. (…) Fazemos parte dos Sem Nada – mas com Arte podemos conseguir transmutar os Sem Arte, para q não destruam o Planeta Terra: os que tatuaram em suas cabeças a Cruz Enrolada num Cifrão: $$$$+++…”. Ou em Direitos Individuais e Liberdade de Expressão:“São mais que direitos sociais, são direitos sagrados humanos como são pra personagem Antígona; são próprios da natureza humana. Transcende os Tribunais e os Julgamentos”.

Fernando Baril, “Cruzando Jesus Cristo com o Deus Shiva”, 1996, obra exposta na exposição Queermuseum.

Já, Benjamin Seroussi, curador e gestor cultural, diretor da Casa do Povo em São Paulo, salienta em O que faz a arte?: “Em época de censura, a própria existência da arte é questionada… Não podemos deixar de nos perguntar como chegamos a essa estranha situação em que precisamos justificar a própria existência da arte. Ela pode ser julgada apressadamente como boa ou ruim, mas não por isso deixa de ser arte…”. “Neste curto texto, convidamos o leitor a passear por algumas situações nas quais a arte está em jogo e onde ela age.”  ‘SITUAÇÃO 1: ARTE PRODUZ CONHECIMENTO”, “SITUAÇÃO 2: ARTE  DESORGANIZA”, e assim por diante, “ARTE CRIA SEUS PRÓPRIOS MUNDOS”, “ARTE FAZ POLÏTICA”, “ARTE COMO FERRAMENTA”, “ARTE GERA CONTROVÉRSIAS”.

A partir de diferentes perspectivas, todos os colaboradores do livro – desde o escritor, cronista e roteirista Antonio Prata até Cleomar Rocha, pós-doutor em poéticas Interdisciplinares e Estudos Culturais da UFRJ; Don Clóvis Rodrigues, bispo emérito da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil; e Juca Kfouri, referência no jornalismo esportivo brasileiro – poderiam concordar, de alguma forma, com a frase do humorista, dramaturgo e escritor Jô Soares: “A coisa está no ouvido de quem escuta, e não de quem fala”.


Direito, Arte e Liberdade
Cris Olivieri E Edson Natale
Edições Sesc São Paulo

R$ 65,00

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A linguagem afro-brasileira e universal de Rubem Valentim

Relevo Emblema N. 4, 1977. acrílica sobre madeira, 100 X 150 X 5 cm. Acervo Museu de Arte Moderna da Bahia
Composição 12, 1962. Óleo sobre tela. A obra foi doada para o acervo do Masp pelos galeristas Ana Dale, Antonio Almeida e Carlos Dale Junior 61

Em seu “Manifesto Ainda que Tardio”, publicado em 1976, o pintor, escultor e gravurista baiano Rubem Valentim (1922-1991) deixava bastante claro de onde emergia sua arte: “Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade”. Ele buscava, como dizia no mesmo texto, “uma linguagem universal, mas de caráter brasileiro”, sem se filiar a nenhum dos movimentos ou correntes artísticas estrangeiras ou nacionais.

Imagem: Rubem Valentim, Pintura 2, 1960 / Foto: Tomás Toledo, curador-chefe do MASP

Ainda assim, em sentido contrário às palavras do próprio artista, boa parte da crítica, do mercado e da historiografia da arte definiu Valentim como um artista basicamente construtivo, relegando à segundo plano o universo simbólico de sua obra, ligado ao candomblé, à umbanda e à cultura afro-brasileira. Houve uma “insistência em enquadrá-lo, um tanto à força, no contexto das correntes construtivas canônicas, forjadas no eixo Rio-São Paulo, apartando das reflexões os sentidos religioso, espiritual e social, portanto político, que são parte integrante da conformação de seus trabalhos e de sua vida como artista”, afirma Fernando Oliva, curador da mostra “Rubem Valentim: Construções Afro-Atlânticas”, uma grande individual do artista em cartaz no Masp até março de 2019.

