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Xilo: Corpo e Paisagem

Com trabalhos de 33 artistas de diferentes gerações, a mostra revela como a arte de gravar sobre madeira parte de uma tradição já consolidada para reinventar-se, ao dialogar com outras formas de expressão artística e propor um olhar bastante atento sobre a realidade e a produção artística contemporânea.

Ana Calzavara, série Sobrevoo, 2014
Ana Calzavara, série Sobrevoo, 2014

A escolha de Claudio Mubarac como curador dá ao conjunto uma densidade pouco comum em exposições coletivas, ainda mais quando marcadas por uma grande diversidade como esta. Artista e professor, ele acompanha de perto essa produção, funcionando como uma espécie de elo de ligação entre a geração que começou a implementar o ensino da xilogravura nas escolas de arte do país nos anos 1950/60 e os gravadores que, a partir dos anos 1990, deram continuidade a esse trabalho com forte caráter comunitário, criando ateliês coletivos e intercambiando dados técnicos, formais e conceituais sobre suas produções.

Artistas que conseguiram, por meio da troca e do diálogo, driblar as barreiras existentes no mercado nacional à arte sobre papel e, em particular, à xilogravura, técnica marcada por um forte viés popular.

A remissão à natureza e à figura humana – bastante presentes nos trabalhos –, mais do que uma referência aos gêneros acadêmicos dos retratos e paisagens, busca enfatizar a relação ativa e intensa, estabelecida por essas novas gerações com a cena contemporânea, definindo sua própria identidade por esse deambular urbano. “Esse pessoal cresceu num clima político muito diferente, se formou num ambiente democrático. Andar pela cidade é uma forma de dar corporeidade para eles próprios. Não separam mais urbano e rural, natureza e cultura”, sintetiza Mubarac.

Detalhe da obra Tropa, 2017, de Luisa Almeida
Detalhe da obra Tropa, 2017, de Luisa Almeida

É interessante notar como, a partir desse chão comum temporal, há um grande espraiamento de poéticas, formas diversas de explorar a relação com a madeira (muitas vezes lançando mão dos veios como elemento compositivo) e a criação de diálogos ricos com outras técnicas. A presença da cor é marcante, bem como o uso de grandes formatos. É o caso, por exemplo, da obra de Fabricio Lopez, o primeiro a idealizar essa exposição panorâmica e que convidou Mubarac a assumir a curadoria. Lopez exibe na mostra um amplo painel, uma paisagem que parece inventada, com referências marinhas e montanhosas, num jogo sedutor de cores e formas. A cor também é protagonista do lúdico mural A Banda Amarela chega à Etiópia Sagrada, de Eduardo Ver e pontua toda a exposição.

É Ana Calzavara quem parece aproximar de forma mais intensa a xilogravura da pintura, como se estivesse fundindo as duas linguagens, abolindo suas diferenças em uma série de paisagens amareladas que se sucedem e complementam como quadrinhos. Escultura e fotografia também fazem parte desse processo, com trabalhos densos como as sobreposições de cenas da cidade bruta, com seus prédios acinzentados e maciços, feitas por Fernando Vilela. Ou o exército criado por Luisa Almeida de mulheres combatentes, armadas, que se organizam na forma de totens, prontas para a luta. As referências imagéticas encontradas nos trabalhos são as mais variadas. Há um evidente diálogo com a tradição artística e as referências clássicas como o expressionismo. A opção por exibir os gravados sem moldura reforça esse caráter popular, marginal (no sentido de feito à margem), fluido e extremamente comunicativo da xilo. E remete a seu uso como arma revolucionária e de comunicação por meio dos lambe-lambes.

Virtuosísticas (como as gravuras de Francisco Maringelli e Ernesto Bonato), experimentais (Otavio Zani) ou coletivas (Xiloceasa), as dezenas de obras reunidas até setembro no Sesc Guarulhos atestam o vigor da produção contemporânea e as infinitas possibilidades da técnica simples, que como explica Mubarac, requer “apenas um pedaço de madeira e algo cortante”, mas que está em permanente reinvenção.

O mundo reinventado de Hudinilson Junior para conferir em mostra

Hudinilson em seu ateliê
Acima, retrato de Hudinilson em seu ateliê, década de 80.

O que pode a arte? Hudinilson Júnior sempre fez o que bem quis e a resposta a essa irreverência foi tornar-se um ponto fora da curva dentro do universo da arte brasileira. Sua trajetória é marcada pelo colapso do sujeito, explosão da relação com o objeto e radicalização de performances. Com vigor poético sofisticado, somado às experiências corporais e relacionais, Hudinilson deixa uma produção intimamente ligada a São Paulo, seja em performances, grafites ou arte em xerox.

Muitas de suas obras surgem na busca da simultaneidade entre pensamento e visualidade, como no dia em que surpreendeu a cidade com a imagem do seu pênis xerografada em um imenso outdoor, próximo ao parque do Ibirapuera. As reações provocadas pelo atrevimento apontavam para o desmonte das hierarquias do espaço expositivo, destruição do poder de localização da obra e ao mesmo tempo revelava a irreverência do sujeito.

obra "Sem Título" do artista,
Obra “Sem Título” do artista, produzida na década de 80.

Todo movimento de acionar a des – ordem perpassa pelas obras que tomam agora os 600 metros quadrados da galeria Jaqueline Martins, cuja proprietária é também a curadora da mostra. As novidades são as pinturas sobre tela, realizadas quando o artista ainda era estudante de arte na década de 1970. Uma tensão curiosa permeia a pluralidade do trabalho de Hudinilson, um dos pioneiros do movimento da arte xerox no Brasil. Melhor personagem de sua própria obra, ao criar Exercício de me ver (1981), desorganiza o pensamento crítico com a simulação do ato sexual com uma máquina de xerox. É instigante segui-lo nessa experimentação produzindo outros sentidos para o homem e a máquina. Como não lembrar de Hélio Oiticica quando sentenciou: “experimentar o experimental”? Hudinilson se expressa, sem pudor, por meio de várias linguagens que, em algumas circunstâncias, passa a ser instrumento de especulação. Para o crítico Jean-Claude Bernardet, “a fragmentação do corpo pela xerox, converte-o em paisagens abstratas, nas quais os fragmentos se esvaem”. Em sua performance com a máquina copiadora, ele utiliza seu corpo como matriz para a reprodução e investigação de possibilidades visuais.

Em 1979, Hudinilson cria o grupo 3Nós3, com os artistas Rafael França e Mário Ramiro. A união por afinidades eletivas era de amigos que pactuavam arte e forma de fazer arte. Até 1982 eles intervêm em vários pontos de São Paulo, praticando a reapropriação lúdica e crítica da cidade. O repertório de ações vai desde o ensacamento de monumentos públicos à intervenção no buraco de respiração de um túnel, à lacração de portas de galerias de arte. Todas entendidas como marco revolucionário contra as determinações racionalistas e controladoras da metrópole. Mesmo atuando com o grupo, ele jamais abandona sua produção individual que dura mais de três décadas.

Desde o início, Hudinilson mantém uma forte relação com a colagem, ponto de partida para uma fase comentarista. A isso se somam experimentos na xilogravura, suporte pelo qual a maior parte dos artistas brasileiros passou, utilizando decalques de imagens fotográficas. Hudinilson passava longas horas escolhendo fotos de corpos nus que retirava de revistas americanas. Em 1984, abandona esses modelos e centra toda a sua atenção em torno dele mesmo, quando se dedica a Narcise/Estudo para autorretrato (1984). Nesse “ensaio” dialoga com o mito de Narciso e cria sua própria identidade visual. O projeto envolve uma série de trabalhos, como uma espécie de “ópera”. Narciso passa a ser obsessão para ele que, nos últimos cadernos de colagens, revela seu interesse pelo estudo do nu masculino.

Hudinilson Jr, Amantes e Casos
Hudinilson Jr, Amantes e Casos

Na década de 1980, o lugar da arte de Hudinilson é a rua, onde inventa grafites com desenhos incorporados à escrita, numa reivindicação de espaço de liberdade total. Seu mentor e cúmplice, Alex Vallauri (1949-1987), foi o primeiro artista brasileiro a aderir ao grafite. Como ele, Hudinilson trabalha com máscaras ou estênceis na busca de um novo espaço formal para criar, uma resistência em vão, como se fosse possível alguma naturalidade na arte.

