Neste 2020 deveriam ser comemorados os 90 anos de uma das principais publicações sobre urbanismo no Brasil, Introdução ao Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo[1], o que, parece, não irá ocorrer. Uma lástima porque, nesse livro, o engenheiro e futuro prefeito de São Paulo, por duas vezes (1938-1945 e 1961-1965), Francisco Prestes Maia, apresentou seu projeto para a transformação da capital paulista, reunindo documentos e propostas que nos ajudam a entender como São Paulo chegou ao que é hoje: uma metrópole que, podendo ter sido um “sonho feliz de cidade”, transformou-se no “avesso do avesso do avesso”, como chorou o poeta[2].
Mesmo um webnário sobre o legado deixado pelo Plano de Avenidas – suas propostas e consequências para a cidade – talvez já trouxesse encaminhamentos possíveis para mitigar, pelo menos em parte, seus efeitos sobre todos nós. Mas, como tal encontro, parece, não ocorrerá, este artigo atenta para algumas das características do Plano escrito por Prestes Maia. Um texto pretensamente objetivo, conectado com os debates internacionais sobre urbanismo, tudo dentro de um discurso que visa impregnar-se da “eficácia” que o engenheiro percebia naquele debate. Ao mesmo tempo chamarei a atenção para a presença, dentro do texto de Prestes Maia, de algumas obras gráficas por ele produzidas para o livro, imagens que significarão espécies de “desarranjos poéticos” dentro de sua escrita que, como dito, visava incorporar a suposta eficiência do urbanismo da época. A ideia é também ponderar sobre como todo esse projeto de modernização urbanística de São Paulo está ancorado numa visão mítica do passado da cidade – reverberando, então no alvorecer dos tenebrosos anos 1930, a importância cada vez maior no imaginário paulistano dos pioneiros paulistas e dos bandeirantes.
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Em 1930, Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo foi recebido com entusiasmo no IV Congresso Pan-Americano de Arquitetos do Rio de Janeiro, como uma contribuição brasileira ao debate sobre urbanismo nas Américas. Medindo 39x26cm, foi publicado com quase 360 páginas, capa dura forrada com tecido de luxo e papel sofisticado. Apresentava uma série de fotografias antigas e atuais de diversas regiões da cidade[3], gráficos com propostas de criação e/ou expansão de avenidas radiais e perimetrais em São Paulo e uma série de imagens de projetos, mapas e outras imagens – sobretudo de cidades europeias e norte-americanas –, para demonstrar que a visão de Prestes Maia para o futuro da capital paulista estava ancorada no que de mais atual era proposto para as cidades ocidentais. Essa iconografia, por sua vez, operava como suporte de um texto escrito com pretensões de objetividade, focado em seu objeto de interesse – São Paulo.
Impossível ler o livro de Maia sem recordar Roland Barthes, para quem determinados textos poderiam ser comparados a um tecido[4]. Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo constitui-se como tal, entrelaçando ao eixo principal inúmeras notas de rodapé, além de uma quantidade expressiva de citações no original (espanhol, francês, italiano, inglês e alemão) de documentos sobre questões urbanas europeias e norte-americanas[5]. Tal amálgama de informações das mais diversas origens e em várias línguas, tende a dificultar o entendimento do conjunto, retirando-lhe a objetividade e eficiência pretendida, dentro de uma escrita que se percebia, inegavelmente, como “científica”.
Integrando essa estrutura que organizava cada segmento do livro[6], sobressaíam diversos e primorosos desenhos e pranchas do próprio Prestes Maia, projetando ideias para monumentos escultóricos ou arquitetônicos que, no futuro – e quando seu projeto para grandes avenidas estivesse executado –, “coroariam” conexões entre dois ou mais eixos viários, ou embelezariam pontos privilegiados da cidade.
Esses projetos de monumentos exaltavam tanto a grandeza que a capital paulista alcançava quanto os pioneiros paulistas que desejava glorificar. Em pelo menos dois dos projetos concebidos pelo engenheiro, as figuras míticas dos paulistas do passado – o “pioneiro” e o “bandeirante” – surgiam como os pontos de apoio de onde a cidade poderia dar seu grande salto rumo ao futuro.