Marcus Lontra, curador de “Rubem Valentim: Construção e Fé”, outra exposição do artista baiano em cartaz em São Paulo, na Caixa Cultural, segue na mesma linha. “Assim ele se tornava mais palatável. Quiseram adocicar o Rubem Valentim dizendo que ele era um modernista com temperinho brasileiro. Como se falassem: ‘Vamos jogar um dendê aqui nesse escargot’. Mas acontece que o dendê não era o final, era a base”, diz Lontra. “Quer dizer, o Valentim parte dessa visualidade africana e, com um olhar erudito, sintetiza isso através da cor e da forma.”

De outro lado, quando não foi classificado como construtivo ou concretista, Valentim foi visto como um artista “místico, sobrenatural e mágico”, sendo enquadrado em um universo folclórico também simplificador de sua obra. “É equivocado e muito limitador da potência deste artista reduzi-lo a apenas construtivo ou apenas tributário da cultura do candomblé”, diz Oliva. “Nós queremos apresentar o artista total que ele era, que transitava e fazia a síntese entre formas associadas ao abstracionismo geométrico de linhagem europeia, canônico, e as formas que ele encontrou originalmente nas religiões de matriz africana”, explica.

A proposta de apresentar uma leitura mais complexa da obra de Valentim, destacando seu caráter híbrido e sua força política, é o que move as duas mostras em cartaz em São Paulo. No Masp, 80 pinturas e 12 esculturas perpassam principalmente os períodos em que o artista residiu no Rio de Janeiro (1957-1963), em Londres e Roma (1963-1966) e em Brasília (1967-1981). A exposição privilegia também os três elementos do candomblé com os quais ele mais se relacionou: a flecha de Oxóssi, o machado de Xangô e as hastes de Ossain (ou Ossanha). “Essas formas do candomblé são um ponto de partida, mas o que ele faz é depurar, sintetizar, recriar e transfigurar essas formas em outros elementos. E aí está a potência do seu trabalho. Como todo grande artista, ele cria um universo próprio, algo único e original”, diz Oliva.

A exposição no Masp é parte do ciclo “Histórias Afro-atlânticas”, eixo curatorial do museu em 2018, constituído por mostras individuais de artistas cujas obras são atravessadas por questões raciais e por uma grande exposição coletiva que sintetizou o tema. Com foco na diáspora negra e nos “fluxos e refluxos” entre África, Américas e Europa, ressaltando as violências e resistências que marcaram essas histórias, o museu deu sequência aos ciclos de “Histórias da Loucura e Histórias Feministas” (2015), “Histórias da Infância” (2016) e “Histórias da Sexualidade” (2017). O eixo curatorial em 2019, também focado em narrativas não tradicionais, é intitulado “Histórias Feministas, Histórias das Mulheres”.

Na Caixa Cultural, a mostra com cerca de 60 pinturas e uma escultura também se concentra no universo simbólico e na questão da negritude na obra de Valentim. Com foco no período em que o artista viveu em Brasília e nos anos finais de sua vida, passados entre a capital federal e São Paulo, a exposição apresenta o que Lontra considera “uma obra híbrida, perturbadora, que atua no território da fantasia e da formação da identidade nacional”. “Ele rompeu as designações tradicionais; desprezou anacrônicas fronteiras entre o popular e o erudito, entre o nacional e o internacional, entre razão e emoção”, escreve o curador no texto de apresentação da mostra.

ENGAJAMENTO E ATUALIDADE

Valentim nasceu em Salvador, em 1911, e cresceu em contato íntimo com um universo sincrético. Apesar de ser de família católica e ter feito a primeira comunhão, frequentava com o pai os terreiros de candomblé da cidade. Formado em odontologia, passou a se dedicar à produção artística com mais afinco na segunda metade dos anos 1940, quando se aproximou do pensamento de esquerda e de artistas como Mário Cravo Jr., Carlos Bastos e Raymundo de Oliveira. Juntos deram início a um movimento de renovação nas artes plásticas na Bahia. Valentim ainda cursou jornalismo no início dos anos 1950, em busca de uma formação mais humanista, e a partir do meio desta década começou a incorporar em suas pinturas os emblemas e signos do candomblé e da umbanda. Com o uso de cores fortes e formas geométricas, criou um repertório pessoal “com base em uma complexa dinâmica de recortes, subtrações e justaposições”, como explica Oliva.

