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Exposição na Casa de Cultura do Parque discute produção tridimensional contemporânea

"Calda", 2005, de Tatiana Blass. Foto: Paulo D’Alessandro e André Conti

Novo espaço cultural da cidade de São Paulo, inaugurado no início deste ano (leia aqui), a Casa de Cultura do Parque apresenta mais uma exposição coletiva a partir deste sábado, dia 27 de julho. Intitulada Do Volume e do Espaço: Modos de Fazer, a mostra reúne obras tridimensionais, discutindo o pensamento atual em torno do trabalho escultórico.

A exposição é dividida em dois eixos principais: um endereçado à figura humana, em diálogo com a história tradicional da escultura; e outro endereçado às formas geométricas, que não surge em oposição à realidade do corpo, mas conjugada a ele. “É o corpo que experimenta a geometria, é ele quem a produz”, explica Ana Avelar no texto de apresentação.

Os artistas participantes são Alexandre da Cunha, Claudio Cretti, Edgar de Souza, Eduardo Frota, Felipe Cohen, Flávio Cerqueira, Ivens Machado, José Rezende, Laura Vinci, Nino Cais, Pablo Reinoso, Ricardo Becker, Rodrigo Cardoso e Tatiana Blass.

No dia da abertura da exposição, a Casa de Cultura do Parque e o Terra Nova, novo módulo de Artes Plásticas da Flip, promovem um encontro com José Miguel Wisnik sobre o processo de criação da performance Máquinas do Mundo, do Núcleo de Arte da Mundana Companhia de Teatro. A obra contempla elementos das artes plásticas, da literatura e do teatro e coloca e em diálogo textos de Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis e Clarice Lispector. A ARTE!Brasileiros esteve presente na apresentação da performance na Igreja da Matriz, em Paraty, durante a 17ª Flip. Veja a galeria de fotos acima.

Do Volume e do Espaço: Modos de Fazer
Casa de Cultura do Parque – Av. Prof. Fonseca Rodrigues, 1300 – Alto de Pinheiros
De 27 de julho a 13 de outubro
Entrada Gratuita

 

Casa Roberto Marinho apresenta mostra com artistas estrangeiros de sua coleção

Obra de Giorgio de Chirico, de 1941. FOTO: Divulgação

A Casa Roberto Marinho, localizada no tradicional bairro do Cosme Velho, no Rio, apresenta até outubro a mostra . Com cerca de 150 obras e curadoria de Lauro Cavalcanti, a exposição apresenta peças da plural coleção do empresário e jornalista carioca que dá nome à casa, morto em 2003.

Pinturas, esculturas, aquarelas, litogravuras, serigrafias e tapeçarias compõem a mostra com obras de artistas de diferentes épocas, entre eles Jean-Baptiste Debret, Giovanni Battista Castagneto, Marc Chagall, Salvador Dalí, Fernand Léger, Maria Helena Vieira da Silva, George Mathieu e Jean Cocteau.

Estrangeiros que adotaram o Brasil como lar também foram incluídos na exposição. Lasar Segall, Tomie Ohtake, Franz Weissmann, Frans Krajcberg, Yutaka Toyota, Joaquim Tenreiro, Maria Polo, Manabu Mabe e Roberto Moriconi são alguns deles.

Simultaneamente, a Casa Roberto Marinho apresenta a mostra Djanira: A Memória de seu Povo, produzida em parceria com o MASP. Com curadoria de Rodrigo Moura e Isabella Rjeille, a exposição expõe o trabalho de Djanira da Motta e Silva, uma das mais importantes pintoras modernistas brasileiras.

Estrangeiros na Coleção Roberto Marinho
Instituto Casa Roberto Marinho – Rua Cosme Velho, 1105
De 19 de junho a 27 de outubro

Muvuca

Yuri Firmeza . Ouro Branco, Inferno Verde #1, 2018

*Por Yuri Firmeza

1.
Enosiofobia é o termo científico que se dá a quem tem medo de ter cometido uma crítica imperdoável. Parte da crítica brasileira parece ter sido acometida, de maneira epidêmica, por esta fobia. E por isso, na contramão, tanto me alegra ler o texto escrito por Bitú Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos. Se, por um lado, o texto é endereçado para outro texto, escrito por Aracy Amaral, não é menos verdade que o texto convoca, numa dimensão política-clínica, ao debate público acerca da “história oficial” da arte brasileira.

2.
Dizem que no carnaval de Olinda estamos sempre no meio. Não tem começo e nem fim e tem “gente” em demasia. Gente em demasia pode gerar epidemia, fujamos das multidões.

3.
Prefiro pensar que corpo demais pode gerar uma alegria indomável. Tem muita gente, mergulhemos na muvuca.

4.
Parte da crítica brasileira parece não gostar de carnaval, pois que o corpo – e de maneira contígua, a escrita – foram produzidos sob a égide da razão moderna e eurocêntrica.

5.
O texto de Tadeu Chiarelli publicado na revista ArteBrasileirXs (e o “X” não se trata apenas de uma implicância com a língua, como ele aponta de maneira simplista no texto) começa descrevendo um ambiente saturado, cheio, entre outras coisas, de gente. Procura um início, pior seria procurar se “nortear”. Parece-me que o esforço encontrado para iniciar a visita à exposição, corresponde ao esforço, a “sofrência” e o melindre a escrever tal crítica.

6.
Pierre Menard, personagem de Jorge Luis Borges, copia letra por letra, palavra por palavra, linha por linha… de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. O texto de Chiarelli parece almejar o mesmo, copiar letra por letra, palavra por palavra, linha por linha… do texto da Aracy Amaral. Não o faz tão diretamente. Acometido estaria pela epidemia enosiofóbica?

7.
Alguém dirá: estamos vivendo o furor Nordeste nas artes visuais, mas é preciso pensar o Brasil como um todo. Esta frase provavelmente será enunciada por este corpo descrito no bloco 4 deste texto. A cegueira historiográfica brasileira não é uma abstração. É constituída, antes, por agentes que têm respaldos e privilégios para inserir-excluir personagens de suas narrativas.