Em vida Hudinilson se salvou de experimentar a vertigem ilusória de pertencer ao mercado de arte e de participar da internacionalização por meio das maratonas repetitivas de feiras e bienais. Só depois de sua morte seus trabalhos chegam ao exterior e desembarca, em junho, na Art Basel, na Suíça, a mais antiga e reverenciada entre as feiras de arte do mundo.

Hudinilson Jr.
Até 06 de setembro de 2019
Na Galeria Jaqueline Martins
Rua Dr. Cesário Mota Junior, 433 – Vila Buarque, São Paulo

Apesar de montagem confusa, “À Nordeste” aponta para questões urgentes

Espaço expositivo de "À Nordeste". FOTO: Divulgação

Ambiente saturado: objetos, esculturas, desenhos, gravuras, salas fechadas, vídeos, sons, gente. O primeiro movimento foi escapar daquele espaço repleto de entradas/saídas, mas com algum esforço me aproximei de um pequeno monitor em que uma moça ia dizendo em libras (com legendas em português e inglês) que eu estava no final da exposição. Mais um sinal para cair fora de uma vez? Resisti. Voltei, então, para o que seria o início da mostra (não era) e comecei a me esforçar para dar início à visita.

Exposições normalmente são produzidas para “dar a ver” algo: a obra de um ou mais artistas, objetos industrializados ou artesanais etc. “Dar a ver” é criar condições ideais ou, pelo menos, satisfatórias para que o visitante possa percorrer o espaço sem entraves, sem ser bombardeado por inúmeros estímulos. Muita informação tende a ser igual a nenhuma informação ou a informações truncadas que se prejudicam mutuamente. É o que ocorre com a mostra À Nordeste (com crase, mesmo), no Sesc 24 de Maio.

À Nordeste foi concebida para lacrar. E conseguiu, claro que conseguiu. O que a ensejou foi sublinhar (ou explicar) a diferença entre o Nordeste e o resto do Brasil, diferença esta manifesta nas últimas eleições, quando aquela região, opondo-se à tendência majoritária no país, não elegeu aquilo que acabou sendo levado para Brasília. O Nordeste ali, nessa pretendida (des)exposição, foi apresentado ao “Sul maravilha” como o seu outro. O “lado de lá”, a nossa diferença (por mais próxima de nós que ela esteja, como a própria À Nordeste revela).

E com tal propósito, À Nordeste chegou chegando na vontade de desconstruir o estabelecido, a começar com uns catiripapos na língua portuguesa, colocando crase na proposição do título, suprimindo os artigos definidores dos gêneros de determinadas palavras, substituindo-os pelo “x” (assim quiseram xs curadorxs). Pueril? Pode ser, mas se a lacração tem momentos discutíveis – a implicância com a língua, mas também os painéis em madeira “natural” me parecem um problema entre muitos outros –, À Nordeste tem momentos fortes, outros fortíssimos que justificam uma visita.

Embora nos textos publicados no folder e espalhados pela exposição, xs curadorxs não analisem uma obra sequer, para dela extraírem os postulados que jogam no visitante, À Nordeste está repleta de obras fundamentais, não para pensarmos apenas o Nordeste (o que seria restritivo demais, vamos combinar), mas para pensar o Brasil como um todo.  Dentre elas, O caseiro, 2016, de Jonathas Andrade. Essa obra talvez seja o momento mais alto da (des)exposição: colocar ao lado de um antigo documentário que “flagra” Gilberto Freyre em seu cotidiano, o vídeo sobre o cotidiano de um senhor que trabalha como caseiro da antiga residência do senhor de Apipucos, e hoje museu, reafirma Andrade como um dos melhores interpretes do Brasil, de suas complexidades estruturais.

A dupla Barbara Wagner e Benjamin de Burca também amplia a força da exposição. Ela está representada na mostra por dois trabalhos de 2013: Edifício Recife – documentação fotográfica sobre esculturas em entradas de alguns edifícios do Recife – e o vídeo Faz que vai. Apesar das diferenças de suporte é notável como a dupla ressignifica criticamente o cotidiano por meio de ações que nem folclorizam e muito menos insistem em discursos visuais/textuais repletos de retórica vazia sobre questões sociais (da qual À Nordeste está repleta, diga-se).

Cristiano Lenhardt, com o vídeo Polvorosa, 2012, também empresta à exposição a importância do trabalho que vem realizando. O vídeo subverte o discurso televisivo mais vulgar trazendo para a exposição um sopro ficcional bem-humorado que também destoa da maioria das obras apresentadas.

Curiosamente, tanto Lenhardt quanto a dupla Wagner/de Burca e Jonathas Andrade são algumas das estrelas de duas das mais prestigiadas galerias mainstream do Sudeste do país (Fortes D’Aloia & Gabriel e Galeria Vermelho). A inclusão, em À Nordeste, de obras desses artistas tão significativos (não esquecer que Wagner/de Burca representa o país na edição deste ano da Bienal de Veneza), poderá parecer para alguns uma espécie de contradição da mostra que, obstinada na ênfase à diversidade nordestina, acaba apostando em nomes que, afinal, foram já devidamente adotados pelo poder hegemônico do circuito São Paulo/Rio. Ao contrário, prefiro acreditar que a integração dos trabalhos desses artistas responde a duas questões. Em primeiro lugar, são produtores de qualidade e seria indigno não os incluir na exposição pelo fato de já terem alcançado reconhecimento no “sul maravilha”. Em segundo, considero a presença deles na mostra um índice importante sobre como xs curadorxs pensam bem a complexidade do Brasil de hoje, em que divisões regionais do país são no mínimo discutíveis. O Brasil, apesar do que ainda querem alguns, é muito mais complexo do que mostram as estatísticas, as divisões regionais etc. e, neste sentido, a inclusão na mostra, não apenas das obras dos artistas citados, mas também da peça de Ton Bezerra – Signos eletronejos, 2013, um vídeo que documenta sua performance no centro de São Paulo – sublinham aspectos dessa complexidade.

Afinal, o estranhamento que causa aquele ser estranho caminhando pelo centro de São Paulo em Signos eletronejos, diz muito também sobre essa cidade que é a mais nordestina do país.

***

Pelos comentários acima, penso ter ficado clara a intenção deste texto: se o visitante insistir em permanecer no recinto da mostra, e se tiver disposição para procurar naquele espaço labiríntico e confuso, encontrará mais motivos para ficar contente por ter ido visitar À Nordeste. E, é claro, não apenas pelas obras de Lenhardt, Wagner/de Burca e Jonathas Andrade. Creio que vale a pena também prestar a atenção aos vídeos de Zahy Guajajara e Marcelo Pedroso. É certo que ambos excedem na retórica, o que não carecia. Talvez jovens demais, cometem exageros quando poderiam confiar mais na potência das imagens que concebem, mas isso pode diminuir com o passar do tempo. A pintura de Dalton Paula – Canção das abelhas, 2018 – também justifica a visita, assim como algumas joias raras dos irmãos Joaquim e Vicente do Rego Monteiro e as delicadas pinturas produzidas em 1964 por Montez Magno.

(No final saí da mostra com a sensação de que, apesar dela mesma – de todos os entraves que criou para si e para o visitante –, À Nordeste aponta para questões que precisamos pensar com urgência. Questões sobre a sociedade brasileira, sobre a arte que produzimos e, tão importante quanto, sobre como adequar satisfatoriamente o desejo de romper com o trabalho curatorial tradicional e, ao mesmo tempo, manter a inteligibilidade do que quer ser apresentado ao público).