Nas duas vezes em que trabalhou como prefeito, Maia levará adiante parte de seu Plano de Avenidas, rasgando autopistas, num processo de criação de novos territórios urbanos, a partir da remodelação ou simples destruição de outros[7]. Nesses esforços, ele nunca complementou suas propostas, introduzindo aqueles monumentos que planejara[8]. Porém, o fato de nunca tê-los implantado não suprime a importância dos mesmos, se os entendermos como mais uma indicação da existência do desejo de transformar São Paulo em uma cidade ideal, uma metrópole consagrada ao futuro – com uma organização urbanística racional, “científica” – mas, ao mesmo tempo, com sinais de ser herdeira de um passado capaz de sustentar e justificar sua “vocação” para o futuro.
O culto a uma ascendência especificamente “paulista” (e não propriamente “brasileira”), embasando as ideias para a transformação de São Paulo, contidas no Plano de Avenidas, apresenta conexões com os desejos expressos por Adolfo A. Pinto, e já aqui discutidos[9]. Tanto as propostas de Pinto quanto as de Maia são manifestações de uma mesma compreensão do que São Paulo tinha se tornado no início do século XX e do que poderia se tornar no futuro, tendo seu “passado mítico” como o lastro para seu devir.
Aqui circunscreverei os comentários a dois monumentos concebidos por Prestes Maia. O primeiro, relativo ao Parque “das Cabeceiras do Ipiranga”[10], e o segundo, pensado para a Ponte das Bandeiras – comentado em artigo já publicado nesta coluna[11].
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Em Plano de Avenidas, no final de várias de suas partes (ver nota 6), foram publicadas imagens dos monumentos propostos (ou detalhes); quer esboços, quer pranchas com desenhos aquarelados, tais aparições na maioria dos casos não apresenta relação direta com os capítulos que finalizam. Se aqueles projetos de monumentos foram pensados para coroarem um ou outro entroncamento de avenidas projetados no Plano, suas representações publicadas nos finais dos capítulos do livro, ou no seu término (nos dois “Apêndices”), por sua vez, funcionam como coroamento do próprio livro.
Se no Plano de Avenidas prevalece o discurso da competência e da eficácia do urbanismo – uma disciplina pautada na lógica e na racionalidade – os desenhos com os projetos dos monumentos colocados no final de praticamente todos os capítulos, surgem como pequenos desarranjos, delicados índices de poesia, tanto para a cidade em devir, quanto para o próprio fluxo “objetivo” do texto.
Como mencionado, essa estrutura em que o poético ou o “artístico” aparece sobretudo no final de cada capítulo é repetida na macro estrutura do livro, uma vez em que será justamente nos seus “Apêndices” – ou seja, no final do tratado e, portanto, em seu arremate –, que o autor se dedicará às suas ideias para os monumentos.
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Projeto concebido para o Parque das “Cabeceiras do Ipiranga”, presente no primeiro dos dois “Apêndices” (aquele dedicado aos parques que Prestes Maia pensava para a cidade[12]), o Parque das “Cabeceiras” estava dentro de uma série de parques delineada para a cidade. Parques que, por sua vez, seriam ligados por parkways que correriam às margens dos rios que banhavam a cidade.
Está aqui o germe daquele empreendimento que, mais tarde, seria conhecido como as “marginais de São Paulo”. Porém, se hoje essas avenidas marginais estão restritas às margens dos rios Tietê e Pinheiros, na origem elas seriam mais abrangentes, formando um círculo ao redor de toda a cidade. Seria, portanto dentro desse grande conjunto de avenidas perimetrais intercaladas por parques, que se destacaria aquele que seria repleto de forte apelo simbólico, homenagem às “Cabeceiras do Ipiranga”[13], ou seja, às nascentes do rio que, em 1822, testemunharia a proclamação da independência do país.