8.
Ainda na esteira do texto do Chiarelli, lemos que a exposição está repleta de obras que pensam o Brasil como um todo. Seria esta frase uma espécie de mea culpa do sulicídio (com L mesmo) operado sistematicamente à toda produção de pensamento fora daquilo que convencionamos chamar (cada vez menos, e essa exposição aponta para isto) de eixo? Pensar o Nordeste seria restritivo demais, vamos combinar, diz ele. De fato, seria. Mas esta exposição-ocupação passa longe de cair neste lugar do ensimesmamento. Ao contrário, e de forma reiterada, boa parte das exposições em São Paulo, feitas por paulistas, em instituições supostamente brasileiras, por exemplo, estão longe de sair deste lugar.

9.
Talvez o que falte é a tal liberdade (tão clamada e tão pouco praticada como forma de vida) em correr riscos. E sobra, quiça, o receio da perda de privilégios historicamente construídos, quando uma suposta ameaça se encontra num meio (múltiplo e que não é, portanto, O Centro).

 

 

 

*Yuri Firmeza é artista e professor

Confira destaques da arte para aproveitar neste fim de férias

Obra de Nunca na exposição Meide in Brazil. Até 27 de julho na Galeria Kogan Amaro.

ARTE!Brasileiros compilou algumas exposições por todo o país que não podem ficar de fora do seu itinerário nas últimas semanas de férias.

ÚLTIMOS DIAS

Nunca: Meide In Brazil, até 27 de julho.

Raul Mourão: Introdução à Teoria dos Opostos Absolutos, na Galeria Nara Roesler, até 20 de julho.

Tarsila popular, no Museu de Arte de São Paulo (MASP), até 28 de julho.

Os anos em que vivemos em perigo, no MAM de São Paulo, até 28 de julho.

Grupo Empreza, na Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu, até 27 de julho.

Júlio Villani: Por um fio, na Galeria Estação, até 31 de julho.

Obra de Julio Villani na exposição da Galeria Estação. FOTO: Divulgação

Ivan Grilo: Amanhã, Logo à Primeira Luz, na Casa Triângulo (com lançamento de livro do artista).

Invenções Gráficas na Ilustração Ibero-Americana, no Instituto Tomie Ohtake, até 28 de julho.

Novas Efervescências, no Espaço Cultural Porto Seguro, até 21 de julho.

Eduardo Navarro: Predição Instantânea do Tempo, no Pivô, até 27 de julho.

Marina Rheingantz: Todo Mar tem um Rio, na Fortes D’Aloia & Gabriel, até 20 de julho.

Vaivém, no CCBB de São Paulo, até 28 de julho.

A Burrice dos Homens, na Bergamin & Gomida, até 20 de julho.

Crash, na Zipper Galeria, até 27 de julho.

Colapso, na Galeria Athena, até 20 de julho.

Tarsila do Amaral, A Cuca, até 28 de julho no MASP.

EM ANDAMENTO

Rosana Paulino: Costura da Memória, Museu de Arte do Rio, até 29 de setembro.

Anna Bella Geiger: Aqui é o centro, no MAM do Rio de Janeiro, até 4 de agosto.

Grada Kilomba: Desobediências Poéticas, na Pinacoteca de São Paulo, até 30 de setembro.

À Nordeste, no Sesc 24 de Maio, até 25 de agosto.

Nádia Taquary e Ayrson Heráclito, na Galeria Leme/AD, até 03 de agosto.

Adriana Varejão: Por Uma Retórica Canibal, no MAMAM de Recife, até 8 de setembro.

Anna Costa e Silva, Ana Prata e Marcus Galan, no Auroras, até 24 de agosto.

Raul Mourão e Cabelo: Experienza Live Cinema #4, na OM.art, até 4 de agosto.

Anaísa Franco: Psychosomatic Series, na Galeria Lume, até 3 de agosto.

História da Poesia Visual Brasileira, no Sesc Bom Retiro, até 8 de setembro.

#tbt, na Carpintaria, até 17 de agosto.

 

A política inclusiva do Sesc-SP também vale para a arte

Carlito Carvalhosa, Já Estava Assim Quando Cheguei, 2019
Carlito Carvalhosa, Já Estava Assim Quando Cheguei, 2019 - foto Ricardo Ferreira

A abertura de novas unidades, como o recém-inaugurado espaço de Guarulhos, não apenas aumenta a rede de pessoas atendidas, oferecendo à população local uma ampla gama de serviços assistenciais, esportivos e culturais, como viabiliza algo infelizmente ainda escasso no país: a existência de um espaço generoso e amplo que dê abrigo à produção artística, para que ela se realize em contato direto com um público bem mais diversificado e muitas vezes distante do tradicional circuito de museus, galerias e feiras.

Basta entrar no novo prédio, que em seu primeiro fim de semana recebeu 24 mil visitantes, para perceber a importância da arte no contexto geral do projeto. Pontuam o espaço, de maneira sutil ou com um impacto indisfarçável, trabalhos realizados especialmente para o local ou selecionados a dedo na reserva técnica da instituição. Assinados por uma gama bastante variada de artistas, as obras são de autoria e gêneros diversos, compreendendo desde artesãos anônimos, como os autores dos ex-votos que compõem um painel instalado no hall de entrada, até nomes importantes da cena contemporânea. Ao todo mais de 15 autores, alguns com várias criações (como Leonilson e Sidney Amaral), assinam as obras.

Na fachada do Sesc, ainda no exterior, uma grande escultura de Sérvulo Esmeraldo recebe os visitantes. Trata-se de uma peça de grande simplicidade, que contrasta com suas dimensões colossais, com mais de dez metros de altura: dois quadrados, um branco e um azul, que se tocam parcialmente e ativam o espaço a sua volta, como desenhos que se esforçam para adquirir uma força tridimensional.