Relevo Emblema N. 4, 1977. acrílica sobre madeira, 100 X 150 X 5 cm. Acervo Museu de Arte Moderna da Bahia

A geometria e as preocupações formais, no entanto, não se sobrepunham às questões simbólicas, como ressaltou o próprio artista: “Nunca fui concreto. Tomei conhecimento do concretismo através de amizades pessoais com alguns dos seus integrantes. Mas logo percebi, pelo menos entre os paulistas, que o objetivo final de seu trabalho eram os jogos óticos e isto não me interessava. Meu problema sempre foi ‘conteudístico’ (a impregnação mística, a tomada de consciência dos valores culturais de meu povo, o sentir brasileiro)”. Neste sentido, tanto o movimento de enquadrá-lo em correntes construtivas como o de chamar sua obra de mágica e sobrenatural acabaram por tirar de Valentim seu caráter político, retomado agora de modo atento nas duas mostras paulistanas. No Masp, a discussão ganha profundidade também em um grande catálogo que, além de apresentar a exposição, reúne textos históricos, desenhos e anotações de cadernos do artista e ensaios inéditos de Lilia Schwarcz, Helio Menezes, Lisette Lagnado e Marta Mestre, entre outros.

Como explicam os curadores, Valentim foi um artista engajado não só no conteúdo de sua obra visual, mas também nas posições políticas que assumiu em textos e entrevistas ao longo da vida. Em seu manifesto, por exemplo, escrito em plena ditadura militar, Valentim se posiciona como defensor do intercâmbio entre todos os povos e nações, mas contra o colonialismo cultural e a subserviência aos padrões vindos de fora; defende uma poética visual brasileira que beba na iconografia afro-ameríndia-nordestina, mas que fuja de modismos e das “violentações caricatas do folclore e do genuíno”; e afirma, por fim, que “a arte é uma arma poética para lutar contra a violência como um exercício de liberdade contra as forças repressivas”.

Relevo Emblema 78, 1978, acrílica sobre madeira. Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Compra do Governo do Estado de São Paulo, 2013

“Diferentemente do discurso purista do modernismo, Valentim representa a possibilidade real de construção de uma linguagem que reflita especificidades brasileiras”, diz Lontra. E são essas especificidades, para o curador, que devem ser identificadas e destacadas, especialmente no contexto atual. No momento em que o Brasil elege um presidente que ofende quilombolas e despreza os direitos humanos, em que o país vivencia assassinatos como o da vereadora negra e feminista Marielle Franco e do mestre de capoeira Moa do Katendê, retomar a obra de Valentim e seu caráter político ganha nova potência e significado.

“Nós estamos diante de violências constantes, com o Brasil revelando toda sua maldade, o horror de uma classe média reacionária. E tem essa ideia do país cordial, da nação boazinha, que é o discurso do opressor e que não engana mais. Antes de aceitar nossa miscigenação temos que aceitar que a mulher negra foi estuprada”, diz Lontra, ressaltando a importância de identificar os elementos negros como fundamentais na história da arte brasileira e na compreensão de um país mestiço. “E acho que o Rubem assumiu essa questão política de modo muito forte e importante. Ele nunca escondeu a violência”. Sobre o futuro próximo, o curador conclui: “Agora temos que enfrentar a ameaça à democracia. E a arte sempre enfrentou isso: ditadura, perseguição, ausência de apoio. E seu papel vai continuar sendo esse, de mostrar o Brasil de verdade”.