Casa do Povo: um lugar onde lembrar é agir

Cozinha Aberta
"Cozinha Aberta", 2019, ação do coletivo Universidad Desconocida na fachada da Casa Do Povo. Foto: Laura Viana

Até seis ou sete anos atrás, muito pouca gente em São Paulo – incluindo quem trabalha com cultura – saberia dizer o que era a Casa do Povo. Centro cultural fundado em 1946 por judeus progressistas no bairro do Bom Retiro, o espaço amargurava cerca de 30 anos de crise, com o encerramento de quase todas as suas atividades, e estava mais presente na memória de algumas gerações do que na vida cotidiana de moradores da cidade. O fato é que em muito pouco tempo a Casa vivenciou uma intensa e vigorosa retomada, consolidando-se como centro cultural prolífico e um dos espaços mais abertos à experimentação, ao debate político e às práticas artísticas multidisciplinares na capital. Voltado tanto para a produção contemporânea quanto para a preservação da memória, a Casa do Povo bebeu na sua própria história para ganhar novo fôlego e vida.

Atualmente, frequentar o espaço significa deparar-se com atividades das mais variadas e, ao primeiro olhar, díspares. Pode-se presenciar, dependendo da época, desde um workshop de dança contemporânea até uma aula de jornalismo para jovens de periferia; de uma peça teatral feita por secundaristas até uma feira de publicações latino-americanas; de uma performance artística até treinos de boxe abertos para a comunidade do bairro; de rodas de discussão sobre saúde e autoconhecimento feminino até ateliês de produção de materiais gráficos; de oficinas de tecelagem até atendimentos psicanalíticos gratuitos; de discussões sobre a integração de imigrantes no bairro até o ensaio de um coral tradicional cantado em ídiche; de um encontro sobre alimentação consciente até a própria distribuição de refeições. Pode-se, ainda, consultar uma biblioteca e um vasto arquivo documental, adquirir um exemplar do jornal Nossa Voz, editado pela Casa, ou partir dali com um audioguia para percorrer o bairro do Bom Retiro e conhecer sua história.

Se as práticas são tantas e tão diversas – e a lista acima poderia continuar –, elas não acontecem por acaso, nem são incoerentes com a proposta de um espaço contemporâneo de cultura e arte, como explica o curador e gestor cultural Benjamin Seroussi, diretor da Casa e um dos responsáveis pela retomada. “Por um lado, os artistas pedem para ampliar a noção de arte, não querem se limitar às práticas tradicionais. Eles não entendem a arte como separada de outras esferas de produção e de outras atividades da vida. Por outro lado, a cultura não se limita às artes. Moradia é cultura, culinária é cultura, esporte é cultura”, diz. “Então aqui tem criação, ativismo, gente em situação de vulnerabilidade social. Mas a gente nunca deixa de entender isso como um lugar de arte. Mas um lugar de arte que está tentando experimentar, em escala real, outros mundos possíveis.”

Experimentar outros mundos possíveis era, certamente, o que desejavam, nos anos 1940, os judeus progressistas que fundaram o espaço no Bom Retiro, pouco após a Segunda Guerra e o Holocausto. E é somente através de uma compreensão desta longa história da Casa, fortemente entrelaçada aos acontecimentos políticos e culturais do século 20, que pode-se entender a atuação da instituição hoje. “Porque toda a retomada foi feita a partir de uma releitura da história. Mas não com o olhar do historiador, digamos, mas mais com as técnicas do curador. A ideia não é necessariamente procurar a veracidade factual – não que isso não seja importante –, mas muito mais pensar em como usar, e talvez abusar, desta história no presente”, explica Seroussi.

A história antiga

A história a que o curador se refere remete aos anos 1930 e 1940, quando milhares de imigrantes judeus fugidos da pobreza e perseguição na Europa passaram a habitar o Bom Retiro, no centro de São Paulo, e quando duas narrativas se juntam. De um lado, o surgimento de associações antifascistas – a exemplo do que acontecia em diversos cantos do mundo –, criadas durante a guerra com o intuito de combater o antissemitismo, apoiar a luta dos países Aliados e, ao mesmo tempo, não deixar se perder uma cultura secular judaica. De outro, o desejo de homenagear os milhões de mortos nos campos de concentração nazistas. “Poderia ser feito um memorial, uma escultura, com os nomes, onde se colocariam flores uma vez por ano. Um gesto de lembrança e pronto”, comenta Seroussi. O que foi feito, no entanto, foi um “monumento vivo”, um espaço que reunia as associações antifascistas – como o jornal Nossa Voz e o Clube da Juventude – e ao mesmo tempo homenageava os mortos. “As duas narrativas se encontram: o centro cultural e o memorial. Então é um espaço de memória, mas um lugar onde lembrar é agir. Um lugar onde a história não está escrita na parede, mas está inscrita nos corpos e na arquitetura, e cabe a nós ativá-la.”   

Vicente Perrota
Desfile/Performance de Vicente Perrota realizado em 2018 na Casa. Foto: Julia Moraes

Com projeto de Ernest Mange – arquiteto que trabalhou com Rino Levi e Le Corbusier – a Casa ganhou sua sede em 1953. Com três amplos pavimentos quase sem divisórias e um terraço, o edifício modernista na Rua Três Rios se firmou como polo cultural e espaço de atuação política. “Faz muito sentido o Mange ter desenhado um prédio com essas plantas livres, que permite que se possa adequar os espaços. Imagino eu que ele deve ter pensado que o melhor prédio para recordar é aquele no qual cada geração inventa suas maneiras de lembrar. Porque a gente nunca sabe como é que, amanhã, vamos lembrar de ontem”, diz Seroussi. O espaço passou a abrigar também o Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, escola infantil de educação renovada (linha pedagógica humanista semelhante ao construtivismo) e, em 1960, inaugurou em seu subsolo o Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB), projetado pelo arquiteto Jorge Wilheim.

Com o golpe de 1964 e a instauração do regime militar, a Casa do Povo adentra um período conturbado de sua história. Enquanto o jornal Nossa Voz foi fechado pelo governo, a escola acolhia cada vez mais filhos de perseguidos políticos (incluindo muitos não judeus), que ganhavam bolsas e, se necessário, nomes falsos. Professores chegaram a ser presos e torturados e a Casa se tornou um polo de resistência à ditadura, especialmente através das atividades do TAIB. Nele foram encenadas peças do Teatro de Arena – de autores como Plínio Marcos e Augusto Boal – e do Teatro Popular do Sesi, entre outros. Ao mesmo tempo em que as apresentações lotavam o teatro e a escola seguia funcionando, muitos membros da comunidade judaica se afastaram, por medo de perseguição ou discordância ideológica, e as dificuldades financeiras aumentaram.

“A partir dos anos 1980 a Casa do Povo perde o inimigo – a Ditadura –, o amigo – o bloco socialista – e a base social – os judeus que saem do bairro e muitas vezes se afastam da esquerda”, resume Seroussi. Em 1981 o colégio encerra suas atividades, esvaziando ainda mais o espaço, em um período que o centro da cidade também vive um crescente abandono por parte das elites e do poder público. Se a Casa não fechou totalmente suas portas, sendo mantida pela atuação quase heroica de alguns associados, ela adentrou um longo período de crise que só acabou na década atual.

A Biblioteca da Casa
A biblioteca da Casa, reaberta este ano e que inclui, além de livros e documentos, os acervos dos coletivos que habitam o espaço. Foto Camila Svenson

A história recente

Foi mais ou menos essa a história contada à Seroussi em 2011 – certamente com mais detalhes e emoção – pelas mulheres que seguiam indo à Casa todas as semanas cantar em ídiche no Coral Tradição. Foi neste período que o curador, após anos de trabalho no Centro da Cultura Judaica, começou a se aproximar da Casa, situada em um bairro agora majoritariamente coreano e boliviano e com seu edifício bastante degradado. “A Casa não estava fechada. Essas mulheres mantiveram, heroicamente, ela viva, mas funcionando na medida do possível”, conta Seroussi, referindo-se a figuras como Hugueta Sendacz, hoje aos 92 anos e ainda maestrina do coral. Na mesma época, em decorrência do lançamento do livro Vanguarda Pedagógica (2008) e de uma mobilização através das redes sociais, um grupo de ex-alunos do Scholem também passou a se envolver com a Casa e a debater o futuro do espaço.