Adriana Varejão, obras da série Tintas De Polvo
Adriana Varejão, obras da série Tintas De Polvo

Logo na entrada, estabelecendo uma sintonia fina com a arquitetura arejada de Renato e Lilian Dal Pian, foi instalada uma monumental escultura em gesso de Carlito Carvalhosa. Com um formato semelhante ao do morro do Pão de Açúcar, no Rio, e pendurada no vazio de cabeça para baixo, com a ajuda de uma estrutura de ferro e grossos tirantes que a conectam às paredes do prédio, a peça atrai os olhares perplexos, que se perguntam sobre o caráter permanente e ao mesmo tempo instável e precário de uma montanha pesada e invertida que flutua no ar.

Mesmo sendo provavelmente a mais impactante da nova unidade, a peça de Carvalhosa, Já estava assim quando cheguei, não é a única grande obra especialmente concebida para o espaço. No mesmo hall, ocupando uma longa parede no segundo andar do prédio, está o painel criado por Adriana Varejão. Composto por sete grandes círculos com formas geométricas e orgânicas, a pintura mural se insere num projeto já desenvolvido há tempos pela artista, no qual investiga a ampla gama de cores de pele dos brasileiros, a problemática questão da autoidentificação  em uma sociedade marcada por um forte, mesmo que disfarçado, racismo.

É interessante ressaltar que as escolhas de trabalhos permanentes para o novo espaço não têm a pretensão de reinventar poéticas. Pelo contrário, a proposta potencializa o alcance das obras de arte – em grande parte pelo destaque e generosidade do espaço concedidos a elas –, sem contudo sacrificar sua conexão com a poética particular de cada um dos autores. A grandiosidade e as especificidades de um centro cultural de ampla circulação não acarretam em um abandono das pesquisas dos artistas convidados. Pelo contrário, abre-lhes uma possibilidade de viabilizar algo que, na prática, é quase impossível nos nossos centros urbanos densos e fragmentados. É o caso, por exemplo, da gigantesca pintura Paisagem Desaguando, criada por Janaina Tschäpe para o ginásio e que estabelece um interessante paralelo visual com o núcleo contíguo das piscinas. Ou da obra de Eduardo Frota, composta por duas enormes peças que pertencem a sua série já conhecida dos carretéis, situada no jardim. A diferença é que neste caso optou-se pela troca dos já tradicionais perfis de madeira pelo aço, material mais resistente para uma exposição de longa duração.

É curioso notar como o artista consegue, apesar do caráter massivo do ferro, um paradoxal aspecto de leveza. Além da precisão com que é construída, com um encaixe perfeito de centenas de rodelas de aço sobrepostas, a escultura é oca em seu interior, tornando possível ver o céu através dela e dando certa transparência à brutalidade do metal.

Uma coleção fora do sistema

Collezione Maramotti
Sede da Collezione Maramotti, Que serviu como fábrica da Max Mara, em Reggio Emilia, na Itália

Em meio à tendência internacional na qual colecionadores criam espaços de arte que acabam servindo mais para exibir seu poder e reforçar sua própria imagem, a Collezione Maramotti, na cidade de Regio Emilia, na Itália, é uma exceção notável. Criada por Achile Maramotti (1927 – 2005), o fundador da marca Max Mara, há doze anos a coleção Maramotti ocupa o prédio modernista de 1957, que serviu de fábrica para a empresa de moda italiana.

Depois de sua morte, seus três filhos, Luigi, Ignazio and Ludovica, abriram o acervo, então com 450 obras, de forma pública, sem, no entanto, serem os protagonistas da história. “Eles se recusam a dar entrevistas, nem participam de conselhos de museus ou instituições, querem que as obras falem por elas”, conta Sara Piccinini, coordenadora sênior da coleção.

Desde então, o acervo chegou a 1.100 trabalhos. “A coleção começou a ser criada nos anos 1960 com artistas que surgiram naquele período, por isso ela segue hoje com a aquisição de obras de jovens artistas ou em meio de carreira”, explica Piccinini. Da geração inicial, participam nomes como Mario Merz ou Jannis Kounellis, do movimento Arte Povera, dos anos 1960 e 1970, e Sandro Chia, Francesco Clemente e Mimmo Paladino, da Tranvanguarda italiana, termo criado por Achile Bonito Oliva para apontar o renascimento da pintura na década de 1980.

É na tela, aliás, que a maior parte das obras se faz visível. “Creio que 85% das obras são pinturas”, calcula a coordenadora. Por isso, provavelmente, o acervo reúne até trabalhos anteriores aos períodos em destaque, como um Francis Bacon de 1952, além de trabalhos da santíssima trindade da pintura alemã, composta por Anselm Kiefer, Gerhard Richter e Georg Baselitz.

Postnaturalia
Postnaturalia (2017), instalação do artista checo Kristof Kintera, parte da seção Rehang, na mostra permanente da Collezione Maramotti

Rehang

O edifício sede conta com uma área expositiva de 6 mil m2), divididos em 43 salas, que se mantiveram praticamente com a mesma seleção de obras desde sua inauguração. Dez delas, contudo, foram reorganizadas, em março passado, para apresentar alguns dos 30 projetos comissionados a jovens artistas que foram expostos nas salas de mostras temporárias da instituição, nos últimos onze anos. Rehang é título que dá nome a esta nova sessão, onde estão trabalhos do checo Kristof Kintera, do alemão Thomas Scheibitz, e da italiana Alessandra Ariatti, uma pintora que nasceu na própria cidade de Reggio Emilia.

A exposição permanente é aberta ao público quatro dias por semana, quinta a domingo, gratuitamente, sob inscrição. Já as mostras temporárias são de visitação livre. Atualmente, está em cartaz Fontes de Za’atari, um projeto da artista Margherita Moscardini que, desde 2015, faz um mapeamento de fontes de água em um campo de refugiados com 80 mil pessoas na Jordânia. A mostra apresenta uma tipologia e documentação destas fontes e, uma delas, foi copiada em mármore e foi instalada em uma praça de Reggio Emilia.