 


Rubem Valentim: Construções Afro-Atlânticas

De 14/11/2018 a 10/03/2019
MASP – Av. Paulista, 1578, São Paulo

Rubem Valentim: Construção e Fé

De 07/10/2018 a 06/12/2018
CAIXA CULTURAL – Praça da Sé, 111


 

Não terminou de acabar

Carlos Pasquetti
Carlos Pasquetti, Trabalho sobre máscara de gás, 1972, Foto 24 X 18 cm

*Por Paulo Miyada.

A exposição “AI-5 50 Anos – Ainda não terminou de acabar” encerrou-se no dia 4 de Novembro, uma semana após o término das eleições presidenciais do Brasil. Desde que o cargo maior do poder executivo voltou a ser decidido pelo voto direto da população, nunca havia acontecido uma campanha eleitoral em que os debates públicos e as discussões privadas tenham discutido tanto o legado e a amplitude da ditadura militar. Relativização, negação, desinformação e má-fé mostraram suas presas em tentativas de reescrever a história como uma revolução heroica e nacionalista. Do outro lado, toda sorte de esforços por elucidação e justiça reparativa – entre os quais essa exposição certamente se encontra – provaram-se insuficientes e constataram que está em jogo mais do que a disputa com os discursos obscurantistas atuais: segue em aberto a tarefa de completar os ciclos de reparação histórica e refundação institucional que foram apenas parcialmente cumpridos da longa, barganhada e incompleta “redemocratização” do Brasil.

Paulo Miyada, curador e pesquisador de arte contemporânea e atual diretor criativo do Instituto Tomie Othake

Como uma ação cultural e artística, a exposição esteve no polo oposto às tentativas de relativizar os dados deixados pela ditadura militar no Brasil. Quando se tenta minimizar o impacto do golpe e sua política repressiva afirmando que os “excessos” do regime atingiram apenas os radicais de esquerda, três perversas injustiças são cometidas: 1. Não é verdade que apenas terroristas radicais foram presos, torturados e mortos, o exemplo de Vladimir Herzog é um dentre centenas de casos de brutais violências contra quem apenas exercia sua cidadania; 2. Mesmo nos casos dos combatentes diretos ao regime que seguiram vias de luta armada e guerrilha urbana, nunca deveria caber ao Estado o papel da retaliação sem todo o aparato jurídico que fundamenta o Estado de Direito – se o governo atua pela lei do olho-por-olho, dente-por-dente, qual a referência que sobra para que os cidadãos atuem de forma diferente?; 3. Além dos casos de violência direta de Estado por meio de mortes, exílios, torturas, prisões arbitrárias e retirada de direitos políticos de seus cidadãos, a ditadura fichou e vigiou mais de 300 mil cidadãos por meio de seus órgãos de censura, além de operar políticas sistemáticas de censura da imprensa, da cultura e da arte. As consequências desse último ponto extravasam em muito o âmbito da ditadura que se tenta relativizar, e foram elas que receberam especial atenção na mostra, que partiu do contexto das artes visuais para entender o custo do silenciamento da população e prestar homenagem aos que souberam expressar algo quando nada poderia ser dito. O que se vive agora é um rescaldo ardente do quão profundo foi o dano deixado pelos anos do regime militar, agravado pelo caráter precário das instituições democráticas que não foram tão revistas e fortalecidas nas últimas 3 décadas quanto teria sido necessário. Nesse sentido, o AI-5 ainda não acabou mesmo de terminar, e tudo leva a crer que seus efeitos serão ainda mais sentidos nos próximos anos. Parece que se perdeu o véu de moralidade que ainda exigia alguma discrição das reencenações mais perversas da autoritária violência de Estado. Os primeiros a entrarem na linha de fogo serão, justamente, aqueles para quem a ideia de redemocratização esteve sempre entre a lenda e a hipérbole: os negros, os indígenas, os LGBTQ+ e os miseráveis. Por isso mesmo, a persistência da luta e da resistência terá neles sua raiz, seu motivo e seu saber.

*Paulo Miyada, curador e pesquisador de arte contemporânea, é atual diretor criativo do Instituto Tomie Othake e curador convidado da 34a Bienal de São Paulo