Imagens do espetáculo "Fúria". FOTO: Divulgação

Assisti ontem ao espetáculo Fúria, da Lia Rodrigues Companhia de Dança, e saí com aquela sensação de ter vivido um desses raros momentos que a arte propícia: estar imerso em uma experiência radical, onde os limites entre minha experiência individual se confunde com o que vejo no palco e eu passo a ser aquilo que vejo. Fúria fica em cartaz no Sesc Consolação até 27 de outubro.

Tal sentimento é raro, mas ultimamente tem sido recorrente. Nos últimos três anos, o Brasil e o mundo em geral vivem uma situação de polarização entre valores humanistas e frentes reacionárias delirantes, como a defesa da Terra Plana, para citar o caso mais bizarro.

Tem sido a arte, com suas experiências que nos sacodem nesse contexto de conflito, a responsável por criar campos de afirmação de valores, de resistência, de solidariedade. Não por acaso, uma amiga desabafou feliz após assistir à série produzida pela BBC, Years and Years: “Percebi que não estava louca quando vi que gente na Inglaterra fala do mundo da mesma forma que eu”. É por isso que a arte vem sido atacada de forma tão violenta nos últimos tempos.

Pois Fúria é um ótimo exemplo desse transe catártico que nos arrebata e alimenta nossa existência. Há quase 30 anos, Lia Rodrigues vem desenvolvendo um trabalho original e sensível no cenário da dança contemporânea brasileira. Suas peças costumam ser anti-espetaculares: simples nos cenários, sem efeitos mirabolantes, sem iluminação extraordinária. Nelas, os corpos dos bailarinos e bailarinos, muitas vezes nus, é que assumem a construção da narrativa.

São corpos que carregam a miséria do mundo e não seu resplendor, ao mesmo tempo em que anunciam possíveis formas de (re)existência fora da sociedade de consumo. Vejo Fúria como a radicalização desse movimento, como um desabafo, como uma porrada. Há muito momentos na peça em que o elenco encara o público, o desafia, mas na maior parte parece estar em transe, ao som do mesmo canto de cerca de uma hora, que remete tanto a um ritual indígena quanto ao candomblé.

Fúria é a afirmação da possível construção de um outro mundo, a partir de relações horizontais, da igualdade dos corpos negros e brancos, da igualdade dos gêneros, da valorização das identidades. Tanto que no programa afirma-se que o espetáculo é “dançado e criado em estreita colaboração com Leonardo Nunes, Felipe Vian, Clara Cavalcante, Carolina Repetto, Valentina Fittipaldi, Andrey Silva, Karoll Silva, Larissa Lima, Ricardo Xavier”.

É nesse sentido que vejo muitas semelhanças entre Fúria e Bacurau, de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, mesmo com suas imensas diferenças de linguagem. A dança é praticamente abstrata, enquanto o filme é de uma narrativa convencional e melodramática. Mas, e aí está a genialidade de Bacurau, quando um filme usou de uma linguagem tão hollywoodiana para colocar como protagonista não um herói ou heroína, mas toda uma cidade, tendo como centro de resistência justamente um museu, o lugar da arte?

O museu de Bacurau é justamente o espaço vivo, o local da resistência, não um mausoléu que guarda acervos inteiros sem contato com a realidade que o circunda. Pois Fúria foi criada no Centro de Artes da Maré, no Rio de Janeiro, um espaço que abriga também a Escola Livre de Dança da Maré e que propicia o acesso à arte de 350 alunos por ano, além de outro núcleo que busca profissionalizar na dança jovens entre 14 e 23 anos.

Assim, Bacurau de forma simbólica e Fúria estruturalmente são atos de resistência, que afirmam que mesmo em tempos de cólera é possível a criação de outros mundos.


Fúria – Lia Rodrigues Companhia de Dança
até 27/10
Sesc Consolação: R. Dr. Vila Nova, 245 – Vila Buarque, São Paulo – SP


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