Não há subsídio público para o museu, e tudo é bancado pela família Maramotti, sem nem mesmo ter como contrapartida metas de público, de acordo com Piccinini. Quando números parecem nortear muitos projetos de arte, é raro ver um local onde a arte de fato seja o centro das atenções como ocorre na coleção Maramotti.


Fabio Cypriano viajou a convite da Collezione Maramotti

Xilo: Corpo e Paisagem

Com trabalhos de 33 artistas de diferentes gerações, a mostra revela como a arte de gravar sobre madeira parte de uma tradição já consolidada para reinventar-se, ao dialogar com outras formas de expressão artística e propor um olhar bastante atento sobre a realidade e a produção artística contemporânea.

Ana Calzavara, série Sobrevoo, 2014
Ana Calzavara, série Sobrevoo, 2014

A escolha de Claudio Mubarac como curador dá ao conjunto uma densidade pouco comum em exposições coletivas, ainda mais quando marcadas por uma grande diversidade como esta. Artista e professor, ele acompanha de perto essa produção, funcionando como uma espécie de elo de ligação entre a geração que começou a implementar o ensino da xilogravura nas escolas de arte do país nos anos 1950/60 e os gravadores que, a partir dos anos 1990, deram continuidade a esse trabalho com forte caráter comunitário, criando ateliês coletivos e intercambiando dados técnicos, formais e conceituais sobre suas produções.

Artistas que conseguiram, por meio da troca e do diálogo, driblar as barreiras existentes no mercado nacional à arte sobre papel e, em particular, à xilogravura, técnica marcada por um forte viés popular.

A remissão à natureza e à figura humana – bastante presentes nos trabalhos –, mais do que uma referência aos gêneros acadêmicos dos retratos e paisagens, busca enfatizar a relação ativa e intensa, estabelecida por essas novas gerações com a cena contemporânea, definindo sua própria identidade por esse deambular urbano. “Esse pessoal cresceu num clima político muito diferente, se formou num ambiente democrático. Andar pela cidade é uma forma de dar corporeidade para eles próprios. Não separam mais urbano e rural, natureza e cultura”, sintetiza Mubarac.

Detalhe da obra Tropa, 2017, de Luisa Almeida
Detalhe da obra Tropa, 2017, de Luisa Almeida

É interessante notar como, a partir desse chão comum temporal, há um grande espraiamento de poéticas, formas diversas de explorar a relação com a madeira (muitas vezes lançando mão dos veios como elemento compositivo) e a criação de diálogos ricos com outras técnicas. A presença da cor é marcante, bem como o uso de grandes formatos. É o caso, por exemplo, da obra de Fabricio Lopez, o primeiro a idealizar essa exposição panorâmica e que convidou Mubarac a assumir a curadoria. Lopez exibe na mostra um amplo painel, uma paisagem que parece inventada, com referências marinhas e montanhosas, num jogo sedutor de cores e formas. A cor também é protagonista do lúdico mural A Banda Amarela chega à Etiópia Sagrada, de Eduardo Ver e pontua toda a exposição.

É Ana Calzavara quem parece aproximar de forma mais intensa a xilogravura da pintura, como se estivesse fundindo as duas linguagens, abolindo suas diferenças em uma série de paisagens amareladas que se sucedem e complementam como quadrinhos. Escultura e fotografia também fazem parte desse processo, com trabalhos densos como as sobreposições de cenas da cidade bruta, com seus prédios acinzentados e maciços, feitas por Fernando Vilela. Ou o exército criado por Luisa Almeida de mulheres combatentes, armadas, que se organizam na forma de totens, prontas para a luta. As referências imagéticas encontradas nos trabalhos são as mais variadas. Há um evidente diálogo com a tradição artística e as referências clássicas como o expressionismo. A opção por exibir os gravados sem moldura reforça esse caráter popular, marginal (no sentido de feito à margem), fluido e extremamente comunicativo da xilo. E remete a seu uso como arma revolucionária e de comunicação por meio dos lambe-lambes.

Virtuosísticas (como as gravuras de Francisco Maringelli e Ernesto Bonato), experimentais (Otavio Zani) ou coletivas (Xiloceasa), as dezenas de obras reunidas até setembro no Sesc Guarulhos atestam o vigor da produção contemporânea e as infinitas possibilidades da técnica simples, que como explica Mubarac, requer “apenas um pedaço de madeira e algo cortante”, mas que está em permanente reinvenção.

O mundo reinventado de Hudinilson Junior para conferir em mostra

Hudinilson em seu ateliê
Acima, retrato de Hudinilson em seu ateliê, década de 80.

O que pode a arte? Hudinilson Júnior sempre fez o que bem quis e a resposta a essa irreverência foi tornar-se um ponto fora da curva dentro do universo da arte brasileira. Sua trajetória é marcada pelo colapso do sujeito, explosão da relação com o objeto e radicalização de performances. Com vigor poético sofisticado, somado às experiências corporais e relacionais, Hudinilson deixa uma produção intimamente ligada a São Paulo, seja em performances, grafites ou arte em xerox.

Muitas de suas obras surgem na busca da simultaneidade entre pensamento e visualidade, como no dia em que surpreendeu a cidade com a imagem do seu pênis xerografada em um imenso outdoor, próximo ao parque do Ibirapuera. As reações provocadas pelo atrevimento apontavam para o desmonte das hierarquias do espaço expositivo, destruição do poder de localização da obra e ao mesmo tempo revelava a irreverência do sujeito.

obra "Sem Título" do artista,
Obra “Sem Título” do artista, produzida na década de 80.

