Por que uma pessoa se retrata hoje em dia? Não falo do selfie, essa praga a que todos nós estamos sujeitos a olhar (e a produzir, muitas vezes), mas ao autorretrato supostamente artístico e presumivelmente fruto de uma necessidade de se mostrar ao mundo como um sujeito autônomo.
Será possível que esse tipo de autorretrato ainda seja viável, após as produções de Anna Bella Geiger, comentadas no último artigo aqui publicado[1]? Afinal, ainda nos anos 1970, ela usou a própria imagem para discutir a posição da mulher (branca, latino-americana e artista) em plena ditadura civil-militar brasileira. Por outro lado, Cindy Sherman, artista norte-americana, naquela mesma década também apresentou a si mesma desdobrada em inúmeros estereótipos femininos criados pelo cinema norte-americano.
Anna Bella, no Brasil e Cindy Sherman, nos Estados Unidos, no entanto, não estavam sós nesse processo de ressignificação do autorretrato. Concomitante às duas, outras e outras profissionais desenvolveram trabalhos usando a própria imagem não mais explorando os paradigmas revelhos do autorretrato convencional (quando o artista se desnuda para o mundo, de forma literal ou metafórica), enquanto subjetividade única e autossuficiente.
Na cena brasileira, durante aquela mesma década, mais artistas também se dedicaram a produções em que a própria imagem não era usada para explorar uma subjetividade incontaminada (como se isso fosse possível), mas como um alerta sobre a certeza de que o eu se constitui em luta contra fatores externos, contra as normas preestabelecidas pela família, pela sociedade, pela tradição, pela indústria cultural, etc. Os trabalhos de Lenora de Barros, por exemplo, emergem mais ou menos durante aquele período e, até hoje, a artista lança mão da própria imagem para a produção de trabalhos em que seu corpo aparece sempre como instrumento de luta contra a precessão dos clichês que nos envolvem a todos.
Para não deixar a impressão de que o uso da própria imagem como ferramenta crítica tenha sido uma estratégia usada exclusivamente por mulheres, vale relembrar trabalhos de alguns homens que também usaram a imagem do próprio corpo para a produção de trabalhos de endereçamento claro: Para um jovem de brilhante futuro (1973/74), de Carlos Zilio (acervo MAC-USP) – uma valise com pregos e fotos em formato de postais com o artista retratado como um jovem executivo de “brilhante futuro” –; o álbum Trama, de 1975, em que Gabriel Borba incluiu uma foto em que aparece como se estivesse sendo torturado (acervo MAC-USP). Em meados da mesma década, Gastão de Magalhães, por sua vez, fundiu a própria imagem a fotos icônicas de Brasília, estabelecendo uma relação pouco usual entre o “eu”, o estado e a religião (acervo MAM-SP). No final daquela década e início da seguinte, impossível não registrar os trabalhos de Mario Ishikawa, em xerox, em que pedaços de seu corpo eram representados como símbolos da impotência frente o estado repressivo de então.
Os anos 1990 também estão repletos de obras concebidas para discutirem a subjetividade como efeito, não de uma singularidade sem conflito, mas como luta/construção social e política. Em 1994, na mostra Fotografia contaminada, com minha curadoria (Centro Cultural São Paulo), reuni obras que tratavam desta questão, desde aquelas dos “pioneiros”, Militão Azevedo e Valério Vieira, até os então novos artistas Rubens Mano, Nazareth Pacheco e Rosana Paulino, passando por Geraldo de Barros (com autorretratos produzidos a partir de clichês imagéticos hollywoodianos), Anna Bella Geiger (desde sempre!), Iole de Freitas, entre outras e outros.
Os closes fotográficos em suportes circulares, de tão próximos do rosto de Rubens Mano, eram incapazes de descrever suas características físicas, enfatizando o clima de estranhamento da instalação do artista naquela mostra. Já no arquivo apresentado por Nazareth Pacheco em pequenas colagens emolduradas (1993/94, acervo MAM-SP) –, por sua vez, ficava registrada a tentativa de adequação do corpo da artista – desde bebê até a fase adulta – aos paradigmas “ideais” do corpo da mulher, socialmente construídos. Rosana Paulino, por outro lado, ali apresentava Parede da memória (1994, acervo Pinacoteca de São Paulo), um autorretrato especial, já que sua identidade como mulher negra não se constituía a partir de índices de seu corpo material, mas daqueles de sua ancestralidade e parentes próximos. Um autorretrato que fala de si, sem mostrar-se de fato.
O trabalho de Rochelle Costi que também figurou em “A Fotografia contaminada”, igualmente refletia sobre a complexidade do assunto. Em 50 horas: Autorretrato roubado (1992/93, acervo MAM-SP), a artista se apropriava de fotografias de pinturas produzidas por diversos estudantes de arte, tendo a si mesma como modelo. Ao contrapor essas fotos às que a mostravam posando, Rochelle desorganizava qualquer possibilidade de manter o conceito tradicional de autorretrato como baliza para a análise de 50 horas. Ainda sobre a exposição, caberia relembrar as cópias de polaroids ampliadas, apresentadas por Márcia Xavier. Nelas, a artista transformava o ato de fotografar-se em uma ação mecânica, registrando partes anônimas de seu próprio corpo (pernas, pescoço etc.). Marcia dispunha esses “retalhos de si ou de qualquer outra” em uma estrutura em grade, remetendo o visitante a uma ordem de fundo construtivo que solapava qualquer possibilidade de fruir aquelas imagens como portadoras apenas de uma expressão do “eu” da artista.