Foi a partir de 2012, com um novo conselho – que já incluía Seroussi – e uma equipe embrionária que as coisas começaram a mudar. “Não tinha grana nem funcionários, mas eu lembro de pensar: com esse lugar, essa história, essa arquitetura e sem pagar aluguel, ou eu consigo fazer as coisas acontecerem ou eu troco de profissão”, brinca. “E a gente resolveu fazer do mesmo jeito que foi feito lá em 1953. Ou seja, colocar grupos para usar o espaço. Veio um grupo de moda, um de design gráfico, um de ativismo urbano. E hoje temos 25 grupos ou coletivos usando a Casa”. Dessa vez, não mais pessoas ligadas à coletividade judaica, mas das mais variadas origens, transformando a instituição em um espaço de encontro e convívio entre diferentes. “Se o judeu é o outro, por excelência, uma casa judaica tem que ser aberta a todos os outros. Tem que ser um espaço da alteridade radical, aberta à população trans, à população negra, indígena e aos imigrantes do bairro.”

A partir de um questionamento sobre o que deveria ser um centro cultural do século 21, e mais especificamente naquele espaço, três grandes eixos de trabalho foram definidos. O primeiro, gedenk (“lembre-se”, em ídiche), orienta a atuação da casa como espaço de memória viva, que conta a história de resistência dos grupos que por ali passaram, mas procura trazer essa história para as práticas do presente e ideias de futuro. O segundo eixo, tsukunft (“futuro”) ressalta o papel experimental da casa e o desejo de fazer dela um espaço para se pensar novas práticas artísticas e multidisciplinares. O terceiro eixo, farain (“associação”), se refere a como os dois primeiros eixos poderiam ser trabalhados, ou seja, através da ação de coletivos, movimentos autônomos e associações de bairro que passaram a habitar a Casa, convivendo entre si e utilizando os espaços de modo flexível.

Só se me Dormirem
“Só se me Dormirem”, 2018, performance de Karlla Girotto na Casa. Foto: Adma Macena

Os três eixos se relacionam diretamente com uma questão incontornável, segundo Seroussi: “Aqui estavam grupos de uma vanguarda política. Foi construído um prédio de arquitetura modernista, tinha uma escola experimental e um teatro brechtiano. Então a Casa nos condena a ousar. Ela nos pede para fazer diferente”. Diferente, inclusive, do que se fazia ali nos anos 1940 e 1950, em um contexto radicalmente diferente. “Quando a Casa abriu havia dois ou três centros culturais na cidade. Hoje só o bairro tem a Pinacoteca, a Oficina Cultural Oswald de Andrade, o Sesc Bom Retiro, a Sala São Paulo, o Teatro Porto Seguro, o Museu de Arte Sacra e o Teatro de Container. Então a gente ia fazer mais um lugar com exposições, temporada de teatro e shows? Não, quisemos fazer outra coisa”, explica. “Até porque esses espaços são fundamentais, mas acho que não dão conta de uma série de práticas artísticas contemporâneas. Porque eu acho que muitas vezes eles separam um tanto a cultura das outras esferas da vida.”

Hoje, com os coletivos e uma programação dividida entre o que a Casa organiza e o que ela acolhe, o orçamento anual passou dos R$ 60 mil, em 2011, para R$ 1,2 milhão, captados entre leis de incentivo, editais, contribuições dos grupos e associados, locações e um evento anual de arrecadação – como o show de Caetano Veloso em 2018. A biblioteca da instituição, após 40 anos fechada, foi reativada no último mês de maio, representando mais um grande passo para a Casa no sentido de retomar sua história e, ao mesmo tempo, se abrir à sociedade. “Já passaram por aqui várias gerações, inclusive muitas pessoas que já morreram, mas a gente tem esse acervo, esse arquivo, que é o núcleo duro da Casa, que conta sua história”, diz Marilia Loureiro, curadora e programadora da instituição. O próximo passo é a restauração do TAIB, hoje bastante degradado, em um planejamento que já está em estágio avançado.

O jornal Nossa Voz, símbolo da instituição, foi relançado em 2014 e é publicado anualmente com textos sobre temas atuais e colaborações de artistas e intelectuais. No último número, de 2018, a capa estampa o Manifesto Herzog Vive!, publicado pelo grupo Judeus pela Democracia no período das eleições em reação à ascensão conservadora e à possibilidade da eleição de Bolsonaro. Na página seguinte, a transcrição da fala feita pelo escritor israelense Amós Oz em junho de 2017, quando esteve no local, evidencia um pouco do espírito – passado e presente – da Casa do Povo: “Eu realmente me sinto em casa. Aqui é o lugar certo para começar uma revolução, ou, pelo menos, como disse minha amiga Lilia Schwarcz, o lugar certo para planejar a revolução. Porque é sempre mais agradável planejá-la do que executá-la”, brincou. Se não será o epicentro da revolução, a Casa é, retomando a afirmação de Seroussi, um lugar para se ensaiar outros futuros possíveis. “E tudo que acontece aqui hoje confirma que os nossos desejos não eram loucura”, conclui o curador.

Uma pintura feita de escombros e memórias

Frequentes Conclusões Falsas
Frequentes Conclusões Falsas 40, 2019. Acrílica, spray e lápis sobre tela, 150 x 200 cm

Característica marcante da obra de David Magila, a simultaneidade parece ter efeito também sobre seu calendário. Com três exposições inaugurando uma após a outra no mês de maio de 2019, o artista faz uma entrada impactante na cena paulistana. São três espaços diferentes e com vocações distintas, nos quais expõe um leque amplo de trabalhos, quase todos inéditos, que conjuntamente compõem um panorama bastante abrangente das principais questões que o motivam.

“Foi fruto do acaso”, explica ele, enfatizando que cada um dessas mostras têm uma história própria, mas sem negar a existência de nexos importantes entre os diferentes núcleos expositivos. O primeiro desses projetos aconteceu no jardim do casarão ocupado pela Fundação Ema Klabin. Ele foi concebido no contexto do Festival Labas, iniciativa da comunidade lituana em São Paulo, e levou o artista a mergulhar na história de sua família, na memória afetiva e simbólica ligada à serralheria montada pelo avô, que refugiou-se no Brasil nos anos 1930, e onde ele aprendeu o ofício, soldando lixeiras.

A segunda mostra, inaugurada no Centro Cultural Britânico, teve como mote um diálogo com a obra do artista britânico Hurvin Anderson. Contempla, não apenas pinturas – linguagem que o artista vem explorando com mais afinco nos últimos tempos –, mas também esculturas, desenhos e vídeos. Trabalhos recentes de sua autoria também foram expostos em mostra individual na Galeria Janaina Torres. Esses dois últimos núcleos de obras revelam, por meio de um sutil porém intenso diálogo, o caráter ao mesmo tempo fluído e coerente de sua poética.

Nas obras de Magila parece sempre haver um ponto de partida mais longínquo, mais remoto, do que indicam as primeiras aparências. Sua pintura, apesar do caráter etéreo, não é uma construção inventada. Os objetos e cenas inanimadas que imantam essas construções derivam sempre de cenas da realidade, que o artista coleta como um explorador, normalmente em locais decadentes e abandonados, e registra por meio de fotografias ou desenhos de observação.

Esse registro atento das paisagens e dos detalhes faz parte de seu processo. Formado em artes pela Unesp no início dos anos 2000 e muitas vezes apontado como um dos destaques da jovem pintura brasileira, Magila tem uma trajetória bastante diversificada, marcada por momentos de dedicação exclusiva ao design gráfico e pela busca de uma associação entre diferentes formas de expressão artística.

Cadeiras vazias, escombros de bares, guarda-sóis não apenas povoam suas telas criando uma cena um tanto nostálgica, como servem de estrutura para toda a composição. “Não pinto o objeto, pinto em volta dele”, explica. A arquitetura vazia, os ambientes desertos são seu tema. Neles nunca se vêm vestígios humanos, mas sabemos que eles estiveram por lá. Magila confessa interesse por lugares que têm a marca de uma certa vivência, lugares que alimentam uma série de trabalhos. É o caso, por exemplo, de uma praia, em Iguape, que está sendo comida pelo mar e que é fonte de vários dos trabalhos mostrados no Centro Britânico. Em diversas visitas ao local ele coletou não apenas cenas, mas objetos tragados pelo mar (qualquer relação com um impulso de denúncia ecológica não seria mera coincidência), posteriormente transformando esses despojos numa grande instalação.