Todo movimento de acionar a des – ordem perpassa pelas obras que tomam agora os 600 metros quadrados da galeria Jaqueline Martins, cuja proprietária é também a curadora da mostra. As novidades são as pinturas sobre tela, realizadas quando o artista ainda era estudante de arte na década de 1970. Uma tensão curiosa permeia a pluralidade do trabalho de Hudinilson, um dos pioneiros do movimento da arte xerox no Brasil. Melhor personagem de sua própria obra, ao criar Exercício de me ver (1981), desorganiza o pensamento crítico com a simulação do ato sexual com uma máquina de xerox. É instigante segui-lo nessa experimentação produzindo outros sentidos para o homem e a máquina. Como não lembrar de Hélio Oiticica quando sentenciou: “experimentar o experimental”? Hudinilson se expressa, sem pudor, por meio de várias linguagens que, em algumas circunstâncias, passa a ser instrumento de especulação. Para o crítico Jean-Claude Bernardet, “a fragmentação do corpo pela xerox, converte-o em paisagens abstratas, nas quais os fragmentos se esvaem”. Em sua performance com a máquina copiadora, ele utiliza seu corpo como matriz para a reprodução e investigação de possibilidades visuais.

Em 1979, Hudinilson cria o grupo 3Nós3, com os artistas Rafael França e Mário Ramiro. A união por afinidades eletivas era de amigos que pactuavam arte e forma de fazer arte. Até 1982 eles intervêm em vários pontos de São Paulo, praticando a reapropriação lúdica e crítica da cidade. O repertório de ações vai desde o ensacamento de monumentos públicos à intervenção no buraco de respiração de um túnel, à lacração de portas de galerias de arte. Todas entendidas como marco revolucionário contra as determinações racionalistas e controladoras da metrópole. Mesmo atuando com o grupo, ele jamais abandona sua produção individual que dura mais de três décadas.

Desde o início, Hudinilson mantém uma forte relação com a colagem, ponto de partida para uma fase comentarista. A isso se somam experimentos na xilogravura, suporte pelo qual a maior parte dos artistas brasileiros passou, utilizando decalques de imagens fotográficas. Hudinilson passava longas horas escolhendo fotos de corpos nus que retirava de revistas americanas. Em 1984, abandona esses modelos e centra toda a sua atenção em torno dele mesmo, quando se dedica a Narcise/Estudo para autorretrato (1984). Nesse “ensaio” dialoga com o mito de Narciso e cria sua própria identidade visual. O projeto envolve uma série de trabalhos, como uma espécie de “ópera”. Narciso passa a ser obsessão para ele que, nos últimos cadernos de colagens, revela seu interesse pelo estudo do nu masculino.

Hudinilson Jr, Amantes e Casos
Hudinilson Jr, Amantes e Casos

Na década de 1980, o lugar da arte de Hudinilson é a rua, onde inventa grafites com desenhos incorporados à escrita, numa reivindicação de espaço de liberdade total. Seu mentor e cúmplice, Alex Vallauri (1949-1987), foi o primeiro artista brasileiro a aderir ao grafite. Como ele, Hudinilson trabalha com máscaras ou estênceis na busca de um novo espaço formal para criar, uma resistência em vão, como se fosse possível alguma naturalidade na arte.

Em vida Hudinilson se salvou de experimentar a vertigem ilusória de pertencer ao mercado de arte e de participar da internacionalização por meio das maratonas repetitivas de feiras e bienais. Só depois de sua morte seus trabalhos chegam ao exterior e desembarca, em junho, na Art Basel, na Suíça, a mais antiga e reverenciada entre as feiras de arte do mundo.

Hudinilson Jr.
Até 06 de setembro de 2019
Na Galeria Jaqueline Martins
Rua Dr. Cesário Mota Junior, 433 – Vila Buarque, São Paulo

Apesar de montagem confusa, “À Nordeste” aponta para questões urgentes

Espaço expositivo de "À Nordeste". FOTO: Divulgação

Ambiente saturado: objetos, esculturas, desenhos, gravuras, salas fechadas, vídeos, sons, gente. O primeiro movimento foi escapar daquele espaço repleto de entradas/saídas, mas com algum esforço me aproximei de um pequeno monitor em que uma moça ia dizendo em libras (com legendas em português e inglês) que eu estava no final da exposição. Mais um sinal para cair fora de uma vez? Resisti. Voltei, então, para o que seria o início da mostra (não era) e comecei a me esforçar para dar início à visita.

Exposições normalmente são produzidas para “dar a ver” algo: a obra de um ou mais artistas, objetos industrializados ou artesanais etc. “Dar a ver” é criar condições ideais ou, pelo menos, satisfatórias para que o visitante possa percorrer o espaço sem entraves, sem ser bombardeado por inúmeros estímulos. Muita informação tende a ser igual a nenhuma informação ou a informações truncadas que se prejudicam mutuamente. É o que ocorre com a mostra À Nordeste (com crase, mesmo), no Sesc 24 de Maio.

À Nordeste foi concebida para lacrar. E conseguiu, claro que conseguiu. O que a ensejou foi sublinhar (ou explicar) a diferença entre o Nordeste e o resto do Brasil, diferença esta manifesta nas últimas eleições, quando aquela região, opondo-se à tendência majoritária no país, não elegeu aquilo que acabou sendo levado para Brasília. O Nordeste ali, nessa pretendida (des)exposição, foi apresentado ao “Sul maravilha” como o seu outro. O “lado de lá”, a nossa diferença (por mais próxima de nós que ela esteja, como a própria À Nordeste revela).

E com tal propósito, À Nordeste chegou chegando na vontade de desconstruir o estabelecido, a começar com uns catiripapos na língua portuguesa, colocando crase na proposição do título, suprimindo os artigos definidores dos gêneros de determinadas palavras, substituindo-os pelo “x” (assim quiseram xs curadorxs). Pueril? Pode ser, mas se a lacração tem momentos discutíveis – a implicância com a língua, mas também os painéis em madeira “natural” me parecem um problema entre muitos outros –, À Nordeste tem momentos fortes, outros fortíssimos que justificam uma visita.