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Gustavo Rezende produziu dois trabalhos que problematizavam o “eu” do artista, quando construído a partir de clichês diversos. O primeiro, Retrato do artista quando jovem (1999), um pequeno backlight que, aceso, mostrava seu retrato usando um gorro azul. Além da referência ao livro de James Joyce no título, a peça ajustava a autoimagem de Gustavo à tipologia de retratos e autorretratos, típica do renascimento. Ele, assim, adequava-se aos estereótipos criados pela história das imagens, atentando para o fato de que ser artista era também moldar-se às imagens socialmente aceitas para descrevê-lo. Dois anos depois, com Hero, Gustavo voltará à auto representação (que, depois tomará outros rumos no decorrer do seu percurso), moldando-se não mais como jovem artista resoluto do primeiro renascimento, mas associando a figura do artista àquela do atleta – um dos principais tipos de celebridades dos dias de hoje.
Albano Afonso é outro artista que relacionou a própria imagem àquelas dos autorretratos sancionados pela história da arte. Ele produziu vários trabalhos dentro deste viés, dentre eles, Autorretrato com modernos latino-americanos e europeus (2005/2010 MAC-USP). A obra é formada por dois conjuntos: uma série de autorretratos de artistas consagrados, justapostas a autorretratos de Albano. Esses últimos, por sua vez, são “cegados” pela luz do flash, impedindo sua identificação plena. Montada também em forma de grade, Autorretrato com modernos demonstra duas impossibilidades: aquela de, hoje em dia, o autorretrato poder constituir-se alheio aos clichês da história das imagens e, como corolário, a dificuldade do artista, hoje, poder identificar-se com essa mesma série de clichês.
Sofia Borges, no início de seu percurso, também usou a própria imagem para pensar, não a si mesma ou à sua intimidade, mas a própria fotografia em suas relações com a pintura e o cinema. Em algumas daquelas fotos, seu corpo parece servir apenas como modulador preferencial para a exploração da cor, da luz, e para as sutis gradações de claro-escuro, elementos que, na sequência, seriam esquadrinhados por ela já sem a instrumentalização da própria imagem.
Por sua vez, nas fotografias em que usa o próprio corpo, Nino Cais indaga sobre a imagem, sem enfatizar qualquer necessidade de reivindicar o substrato de um eu incontaminado. Pelo contrário, nas fotos, seu corpo se converte em mais um dispositivo entre outros para auxiliar na principal preocupação do artista, que é discutir os limites e possibilidades da representação do mundo hoje em dia.
Felipe Cama, por sua vez, com Notícias de lugar nenhum (Made in China), 2010 (acervo MAC-USP), também deve ser elencado como um profissional que trouxe outras questões para o autorretrato contemporâneo. Durante determinado período Cama printou do computador selfies produzidos por turistas das mais variadas partes do mundo, na Praça da Paz Celestial, em Pequim. Na sequência, ele viajou para aquela cidade e se retratou no mesmo lugar. Já no Brasil, de posse de todos aqueles selfies (inclusive o seu), Felipe enviou as fotos a uma manufatura chinesa para que as imagens fossem reproduzidas em pinturas hiper-realistas. Quando essas chegaram, o artista as justapôs formando uma grade de selfies, dentre os quais, o público pode encontrar aquele feito por ele próprio. Onde está Felipe; onde está Wally? Onde estamos nós, nesses dias de tantos selfies, em que a individualidade parece para sempre perdida frente à repetição incessante de um mesmo procedimento, de um mesmo esquema de representação?
Sidney Amaral, por sua vez, em sua curta trajetória, inoculou uma dimensão trágica ao esfacelamento do conceito tradicional de autorretrato no país ao retratar-se numa espécie de performance foto/pictórica (Imolação e Estudos para Imolação I, II, III e IV, acervo Pinacoteca de São Paulo). Na série, em que o artista aparece prestes a se suicidar, a imagem do seu corpo opera como índice e símbolo de uma questão que o ultrapassa: no conjunto, Sidney não trata de si, mas de todos os homens de sua etnia que se revoltam contra a situação de seus iguais em uma sociedade tão injusta quanto a brasileira[2].
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O arrolamento acima poderia ser ampliado de maneira substancial, acrescentando obras de outros artistas brasileiros que, dos anos 1970 até o presente solapam o conceito tradicional do autorretrato[3]. Muito poderia e deveria ser escrito sobre cada uma das produções desses artistas que se utilizam da imagem do próprio corpo (ou não) para falar de um eu totalmente fundido em questões que extrapolam a mera exploração da subjetividade burguesa. São artistas que, para lá do “selfie artístico”, buscam outros encaminhamentos para a prática da arte nos dias de hoje.
[1] – Tadeu Chiarelli, “A obra de Anna Bella Geiger e o colapso do autorretrato tradicional”. Conversa de Bar(r). ARTE!Brasileiros, 29 de janeiro de 2020.
[2] – Sobre o artista, consultar, entre outros: Tadeu Chiarelli, “Sidney Amaral: entre a afirmação e a imolação”, publicado em ARTE!Brasileiros, dia8 de outubro de 2018.
[3] – Para citar apenas mais alguns, como não lembrar dos trabalhos de Gretta Sarfaty, Alex Flemming, Hudinilson Jr., Amilcar Packer, Lia Chaia e, mais recentemente, Junior Sucy, Moisés Patrício e Renata Felinto?