Apesar da potência cromática das telas, é sempre a partir do desenho que a imagem se estrutura, numa série de releituras até a forma final. A mescla de técnicas, a influência de suas formações em desenho técnico (pelo Liceu de Artes e Ofícios) e a experiência como artista gráfico – área em que trabalhou por longo tempo – deixam suas marcas na obra. E contribuem para criar essa sensação de uma composição que não busca necessariamente uma harmonia definitiva, mas sim promover a convivência, um tanto ambígua, de elementos apenas aparentemente díspares. Suas pinturas seduzem e desafiam os sentidos ao mesmo tempo.

Mostra de performance Verbo chega à 15a edição com temáticas políticas e braço no Maranhão

Melania Olcina Yuguero, "Homo". FOTO: Juan Carlos Toledo

Quando foi criada pela galeria Vermelho, em 2005, a Verbo: Mostra de Performance e Arte surgiu muito mais como resposta à uma demanda dos artistas da casa do que como proposta de ser uma grande plataforma para as artes performáticas no Brasil. “A galeria tinha apenas três anos, com muitos jovens artistas saídos de cursos de arte como o da FAAP, e a performance era para eles uma das ferramentas de experimentação e de exercício”, explica Marcos Gallon, diretor artístico da mostra. “Como a coabitação entre a performance e uma exposição tradicional de artes visuais é um pouco complicada, a Verbo surgiu para proporcionar esse espaço de experimentação e de apresentação pública das ações.”

O fato é que ao longo de 15 anos de existência a Verbo expandiu sua atuação, criou parcerias institucionais, estabeleceu um sistema de chamada aberta para artistas, recebeu centenas de participantes de diversos países e se consolidou como evento de grande relevância na agenda artística do país. Em sua 15a edição, que acontece entre os dias 9 e 18 de julho em São Paulo e em São Luís do Maranhão, a Verbo apresenta 41 projetos de artistas de 11 países, com ações ao vivo, vídeos e filmes.

Na verdade, mesmo surgindo “de dentro para fora”, como afirma Gallon, como necessidade interna da galeria, a Verbo não deixava de estar conectada com um movimento mais amplo de iniciativas de investigação da expressão corporal, como a bienal PERFORMA e a mostra Seven Easy Pieces, de Marina Abramovic, ambas realizadas na mesma época em Nova York. Atenta às transformações nas linguagens artísticas e à crescente multidisciplinariedade nas artes visuais, a Verbo buscou imprimir em suas trajetória um “alargamento do conceito de performance em relação ao que tínhamos nos anos 1960 e 1970”, como explica Gallon.

“Trouxemos para dentro da plataforma a dinâmica da dança, a questão da reencenação – não apenas a performance que acontece somente uma vez –, o vídeo, produções de literatura e livros de artista”, conta o diretor. No recorte da atual edição, que teve projetos selecionados por Gallon e pela curadora Samantha Moreira, estão trabalhos com diferentes linguagens, muitos deles com temáticas referentes à questões de gênero ou raciais (veja a programação completa aqui).

Lolo y Lauti & Rodrigo Moraes, “Carmem”. FOTO: Divulgação

Para Gallon, é perceptível ainda um reflexo da edição de 2018, que em resposta ao conturbado contexto político vivido no Brasil foi a única até hoje com temáticas pré-estabelecidas, com projetos criados a partir de palavras-chave como censura, corrupção endêmica, desobediência civil, ditadura, Estado de direito e Estado de exceção, extremismo religioso, pós-feminismo, gênero LGBTQI, manipulação da notícia, polícia, pós-verdade e racismo.

Nesta edição de 2019, a primeira da Verbo sob um governo de extrema direita – que já travou diversos embates com a classe artística –, “surgem questões que refletem o momento atual, mas guardam uma característica de afeto”, como explica Gallon. “Acho que tudo que está acontecendo é muito perverso porque parece querer congelar as pessoas e deixa-las presas dentro de casa, olhando para o computador. E o que eu vejo nesse projeto é essa necessidade de colaboração, de participação. Também uma necessidade de se proteger, porque quando estamos juntos a gente está mais forte. E acho que dá para perceber que as pessoas precisam se encontrar, fazer coisas juntas.”

Como explica o diretor, sendo uma das linguagens artísticas menos incorporadas aos circuitos institucionais e mercadológicos – até mesmo por certa dificuldade de ser inserida em exposições e coleções –, a performance mantém uma potência política que muito pode incomodar os “defensores da moral e dos bons costumes”, como ficou claro com as reações violentas aos trabalhos de Dora Smék, na 13a Verbo, e de Wagner Schwartz, no MAM, ambos em 2017.

“O corpo é subversivo, e todo corpo público é político. E é isso que esses caras não querem, não querem tornar esse corpo público. Quando o cara sai de casa e cria uma ação, ele deixa a passividade privada, isolada, e passa a ser esse corpo político. E é isso que não querem quando criticam o Wagner Schwartz e outros artistas”, diz ele.

Realizada em três espaços na cidade de São Paulo – Galeria Vermelho entre os dias 9 e 13; CCSP nos dias 12 e 13; e Contemporão SP no dia 13 – a Verbo tem como grande novidade a realização de um braço do evento na cidade de São Luís, em um desenvolvimento de parceria iniciada em 2018 com o espaço Chão SLZ. “São Luís tem um sistema de arte ainda bastante frágil e a performance que vem de lá tem um vigor, uma energia ancestral que é de uma potência muito grande. Acho que essa parceria vai contribuir muito também para trazer novos elementos para a Verbo daqui, vai transformar a Verbo de São Paulo”, conclui Gallon.

Relembre: João Figueiredo Ferraz defende aproximação entre museus e colecionadores

O colecionador João Carlos de Figueiredo Ferraz com o prêmio do MuBE. FOTO: Iara Morselli

O empresário e colecionador de arte João Carlos de Figueiredo Ferraz, 66, é um defensor determinado da aproximação entre museus e acervos privados. De um lado, por considerar que as coleções particulares devem ser vistas pelo máximo de pessoas o possível – “a arte é uma coisa que tem que ser compartilhada”, diz ele. De outro, porque essa aproximação possibilita que os museus diminuam o foco na formação de acervos e aumentem os investimentos em seus espaços e estruturas técnicas – algo essencial em muitas instituições brasileiras hoje.

Neste sentido, o colecionador se diz muito feliz com o convite feito pelo Museu Brasileiro da Escultura (MuBE) para realizar uma mostra com obras de seu acervo, como parte de uma série de exposições que o museu pretende apresentar em parceria com coleções privadas. Intitulada Construções e Geometrias, a mostra, com curadoria de Cauê Alves, traz um recorte de quase 60 obras da coleção de Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz, colocadas em diálogo com a arquitetura do edifício projetado por Paulo Mendes da Rocha.

Entre os artistas expostos estão nomes de diferentes gerações, como Adriana Varejão, Amilcar de Castro, Carlos Garaicoa, Carmela Gross, Cildo Meireles, Edgard de Souza, Ernesto Neto, Nelson Leirner, Laura Vinci, Nuno Ramos e Waltércio Caldas, que representam apenas uma pequena parcela da coleção Figueiredo Ferraz – hoje com cerca de 1000 obras de 382 artistas (sendo 308 brasileiros) e que segue em expansão. “Atualmente existe uma quantidade muito grande de novos artistas e novas galerias, e é praticamente impossível acompanhar tudo, mas tento manter os olhos abertos para as coisas novas e para acompanhar os artistas que já conheço faz tempo”, afirma.

A relação do colecionador com as artes visuais, que começou na primeira metade dos anos 1980, resultou, entre outras coisas, na criação do Instituto Figueiredo Ferraz, em 2011, na cidade de Ribeirão Preto; no convite para assumir a presidência da Bienal de São Paulo, com gestão no biênio 2017-2018; e, em junho deste ano, no recebimento do Prêmio MuBE Colecionismo e Apoio à Arte.