Embora nos textos publicados no folder e espalhados pela exposição, xs curadorxs não analisem uma obra sequer, para dela extraírem os postulados que jogam no visitante, À Nordeste está repleta de obras fundamentais, não para pensarmos apenas o Nordeste (o que seria restritivo demais, vamos combinar), mas para pensar o Brasil como um todo.  Dentre elas, O caseiro, 2016, de Jonathas Andrade. Essa obra talvez seja o momento mais alto da (des)exposição: colocar ao lado de um antigo documentário que “flagra” Gilberto Freyre em seu cotidiano, o vídeo sobre o cotidiano de um senhor que trabalha como caseiro da antiga residência do senhor de Apipucos, e hoje museu, reafirma Andrade como um dos melhores interpretes do Brasil, de suas complexidades estruturais.

A dupla Barbara Wagner e Benjamin de Burca também amplia a força da exposição. Ela está representada na mostra por dois trabalhos de 2013: Edifício Recife – documentação fotográfica sobre esculturas em entradas de alguns edifícios do Recife – e o vídeo Faz que vai. Apesar das diferenças de suporte é notável como a dupla ressignifica criticamente o cotidiano por meio de ações que nem folclorizam e muito menos insistem em discursos visuais/textuais repletos de retórica vazia sobre questões sociais (da qual À Nordeste está repleta, diga-se).

Cristiano Lenhardt, com o vídeo Polvorosa, 2012, também empresta à exposição a importância do trabalho que vem realizando. O vídeo subverte o discurso televisivo mais vulgar trazendo para a exposição um sopro ficcional bem-humorado que também destoa da maioria das obras apresentadas.

Curiosamente, tanto Lenhardt quanto a dupla Wagner/de Burca e Jonathas Andrade são algumas das estrelas de duas das mais prestigiadas galerias mainstream do Sudeste do país (Fortes D’Aloia & Gabriel e Galeria Vermelho). A inclusão, em À Nordeste, de obras desses artistas tão significativos (não esquecer que Wagner/de Burca representa o país na edição deste ano da Bienal de Veneza), poderá parecer para alguns uma espécie de contradição da mostra que, obstinada na ênfase à diversidade nordestina, acaba apostando em nomes que, afinal, foram já devidamente adotados pelo poder hegemônico do circuito São Paulo/Rio. Ao contrário, prefiro acreditar que a integração dos trabalhos desses artistas responde a duas questões. Em primeiro lugar, são produtores de qualidade e seria indigno não os incluir na exposição pelo fato de já terem alcançado reconhecimento no “sul maravilha”. Em segundo, considero a presença deles na mostra um índice importante sobre como xs curadorxs pensam bem a complexidade do Brasil de hoje, em que divisões regionais do país são no mínimo discutíveis. O Brasil, apesar do que ainda querem alguns, é muito mais complexo do que mostram as estatísticas, as divisões regionais etc. e, neste sentido, a inclusão na mostra, não apenas das obras dos artistas citados, mas também da peça de Ton Bezerra – Signos eletronejos, 2013, um vídeo que documenta sua performance no centro de São Paulo – sublinham aspectos dessa complexidade.

Afinal, o estranhamento que causa aquele ser estranho caminhando pelo centro de São Paulo em Signos eletronejos, diz muito também sobre essa cidade que é a mais nordestina do país.

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Pelos comentários acima, penso ter ficado clara a intenção deste texto: se o visitante insistir em permanecer no recinto da mostra, e se tiver disposição para procurar naquele espaço labiríntico e confuso, encontrará mais motivos para ficar contente por ter ido visitar À Nordeste. E, é claro, não apenas pelas obras de Lenhardt, Wagner/de Burca e Jonathas Andrade. Creio que vale a pena também prestar a atenção aos vídeos de Zahy Guajajara e Marcelo Pedroso. É certo que ambos excedem na retórica, o que não carecia. Talvez jovens demais, cometem exageros quando poderiam confiar mais na potência das imagens que concebem, mas isso pode diminuir com o passar do tempo. A pintura de Dalton Paula – Canção das abelhas, 2018 – também justifica a visita, assim como algumas joias raras dos irmãos Joaquim e Vicente do Rego Monteiro e as delicadas pinturas produzidas em 1964 por Montez Magno.

(No final saí da mostra com a sensação de que, apesar dela mesma – de todos os entraves que criou para si e para o visitante –, À Nordeste aponta para questões que precisamos pensar com urgência. Questões sobre a sociedade brasileira, sobre a arte que produzimos e, tão importante quanto, sobre como adequar satisfatoriamente o desejo de romper com o trabalho curatorial tradicional e, ao mesmo tempo, manter a inteligibilidade do que quer ser apresentado ao público).

Casa do Povo: um lugar onde lembrar é agir

Cozinha Aberta
"Cozinha Aberta", 2019, ação do coletivo Universidad Desconocida na fachada da Casa Do Povo. Foto: Laura Viana

Até seis ou sete anos atrás, muito pouca gente em São Paulo – incluindo quem trabalha com cultura – saberia dizer o que era a Casa do Povo. Centro cultural fundado em 1946 por judeus progressistas no bairro do Bom Retiro, o espaço amargurava cerca de 30 anos de crise, com o encerramento de quase todas as suas atividades, e estava mais presente na memória de algumas gerações do que na vida cotidiana de moradores da cidade. O fato é que em muito pouco tempo a Casa vivenciou uma intensa e vigorosa retomada, consolidando-se como centro cultural prolífico e um dos espaços mais abertos à experimentação, ao debate político e às práticas artísticas multidisciplinares na capital. Voltado tanto para a produção contemporânea quanto para a preservação da memória, a Casa do Povo bebeu na sua própria história para ganhar novo fôlego e vida.