O Parque seria contemplado com uma série de monumentos, a começar por um pórtico grandioso, concebido por dois pilones paralelos colocados na entrada principal. A representação de um único desses pilones aparece à página 12 do Plano de Avenidas arrematando a Introdução do texto. No desenho, os carros que circundam aquele elemento arquitetônico evidenciam sua estrutura colossal, dividida em três partes: um grande pedestal, (correspondendo mais ou menos a três andares de um edifício), funcionando como base para um pilar retangular, sendo que em cada uma de suas quatro arestas estaria coberta por esculturas representando nus masculinos, provavelmente indígenas. Esse pilar suportaria uma grande forma retangular horizontal que sustentaria a representação de uma pira.
Os quatro gigantes (na verdade 8, levando-se em conta que o desenho representa apenas um dos dois pilones da entrada) seriam os guardiões do Parque, gênios tutelares cuidando da entrada do território sagrado. Representados como figuras indígenas masculinas reforçam a dimensão mítica a ser conferida àquele espaço originário, berço das fontes da liberdade do país.
No desenho publicado à página 33, no final do capítulo “Desapropriações”, ficará nítido que a imagem comentada anteriormente era, de fato, um detalhe de um complexo escultórico/arquitetônico maior. Nele estão representados dois pilones, formando o imponente pórtico. Se na primeira imagem notava-se à esquerda, ao fundo, o esboço de um grande elemento arquitetônico, naquela da página 33, vislumbra-se o mesmo elemento, no fundo à direita. Se na primeira era sugerido um espaço estreito entre o pilone e o edifício, nesta última, uma grande avenida os separava.
Na página 278, uma outra visão da entrada do Parque: os dois pilones gigantescos emoldurando outro complexo arquitetônico: uma fonte rodeando um grande obelisco, tendo atrás um elemento arquitetônico marcando o fundo. Tal proposta, porém, fica mais explícita na prancha XVI, entre as páginas 342 e 343 de Plano de Avenidas. Esse grande complexo compreendendo a fonte, o obelisco e o elemento arquitetônico foram definidos por Prestes Maia como “Motivo Central. Remate à Avenida Thereza Christina, principal acesso ao Parque, o que confirma o interesse sempre presente em Prestes Maia de fechar seus projetos de avenidas grandiosas com monumentos arquitetônicos e escultóricos que criassem perspectivas espetaculares para esses trechos da cidade.
Quanto ao elemento arquitetônico que, ao fundo, arrematava aquele “motivo central”, o engenheiro parecia indeciso entre pensá-lo como um “monumento alegórico” ou como um “pavilhão de festas”. Porém, ao observarmos o desenho, nota-se que ele acabou por privilegiar a ideia do monumento – na verdade um grande painel alegórico. Com certeza, entre a possibilidade de marcar aquele final de avenida com um marco que homenageasse o mito do nascimento da liberdade da nação em território paulistano, ou de aproveitar o espaço para lhe conferir alguma utilidade mais mundana, Prestes Maia preferiu a primeira opção. E essa preferência fica clara em uma nota de rodapé em que, em grandes traços, o engenheiro define qual deveria ser a temática do friso: “O grande relevo desenrolará a história do acesso ao planalto. Os gigantes prostrados, os ‘filhos da terra’, recolhem as águas, que manam da nascente simbólica do Ipiranga”[14]. Ou seja, em meio à toda racionalidade reivindicada para o projeto de avenidas que prepararia São Paulo para assumir sua posição de liderança no Brasil e na América Latina, seu autor não se furta em conceber grandes obras escultóricas que tornassem palpáveis a mitologia do passado paulista que ele ajudava a criar, aqui formulando a ideia dos “filhos da terra”, os primeiros a beberem das águas libertárias do Ipiranga.