Sem título, 1999, obra de Laura Vinci que está na mostra no MuBE. FOTO: Mauricio Froldi

Em entrevista à ARTE!Brasileiros, o colecionador falou sobre sua trajetória e sobre a situação política e cultural no Brasil atualmente, vista por ele com certa preocupação. Para além de um barulho desnecessário e excessivo feito pelo governo federal em torno das mudanças na Lei Rouanet, Figueiredo Ferraz diz ser preocupante a situação do patrimônio cultural brasileiro. Em referência ao incêndio no Museu Nacional, ele afirma: “Do jeito que está, outros museus vão queimar também. Nossos acervos estão sendo perdidos em meio à umidade, cupins e salas de exposições caindo. Recuperar isso é obrigação do governo”. Leia abaixo a entrevista na íntegra.

ARTE!Brasileiros – Você poderia contar um pouco sobre como surgiu o seu interesse pelas artes plásticas e como se deu o início de sua trajetória como colecionador, nos anos 1980?
João Carlos de Figueiredo Ferraz – O gosto pelas artes plásticas vem de muito cedo, desde que sou criança. Agora, a coisa de colecionar começou quando eu me mudei de São Paulo para Ribeirão Preto, em meados dos anos 1980. A casa era grande e eu quis comprar um quadro para colocar na parede, para decorar a casa. E um amigo meu, primo da galerista Luisa Strina, me levou lá, onde eu comprei o meu primeiro quadro. Assim começou. E fui me envolvendo, conhecendo os galeristas, os artistas, os críticos. E quando eu percebi não tinha mais paredes, não tinha mais espaço, e eu estava colocando quadro embaixo da cama.

Como e quando você percebeu que tinha em mãos mais do que um conjunto de obras (um acervo particular), mas uma coleção de vocação pública?
Frequentando galerias e ateliês, eu fui comprando mais obras ao longo do tempo. E, sem espaço para abrigar tudo, muita coisa foi ficando guardada. E em 1999, a Maria Stella Teixeira de Barros, visitando minha casa, me convidou para fazer uma exposição no MAM de São Paulo (O Espírito de Nossa Época, 2001). E eu achei ótimo, porque eu mesmo estava curioso para tirar as coisas das caixas e também para ver como estava se comportando o andamento do meu olhar, que é algo que ao longo do tempo nós vamos aprimorando, adquirindo outros gostos. E eu queria ver se se aquelas coisas juntas tinham uma lógica, um fio condutor.

E você percebeu que tinha?
Sim, quando a exposição foi montada fiquei supercontente, e impressionado, porque ao longo do tempo eu mantive essa coerência do olhar. Isso me deixou animado, e a partir desse momento eu coloquei na cabeça que um dia eu ainda teria um lugar onde eu pudesse expor essas obras.

E o que você diria que é essa coerência?
Isso é curioso, porque na verdade a arte nesse período é de uma diversidade imensa. Você tem todo tipo de produção, dos concretos aos abstratos, fotos, instalações… E eu fui comprando de tudo. E apesar dessa variedade imensa, essas obras conversavam entre si, havia um diálogo. E eu vi que ali se formava um núcleo que era representativo da época.

Daí até a abertura do instituto, como foi o processo?
Demorou ainda uns dez anos. A exposição no MAM foi em 2001, e a partir daí eu comecei a procurar ou outras instituições que eventualmente se interessassem em ir para Ribeirão Preto ou algum espaço, algum lugar onde eu pudesse montar o instituto. E foi muito difícil. Até que em um determinado momento surgiu a oportunidade de comprar um terreno, em um lugar muito privilegiado, e aí resolvemos construir o instituto.

“Fontana”, 2016, de Waltércio Caldas, obra que está na mostra do MuBE. FOTO: Mauricio Froldi

Como você avalia essa trajetória de quase oito anos do Instituto Figueiredo Ferraz e qual o impacto que percebe da atuação do instituto na cidade de Ribeirão Preto?
Acho que essas coisas andam juntas. O instituto evoluiu na medida em que ele foi impactando a cidade. Nós começamos logo no segundo ano um programa educativo muito intenso, fizemos um convênio com as secretarias de Educação de Ribeirão Preto e do Estado de São Paulo e passamos a receber todas as escolas municipais da cidade e da região. E acho que isso fez uma grande diferença, e continua fazendo, porque são crianças que muitas vezes nunca tiveram a oportunidade de ver uma obra de arte, e ali eles têm um acompanhamento, desenvolvem um raciocínio poético. Acho que isso faz uma grande diferença e cria um legado que o instituto vai deixar.

Você considera que ainda o Brasil ainda carece de mais iniciativas deste tipo? Ou seja, mais pessoas que, independentemente de governos ou do Estado, percebam a necessidade de criar iniciativas culturais públicas e abertas?
Sim, acho que sim. Acho que o primeiro passo monumental nesse sentido foi Inhotim, aquele espaço maravilhoso. Agora acho que outras iniciativas também estão surgindo, como a FAMA em Itu, mas ainda são poucas. Acho que poderia ter algum tipo de incentivo que fizesse com que as pessoas abrissem mais suas coleções. Porque acho que a arte é uma coisa que te que ser compartilhada, porque ela é um patrimônio nacional. É importante que as pessoas tenham acesso. Mas é preciso que haja um estímulo, uma política de cultura do Estado. Nós temos uma série de decretos, regras e coisas que mudam a cada governo, e isso acaba contaminando, porque gera insegurança. Se tivesse garantias mais claras, tudo seria mais fácil.

E o que pensa para o futuro da instituição?
De certa forma, eu tenho novamente um problema equivalente ao que eu tinha no início, quando eu queria tirar as obras das caixas. Porque o instituto, apesar de ter um tamanho bastante generoso, já ficou pequeno para o número de obras. Então o que eu faço é a cada ano convidar um curador para que ele faça uma leitura da coleção e um recorte, para montar uma exposição. E isso é superinteressante porque eu vejo as obras se aproximarem umas das outras com um outro olhar, provocando outros diálogos, outras tensões. E temos também uma sala de mostras temporárias, onde fazemos umas quatro ou cinco exposições por ano, com artistas convidados ou outras coleções.

A atual exposição no MuBE traz um recorte da coleção feita pelo curador Cauê Alves, com grande enfoque na arte construtiva e geométrica. Como você vê essa exposição?
Eu fiquei muito contente de poder trazer para São Paulo esse recorte. Ele fez uma seleção a partir de um olhar sobre a arquitetura do Paulo Mendes da Rocha. Uma seleção de obras mais concretas e neoconcretas, e que não tem muita preocupação com data. Tem coisas mais antigas ou mais recentes. Além disso, o museu está iniciando um projeto que eu acho muito importante. Porque nós sabemos que as instituições brasileiras, tanto públicas quanto privadas, vivem com grande dificuldade, tentando arrecadar fundos, fazendo clube de patronos… E elas tem a função de criar sua qualidade técnica, trabalhar a manutenção dos espaços, se aparelhar com equipamentos modernos, porque a arte hoje demanda essa tecnologia. E muitas vezes elas não conseguem fazer isso porque estão preocupadas em formar acervo. Então eu acho que há instituições que poderiam fazer uma aproximação com as coleções particulares, criar parcerias com elas, e pegar suas verbas para melhorar a qualidade técnica de seus espaços. E essa iniciativa do MuBE em fazer essa aproximação é muito importante, e é uma maneira de a população poder ver obras que muitas vezes estão guardadas.

Mudando um pouco de assunto, como avalia seu período como presidente da Fundação Bienal, nos anos de 2017 e 2018?
Esses dois anos que eu estive à frente da Bienal foram seguramente os anos mais difíceis da minha vida e provavelmente também os mais ricos. Os mais difíceis porque logo no terceiro mês depois que eu assumi o cargo eu tive que fazer um transplante de medula, por conta de um câncer. Então foi muito difícil acompanhar tudo, porque a presidência da Bienal demanda muita presença, muitos compromissos, contatos. E eu fiquei, entre entrar e sair de hospital, uns seis ou sete meses. Agora, foi muito rico porque eu tive a sorte de escolher o Gabriel Pérez-Barreiro como curador, um profissional da maior qualidade, superpreparado e inteligente, fácil de trabalhar junto. E a gente trocou muito, conversou muito sobre o projeto dele, que eu achei muito bonito. E isso, de certa forma, também me ajudava a sair um pouco dessa tensão do meu tratamento do câncer.