Atualmente, frequentar o espaço significa deparar-se com atividades das mais variadas e, ao primeiro olhar, díspares. Pode-se presenciar, dependendo da época, desde um workshop de dança contemporânea até uma aula de jornalismo para jovens de periferia; de uma peça teatral feita por secundaristas até uma feira de publicações latino-americanas; de uma performance artística até treinos de boxe abertos para a comunidade do bairro; de rodas de discussão sobre saúde e autoconhecimento feminino até ateliês de produção de materiais gráficos; de oficinas de tecelagem até atendimentos psicanalíticos gratuitos; de discussões sobre a integração de imigrantes no bairro até o ensaio de um coral tradicional cantado em ídiche; de um encontro sobre alimentação consciente até a própria distribuição de refeições. Pode-se, ainda, consultar uma biblioteca e um vasto arquivo documental, adquirir um exemplar do jornal Nossa Voz, editado pela Casa, ou partir dali com um audioguia para percorrer o bairro do Bom Retiro e conhecer sua história.

Se as práticas são tantas e tão diversas – e a lista acima poderia continuar –, elas não acontecem por acaso, nem são incoerentes com a proposta de um espaço contemporâneo de cultura e arte, como explica o curador e gestor cultural Benjamin Seroussi, diretor da Casa e um dos responsáveis pela retomada. “Por um lado, os artistas pedem para ampliar a noção de arte, não querem se limitar às práticas tradicionais. Eles não entendem a arte como separada de outras esferas de produção e de outras atividades da vida. Por outro lado, a cultura não se limita às artes. Moradia é cultura, culinária é cultura, esporte é cultura”, diz. “Então aqui tem criação, ativismo, gente em situação de vulnerabilidade social. Mas a gente nunca deixa de entender isso como um lugar de arte. Mas um lugar de arte que está tentando experimentar, em escala real, outros mundos possíveis.”

Experimentar outros mundos possíveis era, certamente, o que desejavam, nos anos 1940, os judeus progressistas que fundaram o espaço no Bom Retiro, pouco após a Segunda Guerra e o Holocausto. E é somente através de uma compreensão desta longa história da Casa, fortemente entrelaçada aos acontecimentos políticos e culturais do século 20, que pode-se entender a atuação da instituição hoje. “Porque toda a retomada foi feita a partir de uma releitura da história. Mas não com o olhar do historiador, digamos, mas mais com as técnicas do curador. A ideia não é necessariamente procurar a veracidade factual – não que isso não seja importante –, mas muito mais pensar em como usar, e talvez abusar, desta história no presente”, explica Seroussi.

A história antiga

A história a que o curador se refere remete aos anos 1930 e 1940, quando milhares de imigrantes judeus fugidos da pobreza e perseguição na Europa passaram a habitar o Bom Retiro, no centro de São Paulo, e quando duas narrativas se juntam. De um lado, o surgimento de associações antifascistas – a exemplo do que acontecia em diversos cantos do mundo –, criadas durante a guerra com o intuito de combater o antissemitismo, apoiar a luta dos países Aliados e, ao mesmo tempo, não deixar se perder uma cultura secular judaica. De outro, o desejo de homenagear os milhões de mortos nos campos de concentração nazistas. “Poderia ser feito um memorial, uma escultura, com os nomes, onde se colocariam flores uma vez por ano. Um gesto de lembrança e pronto”, comenta Seroussi. O que foi feito, no entanto, foi um “monumento vivo”, um espaço que reunia as associações antifascistas – como o jornal Nossa Voz e o Clube da Juventude – e ao mesmo tempo homenageava os mortos. “As duas narrativas se encontram: o centro cultural e o memorial. Então é um espaço de memória, mas um lugar onde lembrar é agir. Um lugar onde a história não está escrita na parede, mas está inscrita nos corpos e na arquitetura, e cabe a nós ativá-la.”   

Vicente Perrota
Desfile/Performance de Vicente Perrota realizado em 2018 na Casa. Foto: Julia Moraes

Com projeto de Ernest Mange – arquiteto que trabalhou com Rino Levi e Le Corbusier – a Casa ganhou sua sede em 1953. Com três amplos pavimentos quase sem divisórias e um terraço, o edifício modernista na Rua Três Rios se firmou como polo cultural e espaço de atuação política. “Faz muito sentido o Mange ter desenhado um prédio com essas plantas livres, que permite que se possa adequar os espaços. Imagino eu que ele deve ter pensado que o melhor prédio para recordar é aquele no qual cada geração inventa suas maneiras de lembrar. Porque a gente nunca sabe como é que, amanhã, vamos lembrar de ontem”, diz Seroussi. O espaço passou a abrigar também o Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, escola infantil de educação renovada (linha pedagógica humanista semelhante ao construtivismo) e, em 1960, inaugurou em seu subsolo o Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB), projetado pelo arquiteto Jorge Wilheim.

Com o golpe de 1964 e a instauração do regime militar, a Casa do Povo adentra um período conturbado de sua história. Enquanto o jornal Nossa Voz foi fechado pelo governo, a escola acolhia cada vez mais filhos de perseguidos políticos (incluindo muitos não judeus), que ganhavam bolsas e, se necessário, nomes falsos. Professores chegaram a ser presos e torturados e a Casa se tornou um polo de resistência à ditadura, especialmente através das atividades do TAIB. Nele foram encenadas peças do Teatro de Arena – de autores como Plínio Marcos e Augusto Boal – e do Teatro Popular do Sesi, entre outros. Ao mesmo tempo em que as apresentações lotavam o teatro e a escola seguia funcionando, muitos membros da comunidade judaica se afastaram, por medo de perseguição ou discordância ideológica, e as dificuldades financeiras aumentaram.

“A partir dos anos 1980 a Casa do Povo perde o inimigo – a Ditadura –, o amigo – o bloco socialista – e a base social – os judeus que saem do bairro e muitas vezes se afastam da esquerda”, resume Seroussi. Em 1981 o colégio encerra suas atividades, esvaziando ainda mais o espaço, em um período que o centro da cidade também vive um crescente abandono por parte das elites e do poder público. Se a Casa não fechou totalmente suas portas, sendo mantida pela atuação quase heroica de alguns associados, ela adentrou um longo período de crise que só acabou na década atual.