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Se o Parque das “Cabeceiras do Ipiranga” seria o sítio de homenagem aos indígenas de São Paulo – fator de união entre a natureza selvagem e o elemento português invasor –, caberia ainda a construção de outro espaço sagrado para homenagear o resultado maior daquela união, o bandeirante. Para pagar esse débito é que foi pensado a Ponte das Bandeiras, local importantíssimo dentro da série de transformações propostas por Prestes Maia para São Paulo, uma vez que, além de fazer parte da maior perimetral da capital, funcionaria também como base de um grande eixo radial ligando o norte ao sul da cidade. Assim se pronuncia sobre a Ponte das Bandeiras, uma publicação paulistana de 1942:
A função da grande Ponte consiste em ligar os dois trechos da Avenida Tiradentes, que de um lado se prolongará até ao sopé de Santana e do outro até ao Parque Anhangabaú, constituindo o grande eixo Norte-Sul da Cidade e o tronco do gigantesco Y de que são hastes a Avenida Nove de Julho, já aberta e a futura Avenida Itororó [hoje 23 de Maio].[15]
Ao lado da Ponte das Bandeiras seria construído um grande terminal ferroviário que reuniria todas as ferrovias que existiam na cidade, livrando São Paulo das passagens de níveis e outras inconveniências. Além desse terminal, seria ali construído um porto fluvial e, nos arredores, um aeroporto, o Campo de Marte. Para chegar a esse grande complexo, ou para dele sair e adentrar na cidade, o viajante passaria pela grande ponte a ser construída, dedicada às bandeiras paulistas.
Em outra oportunidade descrevi como seria concebida e ornamentada a Ponte das Bandeiras projetada por Prestes Maia, com dois enormes pilones decorados com esculturas e com um grande complexo escultórico monumental representando os bandeirantes em ação e voltados para o interior do estado – justamente o território que seria por eles tomados dos indígenas[16].
No artigo acima citado existe uma explicação para o fato do complexo escultórico da Ponte das Bandeiras não ter sido construído como era o intuito de Maia:
(…) tal como foi primitivamente concebida,, com o seu monumento que seria por certo um elevado tema de beleza, a ponte só por si custaria uns 18.000 contos; ulteriores modificações do plano, porém, e motivos de economia e sobriedade aconselharam a supressão da parte meramente ornamental, e tal como está sendo ultimada a obra não irá além dos 6.000 contos; com os restantes 12.000 levar-se-ão a cabo outros melhoramentos essenciais – e este é o critério de quem, não sacrificando o futuro, porque o monumento de um modo ou de outro pode erguer-se a qualquer tempo, cuida apenas de plasmar o arcabouço sobre o qual se elevará a grandeza de S. Paulo[17].
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Nem o Monumento às Bandeiras da Ponte homônima nem qualquer outro monumento anunciado por Prestes Maia em seu Plano de Avenidas foi erguido, quer em seus dois mandatos como prefeito, quer depois. Por mais desalentador que tal situação possa parecer hoje, é certo que ela já estava prevista ali mesmo, no livro de 1930. Como esclareci, esses projetos, desde o início, não pareciam organicamente conectados à concepção geral da transformação de São Paulo, proposta por Prestes Maia.
Desconectados com todos os segmentos onde apareciam, desconectados do próprio livro – por isso constituindo seus apêndices – eles estavam fadados a não ocorrerem porque não faziam parte das prioridades de Prestes Maia. Seus objetivos estavam voltados para a circulação de pessoas e de bens, e por isso a ênfase de seu Plano de Avenidas foi toda direcionada justamente às vias de acesso e de circulação do capital. Os monumentos por ele propostos, para o bem e para o mal, visavam se tornar espaços cívicos, espaços de cidadania, voltados, pelo menos em tese, para a população. Mas a população, ao que parece, era o que menos importava no Plano de Avenidas. E isso é possível perceber, tanto pela pouca importância que, no fundo, a arte possuía como elemento cidadão dentro de uma metrópole ainda em processo de crescimento (afinal, esses projetos de monumentos poderiam ser pensados apenas como “fantasias”, pertencentes ao universo do sonho, não da realidade), quanto na rarefação com que a questão social, ou da moradia para os setores de baixa renda, foi tratada no livro.
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Passados 90 anos do lançamento de Plano de Avenidas a certeza de todo paulistano é de que a proposta de se pensar São Paulo enquanto um entrelaçamento de avenidas venceu, o que nos remete a outro poeta que lamenta:
Não existe amor em SP
Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever[18]
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