“Globo”, 2012, obra de Carlos Garaicoa que está na mostra do MuBE. FOTO: Edouard Fraipont.

O Brasil vive, já há alguns anos, um momento político e econômico conturbado, com uma grande polarização nos discursos e com uma crise que ainda parece longe de acabar. Como você percebe esse momento, considerando sua experiência na área cultural?
Acho que na nossa área, das artes visuais, das artes plásticas, esse novo governo fez uma tempestade em copo d’água. Muito barulho político. Por exemplo, todo esse escândalo que foi feito em relação à Lei Rouanet não era necessário. Podia mudar algumas coisas sem todo esse barulho. E no fim o que se fez foi mudar o limite de captação, mas criar uma regra de exceção que engloba todo mundo. Quer dizer, não mudou quase nada. E com relação à acusação que se fez de mau uso do dinheiro público, de gastos indevidos, isso era função do Ministério da Cultura fiscalizar. Todos os projetos tinham que prestar contas, mas o que acontecia era que muitas vezes o Minc não analisava. Então não era um problema da Lei Rouanet, mas um problema político dentro do ministério. Por isso digo que o novo governo fez todo esse estrondo, essa tempestade, em uma coisa que não precisava.

Para agradar um certo público, um eleitorado…
Claro, para agradar eleitores. Escolheram a Lei Rouanet como alvo. Agora, para além das artes plásticas, em relação à outras áreas como cinema e teatro, acho que algumas decisões que o governo Bolsonaro tomou são muito preocupantes. Ele proibir estatais e empresas de economia mista a fornecerem recursos para a Lei Rouanet, através de seus resultados, está tirando do mercado um volume de dinheiro muito grande, que vai fazer muita falta. Isso é uma coisa precisa ser discutida com mais serenidade, para ficar claro que é importante a manutenção desses apoios. E se por acaso não quiserem colocar esses recursos dessas empresas em Lei Rouanet, que usem pelo menos para recuperar o patrimônio cultural brasileiro, para não acontecer como aconteceu no Museu Nacional no Rio de Janeiro. Porque do jeito que está outros museus vão queimar também. Nossos acervos estão sendo perdidos em meio à umidade, cupins, salas de exposições caindo. Recuperar isso é obrigação do governo.

Nesse sentido, muita gente que trabalha nas áreas cultural e educacional – e pode-se dizer que este é o seu caso, com o instituto – tem se sentido bastante acuada com as políticas do governo. Você sente isso? Acha que há uma certa incompreensão dos atuais governantes do papel da cultura e da educação na construção de uma sociedade melhor?
Eu acho que sim. Mas também, para ser justo, acho que não temos bons parâmetros de referência. Porque a falta de uma política cultural de Estado é um problema de todos os últimos governos, não só desse. Falta uma política de Estado, não de partidos políticos. Agora, esse discurso mais agressivo que temos ouvido é mesmo lamentável.


Serviço: Construções e Geometrias
MuBE – R. Alemanha, 221 – Jardim Europa, São Paulo
Até 18 de agosto
Entrada gratuita

 

 

 

Projeto feminista é destaque na BIENALSUR

Recuperemos
Vista da exposição Recuperemos la imaginación para cambiar la historia, no Centro de Expresiones Contemporáneas de Rosario

O Projeto NUM é um grupo de artistas feministas, gestores e escritores que compilaram um livro documental sobre os impulsos criativos gerados em torno das mobilizações nacionais lideradas originalmente pelo movimento #NiUnaMenos. O projeto ocupa o Centro de Expresiones Contemporáneas, em Rosário, na Argentina, como parte da BIENALSUR.

A mostra, intitulada Recuperemos la imaginación para cambiar la historia, se propõe a ser “um arquivo vivo, em constante movimento, que relaciona obras muito contemporâneas, criadas no calor da ação feminista, que não apenas denunciam a cisheteronorma (matriz de nosso sistema), mas possibilitam alternativas e releituras”. Uma outra proposta que também destaca o empoderamento  feminino foi inaugurada em Tucumán no último fim de semana de maio, a mostra Heroínas, com obras que incluem fotografias históricas das Mães da Plaza de Mayo.

A seguir confira entrevista com Mai Lumi, integrante do coletivo que realiza o Projeto NUM:

Quando o projeto começou? Como se organizam?

O Project NUM é um arquivo coletivo e documental que captura os impulsos criativos gerados e continua gerando os primeiros #NiUnaMenos, em 3 de junho de 2015. Somos Nina Kunan, Lucia Reissig, Laura Harness, Eugenia Salama e Mai Lumi, e trabalhamos no projeto desde meados 2015. Nos autoconvocamos com a idéia específica de captar este conteúdo em um livro, para dar espaço para as criações nascidas da nossa subjetividades neste contexto.

De onde surgiu a ideia de trabalhar artisticamente as questões do movimento NiUnaMenos?

Percebemos que o contexto de urgência sociopolítica nos desafiava individual e coletivamente e que as manifestações surgiram para além da própria militância. Era inevitável não ver como as ruas e as redes sociais estavam cheias de conteúdo. Nossa missão era condensar e arquivar esses trabalhos sem hierarquias. O movimento Ni Una Menos constitui politicamente uma experiência muito mais vasta do que a que realizamos no Proyecto NUM.

A ideia de trabalhar com a problemática feminista surge, no início, a partir do que vivia nos momentos anteriores ao primeiro dia 3 de junho. Neste contexto, com uma pulsão amorosa, criativa e rebelde que foi gerada nos meses antes e após os primeiros #NiUnaMenos apareceram fora do museu – na rua, na praça, nas salas de aula e nas redes sociais – imagens e narrativas que trouxeram à tona questões relacionadas à sexualidade, gênero e violência sexista. O Projeto NUM procurou juntar essas coisas, motivado pela crença de que a imaginação tem o poder de mudar a História, pela certeza de que, em cartazes, murais, curtas, reflexões, performances urbanas, intervenções em marchas há um grande potencial transformador e desestabilizador não apenas do cânone literário e artístico, mas da tradição heterossexista e patriarcal.

Quando surgiu a proposta de trabalhar com a bienal?

Enviamos a proposta para a chamada da BIENALSUR e fomos selecionadas. Nós sempre trabalhamos de autogestão. Na verdade, o livro foi financiado coletivamente com um Ideame [plataforma de financiamento coletivo]. Sempre quisemos reunir fisicamente os trabalhos em uma grande exposição e estávamos procurando uma ligação que pudesse atender às nossas necessidades. Mas a produção deixou muito a desejar e, desde o projeto, acabamos pedindo muitos recursos materiais e econômicos.

Quais são os temas relevantes nos trabalhos do projeto? E quais os formatos?

Há artes visuais, registro de desempenho, fotos, literatura, vídeo e instalações. O trabalho é feito por artistas e não artistas. Isso é importante: o projeto NUM nasceu do desejo de expressar impulsos criativos em resposta a um momento específico. Nesse sentido, este projeto tem uma carga muito forte em sua diversidade: pulsa o desejo de imaginar e refletir a partir da arte. Somos muitos e muito diferentes, mas esse desejo desafia todos nós, e é disso que trabalhamos. Tanto a arte quanto o feminismo são infinitos em sua subjetividade, não pretendemos representar um movimento inteiro ou manifestar uma mensagem especial, apenas possibilitar um espaço. Portanto, há artistas de trajetória como Ana Gallardo ou Fátima Pecci Carou e também professores de artes plásticas, trabalhadores da arte, da cultura, jornalistas, ativistas, estudantes, etc. As obras são coletivas e individuais.

As artes visuais adentram a Flip

Laura Vinci
Laura Vinci, No Ar, exposta no Mube em 2017, será adaptada para a Flip deste ano - foto Nelson Kon/ Divulgação

A tradicionalíssima Festa Literária Internacional de Paraty, no estado do Rio de Janeiro, que este ano ocorre entre os dias 10 e 14 de julho, nunca deixou de se reinventar e de explorar novidades para compor suas estruturas. Esta será a 17a edição do evento e tem curadoria da jornalista e editora Fernanda Diamant, uma das criadoras da revista Quatro Cinco Um, especializada em literatura. O homenageado da vez é o escritor e jornalista carioca Euclides da Cunha (1866-1909), autor do aclamado livro Os Sertões, considerado por muitos uma obra que inicia o jornalismo literário no país, muito antes do termo existir.