A Biblioteca da Casa
A biblioteca da Casa, reaberta este ano e que inclui, além de livros e documentos, os acervos dos coletivos que habitam o espaço. Foto Camila Svenson

A história recente

Foi mais ou menos essa a história contada à Seroussi em 2011 – certamente com mais detalhes e emoção – pelas mulheres que seguiam indo à Casa todas as semanas cantar em ídiche no Coral Tradição. Foi neste período que o curador, após anos de trabalho no Centro da Cultura Judaica, começou a se aproximar da Casa, situada em um bairro agora majoritariamente coreano e boliviano e com seu edifício bastante degradado. “A Casa não estava fechada. Essas mulheres mantiveram, heroicamente, ela viva, mas funcionando na medida do possível”, conta Seroussi, referindo-se a figuras como Hugueta Sendacz, hoje aos 92 anos e ainda maestrina do coral. Na mesma época, em decorrência do lançamento do livro Vanguarda Pedagógica (2008) e de uma mobilização através das redes sociais, um grupo de ex-alunos do Scholem também passou a se envolver com a Casa e a debater o futuro do espaço.

Foi a partir de 2012, com um novo conselho – que já incluía Seroussi – e uma equipe embrionária que as coisas começaram a mudar. “Não tinha grana nem funcionários, mas eu lembro de pensar: com esse lugar, essa história, essa arquitetura e sem pagar aluguel, ou eu consigo fazer as coisas acontecerem ou eu troco de profissão”, brinca. “E a gente resolveu fazer do mesmo jeito que foi feito lá em 1953. Ou seja, colocar grupos para usar o espaço. Veio um grupo de moda, um de design gráfico, um de ativismo urbano. E hoje temos 25 grupos ou coletivos usando a Casa”. Dessa vez, não mais pessoas ligadas à coletividade judaica, mas das mais variadas origens, transformando a instituição em um espaço de encontro e convívio entre diferentes. “Se o judeu é o outro, por excelência, uma casa judaica tem que ser aberta a todos os outros. Tem que ser um espaço da alteridade radical, aberta à população trans, à população negra, indígena e aos imigrantes do bairro.”

A partir de um questionamento sobre o que deveria ser um centro cultural do século 21, e mais especificamente naquele espaço, três grandes eixos de trabalho foram definidos. O primeiro, gedenk (“lembre-se”, em ídiche), orienta a atuação da casa como espaço de memória viva, que conta a história de resistência dos grupos que por ali passaram, mas procura trazer essa história para as práticas do presente e ideias de futuro. O segundo eixo, tsukunft (“futuro”) ressalta o papel experimental da casa e o desejo de fazer dela um espaço para se pensar novas práticas artísticas e multidisciplinares. O terceiro eixo, farain (“associação”), se refere a como os dois primeiros eixos poderiam ser trabalhados, ou seja, através da ação de coletivos, movimentos autônomos e associações de bairro que passaram a habitar a Casa, convivendo entre si e utilizando os espaços de modo flexível.

Só se me Dormirem
“Só se me Dormirem”, 2018, performance de Karlla Girotto na Casa. Foto: Adma Macena

Os três eixos se relacionam diretamente com uma questão incontornável, segundo Seroussi: “Aqui estavam grupos de uma vanguarda política. Foi construído um prédio de arquitetura modernista, tinha uma escola experimental e um teatro brechtiano. Então a Casa nos condena a ousar. Ela nos pede para fazer diferente”. Diferente, inclusive, do que se fazia ali nos anos 1940 e 1950, em um contexto radicalmente diferente. “Quando a Casa abriu havia dois ou três centros culturais na cidade. Hoje só o bairro tem a Pinacoteca, a Oficina Cultural Oswald de Andrade, o Sesc Bom Retiro, a Sala São Paulo, o Teatro Porto Seguro, o Museu de Arte Sacra e o Teatro de Container. Então a gente ia fazer mais um lugar com exposições, temporada de teatro e shows? Não, quisemos fazer outra coisa”, explica. “Até porque esses espaços são fundamentais, mas acho que não dão conta de uma série de práticas artísticas contemporâneas. Porque eu acho que muitas vezes eles separam um tanto a cultura das outras esferas da vida.”

Hoje, com os coletivos e uma programação dividida entre o que a Casa organiza e o que ela acolhe, o orçamento anual passou dos R$ 60 mil, em 2011, para R$ 1,2 milhão, captados entre leis de incentivo, editais, contribuições dos grupos e associados, locações e um evento anual de arrecadação – como o show de Caetano Veloso em 2018. A biblioteca da instituição, após 40 anos fechada, foi reativada no último mês de maio, representando mais um grande passo para a Casa no sentido de retomar sua história e, ao mesmo tempo, se abrir à sociedade. “Já passaram por aqui várias gerações, inclusive muitas pessoas que já morreram, mas a gente tem esse acervo, esse arquivo, que é o núcleo duro da Casa, que conta sua história”, diz Marilia Loureiro, curadora e programadora da instituição. O próximo passo é a restauração do TAIB, hoje bastante degradado, em um planejamento que já está em estágio avançado.

O jornal Nossa Voz, símbolo da instituição, foi relançado em 2014 e é publicado anualmente com textos sobre temas atuais e colaborações de artistas e intelectuais. No último número, de 2018, a capa estampa o Manifesto Herzog Vive!, publicado pelo grupo Judeus pela Democracia no período das eleições em reação à ascensão conservadora e à possibilidade da eleição de Bolsonaro. Na página seguinte, a transcrição da fala feita pelo escritor israelense Amós Oz em junho de 2017, quando esteve no local, evidencia um pouco do espírito – passado e presente – da Casa do Povo: “Eu realmente me sinto em casa. Aqui é o lugar certo para começar uma revolução, ou, pelo menos, como disse minha amiga Lilia Schwarcz, o lugar certo para planejar a revolução. Porque é sempre mais agradável planejá-la do que executá-la”, brincou. Se não será o epicentro da revolução, a Casa é, retomando a afirmação de Seroussi, um lugar para se ensaiar outros futuros possíveis. “E tudo que acontece aqui hoje confirma que os nossos desejos não eram loucura”, conclui o curador.