Dentre as transições e as novidades, a organização da Flip, que tem direção geral de Mauro Munhoz, anunciou um desejo de fomentar o desenvolvimento de atividades ligadas às artes visuais no itinerário do evento, para além daquilo que já acontece espontaneamente pela cidade. É desta forma que foi apresentado o projeto Terra Nova, um módulo de artes visuais que pretende realizar intervenções que se integrem de certa forma à Paraty: “Desde o começo, a Flip tem a intersecção entre as artes em seu DNA. Ano após ano, fomos construindo uma aproximação entre diferentes experiências artísticas, inclusive as artes visuais. Agora, sentimos a necessidade de fazer essa relação se manifestar de maneira mais visível. O Terra Nova é um dispositivo artístico para iluminar questões que permeiam o território da cidade, seus moradores e seus visitantes. Uma das missões da Flip é investigar como a arte pode ajudar a qualificar o olhar das pessoas para as relações humanas produzidas em espaços públicos, e o Terra Nova vai propor mecanismos de percepção deste território e de suas complexidades através da arte”, disse Mauro à ARTE!Brasileiros.

O projeto foi lançado no início de junho durante evento na Casa do Parque, em São Paulo, onde foi apresentado o programa de patronos especialmente desenvolvido para essa iniciativa. O plano de mecenato é voltado a pessoas físicas e é a forma principal e exclusiva de viabilizar essa ideia. As pessoas que desejarem contribuir com o projeto terão alguns benefícios como ingressos, acesso preferencial à programação principal da Flip que ocorre no Auditório da Matriz, convites para outros eventos realizados pela organização da feira e obras exclusivas de Laura Vinci, artista confirmada para participar da primeira intervenção do Terra Nova.

Convidada pela curadora, Vinci irá apresentar a sua instalação No Ar, apresentada pela última vez em 2017, no MuBE, em São Paulo, e que já passou por diversos lugares, inclusive por alguns países na Europa. Outras intervenções ainda estão sendo discutidas por questões de viabilização orçamentária, até mesmo por isso a apresentação do programa de patronos foi crucial para que tudo começasse a ser estabelecido.

A escolha de No Ar para integrar a estreia do projeto foi discutida entre a artista e a curadora: “É um trabalho que tem essa caraterística de se adaptar muito, ele se reinventa no lugar. Ele é um trabalho que é bruma, é só vapor. Então ele se adere fácil à situação espacial. Tem trabalhos que exigem espacialidades específicas e o No Ar não, ele só precisa de água”, conta a artista. A fluidez do vapor na obra de Laura faz com que o público possa descobrir formas diversas nas variações que a fumaça cria no espaço, além da característica do trabalho em si transformar o local onde está.

Sobre a interdisciplinaridade que permeia a Flip e a proposta de inserir as artes de maneira mais pontual, Laura não tem dúvidas de que é o país vive um momento em que colaboração entre as áreas é algo necessário: “Isso é uma coisa muito importante para nós, ampliar isso e fortificar essas relações”, ela diz. Para ela, existem algumas áreas que se vinculam de forma mais pontual e forte com a literatura, como o cinema. “Nas artes visuais isso não é tão claro, mas acho que a gente pode começar a achar esses encontros”, ela comenta ao citar como exemplo dessa confluência a sua obra Máquina do Mundo, que se debruça sobre um poema de Carlos Drummond de Andrade.

O poema também é ponto de partida para outra intervenção que será realizada na Flip: Máquinas do Mundo, uma performance do núcleo de arte da mundana companhia de teatro, do qual Laura faz parte junto a Roberto Audio, Flora Belloti, Yghor Boy, Guilherme Calzavara, Beatriz Camelo, Diogo Costa, Alessandra Domingues, Wellington Duarte, Ivan Garro, Luah Guimarães, Flora Kountouriotis, Cesar Lopes, Renato Mangolin, Rafael Matede, Mariano Mattos Martins, Diego Moschkovich, Rogério Pinto, Joana Porto, Tarina Quelho, Roberta Schioppa, Marília Teixeira e José Miguel Wisnik. A iniciativa tem como proposta “diminuir a distância entre narrativa e arte visual, entre a instalação e a ação de atores”.

Artes visuais no Auditório da Matriz

Na programação mais disputada da Flip, que acontece em um auditório montado dentro da Igreja Matriz da cidade de Paraty, as artes visuais também estarão presentes em diversos formatos. Na quinta, 11 de julho, a fotógrafa Maureen Bissiliat será entrevistada por Miguel de Castillo e Rita Palmeira na mesa 6, intitulada Serra Grande.  A  fotógrafa inglesa radicada no Brasil dedicou-se ao encontro entre a palavra, a imagem e a geografia ao longo de sua trajetória, conhecida especialmente por seus trabalhos com os povos do Xingu.

Na mesa 12, Mata de Corda,  a artista Grada Kilomba é interrogada por Kalaf Epalanga e Lilia Schwarcz sobre as questões que rondam seu livro Memórias da Plantação, a ser lançado durante o evento pela editora Cobogó. Nele, a artista discute temas como raça, classe, gênero e pós-colonialismo, já muito presentes em sua obra. Em seguida, na mesa 13, Ailton Krenak e José Celso Martinez Correa conversam sobre a valorização da cultura, terras férteis para a arte e a diversidade, com mediação de Camila Mota. As atividades ocorrem no dia 12 de julho e, no dia seguinte, mesas com Ismail Xavier, Miguel Gomes, Grace Passô, Marina Person e José Miguel Wisnik também trarão as artes visuais à feira em suas discussões em torno de cinema, dramaturgia, arte e literatura.

Uma Curadoria

Vista de parte da exposição que está em cartaz no SESC 24 de Maio.
Vista de parte da exposição que está em cartaz no SESC 24 de Maio.
*Por Aracy Amaral

 

Uma curadoria não é tarefa fácil de ser concebida. Sobretudo se o número de participantes for extenso, o espaço difícil, e grande a relutância em deixar de lado tudo o que poderia ser selecionado. Em especial quando se enfoca uma exposição como À Nordeste, atualmente no SESC 24 de maio. Região vasta em criatividade, o anseio, percebe-se, foi incluir tudo! Mesmo se com dificuldade de apreensão pelos visitantes daquilo que está exposto. A ideia que passa é que nada deveria poder escapar aos curadores, mesmo se não digerível pelo visitante. Que se sente envolvido num redemoinho que lhe empurra olhos e ouvidos abaixo todas as expressões de criadores nordestinos não distinguindo nenhum em particular. Assim, expressões populares, cordel, pintura figurativa, pintura concreta, arte conceitual, vídeo, em todos os níveis e dimensões envolvem violentamente o visitante. Que se sente física e visualmente tragado pela dificuldade do espaço atravancado em tentar – em vão – privilegiar um ou outro criador com olhar que se perde pela montagem labiríntica que nos é proposta.

O sistema de display acumulativo é preferência de alguns curadores – mas não de todos. E temos dúvidas sobre o acerto desse ponto de vista. A boa visibilidade de uma obra incluída deveria ser uma preocupação. Assim, descobrir subitamente, em meio a uma exposição como esta do Sesc 24 de Maio, os Retirantes de Portinari, da coleção do MASP, é uma surpresa. Assim como ver um pequeno Sérvulo Esmeraldo ao mesmo tempo em que confessamos a dificuldade em localizar Brennand, João Câmara, ou Miguel dos Santos.

E de repente encontramos Montez Magno, entre uma multidão de criadores diversificados inesperados, sem qualquer lógica de apresentação no espaço. O oposto ao didatismo aguardado de exposição que atrai uma multidão de visitantes heterogêneos que mereceriam uma orientação clara para sair com uma noção sobre a expressão artística em região tão extensa e ampla em sua criatividade. Talvez esta mostra se configure antes como não se deve fazer uma exposição (e não poderia ter sido dividida em etapas de acordo com a diversidade de linguagens?). Na verdade, uma curadoria não é tarefa fácil de ser concebida.